20.2.11

Friedrich Nietzsche: § 343 de "A gaia ciência"





343

O sentido da nossa jovialidade. – O maior acontecimento recente – o fato de que "Deus está morto” de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular, mais desconfiado, mais estranho, "mais velho”: Mas pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande, distante e à margem da compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda que muitos soubessem já o que realmente sucedeu – e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado: toda a nossa moral europeia, por exemplo. Essa longa e abundante seqüência de ruptura, declínio. destruição, cataclismo, que agora é iminente: quem poderia hoje adivinhar o bastante acerca dela, para ter de servir de professor e prenunciador de uma tremenda lógica de horrores, de profeta de um eclipse e ensombrecimento solar, tal como provavelmente jamais houve na Terra?... Mesmo nós, adivinhos natos, que espreitamos do alto dos montes, por assim dizer, colocados entre o hoje e o amanhã e estendidos na contradição entre o hoje e o amanha, nós, primogênitos prematuros do século vindouro, aos quais as sombras que logo envolverão a Europa já deveriam ter se mostrado por agora: como se explica que mesmo nós encaremos sem muito interesse o limiar deste ensombrecimento, e até sem preocupação e temor por nós? Talvez soframos demais as primeiras conseqüências desse evento – e estas, as suas conseqüências para nós, não são, ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento, aurora... De fato. nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que "o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto "mar aberto”:



NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

58 comentários:

Climacus disse...

O metron é um conceito fundamental para os antigos, Protágoras, Sexto e Agostinho tomam o Homem como medida de todas as coisas, Platão toma Deus, Aristóteles, o melhor dos homens.

Homero toma o mar:

"O sentido fundamental, ou seja, a essência de metron, é a amplitude, o aberto, a clareira que se estende e amplia. Metron thalassês significa, em grego, não 'a medida' ou o 'padrão de medida' do mar, mas a amplitude do mar, 'o mar aberto'." (Heidegger).

one of us! disse...

Antonio Cicero, você não acha que Nietzsche se engana quando diz: "(...) e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado: toda a nossa moral europeia, por exemplo."? Isso lembra o argumento anti-ateu contemporâneo de que "sem Deus, não há moral" (também formulável deste célebre modo: "Se Deus não existe, tudo é permitido.").

Antonio Cicero disse...

One of us,

De certo modo, penso que você tem razão. Na verdade, devemos distinguir entre a moral positiva, dada, histórica, que é a que desmorona, e a ética, que, sendo universal, é o fundamento da verdadeira moral. Com o desmoronamento da primeira, abre-se caminho para a afirmação da segunda.

Nietzsche, sem fazer essa distinção e, aristocraticamente, desconfiando de toda pretensão à universalidade, comete dois erros, em dois momentos: no primeiro (niilismo negativo), pensa que toda moral desaparece para sempre; no segundo (niilismo positivo), pensa que o fato de que toda moral tenha desaparecido abre caminho para a afirmação dos valores que correspondam à vontade do mais forte.

one of us! disse...

Antonio Cicero, a meu ver, o erro de Nietzsche consistia em crer que Deus era o fundamento da moral, quando, na verdde, a moral não tem - e nem precisa ter - fundamento. Nesse, caso, você estaria cometendo um erro parecido ao pensar que a ética é o fundamento da moral.

Antonio Cicero disse...

One of us,

não concordo. Nietzsche está errado porque tenta fundamentar a moral heteronomamente.

A ética é o fundamento autônomo da moral. Se não fosse possível fundamentar a moral, então não poderíamos, por exemplo, condenar os apedrejamentos no Irã, pois a nossa moral não seria mais fundamentada do que a deles. Ora, penso que a moral dos direitos humanos é autonomamente (eticamente) fundamentada, de modo que é superior a qualquer moral que não leve esse fundamento em conta.

one of us! disse...

Antonio Cicero, se um apedrejador iraniano fundamentasse a moral dele, através de uma argumentação racional impecável, você deixaria de condenar o apedrejamento? Eu não deixaria. Isso, porque, para mim, o apedrejamento não é condenável porque carece de fundamento (ético, autônomo, racional), mas sim porque causa sofrimento. E por que o que causa sofrimento é condenável? Porque o que causa sofrimento ME causa sofrimento (um sofrimento chamado compaixão), e eu não preciso de razão nem fundamento nenhum para condenar o que me faz sofrer; isso me é natural e espontâneo, e nem sequer posso me impedir de fazê-lo. Além disso, fundamentar a moral (ou o que quer que seja) na razão – isto é, fundamentar a moral, já que todo fundamento é racional – exigiria antes fundamentar a própria razão, o que é impossível. Tentar fazê-lo é incorrer em um círculo vicioso: só a razão fundamentaria a razão, mas, para isso, precisaria já estar fundamentada. Logo, em última análise, não existem fundamentos verdadeiramente (nem para a moral nem para o que quer que seja), porque todo fundamento depende da razão, e esta é incapaz de fundamentar a si mesma.

Antonio Cicero disse...

One of us,

Não concordo, mas hoje estou absolutamente sem tempo. Responderei amanhã.

one of us! disse...

Antonio Cicero, aguardo ansioso a sua resposta. Antes dela, acrescento que não duvido que a razão seja universalmente válida. Só não acredito que essa validade seja racionalmente demonstrável. Além disso, essa validade não tem alcance ético, porque não diz respeito ao valor. Em outras palavras: dizer que a razão é universalmente válida é dizer que as verdades que a razão estabelece são universais, isto é, que são verdades. Mas valores não são verdades, nem decorrem delas. É impossível instituir um valor a partir de um raciocínio, por mais verdadeiro que ele seja. Valores são figurações imaginárias do desejo, e o desejo não tem razão, só causas. Quando dizemos que algo tem valor, estamos figurando imaginariamente o desejo que algo nos provoca (ou o prazer que nos suscita). Como disse Spinoza, não gostamos das coisas porque são boas; imaginamos que são boas porque gostamos delas. Nossos valores morais são valores (para nós) porque gostamos deles. Esses valores são figurações imaginárias do nosso apreço pela conduta altruísta, compassiva, tolerante, etc. Já que gostamos dessa conduta (já que a valorizamos), imaginamos que ela possua em si algo a que chamamos de “valor”. Mas nosso apreço por ela se deve a causas (certamente culturais e naturais), e não a razões, fundamentos, raciocínios. Ainda que a razão justificasse a intolerância, a crueldade e o egoísmo, estes continuariam a nos repelir e não se tornariam valores para nós. Por isso, continuaríamos a condenar o apedrejador iraniano, mesmo que ele fundamentasse a sua moral através de um raciocínio impecável. Logo, não precisamos de fundamento nenhum para condená-lo. Basta o horror que ele nos suscita.

Climacus disse...

sim sim, nada de pedras!!!

Nobile José disse...

one of us,

acredito que parte da resposta já foi dada: "a moral dos direitos humanos é autonomamente (eticamente) fundamentada, de modo que é superior a qualquer moral que não leve esse fundamento em conta."

não é possível ao apedrejador iraniano fundamentar sua moral, se ele consiste em eliminar os direitos humanos, pois apenas a partir de tais direitos é que pode decorrer qualquer fundamento nesse campo.

racionar ao contrário seria, por exemplo (que nem é t~çao bom exemplo assim, mais é o que me ocorre no momento) querer construir uma casa que em nenhum momento tocasse no chão: uma casa flutuante. racionalmente impossível, não?

tocar no chão é uma condição racional para que a casa se erga.

partir da fundamentação dos direitos humanos é condição racional para que o iraniano fundamente qualquer coisa, e por isso seria impossível a ele fundamentar, racionalmente, um apedrejamento.

o sentimento de hojeriza ao ato de apedrejar corre em paralelo à racionalização acima feita, mas não é a premissa do argumento.

Nobile José disse...

(cont)

one of us,

por outro lado, se sua dúvida reside em como que a ética é o fundamento autônomo da moral, aí eu deixo esse abacaxi pro cicero descascar... rs.

Antonio Cicero disse...

One of us,

Desculpe o atraso, mas ando realmente muito sem tempo. Por isso mesmo, vou direto ao que penso ser o ponto principal.

Você diz que “valores não são verdades, nem decorrem delas” e que “é impossível instituir um valor a partir de um raciocínio, por mais verdadeiro que ele seja”. Para você, “nossos valores morais são valores (para nós) porque gostamos deles”, de modo que, quando gostamos de uma conduta, “nosso apreço por ela se deve a causas (certamente culturais e naturais), e não a razões, fundamentos, raciocínios”.

Reconheço nessas afirmações as ideias de André Comte-Sponville. Tais afirmações pré-kantianas simplesmente destroem a possibilidade de qualquer moral. Nem Comte-Sponville nem você, nem ninguém devia falar em “valores morais”, quando está falando de coisas ou ações de que simplesmente gosta. A moral não é o que nos é “natural e espontâneo”, mas, ao contrário, o que muitas vezes se opõe ao “natural e espontâneo” – ao amoral – em nome da civilização. Moral não é aquilo de que eu, seja quem eu for, gosto: muitas vezes, aquilo de que gosto pode ser, ao contrário, imoral: e todo ser humano sabe perfeitamente disso. Pelo seu raciocínio, uma criança que goste de maltratar animais está fazendo algo moral, e ninguém poderia ensinar a ela que o que faz é, por isso, inaceitável, uma vez que, segundo você, “não se pode instituir um valor a partir de um raciocínio”. Sendo assim, SEGUNDO VOCÊ, NINGUÉM TEM SUPERIORIDADE MORAL SOBRE NINGUÉM. O apedrejador é tão moral quanto quem o condena: talvez até mais, pois é provável que, sendo um fanático religioso, goste mais de apedrejar do que nós gostamos de condenar esse ato. Em suma, esse relativismo destrói inteiramente a moral: ele é, em outras palavras, inteiramente imoral.

Para não vivermos num mundo em que os diferentes indivíduos e as diferentes culturas se dilacerem uns aos outros, cada qual acreditando estar moralmente justificado, é necessária uma moral baseada em princípios éticos universais. Esta já existe e é incorporada, por exemplo, pelos direitos humanos. É a partir dessa ética que podemos julgar os diferentes preceitos morais.

Meigle disse...

Antonio Cícero, só anteontem acessei pela primeira vez o blog e gostei muitíssimo, desde então venho acessando sempre. Eu conhecia apenas o seu belíssimo poema “Guardar”. A partir do blog, tenho admirado sua inteligência e seu estilo. E o blog é vivo, as discussões profícuas. Uma delícia.
Entendo que dizer que “a ética é o fundamento autônomo da moral” significa dizer, conforme a etimologia oferecida no verbete do Dicionário Houaiss para “autonomia” (gr. autonomía 'direito de reger-se segundo leis próprias'...) que nossas regras de conduta social (a moral) fundamentam-se em valores que foram construídos historicamente, com validade supra-individual (por isso muitas vezes os reconhecemos e ou seguimos a contragosto) e validade transnacional, dado que são cada vez mais amplamente veiculadas e adotadas no processo de expansão do capitalismo. Assim, essa ética de propensão universal fundamenta-se em si mesma e elegeu reger-se pela razão (como chamar, racionalidade filosófica?, razão argumentativa?, ela dispensa adjetivos?; sei bem pouco de filosofia). É isso?
Bom, na mesma direção, vejo que esse processo mesmo conduziu a (e também conduziu-se com) o conhecimento de sociedades cultural, moral, eticamente diversas, assim como a vários modos de combate pela primazia da nossa ética, que de modo rico e muito flexível comporta a pluralidade cultural ou moral que não a fira em sua essência. Um limite da luta pela expansão da ética que reconhecemos como universal reside no embate com o Islã fundamentalista, que confronta (ou afronta) o empenho ocidental por uma espécie de concerto mundial a partir de seus princípios éticos. Esse confronto ocorre hoje, forte e principalmente, pela reivindicação muçulmana de que sua ética possa vigorar (também universalmente?), o que implica um não reconhecimento da primazia, ou direito à universalidade, da nossa. Estou certa? Ou não se pode falar de ética em relação a esse Islã?
Pra mim está claro, eu não consigo deixar de ver um jogo de imposição de forças como fundamento para a universalização de uma ética. Com isto, acabo seguindo aquela “fundamentação heterônoma” da moral que você acusa como tentativa e erro de Nietzsche? O que não compreendo não é, acho, que a ética seja “o fundamento autônomo da moral”, mas sim: como sustentar um caráter universal, nesse sentido absoluto, de uma ética que é abrangente na medida da sua capacidade de relativização da diversidade cultural logo moral? Há mesmo aí um paradoxo? Não quero importuná-lo, já sei que você está sem tempo, mas gostaria muito que você comentasse, ou, se não for possível, que me indicasse um lugar onde já tenha esclarecido isso.

Antonio Cicero disse...

Meigle,

Obrigado pelas palavras generosas.

Sobre as suas dúvidas, creio que alguns breves artigos meus que se encontram neste blog podem esclarecer alguma coisa. Leia, por exemplo, “A ética e a religião” (http://antoniocicero.blogspot.com/2009/03/etica-e-religiao.html) e “A questão do progresso” (http://antoniocicero.blogspot.com/2008/05/questo-da-histria.html).

Abraço

one of us! disse...

PARTE 1:

Nobile José, segundo você, “não é possível ao apedrejador iraniano fundamentar sua moral”. Sim, mas imagine que fosse. Não estou dizendo que isso poderia acontecer de fato; estou propondo um exercício de imaginação. Se de repente o apedrejador justificasse racionalmente os seus atos, de modo irretorquível, você passaria a aprová-los?...

Antonio Cicero, você tem toda a razão: o ponto de vista que eu defendo aqui é o do Comte-Sponville. Aliás, já discutimos isso via e-mail um tempo atrás. Respondo às suas afirmações abaixo:

AC: “A moral não é o que nos é ‘natural e espontâneo’, mas, ao contrário, o que muitas vezes se opõe ao ‘natural e espontâneo’ – ao amoral – em nome da civilização.”

R: Eu nunca disse que “a moral” nos é natural e espontânea, pura e simplesmente. O que eu disse é que condenar o que me faz sofrer me é natural e espontâneo, não exigindo fundamento e sendo mesmo inevitável. Ora, se o imoral me faz sofrer (como no caso do apedrejamento, que me suscita compaixão pela vítima, e a compaixão é um tipo de sofrimento), não preciso de fundamento algum para condená-lo e nem sequer posso me impedir de fazê-lo. O que é natural e espontâneo aí é o repúdio ao meu próprio sofrimento (provavelmente a primeira sensação que eu experimentei ao vir ao mundo). Obviamente, esse repúdio não toma a forma de compaixão “natural e espontaneamente”. Para isso, é necessária a intervenção da cultura. Esta, por outro lado, não pode agir senão atualizando possibilidades naturais – a não ser que exista o sobre-natural, no que não creio.

AC: “Moral não é aquilo de que eu, seja quem eu for, gosto: muitas vezes, aquilo de que gosto pode ser, ao contrário, imoral: e todo ser humano sabe perfeitamente disso.”

R: Também nunca disse que “moral é aquilo de que gostamos”. De fato, isso não basta para definir a moral. Nem tudo de que gostamos é moral. Mas tudo que é moral é algo de que gostamos – e era isso na verdade o que eu tinha dito. Obviamente, podemos gostar de várias coisas diferentes (inclusive, contraditórias) ao mesmo tempo. É claro que às vezes gostamos do imoral. Mas só o condenamos ou renunciamos a ele se (num caso específico qualquer) gostarmos mais ainda da moral. É invariavelmente assim. Só renunciamos a um desejo em nome de outro, mais forte. Se encontro a carteira de alguém na rua, cheia de dinheiro, imediatamente dois desejos contraditórios surgem em mim: por um lado, o desejo de ficar com o dinheiro e gastá-lo com algo que me apraza; por outro lado, o desejo de que a pessoa que perdeu o dinheiro não sofra as conseqüências de perdê-lo (que podem, inclusive, ser atrozes, caso a pessoa em questão não disponha de muito mais dinheiro além daquele). O sofrimento dessa pessoa implicaria sofrimento para mim (por causa da compaixão), daí que eu deseje evitá-lo, paralelamente ao meu desejo de ficar com o dinheiro. (Na verdade, há também um terceiro desejo que me impele a devolver a carteira: o desejo narcisista de aparecer diante de meus próprios olhos e/ou de olhos alheios como uma “boa pessoa”, desejo este que, frustrado, me causaria uma sensação de remorso...) Pois bem, só devolverei a carteira se aquele meu primeiro desejo (primeiro em mais de um sentido), o mais brutamente egoísta, for mais fraco do que o(s) outro(s). Em todo caso, ajo movido pelo desejo, não pela razão.

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 2:

Aliás, como é que a razão poderia me mover (senão por intermédio do desejo, isto é, se eu desejasse agir racionalmente)? A razão é apenas o espelho neutro da verdade; ela nos mostra como as coisas são, mas não nos diz como deveriam ser – nem mesmo como nós deveríamos ser. Dados certos pressupostos infundamentáveis (por exemplo: “não se deve fazer aos outros o que não se quer que se faça a si mesmo”), aí sim a razão pode nos mostrar, em casos específicos, que certas condutas são devidas e outras, não. Mas os pressupostos eles mesmos permanecem fora do alcance da razão, e a moral, em última instância, permanece sem fundamento. Em outras palavras: ainda que a razão não respalde uma ação, não há motivo racional para condená-la. Qual é o motivo racional para condenar uma ação que a razão não respalda? Em outras palavras ainda, por que a ação racional é um dever? A equação “ação racional = dever” não é racionalmente justificável, isto é, não é passível de ser fundamentada. Só aderimos a ela se desejamos fazê-lo. (Isso, para não recolocar a questão da incapacidade da razão de fundamentar a si mesma, a qual implica a inexistência, em última análise, de todo e qualquer fundamento...).

AC: “Pelo seu raciocínio, uma criança que goste de maltratar animais está fazendo algo moral, e ninguém poderia ensinar a ela que o que faz é, por isso, inaceitável, uma vez que, segundo você, ‘não se pode instituir um valor a partir de um raciocínio’.”

R: Uma criança que goste de maltratar animais não está fazendo algo moral, porque nem todo gostar é moral (embora toda moral remeta a um gostar). O gostar especificamente moral é o que tem por objeto a conduta virtuosa (isto é, altruísta, compassiva, tolerante, etc.). De fato, é impossível ensinar à tal criança que o que ela faz é inaceitável – mediante raciocínios, diagramas, equações. Olhe ao seu redor, consulte pedagogos e a sua própria memória. Os pais não ensinam aos filhos que maltratar animais é errado demonstrando a eles, mediante argumentação racional, que essa conduta está em desacordo com a razão... O pai simplesmente diz: “Isso é feio!” “Isso não se faz!” E ponto final. Sem argumentos, sem razões, sem justificativas (que, em última instância, não há). O pai simplesmente mostra ao filho que ele (pai) não gosta daquela conduta, que ela o repele intensamente e lhe provoca repúdio. O filho, por sua vez, que se identifica com o pai e o toma por referência, passa a compartilhar o repúdio do pai pela conduta imoral. É assim que se educam as crianças; é assim que se mostra a elas que a conduta imoral é inaceitável: não demonstrando racionalmente que essa conduta carece de fundamento, mas sim incutindo nas crianças o repúdio a ela e o gosto pelo seu contrário, atualizando, dessa maneira, a sua capacidade natural para a compaixão – e inibindo, em certa medida, a sua capacidade natural para a crueldade. É só sobre esse fundo infundado de repúdio e gosto que a razão se exercerá mais tarde, mostrando que certas coisas devem ou não devem ser feitas, JÁ QUE “é ruim fazer aos outros o que não se quer que se faça a si mesmo”, etc.

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 3:

AC: “Sendo assim, SEGUNDO VOCÊ, NINGUÉM TEM SUPERIORIDADE MORAL SOBRE NINGUÉM.”

R: Em certo sentido, é verdade: ninguém tem superioridade moral sobre ninguém – em si, absoluta e objetivamente. Mas isso é irrelevante, porque os julgamentos morais nunca se dão “em si, absoluta e objetivamente”. Eles não se produzem espontaneamente no mundo, não brotam da terra como as árvores. Eles são sempre feitos por alguém, por um sujeito. E, para esse sujeito, em relação a ele e ao seu juízo, a superioridade (e a inferioridade) moral existem sim, inevitavelmente. E por que essa existência subjetiva e relativa não seria suficiente? Ela é mais do que bastante para nos fazer condenar o imoral e louvar o moral – quando, por outro lado, uma hipotética demonstração da superioridade objetiva do imoral não bastaria para nos fazer louvá-lo... A não ser que a “conformidade com a razão” fosse para nós um valor maior (isto é, nos suscitasse mais desejo e prazer) do que a compaixão, o altruísmo, a tolerância, etc. Nesse caso, seríamos como que “fanáticos da razão” (o que seria irracional).

AC: “O apedrejador é tão moral quanto quem o condena: talvez até mais, pois é provável que, sendo um fanático religioso, goste mais de apedrejar do que nós gostamos de condenar esse ato.”

R: É irrelevante quem gosta mais do quê. O apedrejador só é moral ou imoral dentro de um juízo moral específico. Dentro do nosso, independente do quanto ele goste de apedrejar, ele é imoral, porque causa sofrimento a outrem – sem que esse sofrimento evite mais e mais grave sofrimento de forma alguma.

AC: Para não vivermos num mundo em que os diferentes indivíduos e as diferentes culturas se dilacerem uns aos outros, cada qual acreditando estar moralmente justificado, é necessária uma moral baseada em princípios éticos universais. Esta já existe e é incorporada, por exemplo, pelos direitos humanos. É a partir dessa ética que podemos julgar os diferentes preceitos morais.

R: Infelizmente, é exatamente nesse mundo que nós vivemos! Não deveria ser assim se o que você diz acima fosse verdade, não percebe? Veja só: segundo você, 1 - para não vivermos num mundo X, é necessária uma moral Y; e 2 – a moral Y já existe. Mas, nesse caso, não viveríamos no mundo X, e é exatamente o contrário que é verdade! Infelizmente, no nosso mundo, “os diferentes indivíduos e as diferentes culturas se dilacerem uns aos outros, cada qual acreditando estar moralmente justificado”, A TODO O TEMPO. Se “uma moral baseada em princípios éticos universais” já existisse e bastasse para impedi-lo, a situação seria diferente. Seria ótimo, mas não é o caso.

Climacus disse...

será mesmo tão difícil levantar âncora?

Meigle disse...

Antonio Cícero,
Eu que agradeço pela indicação dos artigos.
Abraço

Antonio Cicero disse...

One of us,

Considero simplesmente dogmática e falsa a sua afirmação de que “é impossível instituir um valor a partir de um raciocínio, por mais verdadeiro que ele seja”.

A partir desse dogma, você afirma, por exemplo, que

Dados certos pressupostos infundamentáveis (por exemplo: “não se deve fazer aos outros o que não se quer que se faça a si mesmo”), aí sim a razão pode nos mostrar, em casos específicos, que certas condutas são devidas e outras, não. Mas os pressupostos eles mesmos permanecem fora do alcance da razão, e a moral, em última instância, permanece sem fundamento.

Ora, a regra moral “não se deve fazer aos outros o que não se quer que se faça a si mesmo”, por exemplo, que você cita, e que é uma versão da chamada “regra de ouro”, é aceita como regra moral por inúmeras culturas exatamente por ser, enquanto regra moral a reger a conduta social, evidentemente racional. Não devo fazer mal ao outro PORQUE eu poderia estar no lugar dele, e ele no meu lugar. Do mesmo modo, ele não deve fazer mal a mim PORQUE eu poderia estar no lugar dele, e ele no meu lugar. Em suma: “não faças ao outro o que não queres que outro te faça”.

Hobbes dizia: “homo lupus homini”, “o homem é o lobo do homem”. Espontaneamente, essa parece ser a forma da relação dos homens entre si. O sentido da regra de ouro é tornar menos selvagem a relação entre os seres humanos. Ela diz que os homens NÃO DEVEM ser os lobos uns dos outros. O que DEVE SER é diferente do que É. O QUE DEVE SER é o moral.

CONTINUA

Antonio Cicero disse...

CONTINUAÇÃO

Segundo você, “valores são figurações imaginárias do desejo”, o que quer dizer que você pensa, como Comte-Sponville, que os valores derivam do desejo. Vamos supor que isso seja verdade.

É uma tautologia que eu, seja quem eu for, desejo satisfazer o meu desejo. Isso quer dizer também que eu, seja quem eu for, não desejo que meus desejos sejam frustrados. Em outras palavras, seja quem eu for, não desejo que ninguém imponha os seus desejos – e os seus valores – contra os meus. Isso é um desejo universal: um desejo de todos os entes desejantes enquanto tais. Podemos formulá-lo assim: “Desejo, seja quem eu for, maximizar a realização dos meus desejos e minimizar a frustração dos mesmos”. Dado isso, é possível dar algumas das características necessárias da sociedade em que, em princípio, seria obtida a maximização da realização dos desejos dos indivíduos que a compõem.

Tal sociedade seria aquela em que a liberdade para a maximização da realização dos meus desejos – seja quem eu for – não seja limitada senão na medida em que isso seja necessário para compatibilizar essa minha liberdade com equivalente liberdade de qualquer uma das demais pessoas que, contingentemente, eu poderia ter sido. Opor-se à realização de semelhante sociedade seria imoral. O que acabo de dizer é uma das formulações possíveis de uma moral baseada em princípios éticos universais.

Precisamos de tal moral para não vivermos num mundo em que os diferentes indivíduos e as diferentes culturas se dilacerem uns aos outros, cada qual acreditando estar moralmente justificado. Ela é incorporada, por exemplo, pelos direitos humanos.

Quando afirmei isso, num comentário anterior, você alegou que, se fosse assim, os diferentes indivíduos e as diferentes culturas não se dilacerariam uns aos outros, cada qual acreditando estar moralmente justificado. Ora, desde quando o fato de haver regras morais significa que elas sejam obedecidas por todo o mundo? Há quanto tempo “Não matarás” é uma regra moral na cultura judaico-cristã? E desde quando foi nela universalmente obedecida?

Você diz que é irrelevante que ninguém tenha superioridade moral sobre ninguém – em si, absoluta e objetivamente – pois os juízos morais são sempre feitos por um sujeito, em relação ao qual a superioridade e a inferioridade moral existem sim, inevitavelmente. Você está errado. É inteiramente diferente dizer, como os sujeitos a que você se refere, “Tal coisa é errada DO MEU PONTO DE VISTA, mas não de outros pontos de vista”. Isso simplesmente destrói qualquer pretensão a superioridade moral, pois significa, por exemplo, que condeno o apedrejador DO MEU PONTO DE VISTA, mas tenho que reconhecer que, do ponto de vista dele, ele está certo... “Muito diferente é dizer: “O apedrejador está moralmente errado”, sem concessões. E isso é, na verdade, o que cada dia mais pessoas fazem no mundo contemporâneo: o que mostra que a moral pode basear-se na razão.

one of us! disse...

Antonio Cicero, seguem-se as minhas respostas às suas colocações:

AC: “Considero simplesmente dogmática e falsa a sua afirmação de que ‘é impossível instituir um valor a partir de um raciocínio, por mais verdadeiro que ele seja’.”

R: Bom, essa acusação me parece bastante injusta. Minha afirmação só seria dogmática se eu não tivesse fornecido argumentos para respaldá-la; na verdade, eu os forneci, e abundantes (como a releitura dos meus comentários anteriores pode comprovar). Ao contrário do que você diz, meu raciocínio não se desenvolve “a partir” da afirmação citada, mas sim culmina nela. Ao que parece, você não compreendeu muito bem a minha argumentação, ou, antes, eu não soube me fazer entender. Vou tentar aclarar o meu ponto de vista ao responder às suas colocações seguintes (abaixo).

AC: “Ora, a regra moral ‘não se deve fazer aos outros o que não se quer que se faça a si mesmo’, por exemplo, que você cita, e que é uma versão da chamada ‘regra de ouro’, é aceita como regra moral por inúmeras culturas exatamente por ser, enquanto regra moral a reger a conduta social, evidentemente racional. Não devo fazer mal ao outro PORQUE eu poderia estar no lugar dele, e ele no meu lugar. Do mesmo modo, ele não deve fazer mal a mim PORQUE eu poderia estar no lugar dele, e ele no meu lugar. Em suma: ‘não faças ao outro o que não queres que outro te faça’.”

R: A seguir, tento esquematizar nossa discussão sobre esse ponto:

1. eu afirmo que a equação “não fazer mal ao outro = dever” é infundamentável (esclareço que quis dizer “infundamentável em última instância”);

2. você contesta a minha afirmação e tenta fundamentar a equação dizendo o seguinte: “não fazer mal ao outro = dever” PORQUE eu poderia estar no lugar do outro. Repare que essa afirmação tem como pressuposto tácito uma outra equação: “não fazer mal a alguém em cujo lugar eu poderia estar = dever”. Sua afirmação só é verdadeira se essa equação também for. Logo, o suposto fundamento daquela primeira equação depende dessa segunda, isto é, depende de ela estar fundamentada. Em última análise, o que você afirmou foi: “não fazer mal ao outro = dever” PORQUE “outro = alguém em cujo lugar eu poderia estar” e “não fazer mal a alguém em cujo lugar eu poderia estar = dever”;

3. eu, agora, afirmo que a equação “não fazer mal a alguém em cujo lugar eu poderia estar = dever” é infundamentável em última instância (e é por isso que a primeira também o é). Tentar fundamentá-la nos remeteria fatalmente a uma outra equação de mesma estrutura, isto é, uma equação que teria “dever” como um de seus termos. Essa nova tentativa de fundamentação só poderia tomar a seguinte forma: “não fazer mal a alguém em cujo lugar eu poderia estar = dever” PORQUE “alguém em cujo lugar eu poderia estar = X” e “não fazer mal a X = dever”. Eu, então, afirmaria que essa última equação é infundamentável em última instância (assim, portanto, como todas as outras). A tentativa de fundamentá-la fatalmente tomaria a forma: “X = dever” PORQUE “X = Y” e “não fazer mal a Y = dever.” Eu, então, afirmaria que essa última equação é infundamentável em última instância (assim, portanto, como todas as outras) – e assim ao infinito.

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 2:

Ou seja: sempre que tentarmos fundamentar uma equação que tenha “dever” como um de seus termos, seremos inevitavelmente remetidos a uma outra equação que terá “dever” como um de seus termos. Se quisermos, poderemos passar de equação a equação até o infinito. O que isso mostra é que, EM ÚLTIMA INSTÂNCIA, nenhuma dessas equações é fundamentável. Todas elas vinculam um fato (por exemplo: “outro = alguém em cujo lugar eu poderia estar”, “alguém em cujo lugar eu poderia estar = X”, “X = Y”) a uma prática (“não fazer mal”), sendo que os fatos sempre dizem respeito ao objeto da prática. Passando de equação a equação, estaremos apenas acumulando fatos sobre o objeto da prática, sem jamais demonstrar a necessidade lógica do vínculo entre os fatos e a prática – o que leva a crer que essa necessidade não existe. Em outras palavras, não há como depreender logicamente um dever de um fato. Não há nexo racional entre fato e dever, verdade e valor. Esse nexo é sempre arbitrário, estabelecido por nós em função do nosso desejo, e não de uma necessidade lógica e/ou de um dado da realidade objetiva. Como você vê, essa idéia é um ponto de chegada que eu atinjo através de argumentos (dos quais naturalmente é sempre possível discordar); e não um ponto de partida que eu tome como um dogma.

Ademais, suponhamos que o outro não pudesse estar no meu lugar, nem eu no dele. Nesse caso, seria legítimo fazer-lhe mal? Nossa compaixão por ele já não bastaria para que nos vetássemos isso? Portanto, não é de fato a nossa compaixão por ele que nos impede de lhe fazer mal? A regra de ouro simplesmente chama atenção para o fato de que o outro é capaz de sofrer, como nós. Mas essa sua capacidade para o sofrimento só nos compele a não lhe fazer mal caso nós não desejemos que ele sofra, isto é, caso o seu sofrimento implique sofrimento também para nós. O fato em si, este sim demonstrável pela razão, não nos compele a nada, a não ser mediante o intermédio da compaixão.

Além disso, há também o fato (que já mencionei) de que, para que a razão fundamentasse o que quer que fosse, seria preciso antes que ela se fundamentasse a si mesma, o que seria impossível, pois acarretaria um círculo vicioso.

AC: “Hobbes dizia: ‘homo lupus homini’, ‘o homem é o lobo do homem’. Espontaneamente, essa parece ser a forma da relação dos homens entre si. O sentido da regra de ouro é tornar menos selvagem a relação entre os seres humanos. Ela diz que os homens NÃO DEVEM ser os lobos uns dos outros. O que DEVE SER é diferente do que É. O QUE DEVE SER é o moral.”

R: Concordo inteiramente – e acrescento que nada disso refuta o que eu venho dizendo. De fato, é justamente a diferença entre “o que DEVE SER” e “o que É” que faz com que a razão, a qual só alcança “o que É”, não tenha nada a nos dizer acerca do “que DEVE SER”.

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 3:

AC: “É uma tautologia que eu, seja quem eu for, desejo satisfazer o meu desejo. Isso quer dizer também que eu, seja quem eu for, não desejo que meus desejos sejam frustrados. Em outras palavras, seja quem eu for, não desejo que ninguém imponha os seus desejos – e os seus valores – contra os meus. Isso é um desejo universal: um desejo de todos os entes desejantes enquanto tais. (...) O que acabo de dizer é uma das formulações possíveis de uma moral baseada em princípios éticos universais.”

R: Aqui, é preciso distinguir dois sentidos do termo “universal”, que você me parece confundir. Num sentido a que poderíamos chamar “fraco”, universal é o que diz respeito a um grupo particular qualquer, por exemplo: a humanidade ou “todos os entes desejantes”. No sentido forte, porém, universal é o que diz respeito a tudo, sem exceção – isto é, não a um grupo particular qualquer, mas sim ao grupo de todos os grupos, o grupo chamado universo, que contém tudo o que existe e pode existir. Universal, nesse segundo sentido (e apenas nele), é sinônimo de objetivo e absoluto. O desejo a que você se refere só é universal no sentido fraco do termo, porque se restringe ao grupo particular “todos os entes desejantes”. Um desejo universal no sentido forte do termo não seria um desejo partilhado por “todos os entes desejantes”, mas sim um desejo que existisse independentemente de todo e qualquer ente desejante (sendo assim objetivo e absoluto), uma noção claramente auto-contraditória. Da mesma maneira, um valor universal teria que valer não para todos os homens, mas sim em si, ou seja, independentemente de todo e qualquer homem (uma valor que valha para todos os homens, é para eles que ele vale, e não em si). Um tal valor teria que continuar a valer (teria que continuar a existir como valor) ainda que já não houvesse mais nenhum homem sobre a face da Terra (ou em qualquer outro ponto do universo). Em que diabos consistiria um valor desse tipo é algo que não consigo imaginar! A meu ver, você imputa erroneamente os atributos da universalidade forte (objetividade e caráter absoluto) a “universais fracos”, por assim dizer, quais sejam: o desejo de “maximizar a realização dos meus desejos e minimizar a frustração dos mesmos” (seja quem eu for) e os valores que decorrem desse desejo.

AC: “Dado isso, é possível dizer qual seria a sociedade em que, em princípio, seria obtida a maximização da realização e a minimização da frustração dos desejos da maior parte das pessoas. (...) Tal sociedade seria aquela em que a liberdade para a maximização da realização dos meus desejos – seja quem eu for – não seja limitada senão na medida em que isso seja necessário para compatibilizar essa minha liberdade com equivalente liberdade de qualquer uma das demais pessoas que, contingentemente, eu poderia ter sido.”

R: Também estou convicto disso. E penso inclusive que se deve lutar em defesa dessa sociedade – e contra os que se opõem a ela – com todas as armas disponíveis. Nem essa convicção nem essa luta exigem que a moral esteja fundamentada na razão e na verdade.

AC: “Sendo assim, simplesmente seria moral desejar uma sociedade dessa natureza e imoral não desejá-la.”

R: Seria moral desejar? Seria imoral não desejar? Como é que a moral poderia incidir sobre desejos? Não escolhemos o que desejamos, não controlamos nossos desejos, logo não podemos julgá-los moralmente. A moral só julga ações, não sentimentos nem desejos, que fogem à deliberação, à escolha, ao controle – pelos quais, portanto, não se é responsável.

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 4:

AC: “Precisamos de tal moral para não vivermos num mundo em que os diferentes indivíduos e as diferentes culturas se dilacerem uns aos outros, cada qual acreditando estar moralmente justificado. Ela é incorporada, por exemplo, pelos direitos humanos.

Quando afirmei isso, num comentário anterior, você alegou que, se fosse assim, os diferentes indivíduos e as diferentes culturas não se dilacerariam uns aos outros, cada qual acreditando estar moralmente justificado. Ora, desde quando o fato de haver regras morais significa que elas sejam obedecidas por todo o mundo? Há quanto tempo “Não matarás” é uma regra moral na cultura judaico-cristã? E desde quando foi nela universalmente obedecida?”

R: É que você tinha dito que uma certa moral seria necessária para vivermos num certo mundo, no qual não vivemos, e que essa moral já existia. Essas afirmações me pareceram contraditórias, porque, se a tal moral já existe, já deveríamos viver naquele mundo, e não é o caso. Ocorre que você não tinha dito que a moral seria suficiente para que vivêssemos no tal mundo, mas apenas necessária. Assim sendo, você tem razão: minha alegação realmente era falsa.

AC: “Você diz que é irrelevante que ninguém tenha superioridade moral sobre ninguém – em si, absoluta e objetivamente – pois os juízos morais são sempre feitos por um sujeito, em relação ao qual a superioridade e a inferioridade moral existem sim, inevitavelmente. Você está errado. É inteiramente diferente dizer, como os sujeitos a que você se refere, ‘Tal coisa é errada DO MEU PONTO DE VISTA, mas não de outros pontos de vista’. Isso simplesmente destrói qualquer pretensão a superioridade moral, pois significa, por exemplo, que condeno o apedrejador DO MEU PONTO DE VISTA, mas tenho que reconhecer que, do ponto de vista dele, ele está certo... ‘Muito diferente é dizer: ‘O apedrejador está moralmente errado’, sem concessões. E isso é, na verdade, o que cada dia mais pessoas fazem no mundo contemporâneo: o que mostra que a moral pode basear-se na razão.”

R: Bom, o fato de que “cada dia mais pessoas” fazem algo não mostra absolutamente nada, porque todas essas pessoas, não importando quão numerosas elas sejam, podem perfeitamente estar enganadas. De resto, não discordo do que você afirma nesse trecho: as diferenças que você menciona de fato existem, e foi por isso mesmo que eu não usei os termos “indiferente” ou “idêntico”, mas sim a palavra “irrelevante”. Na prática, eu e você temos exatamente a mesma postura quanto ao apedrejador iraniano; nossas diferenças teóricas, no caso, são irrelevantes. Não tenho a menor necessidade de me sentir absolutamente certo em relação a ele, objetivamente superior, universalmente moral, para condená-lo. Gostaria muito de respeitar a cultura e a moral dele, já que, de fato, elas EM SI não são piores do que as minhas, mas gostaria mais ainda (MUITO mais ainda) que ele não apedrejasse as pessoas... Por isso, se eu tivesse meios práticos de impedi-lo, lançaria mão deles até os seus últimos limites, sem hesitar. Por que deveria deixar de fazê-lo, só porque a razão não me respalda (de forma absoluta)? Seria preciso que a razão valesse mais para mim do que a compaixão, mais do que tudo. Eu, nesse caso, seria um “fanático da razão”, o que seria irracional.

Antonio Cicero disse...

One of us:

Sobre a “regra de ouro”:
A sua leitura da minha afirmação de que a regra de ouro é fundamentada não é correta. Digo:

“Não devo fazer mal ao outro PORQUE eu poderia estar no lugar dele, e ele no meu lugar. Do mesmo modo, ele não deve fazer mal a mim PORQUE eu poderia estar no lugar dele, e ele no meu lugar”.

Você crê que essa argumentação se baseia numa proposição tal como “não fazer mal a X = dever”. Isso está inteiramente errado e não corresponde ao que afirmei. Na verdade, achei que certos axiomas pressupostos pelo que eu estava afirmando eram claríssimos. Vejo que não. Vou, por isso, esmiuçá-lo.

1.

Tautológicamente, o bem é o desejável e o mal, o indesejável. Pouco importa, neste contexto, se alguém considera (1) que o bem é bem PORQUE é desejável ou (2) que o bem é desejável PORQUE é o bem. Tudo o que importa é que, analiticamente, o bem é desejável e o mal, indesejável.

Sendo assim, é analiticamente verdadeiro que não quero que me façam mal.

2.

É também analiticamente verdadeiro o fato de que é CONTINGENTE que eu esteja no lugar de fazer mal a outro. Isso quer dizer que eu posso eventualmente me encontrar no lugar daquele a quem o mal é feito.

Essa é a razão pela qual analiticamente adoto e desejo que seja universalmente adotada – isto é, adotada por todos os seres humanos – a regra de ouro, que pode ser formulada assim: “Ninguém DEVE fazer ao outro o que não deseja que lhe seja feito”. A “compaixão” a que você se refere é, quando bem examinada, exatamente a capacidade que temos de nos colocarmos no lugar do outro, e o outro em nosso lugar.

Desculpe, mas as suas observações sobre o termo “universal” são inteiramente despropositadas. Dizer que eu “confundo” os sentidos do termo é trair a confusão em que VOCÊ se encontra. Emprego a palavra no sentido da lógica formal, em que uma proposição categórica geral se diz “universal” quando se aplica a todos os objetos da classe-sujeito ou a todos os objetos que tenham a propriedade-sujeito. A classe-sujeito, no caso, são os entes desejantes. Por isso, o que você diz nesse parágrafo é inteiramente destituído de sentido, na nossa discussão.

Finalmente, não foi para provar que minha tese está certa que citei o fato de que cada dia mais pessoas aceitam a moral dos direitos humanos. O que me interessa sublinhar é que o fato de que, apesar de essa moral não ser espontânea, isto é, não se basear puramente em desejos irracionais e irredutíveis, mas em considerações racionais, ela esteja sendo adotada por um número cada vez maior de pessoas: o que é uma evidência prática de que a ética pode perfeitamente basear-se na razão.

one of us! disse...

PARTE 1:

Antonio Cicero, seguem-se abaixo as minhas respostas ao seu último comentário:

AC: “A sua leitura da minha afirmação de que a regra de ouro é fundamentada não é correta. Digo: ‘Não devo fazer mal ao outro PORQUE eu poderia estar no lugar dele, e ele no meu lugar. Do mesmo modo, ele não deve fazer mal a mim PORQUE eu poderia estar no lugar dele, e ele no meu lugar’. Você crê que essa argumentação se baseia numa proposição tal como ‘não fazer mal a X = dever’. Isso está inteiramente errado e não corresponde ao que afirmei.”

R: Você se engana quando diz que eu creio que a sua argumentação “se baseia numa proposição tal como ‘não fazer mal a X = dever’”. Só o que o meu raciocínio pressupõe é a equivalência entre a afirmativa “não devo fazer mal ao outro” e a equação “não fazer mal ao outro = dever”. Ora, é ÓBVIO que essa equivalência existe. Não compreendo como alguém possa negá-la. O que você afirmou, textualmente, foi: “Não devo fazer mal ao outro PORQUE eu poderia estar no lugar dele”. Só o que fiz foi traduzir essa assertiva do seguinte modo: “Não fazer mal ao outro = dever” PORQUE “outro = alguém em cujo lugar eu poderia estar” – e (subentende-se) “não fazer mal a alguém em cujo lugar eu poderia estar = dever”. Parece-me absolutamente evidente que esse esquema corresponde sim ao que você afirmou, não estando de modo algum “inteiramente errado”. Assim sendo, não vejo porque minha leitura da sua afirmação estaria incorreta. Como é a partir dessa leitura que se desenvolve o meu raciocínio (no qual demonstro que é impossível instituir um valor a partir de um raciocínio, tomando como exemplo a regra de ouro), não há (até segunda ordem) motivos para considerá-lo inválido, nem acho nada na sua última resposta que o refute. Você afirma que ele está errado. A meu ver, seria preciso demonstrar esse suposto erro, retomando a minha argumentação em detalhe e mostrando exatamente em que ponto(s) ela está errada, e não meramente alegar que o erro existe, sem maiores explicações. O que você faz em seguida é apenas reiterar a sua posição anterior, dando-lhe uma forma mais ou menos outra, sem levar em conta o que eu havia dito. Claramente, isso não vale por uma refutação.

AC: “1. Tautologicamente, o bem é o desejável e o mal, o indesejável. Pouco importa, neste contexto, se alguém considera (1) que o bem é bem PORQUE é desejável ou (2) que o bem é desejável PORQUE é o bem. Tudo o que importa é que, analiticamente, o bem é desejável e o mal, indesejável.

Sendo assim, é analiticamente verdadeiro que não quero que me façam mal.

2. É também analiticamente verdadeiro o fato de que é CONTINGENTE que eu esteja no lugar de fazer mal a outro. Isso quer dizer que eu posso eventualmente me encontrar no lugar daquele a quem o mal é feito.

Essa é a razão pela qual analiticamente adoto e desejo que seja universalmente adotada – isto é, adotada por todos os seres humanos – a regra de ouro, que pode ser formulada assim: ‘Ninguém DEVE fazer ao outro o que não deseja que lhe seja feito’.”

R: O que você diz acima é, basicamente, o que já tinha dito antes: como você, quem quer que seja, não quer que lhe façam mal e como o outro poderia estar em seu lugar e vice-e-versa, não se deve fazer ao outro o que não se deseja que seja feito a si mesmo. Essa é a sua tentativa de fundamentar a regra de ouro. No meu último comentário, eu demonstrei por que essa tentativa fracassa. Seria preciso refutar a minha demonstração, em vez de apenas repetir com outras palavras o que já havia sido dito.

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 2

AC: “A ‘compaixão’ a que você se refere é, quando bem examinada, exatamente a capacidade que temos de nos colocarmos no lugar do outro, e o outro em nosso lugar.”

R: Na verdade, a compaixão não é uma capacidade mental (a capacidade de se imaginar hipoteticamente no lugar do outro), mas sim um sentimento, e um sentimento de dor. Compadecer-se de uma pessoa, como a etimologia indica, é sofrer junto com essa pessoa, sofrer porque ela sofre. É por isso que se pode dizer que somos altruístas por egoísmo. Para evitar o sofrimento da compaixão, desejamos que os outros não sofram. A compaixão é, assim, a causa da moral, que não tem razões.

AC: “Desculpe, mas as suas observações sobre o termo ‘universal’ são inteiramente despropositadas. Dizer que eu ‘confundo’ os sentidos do termo é trair a confusão em que VOCÊ se encontra. Emprego a palavra no sentido da lógica formal, em que uma proposição categórica geral se diz ‘universal’ quando se aplica a todos os objetos da classe-sujeito ou a todos os objetos que tenham a propriedade-sujeito. A classe-sujeito, no caso, são os entes desejantes. Por isso, o que você diz nesse parágrafo é inteiramente destituído de sentido, na nossa discussão.”

R: O que você diz acima apenas CONFIRMA as minhas observações sobre o seu uso confuso do termo ‘universal’. Por isso, acho muito estranho que você as acuse de despropositadas e sem sentido, ainda por cima atribuindo a sua confusão a mim (sem demonstrá-lo). Eis no que consiste exatamente essa sua confusão: você imputa erroneamente os atributos da universalidade forte (objetividade e caráter absoluto) a “universais fracos”, por assim dizer, quais sejam: o desejo de “maximizar a realização dos meus desejos e minimizar a frustração dos mesmos” (seja quem eu for) e os valores que decorrem desse desejo. Ora, o sentido que a lógica formal dá a “universal”, no qual você admite empregar o termo, encaixa-se justamente na categoria “sentido fraco” que eu havia proposto. Como eu dissera, “universal”, no sentido fraco, diz respeito não ao universo, mas sim a um grupo particular qualquer, por exemplo: “todos os objetos da classe-sujeito”, todos os entes desejantes. Você (agora confessadamente) emprega “universal” em um sentido fraco (o sentido da lógica formal), mas pretende, ao mesmo tempo, que o universal implique o objetivo e o absoluto, atributos exclusivos da universalidade forte. Se isso não for confusão, eu não sei o que é.

AC: “Finalmente, não foi para provar que minha tese está certa que citei o fato de que cada dia mais pessoas aceitam a moral dos direitos humanos. O que me interessa sublinhar é que o fato de que, apesar de essa moral não ser espontânea, isto é, não se basear puramente em desejos irracionais e irredutíveis, mas em considerações racionais, ela esteja sendo adotada por um número cada vez maior de pessoas: o que é uma evidência prática de que a ética pode perfeitamente basear-se na razão.”

R: Em outras palavras: já que a moral dos direitos humanos se baseia na razão, o fato de ela estar sendo adotada por um número crescente de pessoas é uma evidência de que a moral pode se basear na razão... A circularidade desse raciocínio o invalida.

Climacus disse...

"Mesmo quando eu amplio meu amor além dos limites da minha pátria sobre os homens em geral, mesmo desse amor geral à humanidade não está excluído o amor-próprio, porque nos homens amo minha essência, minha espécie; são carne da minha carne, sangue do meu sangue" Feuerbach.

"Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus! (...)

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito." Vinicius

Antonio Cicero disse...

One of us,

I
Vou começar falando de uma questão secundária, porém reveladora da confusão do seu modo de argumentar. Você acha errado que eu considere despropositadas e sem sentido as suas observações sobre o meu uso do termo “universal”.

Elas são, sim, despropositadas e sem sentido. Basta rever o que eu afirmei e rever a acusação que você faz, para ver que ela não tem o menor sentido. Releia a minha afirmação (ponho em maiúsculas os trechos mais relevantes):

“Seja quem eu for, não desejo que ninguém imponha os seus desejos – e os seus valores – contra os meus. ISSO É UM DESEJO UNIVERSAL: UM DESEJO DE TODOS OS ENTES DESEJANTES ENQUANTO TAIS. PODEMOS FORMULÁ-LO ASSIM: “DESEJO, SEJA QUEM EU FOR, MAXIMIZAR A REALIZAÇÃO DOS MEUS DESEJOS E MINIMIZAR A FRUSTRAÇÃO DOS MESMOS.

“Dado isso, é possível dar algumas das características necessárias da sociedade em que, em princípio, seria obtida a maximização da realização dos desejos dos indivíduos que a compõem.


“Tal sociedade seria aquela em que a liberdade para a maximização da realização dos meus desejos – seja quem eu for – não seja limitada senão na medida em que isso seja necessário para compatibilizar essa minha liberdade com equivalente liberdade de qualquer uma das demais pessoas que, contingentemente, eu poderia ter sido. Opor-se à realização de semelhante sociedade seria imoral. O QUE ACABO DE DIZER É UMA DAS FORMULAÇÕES POSSÍVEIS DE UMA MORAL BASEADA EM PRINCÍPIOS ÉTICOS UNIVERSAIS”.

É claro para qualquer leitor de boa vontade que digo EXPLICITAMENTE em que consiste um DESEJO UNIVERSAL, nesse contexto: “UM DESEJO DE TODOS OS ENTES DESEJANTES ENQUANTO TAIS”. É evidente, portanto, que quando falo, a partir desse desejo universal, de uma moral baseada em princípios éticos universais, a palavra “universais” refere-se ao universo de todos os entes desejantes. Você, porém, veio com um assunto inteiramente irrelevante à questão, reivindicado a distinção entre um sentido “fraco” e um sentido “forte” de universal. Neste segundo sentido, universal seria, segundo você,

“o que diz respeito a tudo, sem exceção – isto é, não a um grupo particular qualquer, mas sim ao grupo de todos os grupos, o grupo chamado universo, que contém tudo o que existe e pode existir. Universal, nesse segundo sentido (e apenas nele) é sinônimo de objetivo e absoluto”

O que você diz em seguida só se ocorreu na sua cabeça:

“A meu ver, você imputa erroneamente os atributos da universalidade forte (objetividade e caráter absoluto) a ‘universais fracos’, por assim dizer, quais sejam: o desejo de ‘maximizar a realização dos meus desejos e minimizar a frustração dos mesmos’ (seja quem eu for) e os valores que decorrem desse desejo”.

De onde você tirou que eu imputo o que você chama de “universalidade forte” ao que chama de “universais fracos”, se digo (veja a parte em maiúsculas) explicitamente o que entendo por desejo universal?

E a partir dessa falsa imputação, você deduz absurdos a que as minhas afirmações conduziriam.

Digo isso, deixando de lado o fato de que sua maneira de se expressar não tem respaldo nem na tradição lógica nem na tradição filosófica. Trata-se de uma idiossincrasia sua. Se fosse como você quer, seria também absurda praticamente toda a filosofia. Para dar um exemplo, seria absurda a proposição dos defensores da ética comunicativa, como Apel e Habermas – pensadores infinitamente mais profundos do que o Comte-Sponville, diga-se de passagem – quando falam no “fato universal da linguagem como definidor da condição humana, pois DESDE QUE FORMULAMOS EM QUALQUER LÍNGUA A PRIMEIRA FRASE, EXPRESSAMOS DE MANEIRA INEQUÍVOCA A INTENÇÃO DE CHEGAR A UM CONSENSO UNIVERSAL IRRESTRITO”. Se aceitarmos o modo em que você põe as coisas, também essa ideia de um consenso universal irrestrito confundiria o sentido “fraco” e o sentido “forte” da expressão “universal”.

Assim não há discussão possível... Absurdo é esse seu modo de argumentar.

Antonio Cicero disse...

One of us:

II

Em segundo lugar, faço-lhe apenas uma pergunta: você diz (24/02, ás 11:42) que “tudo o que é moral é algo de que gostamos”, mas que “nem tudo de que gostamos é moral”. Qual então, segundo você, a diferença entre aquilo de que gostamos e que é moral e aquilo de que gostamos e que não é moral? Qual é a diferença específica do moral, segundo você?

one of us! disse...

PARTE 1:

Antonio Cicero, respondo abaixo às suas colocações:

AC: “É claro para qualquer leitor de boa vontade que digo EXPLICITAMENTE em que consiste um DESEJO UNIVERSAL, nesse contexto: ‘UM DESEJO DE TODOS OS ENTES DESEJANTES ENQUANTO TAIS’. É evidente, portanto, que quando falo, a partir desse desejo universal, de uma moral baseada em princípios éticos universais, a palavra ‘universais’ refere-se ao universo de todos os entes desejantes.”

R: Sim, isso é claro inclusive para mim, e eu nunca o contestei. Pelo contrário: é justamente porque, no seu discurso, a palavra “universal” se refere a um universo limitado (o conjunto dos entes desejantes) que eu afirmei que você emprega o termo no sentido a que chamei “fraco”. O que você parece não notar é que, se os princípios éticos de que você fala só são universais em relação ao “universo de todos os entes desejantes”, então é só PARA ESSES ENTES que tais princípios valem, e não EM SI. Esses princípios, portanto, são relativos (aos entes desejantes) e subjetivos (restringem-se aos sujeitos do desejo). Ora, princípios fundamentados pela razão estariam fundados na verdade, fariam parte dela enquanto princípios, sendo, portanto, tão absolutos, objetivos – e universais no sentido forte do termo – quanto a própria verdade (e apenas ela) é.

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 2:

AC: “Você, porém, veio com um assunto inteiramente irrelevante à questão (...)”

R: Esse assunto não é “inteiramente irrelevante à questão”; você é que ainda não percebeu a relevância dele. Vou tentar me explicar melhor abaixo.

AC: “O que você diz em seguida só se ocorreu na sua cabeça: ‘A meu ver, você imputa erroneamente os atributos da universalidade forte (...) a ‘universais fracos’ (...)’. De onde você tirou que eu imputo o que você chama de ‘universalidade forte’ ao que chama de ‘universais fracos’, se digo (veja a parte em maiúsculas) explicitamente o que entendo por desejo universal? E a partir dessa falsa imputação, você deduz absurdos a que as minhas afirmações conduziriam.”

R: É possível que eu tenha entendido mal o que você disse, embora eu não ache que seja o caso. Confesso que me baseei também no que você já tinha me dito antes, quando da nossa discussão via e-mail sobre Comte-Sponville. Para você, tratava-se de mostrar que era possível fundamentar racionalmente princípios éticos, fundamentando-os de fato. Você dizia que certos desejos eram universais (no sentido fraco), assim como os princípios éticos deles decorrentes. Ocorre que princípios fundamentados seriam princípios verdadeiros enquanto tais, logo objetivos e absolutos (atributos da universalidade forte) – e isso quem diz sou eu. Daí que eu tenha identificado no seu raciocínio uma confusão entre os sentidos do termo “universal”. Na discussão por e-mail que eu mencionei, você havia argumentado de modo muito semelhante. Se me permite, cito um e-mail seu:

“eu – seja quem eu for – sei que os meus valores positivos não são objetivamente superiores aos de nenhum outro: que não seria sequer concebível que eu – seja quem eu for – demonstrasse objetivamente a superioridade dos meus valores positivos aos valores positivos de nenhum outro.

Dessa verdade, segue-se outra: eu – seja quem eu for – sei que não seria capaz de justificar racionalmente a imposição dos meus valores positivos a nenhum outro; e, reciprocamente, que nenhum outro seria capaz de justificar racionalmente a imposição os seus valores positivos a mim. Isso significa que eu – seja quem eu for – tenho a obrigação ética – baseada puramente na verdade e na razão – de respeitar a liberdade alheia de seguir e defender os seus próprios valores positivos até o ponto em que isso interfira na minha liberdade de seguir e defender os meus próprios valores positivos; e, reciprocamente, que todos os outros têm a obrigação moral de respeitar a minha liberdade de seguir os meus próprios valores positivos até o ponto em que isso interfira na liberdade deles de seguir os seus próprios valores positivos.

Ora, como essa regra não consiste num valor positivo e contingente, mas num valor baseado na verdade e na razão – que é puramente crítica, isto é, negativa – TRATA-SE DE UM VALOR NEGATIVO E NECESSÁRIO. ELE NÃO CONSISTE, PORTANTO, NUM VALOR RELATIVO, COMO OS VALORES POSITIVOS E CONTINGENTES, MAS NUM VALOR ABSOLUTO E UNIVERSAL. É nele que se baseiam, por exemplo, os direitos humanos e, em última análise, todo direito racional. Por isso eles valem, ao contrário do que pensa Comte-Sponville, de modo ABSOLUTO E UNIVERSAL.” (No seu e-mail, os trechos acima não estão em maiúsculas.)

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 3:

No trecho acima, você claramente extrai os corolários da universalidade forte (objetividade e caráter absoluto) a partir da universalidade fraca do “eu-seja-quem-eu-for” (referente ao universo dos entes desejantes, a quem pertence o desejo de ter seus valores respeitados e de não agir sem o respaldo da razão). Logo, ao contrário do que você diz, a confusão entre os sentidos do termo “universal” não “ocorreu na minha cabeça”, mas no seu raciocínio.

Repare que, no seu e-mail, quando você diz:

“eu – seja quem eu for – sei que não seria capaz de justificar racionalmente a imposição dos meus valores positivos a nenhum outro; e, reciprocamente, que nenhum outro seria capaz de justificar racionalmente a imposição os seus valores positivos a mim. Isso significa que eu – seja quem eu for – tenho a obrigação ética – baseada puramente na verdade e na razão – de respeitar a liberdade alheia”,

você pressupõe, tacitamente, que não ser capaz de justificar racionalmente uma ação (no caso, a imposição de valores) implica a obrigação ética de evitá-la. Mas essa idéia ela mesma permanece injustificada racionalmente, permanece indemonstrada, injustificada. Veja: se não ser capaz de justificar racionalmente uma ação implica a obrigação ética de evitá-la, então, necessariamente, “ação racional = dever”. Ora, tentar fundamentar essa equação teria como resultado a aporia que eu expliquei nos meus comentários de 26/02, 01h26 e 01h27.

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 4:

AC: “Digo isso, deixando de lado o fato de que sua maneira de se expressar não tem respaldo nem na tradição lógica nem na tradição filosófica. Trata-se de uma idiossincrasia sua.”

R: Bom, que ótimo que você “deixa isso de lado”, porque, de fato, isso é COMPLETAMENTE DESIMPORTANTE. O “respaldo da tradição” não me interessa DROGA NENHUMA. Aliás, muito me espanta que um defensor da Modernidade como você me venha com um argumento farisaico desses. Esclareço que não tenho NENHUMA aspiração à ortodoxia e NENHUM medo da idiossincrasia. Só me interessa pensar com a verdade, não com a tradição. Isso, se é que essa sua interpretação particular da “tradição” está correta – e, por favor, não me responda que ela “está correta sim”: já está claro o bastante que, na SUA opinião, ela está correta; é só que isso em si não prova nada, e, ademais, não me interessa entrar nessa discussão.

AC: “Se fosse como você quer, seria também absurda praticamente toda a filosofia.”

R: Isso é o que VOCÊ pensa e (como de costume nessa discussão) alega sem demonstrar. Sendo que o exemplo que você dá a seguir (ainda que de fato proceda, do que não estou inteiramente persuadido) não demonstra nada quanto a “toda a filosofia”.

AC: “Para dar um exemplo, seria absurda a proposição dos defensores da ética comunicativa, como Apel e Habermas – pensadores infinitamente mais profundos do que o Comte-Sponville, diga-se de passagem – quando falam no ‘fato universal da linguagem como definidor da condição humana, pois DESDE QUE FORMULAMOS EM QUALQUER LÍNGUA A PRIMEIRA FRASE, EXPRESSAMOS DE MANEIRA INEQUÍVOCA A INTENÇÃO DE CHEGAR A UM CONSENSO UNIVERSAL IRRESTRITO’. Se aceitarmos o modo em que você põe as coisas, também essa ideia de um consenso universal irrestrito confundiria o sentido ‘fraco’ e o sentido ‘forte’ da expressão ‘universal’.

Assim não há discussão possível...”

R: Quer dizer que só há “discussão possível” se Apel e Habermas estiverem certos? Realmente, eles devem ser “profundos” mesmo... Admito que desconheço (ou conheço apenas superficialmente) as idéias de Apel e Habermas (o que, ao contrário do que você parece querer insinuar, não me desqualifica para esta discussão nem refuta automaticamente o meu ponto de vista), mas, a julgar pelo trecho que você cita, não me parece haver no pensamento deles (diferente do que ocorre no seu) nenhuma confusão entre os dois sentidos do termo “universal”. Ao longo de todo o trecho, o termo é empregado no sentido que chamei de “fraco”. Ele aparece duas vezes: na primeira, aplica-se ao fato da linguagem, que só é universal em referência ao conjunto dos homens; na segunda, aplica-se a um “consenso” que também só seria universal em relação ao conjunto dos homens (seria um consenso entre todos os homens). Logo, o termo é empregado coerentemente ao longo do trecho. Em momento algum se afirma que o “fato da linguagem” ou o “consenso”, por serem universais (nesse sentido fraco), seriam também absolutos ou objetivos (atributos da universalidade forte). Isso é o que seria necessário para que se configurasse aqui uma confusão análoga à sua.

AC: “Absurdo é esse seu modo de argumentar.”

R: Ainda que tudo o que você disse antes dessa frase fosse verdade (o que é altamente duvidoso, para dizer o mínimo), meu modo de argumentar só seria “absurdo” se “absurdo” fosse sinônimo de “não tradicional”. Obviamente, não é o caso – a não ser talvez para os mais irracionais entre os fanáticos da tradição.

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 5:

AC: “Em segundo lugar, faço-lhe apenas uma pergunta: você diz (24/02, ás 11:42) que ‘tudo o que é moral é algo de que gostamos’, mas que ‘nem tudo de que gostamos é moral’. Qual então, segundo você, a diferença entre aquilo de que gostamos e que é moral e aquilo de que gostamos e que não é moral? Qual é a diferença específica do moral, segundo você?”

R: Essa sua pergunta já se encontra respondida no meu comentário de 24/02, 11h43. Nele, respondendo à sua colocação sobre a criança que maltrata animais, eu dizia: “O gostar especificamente moral é o que tem por objeto a conduta virtuosa (isto é, altruísta, compassiva, tolerante, etc.).”.

Antonio Cicero disse...

One of us:

Na parte 1, você afirma sobre mim:

O que você parece não notar é que, se os princípios éticos de que você fala só são universais em relação ao “universo de todos os entes desejantes”, então é só PARA ESSES ENTES que tais princípios valem, e não EM SI.

Você acha mesmo que eu não noto que os princípios éticos ou morais só são universais em relação ao “universo de todos os entes desejantes”? Você acha então que eu penso que eles valem para pedras? Isso é uma loucura SUA. Na verdade, aqui eu restrinjo os princípios éticos aos entes desejantes porque eu estava partindo do desejo. Mas, em última análise, o universo em que os princípios éticos são relevantes é ainda mais restrito: além de se restringir a entes desejantes, ele se restringe – EVIDENTEMENTE, e por isso IMPLICITAMENTE, sem necessidade de explicitá-lo, para qualquer pessoa de boa vontade – aos entes racionais.

Sua “explicação” de que

princípios fundamentados pela razão estariam fundados na verdade, fariam parte dela enquanto princípios, sendo, portanto, tão absolutos, objetivos – e universais no sentido forte do termo – quanto a própria verdade (e apenas ela) é

não passa de pura confusão, ligada ao seu uso idiossincrático dos conceitos filosóficos e lógicos. Como você vai repetir essa confusão adiante, tratarei dela adiante.

Antonio Cicero disse...

One of us:

Nas partes 2 e 3, você cita um e-mail que eu lhe enviei em que digo de determinada regra que se trata

“de um valor negativo e necessário. Ele não consiste, portanto, num valor relativo, como os valores positivos e contingentes, mas num valor absoluto e universal. É nele que se baseiam, por exemplo, os direitos humanos e, em última análise, todo direito racional. Por isso eles valem, ao contrário do que pensa Comte-Sponville, de modo absoluto e universal”.

Isso está absolutamente correto. E que diz você? Diz:

No trecho acima, você claramente extrai os corolários da universalidade forte (objetividade e caráter absoluto) a partir da universalidade fraca do “eu-seja-quem-eu-for” (referente ao universo dos entes desejantes, a quem pertence o desejo de ter seus valores respeitados e de não agir sem o respaldo da razão). Logo, ao contrário do que você diz, a confusão entre os sentidos do termo “universal” não “ocorreu na minha cabeça”, mas no seu raciocínio.

Veja bem: eu defendo que determinada regra tem valor absoluto e universal. Isso quer dizer que ela não é relativa nem particular: em outras palavras, ela é absolutamente verdadeira e se aplica a todo o universo do discurso, que é o universo dos entes desejantes. De maneira nenhuma passou pela minha cabeça (nem passaria pela cabeça de ninguém, exceto você) que, porque determinada regra moral é absolutamente verdadeira e se aplica a todo o universo dos entes desejantes, ela também se aplica a tudo o que existe no mundo, como pedras ou estrelas.

Na parte 4, você fica indignado porque eu digo que “sua maneira de se expressar não tem respaldo nem na tradição lógica nem na tradição filosófica. Trata-se de uma idiossincrasia sua”.

A partir disso, você tem arroubos revolucionários, afirmando que não se interessa pela tradição. Acontece que a língua que usamos é basicamente um produto da tradição. É ela que dá os sentidos das palavras. Se cada um de nós desse o sentido que quer às palavras da língua, simplesmente não haveria comunicação: a língua não funcionaria como língua. No caso da terminologia lógica ou filosófica, um uso idiossincrático dos termos é ainda menos tolerável, pois eles representam conceitos, de modo que tal uso leva inevitavelmente a graves confusões e mal-entendidos. Não há mesmo discussão possível se cada um modificar e empregar os conceitos de modo idiossincrático.

Antonio Cicero disse...

Na parte 5, você diz que

O gostar especificamente moral é o que tem por objeto a conduta virtuosa (isto é, altruísta, compassiva, tolerante, etc.).

Veja bem: a conduta virtuosa é exatamente a conduta que possui valor moral. O Dicionário Houaiss, por exemplo, define a palavra “virtuoso” como, em primeiro lugar, “que possui e cultiva qualidades de virtude (moral, religiosa, social etc.). Corretamente, você cita como exemplos da conduta virtuosa o altruísmo, a compassividade, a tolerância etc.

Acontece que, se o que distingue o gostar moral em relação a outros tipos de gostar é o fato de que o objeto desse gostar são coisas que têm valor moral, então, ao contrário do que você dizia, não é porque gostamos delas que elas têm valor moral, mas porque elas têm valor moral que gostamos delas.

Pense bem: se o valor moral das coisas é que determina que o nosso gostar delas seja moral, então ele é necessariamente anterior – pois determina – o nosso gostar delas. Ao contrário do que você dizia, então, não é porque gostamos das coisas que elas têm valor moral, mas gostamos delas porque elas têm valor moral. Ergo, tudo o que você dizia antes estava errado.

Antonio Cicero disse...

One of us,

ao contrário de você, que torna cada vez mais confusos os seus argumentos, tento tornar os meus mais claros e evidentes. Para tanto, vou lhe mostrar como é que se pode racionalmente demonstrar que algo tem valor moral. Preste atenção:

1. Desejo, seja quem eu for, satisfazer meus desejos (esse item resulta da análise do conceito de desejo)

2. Não desejo, seja quem eu for, que meus desejos sejam frustrados (idem)

3. Não desejo, seja quem eu for, que ninguém imponha os seus desejos – e os seus valores contra os meus (segue-se de 3)

4. Desejo, seja quem eu for, maximizar a realização dos meus desejos e minimizar a frustração dos mesmos (segue-se de 2 e 3)

5. Uma vez que vivo em sociedade, desejo, seja quem eu for, que na sociedade em que vivo a liberdade para a maximização dos meus desejos não seja limitada senão na medida em que isso seja necessário para compatibilizar essa minha liberdade com equivalente liberdade de qualquer uma das demais pessoas que, contingentemente, eu poderia ter sido ou poderei vir a ser (segue-se de 5)

6. Tal sociedade tem para mim, seja quem eu for, maior valor moral do que qualquer outra (dado 2, 3 e 6)

7. O que vale seja para quem for vale para todo o mundo. (Evidentemente, "todo o mundo" se refere a todos os desejantes, e não a pedras).

Antonio Cicero disse...

One of us:

Na parte 5, você diz que

O gostar especificamente moral é o que tem por objeto a conduta virtuosa (isto é, altruísta, compassiva, tolerante, etc.).

Veja bem: a conduta virtuosa é exatamente a conduta que possui valor moral. O Dicionário Houaiss, por exemplo, define a palavra “virtuoso” como, em primeiro lugar, “que possui e cultiva qualidades de virtude (moral, religiosa, social etc.). Corretamente, você cita como exemplos da conduta virtuosa o altruísmo, a compassividade, a tolerância etc.

Mas o curioso é que, sendo assim, você está dizendo que o gostar moral se distingue dos outros gostares por ser... moral! Contudo, essa circularidade, embora lamentável, não é o pior.

Acontece que, se o que distingue o gostar moral em relação a outros tipos de gostar é o fato de que o objeto desse gostar são coisas que têm valor moral, então, ao contrário do que você dizia, não é porque gostamos delas que elas têm valor moral, mas porque elas têm valor moral que gostamos delas.

Pense bem: se o valor moral das coisas é que determina que o nosso gostar delas seja moral, então ele é necessariamente anterior – pois determina – o nosso gostar delas. Ao contrário do que você dizia, então, não é porque gostamos das coisas que elas têm valor moral, mas gostamos delas porque elas têm valor moral. Ergo, tudo o que você dizia antes estava errado.

Antonio Cicero disse...

One of us,

ao contrário de você, que torna cada vez mais confusos os seus argumentos, tento tornar os meus mais claros e evidentes. Para tanto, vou lhe mostrar como é que se pode racionalmente demonstrar que algo tem valor moral. Preste atenção:

1. Desejo, seja quem eu for, satisfazer meus desejos (esse item resulta da análise do conceito de desejo)

2. Não desejo, seja quem eu for, que meus desejos sejam frustrados (idem)

3. Não desejo, seja quem eu for, que ninguém imponha os seus desejos – e os seus valores contra os meus (segue-se de 3)

4. Desejo, seja quem eu for, maximizar a realização dos meus desejos e minimizar a frustração dos mesmos (segue-se de 2 e 3)

5. Uma vez que vivo em sociedade, desejo, seja quem eu for, que na sociedade em que vivo a liberdade para a maximização dos meus desejos não seja limitada senão na medida em que isso seja necessário para compatibilizar essa minha liberdade com equivalente liberdade de qualquer uma das demais pessoas que, contingentemente, eu poderia ter sido ou poderei vir a ser (segue-se de 5)

6. Tal sociedade tem para mim, seja quem eu for, maior valor moral do que qualquer outra (dado 2, 3 e 6)


Para evitar mal-entendidos acirrados pela má vontade dos relativistas, esclareço que a cláusula "seja quem eu for" tem, nesse contexto, o sentido de "tendo abstraído de minha identidade particular", isto é, "considerando-me não enquanto tal ou qual pessoa particular, mas apenas enquanto o sujeito desejante universal que é o sujeito da ética".

Meigle disse...

É engraçado, acho que até dois dois dias atrás tinha ficado já claro pra todo mundo o que Antonio Cícero e one uf us! pensavam sobre a questão que discutiam. Segui atentamente, pra mim foi muito esclarecedor. Desculpem o modo avaliativo do meu comentário, mas não resisto a expressar isto. Eu disse que eles "discutiam" porque a partir daquele ponto (26/02)já não tenho a impressão de uma discussão verdadeira, mas de uma partida de xadrez que os oponentes teimam em vencer, aliás reproduzindo as mesmas jogadas cujas consequencias já foram vistas. Além disso, acho que one uf us! colocou alguns pontos importantíssimos para o meu entendimento do problema, principalmente quanto ao pensamento de Antonio Cícero, que resultou claro pra mim. Isso foi ótimo. Mas por último sinto que one uf us se tornou obsessivamente insistente e Antonio Cícero não deixará o tabuleiro enquanto o oponente persistir. O jogo será infinito?

one of us! disse...

PARTE 1:

Antonio Cicero, abaixo, minhas respostas:

AC: “Você acha mesmo que eu não noto que os princípios éticos ou morais só são universais em relação ao ‘universo de todos os entes desejantes’? Você acha então que eu penso que eles valem para pedras? Isso é uma loucura SUA. (...) Veja bem: eu defendo que determinada regra tem valor absoluto e universal. Isso quer dizer que ela não é relativa nem particular: em outras palavras, ela é absolutamente verdadeira e se aplica a todo o universo do discurso, que é o universo dos entes desejantes. De maneira nenhuma passou pela minha cabeça (nem passaria pela cabeça de ninguém, exceto você) que, porque determinada regra moral é absolutamente verdadeira e se aplica a todo o universo dos entes desejantes, ela também se aplica a tudo o que existe no mundo, como pedras ou estrelas.”

R: Nova confusão no seu discurso. Agora o que você confunde é “aplicar-se” e “valer”. Uma regra moral absolutamente verdadeira não SE APLICARIA a tudo o que existe no mundo nem VALERIA para tudo (mostre-me, por favor, onde foi que eu afirmei essa “loucura”, antes de me acusar de louco), mas também não VALERIA apenas PARA um universo restrito (o dos entes desejantes e racionais ou qualquer outro), mas sim VALERIA EM SI. É óbvio que as regras morais só se aplicam aos entes desejantes e racionais que são os homens, uma vez que só eles estão em condições de segui-las (ao contrário das pedras e das estrelas). Porém, ainda que essas regras se apliquem a todos os homens, isso não prova que elas VALHAM EM SI. É óbvio que as regras morais só valem para os homens, porque só os homens têm condições de desejar o moral, de gostar dele, de valorizá-lo. Mas, se elas valem para todos nós, é justamente PARA nós que elas valem, e não EM SI. E mais: se elas de fato valessem para todos nós (não penso que seja realmente o caso), seria, em última instância, porque todos nós gostaríamos delas, e não por serem “absolutamente verdadeiras”. Se elas valessem por serem “absolutamente verdadeiras” (isto é, verdadeiras, já que toda verdade é absoluta), elas valeriam EM SI, e não PARA NÓS. Repare que o fato de as regras morais não VALEREM para todos (porque nem todos gostam delas) não as impede de SE APLICAR a todos (porque, por um lado, todos têm condições de segui-las e, por outro, quem gosta delas – aqueles para quem elas valem – deseja que elas sejam seguidas por todos. Isso porque elas, em si mesmas, têm a todos por objeto. Logo, gostar delas – ser um daqueles para quem elas valem – implica desejar que todos as sigam).

AC: “Você acha mesmo que eu não noto que os princípios éticos ou morais só são universais em relação ao ‘universo de todos os entes desejantes’? (...) o universo em que os princípios éticos são relevantes (...) se restringe (...) aos entes racionais.”

R: O que eu acho mesmo que você não nota é que, se os princípios éticos ou morais se restringem aos entes desejantes e racionais, então eles não são absolutos (são relativos aos tais entes), nem objetivos (são pertencentes a sujeitos), nem necessários (dependem da contingência do desejo). Princípios fundamentados na razão e na verdade seriam IRRESTRITAMENTE absolutos, objetivos, necessários e universais (ainda que só SE APLICASSEM a um universo específico). Tais princípios seriam verdades, e toda verdade é absoluta, objetiva, necessária e universal, irrestritamente.

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 2:

AC: “Sua ‘explicação’ de que (...) não passa de pura confusão, ligada ao seu uso idiossincrático dos conceitos filosóficos e lógicos. Como você vai repetir essa confusão adiante, tratarei dela adiante.”

R: Na verdade, você não “trata dela adiante” coisa nenhuma. Aqui, como em tantos outros pontos dos seus comentários, você simplesmente me lança uma acusação sem sequer tentar demonstrá-la ou comprová-la. Meu suposto “uso idiossincrático dos conceitos filosóficos e lógicos” também permanece sem demonstração ou comprovação satisfatórias.

AC: “Na parte 4, você fica indignado porque eu digo que ‘sua maneira de se expressar não tem respaldo nem na tradição lógica nem na tradição filosófica. Trata-se de uma idiossincrasia sua’. A partir disso, você tem arroubos revolucionários, afirmando que não se interessa pela tradição.”

R: Reli meu comentário em busca dos “arroubos revolucionários” de que você me acusa, mas só encontrei estas três declarações: o respaldo da tradição não me interessa; não aspiro à ortodoxia nem temo a idiossincrasia; busco pensar com a verdade, não com a tradição. Se isso for “arroubos revolucionários”, então o único modo de não ser um “revolucionário arroubado” é sendo um fariseu absoluto. Se isso é verdade para você (para mim, é claro que não é), considero a sua acusação um elogio. Acrescento que, ao contrário do que você diz, nunca afirmei que não me interesso pela tradição. O que eu disse não me interessar é o respaldo da tradição para os meus argumentos, que eu só pretendo que sejam verdadeiros, não necessariamente tradicionais. São dois desinteresses bem distintos.

AC: “Acontece que a língua que usamos é basicamente um produto da tradição. É ela que dá os sentidos das palavras. Se cada um de nós desse o sentido que quer às palavras da língua, simplesmente não haveria comunicação: a língua não funcionaria como língua. No caso da terminologia lógica ou filosófica, um uso idiossincrático dos termos é ainda menos tolerável, pois eles representam conceitos, de modo que tal uso leva inevitavelmente a graves confusões e mal-entendidos. Não há mesmo discussão possível se cada um modificar e empregar os conceitos de modo idiossincrático.”

R: Tudo o que você diz acima é a mais pura verdade. Mas são verdades de um caráter bem geral. Falta-lhe agora demonstrar que EU, particularmente, modifiquei algum conceito de modo idiossincrático, gerando “graves confusões e mal-entendidos”. Suponhamos que o meu uso do termo universal tenha sido idiossincrático, como você alega. Antes de começar a usar de fato o termo, eu expliquei explicitamente, em detalhes, a definição que lhe daria. Como é que pode haver mal-entendido depois disso? Uma coisa é usar um termo tendo em mente um sentido inusual sem alertar para isso, sem defini-lo explicitamente, como se valesse a definição usual. Isso gera confusão. Mas não foi isso o que eu fiz. Antes de qualquer coisa, expliquei com todas as letras o sentido que dou a “universal”. Na verdade, só usei o termo para falar sobre o seu sentido, comentando o uso confuso que você fazia da palavra. Só o que fiz foi explicar detalhadamente dois sentidos diferentes que se pode atribuir a “universal”. Depois disso, não há “grave confusão” possível, “para qualquer pessoa de boa vontade”.

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 3:

AC: “Na parte 5, você diz que ‘O gostar especificamente moral é o que tem por objeto a conduta virtuosa (isto é, altruísta, compassiva, tolerante, etc.).’

Veja bem: a conduta virtuosa é exatamente a conduta que possui valor moral. O Dicionário Houaiss, por exemplo, define a palavra ‘virtuoso’ como, em primeiro lugar, ‘que possui e cultiva qualidades de virtude (moral, religiosa, social etc.)’. Corretamente, você cita como exemplos da conduta virtuosa o altruísmo, a compassividade, a tolerância etc.

Acontece que, se o que distingue o gostar moral em relação a outros tipos de gostar é o fato de que o objeto desse gostar são coisas que têm valor moral, então, ao contrário do que você dizia, não é porque gostamos delas que elas têm valor moral, mas porque elas têm valor moral que gostamos delas.

Pense bem: se o valor moral das coisas é que determina que o nosso gostar delas seja moral, então ele é necessariamente anterior – pois determina – o nosso gostar delas. Ao contrário do que você dizia, então, não é porque gostamos das coisas que elas têm valor moral, mas gostamos delas porque elas têm valor moral. Ergo, tudo o que você dizia antes estava errado.”

R: De acordo com a definição que explicitamente apresentei para o termo (e que você inclusive cita), a conduta virtuosa não é, necessariamente e de antemão, “a conduta que possui valor moral”. A conduta virtuosa é a conduta altruísta, compassiva, tolerante, etc. O altruísmo, a compaixão, a tolerância – não possuem valor EM SI, independentemente e anteriormente a qualquer avaliação, mas apenas PARA os que os valorizam, para os que gostam deles, para os que os desejam, em si próprios e nos outros. É só PARA ELES que a conduta altruísta, compassiva, tolerante (isto é, virtuosa) possui valor – um valor a que chamaremos “moral” para distingui-lo do valor estético, por exemplo, bem como de outros, dos quais, no entanto, ele não difere em essência. A essência de todos os valores é o desejo. Ergo, tudo o que você diz acima está errado.

AC: “ao contrário de você, que torna cada vez mais confusos os seus argumentos”

R: Nova acusação sem (tentativa de) comprovação.

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 4

AC: “vou lhe mostrar como é que se pode racionalmente demonstrar que algo tem valor moral.”

R: O que eu contesto não é que se possa “racionalmente demonstrar que algo tem valor moral”, mas sim que seja possível fundamentar esse valor através da razão – isto é, fundamentar esse valor, já que toda fundamentação é racional. Fundamentar um valor não seria simplesmente mostrar que ele existe, nem mesmo que ele vale “para todo o mundo”, mas sim que ele vale independentemente de todo o mundo, isto é, que ele vale em si. Um valor fundamentando seria uma verdade e, como tal, seria absoluto, objetivo, necessário e universal, irrestritamente. “Racionalmente demonstrar que algo tem valor moral” para todos, isto é, mostrar que um valor vale “para todo o mundo”, é tão somente mostrar que todo o mundo deseja esse valor. Mas o desejo (mesmo que universal em sentido fraco, porque partilhado por todos os entes desejantes) é sempre relativo, subjetivo, contingente e particular. Assim também o valor que provenha do desejo (como é o caso de todos os valores, a meu ver).

AC: “vou lhe mostrar como é que se pode racionalmente demonstrar que algo tem valor moral. Preste atenção:
1. Desejo, seja quem eu for, satisfazer meus desejos (esse item resulta da análise do conceito de desejo)
2. Não desejo, seja quem eu for, que meus desejos sejam frustrados (idem)
3. Não desejo, seja quem eu for, que ninguém imponha os seus desejos – e os seus valores contra os meus (segue-se de 3)
4. Desejo, seja quem eu for, maximizar a realização dos meus desejos e minimizar a frustração dos mesmos (segue-se de 2 e 3)
5. Uma vez que vivo em sociedade, desejo, seja quem eu for, que na sociedade em que vivo a liberdade para a maximização dos meus desejos não seja limitada senão na medida em que isso seja necessário para compatibilizar essa minha liberdade com equivalente liberdade de qualquer uma das demais pessoas que, contingentemente, eu poderia ter sido ou poderei vir a ser (segue-se de 5)
6. Tal sociedade tem para mim, seja quem eu for, maior valor moral do que qualquer outra (dado 2, 3 e 6)
7. O que vale seja para quem for vale para todo o mundo. (Evidentemente, ‘todo o mundo’ se refere a todos os desejantes, e não a pedras).”

R: Conforme eu já disse, ainda que você aqui tivesse demonstrado que todos desejam uma certa sociedade e que, portanto, essa sociedade tem mais valor para todos do que qualquer outra, isso não equivaleria a fundamentar o valor da sociedade em questão. Você teria apenas demonstrado um fato: todos desejam algo, isto é, algo tem/é valor para todos. Faltaria a isso o vínculo causal entre fato e dever, verdade e valor, que é próprio do fundamento: X é dever/valor PORQUE Y é fato/verdade (ou melhor: que seria próprio do fundamento se o fundamento existisse, se as ordens da verdade e do valor não estivessem radicalmente disjuntas). Repare que, a rigor, não é PORQUE todos desejam algo que algo é um valor para todos. Dizer que algo é um valor para todos é apenas uma maneira indireta de dizer que todos desejam algo. A relação aí é de sinonímia, não de causalidade. O valor é a figuração imaginária do desejo, não o efeito dele (no sentido em que se fala em “causa e efeito”). O fato é que é impossível estabelecer um vínculo causal entre uma verdade e um valor, como eu demonstrei no meu comentário de 26/02, 01h26/01h27. Por isso é que é impossível fundamentar a moral. Felizmente, isso também é desnecessário (além de insuficiente, já que uma moral fundamentada que se opusesse absolutamente aos nossos desejos seria absolutamente inócua, não determinando em nada as nossas ações, que são integralmente determinadas pelo desejo).

Antonio Cicero disse...

One of us,

Acho que a Meigle tem toda razão. E detesto me repetir. Meigle só está errada de pensar que eu não deixarei o tabuleiro enquanto o oponente persistir. Quando percebo que já disse o que tinha que dizer numa discussão, pulo fora, como já fiz outras vezes. Quem quiser entenda; quem não quiser, não entenda. Este é meu último post nesta discussão.

A sua Parte 1 é muito confusa para mim. Eu jamais disse que acreditava que alguma coisa valha em si.

Acho que sua objeção fica um pouco mais clara quando você supõe que eu não noto

que se os princípios éticos ou morais se restringem aos entes desejantes e racionais, então eles não são absolutos (são relativos aos tais entes), nem objetivos (são pertencentes a sujeitos), nem necessários (dependem da contingência do desejo).

A confusão aqui ainda é grande. Digo, por exemplo, que é absolutamente errado que se torture e execute uma mulher condenada por adultério, como se faz no Iran. É claro que tudo o que diz respeito aos valores é relativo ao universo do discurso dos entes desejantes e racionais. Mas tudo no mundo é realtivo a determinado universo de discurso. É no interior do seu universo de discurso que uma proposição é absolutamente verdadeira ou relativamente verdadeira. Pois bem, no universo de discurso dos entes desejantes e racionais, digo ser absolutamente errado que se torture e execute uma mulher condenada por adultério. Isso quer dizer que penso que essa tortura e execução não podem ser relativizadas.

Para você é diferente, pois você considera essa tortura e execução erradas apenas em relação aos valores de que você “gosta”. É exatamente em oposição a quem pensa como você que afirmo, ao contrário, que essa tortura e execução são absolutamente erradas. Como não são RELATIVAMENTE, mas ABSOLUTAMENTE erradas – como creio poder provar, a partir da prova de que A LIBERDADE PARA A MAXIMIZAÇÃO DOS DESEJOS DE CADA UM NÃO PODE SER LIMITADA SENÃO NA MEDIDA EM QUE ISSO SEJA NECESSÁRIO PARA COMPATIBILIZAR A SUA LIBERDADE COM IGUAL LIBERDADE DE OUTROS –, digo que serem absolutamente erradas. Sei que, para você, a tortura e execução são erradas da adúltera são erradas apenas em relação aos valores de que você “gosta”. Para você elas são, portanto, RELATIVAMENTE errado, mas penso que você está, neste ponto, ABSOLUTAMENTE errado.

Antonio Cicero disse...

One of us:

Na sua Parte 2, você cita uma trecho em que digo que

"Sua 'explicação' de que

princípios fundamentados pela razão estariam fundados na verdade, fariam parte dela enquanto princípios, sendo, portanto, tão absolutos, objetivos – e universais no sentido forte do termo – quanto a própria verdade (e apenas ela) é

não passa de pura confusão, ligada ao seu uso idiossincrático dos conceitos filosóficos e lógicos. Como você vai repetir essa confusão adiante, tratarei dela adiante”

Tendo citado esse trecho, você comenta que eu não trato dele adiante, mas apenas faço uma acusação sem demonstrá-la.

Confesso que fiquei com preguiça. O problema, One of us, é que você afirma coisas que não demonstra e que me parecem não ter o menor sentido.

Por exemplo:

Princípios fundamentados pela razão estariam fundados na verdade [...]

O que quer dizer isso? Simplesmente que os princípios fundamentados pela razão são verdadeiros? Mas, nesse caso, por que é que eles

fazem parte dela [da verdade] enquanto princípios, sendo, portanto, tão absolutos, objetivos – e universais no sentido forte do termo – quanto a própria verdade (e apenas ela) é ?

Então tudo o que é verdadeiro é absoluto, objetivo e universal no sentido forte do termo ?

Você parece usar o termo “verdade” num sentido meio religioso: Parece falar de uma Verdade absoluta e universal. Ora, há verdades absolutas e verdades relativas; verdades universais e verdades particulares. Por que essa mistificação da “Verdade”? Na parte 1, ao usar a expressão “absolutamente verdadeiras”, você chega a complementar assim: isto é, verdadeiras, já que toda verdade é absoluta. Desde quando não há verdades relativas? Tudo isso, para mim, é confuso.

Os princípios fundamentados pela razão são simplesmente fundamentados pela razão. Alguns são absolutamente verdadeiros, outros não. Alguns são universais, outros não. E os que são absolutamente verdadeiros são absolutamente verdadeiros e pronto. Eles não se “fundam” em nenhuma verdade exterior à própria razão.

Você nega ter tido “arroubos revolucionários”. Mas penso ter percebido um certo arrebatamento "revoludionário" no seu modo de falar contra a tradição:

isso é COMPLETAMENTE DESIMPORTANTE. O “respaldo da tradição” não me interessa DROGA NENHUMA. [...] Esclareço que não tenho NENHUMA aspiração à ortodoxia e NENHUM medo da idiossincracia.[...]

Antonio Cicero disse...

One of us:

Mas o primor da sua inconsistência vem na sua Parte 3.

Você havia afirmado que o gostar especificamente moral é o que tem por objeto a conduta virtuosa (isto é, altruísta, compassiva, tolerante etc.)

Agora você diz – novamente contra o uso estabelecido (que se encontra nos dicionários, como o que citei) que a conduta virtuosa (altruísta, compassiva, tolerante etc.) não é, necessariamente e de antemão, a conduta que possui valor moral. Ela o é, segundo você, apenas para os que gostam da conduta virtuosa.

O oposto da virtude é o vício. Em todas as sociedades que de que já ouvi falar, a primeira é equivalente a superioridade moral, e a segunda, a inferioridade moral. Mas, pelo que você está dizendo, para quem gosta do vício (do egoísmo, da malevolência, da intolerância etc.), essas coisas é que possuem valor moral.

Pelo jeito então, segundo você mesmo, o gostar especificamente moral não é, ao contrário do que você diz, o que tem por objeto a conduta virtuosa.

Claramente, você se contradiz.

Outro problema: você não conseguiu definir o gostar especificamente moral. Ora, você dizia (24/2, 11:42) que nem todo gostar é moral: uma criança que goste de maltratar animais não está fazendo algo moral, porque nem todo gostar é moral (embora toda moral remeta a um gostar).

Agora, parece que a criança a maltratar animais pode estar fazendo alguma coisa moral, afinal de contas. ..

Antonio Cicero disse...

One of us:

Quanto à sua Parte 4,

A sua distinção entre “demonstrar racionalmente que algo tem valor moral” e “fundamentar um valor moral através da razão” simplesmente não se sustenta. Mas não vou me repetir. Chega!

one of us! disse...

PARTE 1:

Antonio Cicero, gostaria de seguir o seu exemplo (e a sugestão implícita da Meigle) e abandonar esta discussão, porque, neste ponto, ela me inspira mais preguiça e cansaço do que qualquer outra coisa. No entanto, ver as minhas posições grosseiramente mal-representadas nos seus comentários me causa um desejo irresistível de tentar aclará-las mais uma vez. E, diante de certas coisas que você diz, não posso deixar de me pronunciar. Vou tentar ser o mais breve e o menos repetitivo possível. Espero que esse também possa ser meu último post.

Você começa sua última mensagem alegando jamais ter dito acreditar que alguma coisa valha em si. Ora, o que você disse é que os valores eram absolutos, objetivos, universais e necessários, o que, OBVIAMENTE, implica a idéia do “em si”. É que, para você (segundo você mesmo explica), absoluto significa relativo; objetivo significa subjetivo; universal significa particular; necessário significa contingente. Curiosamente, você ainda diz que sou eu quem usa os termos de um jeito idiossincrático, gerando confusão... (Para justificar brevemente a minha alegação, cito palavras suas: “tudo o que diz respeito aos valores é relativo ao universo do discurso dos entes desejantes”. Ora, se é “relativo”, é relativo; se é relativo a um “universo” restrito, é particular; se esse universo é o do “discurso”, é subjetivo; se esse discurso é “dos entes desejantes”, é contingente).

Mais adiante no seu comentário, vem o seu ponto mais baixo não apenas nesta discussão, mas em toda a sua produção textual que me é conhecida – a qual, apesar de eventuais discordâncias, sempre me suscitou grande admiração. Confesso, com muita tristeza, que essa minha admiração por você como pensador, que, até aqui, apesar de tudo, continuava grande, agora diminui. Refiro-me ao trecho em que você fala sobre a verdade. Você nega que tudo o que é verdadeiro seja absoluto, objetivo e universal. Você diz que “há verdades absolutas e verdades relativas; verdades universais e verdades particulares” – sendo que “absolutas” aí quer dizer: “absolutas em relação a algo”, ou seja, “relativas”; e “universais” quer dizer: “referentes a um universo restrito”, ou seja, “particulares”. Você insinua que a noção de uma verdade absoluta e universal teria algo de religioso ou místico... Essa insinuação me lembra imediatamente o discurso da sofística contemporânea, isto é, Nietzsche (nos seus piores momentos) e os chamados pós-modernos franceses. Até aqui, você tinha sido, a meu ver, o que o Comte-Sponville chama de um “dogmático prático”, isto é, alguém para quem o valor é absoluto. Essa é uma posição filosófica coerente, respeitável e possivelmente verdadeira, embora eu discorde dela. Agora, você toma as feições de um sofista, isto é (também para Comte-Sponville), alguém para quem a verdade é relativa. Essa não é uma posição coerente, portanto não é respeitável nem filosófica. Na verdade, é a posição anti-filosófica por excelência, desde suas origens históricas na Grécia Antiga. A noção de uma “verdade relativa” desemboca necessariamente no paradoxo da inexistência da verdade, que é a essência da sofística (de agora e de sempre). Demonstrar essa afirmação seria iniciar uma outra discussão, o que já agora não tenho vontade de fazer. Mas informo (a quem interessar possa) que ela se encontra demonstrada no livro “Valor e verdade”, de André Comte-Sponville (Martins Fontes). O fato é que “verdade relativa” é uma contradição em termos. A expressão “verdade relativa” só pode ser legitimamente usada como uma figura de linguagem, uma metonímia de “opinião”. Toda opinião é de fato relativa, mas a verdade que talvez contenha (e embora só a contenha relativamente) só pode ser absoluta, por ser verdade.

CONTINUA...

one of us! disse...

PARTE 2:

Quanto ao “primor da minha inconsistência” e ao “outro problema” (que, na verdade, é o mesmo), penso que já fui claro o bastante nos meus posts anteriores. Basta relê-los para perceber por que o que você diz agora não é verdade. Esclareço apenas que, ao contrário do que você alega, “virtuoso”, para “os dicionários”, é tão somente o que possui valor moral (o que não nego). Nenhum dicionário afirma que esse valor é possuído de antemão ou necessariamente (aliás, não é mais do que natural que seja assim, já que dicionários não são obras de filosofia).

Quanto à minha distinção entre “demonstrar racionalmente que algo tem valor moral” e “fundamentar um valor moral através da razão”, creio já ter mostrado que ela se sustenta sim, mas, em todo caso, vou resumi-la brevemente: “demonstrar racionalmente que algo tem valor moral” é simplesmente demonstrar um fato, uma operação banal e cotidiana da razão. “Fundamentar um valor moral através da razão” seria demonstrar que se deve (ou não se deve) fazer alguma coisa, apenas POR CAUSA de um fato (independente do desejo de fazer algo ou não diante do fato). Isso é impossível , como mostrei em 26/02, 01h26/01h27.

Antonio Cicero disse...

One of us:

Eu realmente não pretendia prolongar esta discussão, mas, como não posso deixar que você distorça desse modo as minhas palavras, tenho que fazer o que espero que seja um último comentário meu. Acho que o leitor isento poderá, depois destes últimos esclarecimentos, entender o que é que eu realmente penso, mesmo que One of us continue a “interpretá-las” a seu modo.
A seguir, ponho em itálico as afirmações de One of us e, em seguida, comento-as.


§1

Palavras de One of us:

Você começa sua última mensagem alegando jamais ter dito acreditar que alguma coisa valha em si. Ora, o que você disse é que os valores eram absolutos, objetivos, universais e necessários, o que, OBVIAMENTE, implica a idéia do “em si”.

Não, one of us, o que é absoluto, universal e necessário (a objetividade, ao contrário do que você pensa, não entra nesse rol) só implica a ideia do “em si” na sua cabeça. Pare de confundir as coisas!

Antonio Cicero disse...

One of us:

§2

Adiante, você diz que, para mim, absoluto significa relativo; objetivo significa subjetivo; universal significa particular; necessário significa contingente...

Isso só mostra que você não entendeu nada do que eu disse. E sua justificativa para essa interpretação do que penso é ainda mais tola. Você diz:

Cito palavras suas: tudo o que diz respeito aos valores é relativo ao universo do discurso dos entes desejantes”. Ora, se é “relativo”, é relativo; se é relativo a um “universo” restrito, é particular; se esse universo é o do “discurso”, é subjetivo; se esse discurso é “dos entes desejantes”, é contingente).

Tente entender: de fato, todos os valores são relativos aos seres racionais e desejantes. O que isso quer dizer é que não existem valores fora dos seres racionais e desejantes. Entretanto, para esses seres, podemos, sem nenhuma contradição, afirmar que determinados valores são absolutos; e como só existem valores para esses seres, esses seres são sempre pressupostos quando falamos de valores, de modo que, ao falar de valores, não precisamos sequer mencioná-los. Podemos simplesmente dizer que determinados valores são absolutos, ponto.

Se digo, por exemplo: “é uma verdade absoluta que desejo que meu desejo seja satisfeito”, estou dizendo a verdade. É uma verdade absoluta que desejo que meu desejo seja satisfeito. No entanto, é claro que estou me referindo a mim. Uma coisa não contradiz a outra. Do mesmo modo, se digo: “é uma verdade absoluta que todos os homens desejam que seus desejos sejam satisfeitos”, também isso é uma verdade absoluta, embora se refira aos homens, e não às pedras.

Por outro lado, isso não impede que haja valores relativos, para esses mesmos seres. Por exemplo: “É bom jogar futebol” não é uma verdade absoluta. É uma verdade relativa à pessoa que a enuncia. Veja a diferença: quando alguém diz “É bom jogar futebol”, é como se estivesse dizendo: “DO MEU PONTO DE VISTA,, é bom jogar futebol”.

Por outro lado, quando digo: “É errado lapidar uma pessoa”, não estou pensando, como você, que “DO MEU PONTO DE VISTA (ou RELATIVAMENTE A MIM é errado lapidar uma pessoa”, mas sim que “É ABSOLUTA, UNIVERSAL E NECESSARIAMENTE errado lapidar uma pessoa”. E penso que isso é demonstrável (tanto que ofereço um modelo de tal demonstração em 27/2 (23:13)). Sendo assim, quem não o reconhecer – como você ou os fundamentalistas islâmicos – está absolutamente errado.

Antonio Cicero disse...

§3

Adiante, você diz:

Você nega que tudo o que é verdadeiro seja absoluto, objetivo e universal. Você diz que “há verdades absolutas e verdades relativas; verdades universais e verdades particulares”

É claro que nem tudo o que é verdadeiro é absoluto ou universal. É claro que há verdades absolutas e verdades relativas; verdades universais e verdades particulares. A verdade do cara que diz que “é bom jogar futebol”, por exemplo, é relativa a ele e é uma verdade particular. O que você diz em seguida,

sendo que “absolutas” aí quer dizer: “absolutas em relação a algo”, ou seja, “relativas”; e “universais” quer dizer: “referentes a um universo restrito”, ou seja, “particulares”.

Já demonstrei ser essa sua interpretação do que penso uma tolice sua, em § 2.

Você insinua que a noção de uma verdade absoluta e universal teria algo de religioso ou místico.

Não: o que penso é que seu modo de falar de “verdade” tem cheiro de religião.

Adiante você diz que minha posição é sofista. Por que? Porque, para você,

A noção de uma “verdade relativa” desemboca necessariamente no paradoxo da inexistência da verdade, que é a essência da sofística (de agora e de sempre).

Aqui você mostra não compreender que não é “a noção de uma verdade relativa” que desemboca na sofística, mas a tese de que TODA verdade é relativa. Ora, jamais afirmei tal coisa.

Você diz que, em 26/02 (1:26), mostrou que não é impossível fundamentar um valor moral através da razão. Não é verdade. Em 26/02 (1:26), como em toda esta discussão, você apenas repetiu várias vezes essa tese. Mas não a demonstrou. E eu demonstrei de fato exatamente o oposto, em 27/2 (23:13).

one of us! disse...

Antonio Cicero, acho que podemos encerrar a discussão com um ponto de concordância entre nós: a releitura dos nossos posts deixa claro o bastante, para qualquer um, quem foi que de fato demonstrou suas teses e quem apenas as repetiu várias vezes; quem gerou confusão e quem foi claro; quem foi tolo e quem foi sensato. De um modo ou de outro, e apesar de tudo, tenho que expressar a minha admiração pela sua disposição e pela sua solicitude em dialogar com os seus leitores. Há gente menos notória do que você que se considera “acima” de diálogos desse tipo.

Antonio Cicero disse...

One of us,

concordo que agora é o leitor que deve decidir e agradeço o elogio que faz à minha disposição de discutir.

Abraço