10.2.08

Marx e o capitalismo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 2008:


Marx e o capitalismo

MARX CONTA, em nota de pé de página de "O Capital", que, certa vez, uma gazeta teuto-americana criticou o materialismo da sua famosa tese, segundo a qual a estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, à qual correspondem determinadas formas de consciência social. Para os editores da gazeta, tudo isso certamente estava correto para o mundo contemporâneo, onde dominava o interesse material, mas não para a Idade Média, em que dominava o catolicismo, nem para Atenas ou Roma, onde dominava a política. A resposta de Marx foi que "a Idade Média não podia viver do catolicismo, nem o mundo antigo, da política. Ao contrário, a forma e o modo pelos quais ganhavam a vida é que explica por que ali a política e aqui o catolicismo desempenhavam o papel principal".

Ninguém ignora a importância do catolicismo para o feudalismo, que era o modo de produção dominante na Idade Média. Como diz o historiador Jacques Le Goff, em "O Deus da Idade Média" (ed. Civilização Brasileira), publicado no Brasil no ano passado, "no mundo feudal, nada de importante se passa sem que seja relacionado a Deus. Deus é ao mesmo tempo o ponto mais alto e o fiador desse sistema. É o senhor dos senhores. [...] O regime feudal e a Igreja eram de tal forma ligados que não era possível destruir um sem pelo menos abalar o outro".

Como se sabe, o regime feudal era o modo de produção dominante na Europa, antes do capitalismo. Curiosamente, se pensarmos agora no modo de produção que pretendia superar o capitalismo, que era o socialismo (que, segundo os marxistas-leninistas, era a primeira etapa, de transição, para o comunismo), veremos que, onde ele tentou existir realmente, como na União Soviética, nos países do Leste Europeu etc., o papel da ideologia marxista-leninista não era menor do que o da religião católica havia sido durante a era do feudalismo.

É verdade que, no socialismo, a política também teve um papel importantíssimo, não menor do que o que tivera no mundo antigo; mas, de qualquer modo, a história mostrou que aquilo que Le Goff diz da articulação entre o feudalismo e a Igreja - que eram de tal forma ligados que não seria possível destruir um sem pelo menos abalar o outro - pode ser dito da articulação entre o socialismo real e o partido marxista-leninista. Assim, por exemplo, dado que, no socialismo, as atividades econômicas não seriam mais realizadas tendo em vista a subsistência ou o lucro, era necessário que o partido - como diz uma enciclopédia publicada pelo Instituto Bibliográfico da extinta República Democrática Alemã - orientasse a criação da "unidade moral e política do povo", de modo que o trabalho se transformasse, "de mero meio de subsistência a um assunto de honra". Assim também, um dos líderes da Revolução Cultural chinesa, Lin Piao, explica que ela tinha como meta “eliminar a ideologia burguesa, estabelecer a ideologia proletária, remodelar as almas do povo, extirpar o revisionismo e consolidar e desenvolver o sistema socialista”. Todas essas coisas eram no fundo uma só.

Em semelhante regime, a intolerância em relação a heresias - ideologias alternativas, "desvios", "revisionismos" etc. - não é meramente acidental. A repressão a elas não se reduz - como se poderia supor - a um mero estratagema político, usado por determinado partido ou comitê central, ou líder (como não pensar em Stalin?) para racionalizar a prática de perseguir e eliminar os dissidentes. Ela provém da necessidade estrutural de manter a unidade ideológica indispensável para o funcionamento da própria base econômica.

Já o capitalismo funciona independentemente das idéias, concepções, religiões, atitudes, isto é, das ideologias, dos operários, capitalistas, técnicos, administradores ou consumidores que o fazem funcionar. Ainda que cada indivíduo pense e aja de uma maneira diferente de todos os outros, o capitalismo é capaz de prosperar, desde que seja observado de modo geral um mínimo de leis e regras formais de convivência. É exatamente por isso que ele é compatível com a maximização da liberdade individual, a sociedade aberta e o reformismo.

Os editores da gazeta teuto-americana perceberam de modo invertido a situação real. É o feudalismo (e, como vimos, também o socialismo) que necessita, para o seu funcionamento, de uma ideologia particular, correspondente à sua base econômica, e que, por isso, não é capaz de tolerar ideologias alternativas. O capitalismo, porém, exatamente porque a sua base econômica opera a partir do puro interesse material, independentemente de qualquer ideologia particular, não necessita de nenhuma ideologia específica, de modo que é capaz de tolerar todas, inclusive as que lhe foram ou são hostis, como o catolicismo ou o marxismo-leninismo.

66 comentários:

Anônimo disse...

olá cicero,

por muito certa que seja, a conclusão é assustadora:
o capitalismo é, dentro dos modelos económicos, aquilo a que os biólogos chamam uma "estratégia evolutivamente estável" (ou uma estratégia incapaz de ser batida por qualquer outra das estratégias presentes). para acabar com o capitalismo teríamos que destuir a sua base "ideológica", a motivação financeira -- e isso é impossível dentro de um sistema capitalista.

o capitalismo é tb o modelo económico que mais se aproxima da regra de ouro da evolução por selecção natural, "survival of the fittest". isto não quer dizer que os mais ricos são os mais bem adaptados biologica ou moralmente falando, apenas que os mais ricos são os índividuos que, dentro do modelo económico capitalista, têm maior sucesso (prq são os que têm mais capital).

e aqui talvez seja útil pensar num outro conceito em biologia que é o "adaptive suicide". prq a selecção natural actua sobre os organismos de forma "cega", (sem prever ou olhar para o futuro), uma população de índividuos extremamente bem adaptados, pode levar o recurso de que depende para sobreviver à extinção -- basta, por exemplo, que o consuma e se reproduza a taxas que são superiores à taxa a que o recurso é produzido.

é um bocadinho assim que eu vejo o fim do planeta capitalista global se não surgir rapidamente uma ideologia de vida unificadora e de índole mais racional a médio-longo prazo que a "motivação financeira" por si só: um conjunto de indivíduos extremamente "fittest" (ou mto ricos) cujas acções e decisões asseguram o crescimento da sua riqueza, ao mesmo tempo que comprometem a sobrevivência da população.

abraço,
filipa

ps- só dizer ainda que acho que temos sempre que ter mto cuidado com as metáforas e as biológicas qndo aplicadas às sociedades humanas, em especial (as políticas eugenistas são um triste exemplo).
mas aqui talvez a metáfora seja útil..? (apesar de horrorosamente pessimista, é certo)

Anônimo disse...

Querido Cícero,

por que o "puro interesse material" não seria ideológico como os outros? Desculpe-me se minha pergunta for estúpida. Concordo em boa parte com sua interpretação, mas ficou-me essa pergunta como uma espécie de nó ideológico...

Um abraço

Marcelo Diniz

Antonio Cicero disse...

Caro Marcelo,

Aqui estou pensando em termos do próprio Marx. O interesse material é, em primeiro lugar, o interesse em, como ele diz, ganhar a vida. O interesse material objetivo daquele que ganha a vida vendendo a sua força de trabalho é vendê-la pelo maior preço que conseguir. O interesse material objetivo do capitalista enquanto capitalista é, ao contrário, comprar a força de trabalho da qual extrairá a mais-valia e o lucro pelo menor preço que conseguir. Esse interesse é anterior às idéias ou à ideologia de um ou de outro. É evidente que ele influencia essas idéias ou ideologias: mas o faz justamente porque é anterior a elas. As idéias ou as ideologias do capitalista (ou do operário) podem ser católicas ou budistas ou atéias ou socialistas ou nazistas ou fascistas ou Republicanas ou Democratas etc. etc.: na hora de vender ou comprar força de trabalho no mercado, cada um age (é praticamente obrigado a agir) segundo o seu interesse material objetivo, independentemente dessas idéias ou ideologias. E o mercado funciona, independentemente das idéias ou ideologias do vendedor ou do comprador. Já o feudalismo não funcionaria sem o catolicismo, e o socialismo real não funcionaria sem o marxismo-leninismo.

Abraço,
Antonio Cicero

i disse...

Não vamos esquecer como foi lento o estabelecimento do interesse material à la capitalismo (a não-ideologia), individualista e utilitária, na Europa dos séculos XVII-XIX. Gente como Locke, Hume, Bentham, Quesnay, Turgot, Adam Smith, David Ricardo, Stuart Mill, Jevons, Menger(e muitos, muitos outros) gastaram rios e rios de tinta pra desenvolver essa não-ideologia, sem jamais negar que fosse uma ideologia. Essa idéia estranha de que o interesse material puro e individual é inerente ao ser humano nasceu, curiosamente, com o próprio Marx. A relação dos marxistas com esse conceito sempre foi dúbia, mas do lado capitalista, só mesmo no último século é que se começou a afirmar peremtoriamente que a visão de mundo utilitária, materialista e individualista é, como se diz, "natural". Em grande parte, graças à influência de Milton Friedman. Resumindo, essa crença de que o capitalismo é menos ideológico (ou mesmo idealista) do que outras doutrinas/sistemas é mais um dos folclores do mundo contemporâneo.

Lucas Nicolato disse...

Caro Antônio,

Seguindo a linha do seu diálogo com o Marcelo, não acho que um puro interesse material seria desvinculado das ideologias na prática. Há muito na escolha de emprego do capital que foge à pura busca por lucro. O que há de não ideológico no capitalismo, é que ele necessita apenas da demanda or capital, não importando quais os motivos que levam cada indivíduo a querê-lo: sejam necessidades biológicas básicas, ideologias que visam o progresso da humanindade, ações de responsabilidade social, ou puro acúmulo de capital "per se". Em outras palavras, não é necessário que haja um "consenso" quanto a finalidade do capital para que a economia funcione. Dessa forma, não é necessário que se imponha nenhuma ideologia pela força.

um abraço,
Lucas

léo disse...

O materialismo enquanto relação daquele que quer sobreviver e precisa negociar a seu fazor, é uma coisa. O estabelecimento do lucro a qualquer custo e sua égide como "natureza humana", deve ser resultado da acumulação e de um horripilante darwinismo social. Mas compreendo o que diz o Cícero, principalmente quando penso em suas últimas análises de sociedades religiosas como sociedades onde impera a falta de liberdade, sua defesa (dele, Cícero) da democracia e das instituições que a compôem etc. Neste sentido, a sociedade capitalista triunfa. Mas questões como a desigualdade, principalmente em países emergentes (mas também nos desenvolvidos), deixa algo no ar, nos levando a suspeitar dessa suposta vitória capitalista, em outros planos. Talvez uma terceira via surja, para nos tirar desse impasse. Alguns países europeus atingem alto nível social sem percorrer a via crucis revolucionária. Mas o maior símbolo do capitalismo mundial, os EUA, estão longe de ser exemplo do quer que seja. Mesmo de democracia.

Anônimo disse...

Prezado Antonio Cicero,

Eu pretendo elaborar uma reflexão acerca do seu artigo, todavia encontrei no meu blog algumas reflexões peripatéticas, menos perí, mais patéticas do que penso...sei lá...

Saturday, January 13, 2007

Sempre e sempre tive pendor pelos oprimidos. E sempre terei. Mas isso passa léguas de distância das argumentações de pseudo- intelectuais que tentam tomar para si esses tais estratagemas. Gosto do ser humano carne, alma e osso. Mas na maioria das vezes desdenho esses tais intelectuais de cathedra. Muitos nunca foram, como sabemos, a uma favela. E nem iriam e nem irão. O que importa para eles é a literatura somente. Na verdade, chego a afirmar, sem infirmar posteriormente, que esses tais intelectuais desprezam tanto e quanto esses mesmos despossuídos na mesma proporção elevada a enésima potência se comparados aos políticos. Os políticos pelo menos foram ou são obrigados por injunções diversas a visitar certos guetos. Já alguns cientistas políticos, sociólogos ou quejandos: jamais. Nem se sentiriam à vontade fora de seus devidos e reluzentes habitats. Por isso ninguém mais acredita em intelectual de burô. E esses caras normalmente querem não sei por que motivo mudar o mundo, como se não estivessem satisfeitos com essas não alterações. Uma porque são os seus beneficiários diretos. Em suma: pequenos-burgueses que detestam viver, vai saber lá as razões. E eu confesso que quase saberia, se eu não me censurasse também nesse exato momento. Por isso precisam, necessitam, de uma válvula de escape para as suas pulsões. E essa vávula de escape é justamente o povo. Enveredei um pouco por isso, para dizer que na minha juventude cheguei a me simpatizar pela esquerda: sierra maestra, mencheviques, havana, nicarágua etc. E isso não quer dizer que não me simpatizaria por esse povo. Mas é porque também não estava contente com a minha vida e foi também uma identificação e uma vávula de escape. Peguei a época da guerra fria e da polarização maniqueísta entre esquerda e direita - ainda não havia essa possibilidade de terceira, quarta via - e pela chamada direita coeva não dava mesmo, senão ficar do lado gauche. Mas penso que hoje a direita mudou e que a esquerda mudou. Tenho colegas que já amaram a esquerda e que hoje sem nenhum pundonor a detestam. E confesso a vocês que eu tentei resistir. Resisti como um amante resiste em admitir que não ama mais a sua mulher, mas que vive lhe enganando. E é o que fiz esse tempo todo. Mas a mim isso se deu mais porque eu ainda não tinha encontrado uma amante para lhe substituir, e o que é pior: ainda não a encontrei. Preferi então ser um solteirão solitário a procura de um novo amor. Um cabra do cabaré. Mas penso que o sistema capitalista seja ainda um pouco mais sistematizado e não contraditório dentro de seus elementos. E advogo aquilo que Adam Smith advogava: a mão invisível. É claro que não sou economista, e que desconheço inúmeras distorções do sistema, bem como as suas escolas: clássica, marginalismo etc... Que para mim não passam de pontos de vista. É claro também que com a grande gama de produtos perdeu-se de uma certa forma no imaginário o que seria hoje um consumo conspícuo, ou uma necessidade primária. Entendo ainda básico ou primário para o ser humano como:comer, beber, dormir, etc... Mas não vou adentrar em assunto que desconheço. Mas vejo uma falha no capitalismo. E essa falha é justamente a propensão ao delito, ao roubo - manetar e não menos manietar a mão invisível de Smith. Querem exemplos? Há vários por aí: posto que o teu funileiro te rouba, posto que o teu mecânico te rouba, posto que o teu livreiro te rouba, posto que o teu pedreiro te rouba, posto que a tua amante te rouba, posto que o teu banqueiro também não menos te rouba... O problema do sistema então seria justamente a ingerência por um capiau qualquer na manus invisible de Smith. Além do equilíbrio entre oferta e demanda - rediviveria aqui ainda o desequilíbrio daqueles que nos querem sempre nos furtar...E tenho dito...

posted by wilson luques costa @ 10:14 AM

Anônimo disse...

Olá Cicero,

Achei fascinante o que você escreveu, e acho que, em cima do Capitalismo, foi criado um esteriótipo em que o pobre vai ser sempre pobre e o rico, mais rico. Porém esse problema, acredito eu, que é de ordem pública com relação a falta de investimentos em educação e saúde onde reduz a possibilidade de um indivíduo sem condições básicas de participar de um grupo de pessoas focas em trabalhar e prosperar.
Eu realmente fiquei muito surpreso com a coluna e acredito que vou levar isso para o resto da minha vida.

Parabéns

Abraço

Ruben Bareio

Antonio Cicero disse...

Caro Osrevni,

Receio que sua leitura do meu artigo tenha sido apressada e, por isso, equivocada. Não estou negando que haja ideologias burguesas. Penso, ao contrário, que há muitas. Estou afirmando que o capitalismo não necessita impor a toda a sociedade nenhuma ideologia específica para funcionar, o que explica por que ele é capaz de tolerar todas, não só as várias versões burguesas, mas mesmo as que são contra ele. Você acha que é possível negar esse fato?

A idéia de Marx de que o interesse material é universal não tem nada de estranho. Ela quer dizer simplesmente, que, de maneira geral, o ser humano, seja de que cultura for, precisa – logo tem interesse em – viver; sobreviver; ganhar a vida; ganhar o pão de cada dia: pois nem a Idade Média podia viver do catolicismo, nem a Antiguidade da política, nem o mundo capitalista das suas idéias.

Entretanto, isso nada tem a ver com “a visão de mundo utilitária, materialista e individualista”, e eu jamais afirmei que tal visão do mundo seria “natural”. Não sei de onde você tirou isso. Afinal, ainda que haja quem pense assim no mundo em que vivemos, muita gente, inclusive você e eu, pensamos de outro modo.

Outra coisa – diferente dessa visão de mundo – é o interesse do capitalista na mais-valia. Isso não é universal, mas tampouco é ideológico. Esse interesse faz parte do próprio ser do capitalista. Claro que há ideologias que se constroem por cima – superestruturalmente – desse interesse: até essa “visão de mundo utilitária” de que você fala pode ser construída por cima desse interesse. Mas essas ideologias não são universais, nem nas sociedades em que domina o modo de produção capitalista. Elas são diferentes ideologias burguesas. Há, nessas sociedades, inúmeras ideologias burguesas e inúmeras ideologias não-burguesas. Não é imprescindível que nenhuma delas seja adotada pela sociedade como um todo, para que o sistema funcione. Ora, o que eu afirmo é exatamente que o capitalismo funciona, ainda que cada pessoa tenha uma ideologia diferente. Nesse sentido, a relação do modo de produção capitalista com toda e qualquer ideologia é, sim, diferente da relação dos modos de produção de que falei, que são o feudalismo e o socialismo real, com as respectivas ideologias.

Acho que, no comentário dele, Lucas Nicolato explica bem o que quero dizer.

Abraço,
Antonio Cicero
11 de Fevereiro de 2008 20:57

Lau Siqueira disse...

Oi, C�cero!
Um artigo para despir preconceitos ideol�gicos, amigo. Id�ias muito claras e colocadas de forma muito objetiva. Massa demais!
Na verdade, amante da liberdade, n�o consigo ser simp�tico � Cuba de Fidel (experi�ncia hist�ricamente pr�xima do marxismo-leninismo), com prisioneiros pol�ticos. Pessoas condenadas por crime de pensamento (ou atos pol�ticos).Parece que o sonho socialista em Cuba esqueceu o seu principal componente: a liberdade. Mas, seu artigo passa ao largo. Voc� apenas coloca situa�es hist�ricas para que o pensamento do leitor flua atrav�s delas. Sinceramente? Vou precisar de mais umas 15 leituras. Talvez, ent�o, consiga formular alguma coisa mais consistente em torno da minha pr�pria hist�ria de militante dos movimentos sociais, avesso �s ditaduras da igreja e dos partidos. De certa forma, na primeira e r�pida leitura, concluo que o capitalismo se sustenta no equil�brio das suas pr�prias contradi�es e diferen�as.
Um grande abra�o!
Lau

PS. Mande seu endere�o pro meu e-mail. Gostaria de enviar meu novo livro proc� (lausiqueira@yahoo.com)

Antonio Cicero disse...

Lau,

adorei você aparecer. E adorei seus comentários. Acho que é isso mesmo.

Grande abraço,
Antonio Cicero

Anônimo disse...

Caro ACicero,

Talvez você esteja certo quanto à necessidade que rege a relação dos modos de produção feudal e socialista com as respectivas "ideologias". Isso pode mesmo ser ou ter sido um fato. Mas talvez a explicação que você dá para esse fato não corresponda totalmente à relaidade.

Tudo indica que a economia tenha atingido a independência relativamente aos outros aspectos da vida humana com o fim da Idade Média, portanto com a crise do feudalismo e a emergência do mercantilismo. Ora, se isso é um fato, então nem se pode falar de um modo de produção feudal [assim como não se pode falar de uma visão de mundo medieval...]: o feudalismo e o catolicismo não se relacionavam como base econômica e superestrutura ideológica, mas constituíam um sistema social integral, tradicional. Marx erra, portanto, quando transporta para o passado, anterior ao capitalismo, os conceitos que ele obteve por meio da análise do próprio capitalismo, como o de modo de produção.

Se estou certo, é claro então que o socialismo, enquanto modo de produção posterior ao capitalista, esse sim se relaciona com o marxismo-leninismo segundo o modelo base-superestrutura. Pois o socialismo sobreveio numa época em que a economia tinha conquistado sua autonomia há muito tempo.

Abraço,
edg

Antonio Cicero disse...

Caro Edson Gil,
Marx sabia que o feudalismo e o catolicismo constituíam um sistema social integral. E ele sabia que “a abstração do Estado enquanto tal pertence primeiro à época moderna, porque a abstração da vida privada prmeiro pertence à época moderna. A abstração do Estado político é um produto moderno” (Kritik des Hegelschen Staatsrechts). O que ele não aceitaria – com toda razão – é que não possamos hoje abstrair, nesse sistema social integral, aquilo que pertence à base econômica (o feudalismo) da superestrutural ideológica (o catolicismo). Como não, se o fazemos o tempo todo? Basta consultar qualquer livro de história. A descrição do feudalismo é uma coisa; a do catolicismo, outra. Marx nada tinha de ingênuo. O que ele diz sobre esse assunto não é muito diferente do que o que você diz: “Na Idade Média a vida popular e a vida do Estado (i.e. política) eram idênticas. [...] A oposição refletida [entre a vida popular e a vida do Estado, ou política], pertence somente aos tempos modernos” (Ibid.). Entretanto, uma vez que somos hoje capazes de fazer essa abstração, podemos aplicá-la à Idade Média. Pretender o contrário seria o equivalente a dizer que, já que os índios da tribo Pirahã, segundo o antropólogo Daniel Everett, não conhecem números, nós não podemos contá-los.
Abraço,
Antonio Cicero

Anônimo disse...

Caro ACicero,
Marx era ingênuo sim: um realista ingênuo. Para ele o pensamento não passava de fumaça do cérebro. Portanto não podia entender plenamente o que ele mesmo dizia a respeito das sociedades, ou melhor, das comunidades tradicionais, nas quais a base material não determinava o Estado nem a cultura da mesma forma que viria a ocorrer, no Ocidente, com o fim da Idade Média.
O fato de fazermos história e ciências sociais em geral mediante a aplicação de conceitos modernos ao passado diz muito mais acerca do sujeito do que do objeto. A História das Mentalidades é uma tentativa de superar essa dificuldade.
Como utopias, os socialismos em geral, e não apenas o marxo-leninista, implicavam uma relação base-superestrutura distinta da que se deu no seio das cosmologias gregas e da religião cristã medieval [e das comunidades tradicionais em geral].
Abraço,
edg

Anônimo disse...

Caro Edson (quem me mandou o texto de Antonio Cicero)

Sou muito sensível a um argumento bem encaixado. E confesso que gostei muito do argumento do autor. Inclusive a forma me agrada - simples, limpo, sem firulas, conciso, objetivo.

Talvez seja este singelo texto uma das melhores defesas do capitalismo que já li. E chega a ser bom o suficiente para, em princípio, me fazer concordar com ele, ainda que isso equivalha a flertar perigosamente com aquilo que de fato me parece inaceitável: a perenidade de um sistema social como o capitalismo.

Mas vamos brincar de fazer oposição. Dizer que o capitalismo tolera todas as ideologias me parece estranho. Eu poderia contra-argumentar dizendo que o sistema só tolera as ideologias hostis quando estas são ou estão fracas demais para se constituírem como adversários sérios.

Neste sentido, o capitalismo institui uma ideologia, sim, necessariamente atrelada à sua base econômica. Esta é elástica assim como aquela, e nesta elasticidade residiria um poder sem paralelos na história das ideologias. As ideologias alternativas/hostis ao capitalismo podem subsistir dentro do próprio capitalismo, mas no final seus militantes terão que se render à determinação material da existência sob o capital, qual seja, a de terem que sobreviver como compradores ou vendedores de trabalho. A ilusão de liberdade pode ser a mais poderosa forma de prisão.

Assim, a imposição "desinteressada" (de ideologias unificadoras ou restritivas da liberdade de pensamento) da dimensão material do sistema capitalista funcionaria como lastro real de uma lógica de fato absolutamente intolerante.

Afinal, você "pode" ser o que quiser no capitalismo, mas para sobreviver deve se render inevitavelmente ao arbítrio do "mínimo de leis e regras formais de convivência", a necessidade de ter que se vender em troca de dinheiro pras contas. Não parece o cúmulo do cinismo? O capitalismo permite a todos pensarem e serem o que quiserem, mas o caminho para a salvação e a vida é um só: em direção ao capital (isso me lembra certas doutrinas religiosas...).

Abraços,
Sidartha

Anônimo disse...

´Já o capitalismo funciona independentemente das idéias, concepções, religiões, atitudes, isto é, das ideologias, dos operários, capitalistas, técnicos, administradores ou consumidores que o fazem funcionar. Ainda que cada indivíduo pense e aja de uma maneira diferente de todos os outros, o capitalismo é capaz de prosperar, desde que seja observado de modo geral um mínimo de leis e regras formais de convivência. É exatamente por isso que ele é compatível com a maximização da liberdade individual, a sociedade aberta e o reformismo.´


Crítica: Embora em meu entender o capitalismo tenha sido emanado por um tipo de geração espontânea, não devemos considerar que há sim os chamados TANQUES DE PENSAMENTOS, não obstante a clara previsão de Schumpeter de seu declínio. Há exemplos claros como Davos, e Ibiúna em tempos outros, cujos helicópteros sobrevoavam as encostas de Viracospos para discutir as possibilidades de um desvio de rota... De outro modo, já é evidente que o socialismo seria um pensamento ´in vitro´condicionado pela cabeça do homem... Não confundir espontaneidade latente, com objetivações...

Outra crítica: E o que Max Weber elabora sobre o Protestantismo e a sua estrita relação com o capitalismo?

Anônimo disse...

errata:

´Não devemos de deixar de considerar...´
grato.

Antonio Cicero disse...

Caro Edson,

Ponho, comme d’habitude, em forma de diálogo a nossa discussão:


Ed - Marx era ingênuo sim: um realista ingênuo.

AC - Edson, você sabe perfeitamente que quem passou pela escola de Hegel não pode ser um realista ingênuo.

Ed - Portanto não podia entender plenamente o que ele mesmo dizia a respeito das sociedades, ou melhor, das comunidades tradicionais, nas quais a base material não determinava o Estado nem a cultura da mesma forma que viria a ocorrer, no Ocidente, com o fim da Idade Média.

AC - Meu artigo mostra exatamente que, para Marx, na Idade Média, a cultura tinha, na totalidade social, um papel inteiramente diferente do que tem no mundo moderno, capitalista.

Ed - O fato de fazermos história e ciências sociais em geral mediante a aplicação de conceitos modernos ao passado diz muito mais acerca do sujeito do que do objeto. A História das Mentalidades é uma tentativa de superar essa dificuldade.

AC - Suponho que a História das Mentalidades, de que você fala, pretenda que não se deva aplicar conceitos modernos ao passado. Ora, essa concepção já é, ela mesma, inteiramente moderna. Nenhum povo pré-moderno jamais deixou de julgar os outros segundo os seus próprios valores e noções: nenhum povo pré-moderno jamais sequer questionou esse direito.

Ed - Como utopias, os socialismos em geral, e não apenas o marxo-leninista, implicavam uma relação base-superestrutura distinta da que se deu no seio das cosmologias gregas e da religião cristã medieval [e das comunidades tradicionais em geral].

AC - É claro que há diferenças. Mas o que mostro no meu artigo é que elas são menores do que as que separam essas sociedades pré- ou anti-capitalistas das sociedades capitalistas.

Abraço,
Antonio Cicero

Antonio Cicero disse...

Caro Anônimo (ou melhor, Edson):

Já que, como o próprio Sidharta diz, ele está brincando de fazer oposição, também eu vou brincar de responder. O argumento dele, no final das contas, é que, como as pessoas têm que trabalhar para viver, a liberdade no capitalismo é uma ilusão. Ora, diz ele, “a ilusão de liberdade pode ser a mais poderosa forma de prisão”.

Se é assim, talvez seja melhor, para nos libertarmos da prisão em que vivemos, voltarmos ao regime esclavagista ou ao feudalismo.

Abraço,
Antonio Cicero

Antonio Cicero disse...

Caro Wilson,

Sinceramente, não entendi a primeira crítica.

Quanto à segunda, Weber fala do Protestantismo na ORIGEM do capitalismo. É que, exatamente contra a unidade Catolicismo-feudalismo, o Protestantismo considerava o sucesso material como manifestação da graça divina, de modo que não o condenava. Mas o Protestantismo jamais, nem mesmo na origem, foi obrigatório para que o capitalismo funcionasse. De todo modo, a tese de Weber tem andado sob fogo cerrado, ultimamente.

Abraço,
Antonio Cicero

Anônimo disse...

Prezado ANTONIO CICERO,

ESCREVO DE UMA LAN HOUSE E FICO NA IMINÊNCIA DE PERDER O QUE PENSO. POR ISSO O PENSAMENTO JOGADO A ESMO. TENTO DIZER QUE O CAPITALISMO, NÃO OBSTANTE A DEMANDA DE CADA UM, POSSUI SIM TANQUES DE PENSAMENTOS PARA TRANSFORMÁ-LO OU SALVAGUARDÁ-LO. DOIS EXEMPLOS SÃO: DAVOS E IBIÚNA, NO PASSADO, SEM CITAR REVISTAS, JORNAIS, QUANDO LEGISLAM EM CAUSA PRÓPRIA. E ISSO NÃO FOGE AO ASSUNTO EM TELA, A MEU VER. OUTRA COISA QUE PENSO É QUE A SUPERESTRUTURA SEMPRE PASSA PELO PODER E NÃO POR QUALQUER OUTRO FACTUM. E SE O CATOLICISMO ENGENDRA PODER, VIVA O CATOLICISMO; E SE O CAPITAL GERA PODER, VIVA O CAPITAL.. LI POUCO, MUITO RAPIDAMENTE SOBRE O QUE FALAM DE MARX E DE SUA INGENUIDADE. INGÊNUOS PODEM SER OS QUE SEGUEM OU NÃO SEGUEM MARX, MAS NÃO MARX, PORQUE, COMO UM IATRÓS, DETECTA ANOMALIAS NO ORGANISMO CAPITALISMO. É EVIDENTE QUE TEORIZOU PROPOSTAS, MAS SE INGÊNUO VEM DE INGENUUS DO LATIM, ENTÃO ESTARÁ PERDOADO. ACHO QUE FICOU MAIS CONFUSO AINDA.

Anônimo disse...

Caro Antonio Cicero, comento o seu comentário:

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ANTONIO CICERO: O argumento dele, no final das contas, é que, como as pessoas têm que trabalhar para viver, a liberdade no capitalismo é uma ilusão. Ora, diz ele, “a ilusão de liberdade pode ser a mais poderosa forma de prisão”.

Se é assim, talvez seja melhor, para nos libertarmos da prisão em que vivemos, voltarmos ao regime esclavagista ou ao feudalismo.
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Isso, OU pensarmos/praticarmos uma forma de organização social que avance em relação ao capitalismo, em vez de retroceder.

Pense o que quiser, no final terá que se submeter ao regime, porque, seja você grego, troiano, republicano, democrata, socialista, anarquista ou yuppie consumista, tem obrigatoriamente que sobreviver ,e, no capitalismo, não há opção: se não for proprietário de capital-mercadoria, terá que se vender como mercadoria. Ou seja, terá que se submeter ao império da roda do Valor, que não pode parar de girar. De fato esta seria a síntese da minha crítica ao seu texto (embora, como já disse, eu o considere muito bom).

Por que não, em vez de retroceder ao feudalismo ou ao escravagismo, ir além, aproveitando: 1) a fenomenal base tecnológica (o reino da fartura) produzida pelo capitalismo; e 2) a brecha que o sistema capitalista permite (qual seja, a de ser uma dinâmica produtiva que funciona sem requerer uma única ideologia ferreamente imposta a cada indivíduo)?

Por que não ir além, aproveitando ambos os elementos para impulsionar um movimento humano que rompa esta que poderia ser a última e mais poderosa forma de submissão do ser humano (submissão a um sistema impessoal, que, não obstante permitir o "livre" pensamento, obriga o pensante a se curvar aos seus imperativos materiais)?

Por que o mundo tem que ter tanta pressa? Por que não podemos passar mais tempo com nossas famílias e amigos, já que em tese podemos produzir nossa sobrevivência em muito menos tempo e com muito menos esforço? Por que, mesmo com tantas facilidades e o gigantesco suporte tecnológico, que civiliza e adapta a natureza às necessidades vitais humanas, temos que trabalhar cada vez mais, e com isso tendencialmente nos entorpecermos cada vez mais para fugir dos estresses, ficando cada vez mais neuróticos e angustiados pela aparente falta de sentido em ter tanta pressa?

Seu texto é bom, Cicero, mas ele acaba por se converter numa ótima defesa da resignação e do fechar de olhos para tantas mazelas que, tanto quanto a liberdade suposta de ideologias, são estruturalmente produzidas pelo capitalismo.

Sidartha

Antonio Cicero disse...

Wilson,

O que digo não implica que o capitalismo não tenha ideologias ou think tanks. O que importa é que, diferentemente do feudalismo ou do socialismo real, ele não necessita, para funcionar, impor nenhuma ideologia determinada à sociedade como um todo.

Abraço,
ACicero

Anônimo disse...

Caro ACicero,

O que você quer dizer com "sociedade como um todo"? Como é que fica o Islã no seu esquema?

Que diferenças há, afinal, entre as sociedades não-capitalistas modernas e as pré-modernas? As cosmologias e as religiões pré-modernas são para você meras ideologias e/ou utopias sociais?

Quando faz história ou ciência social, Marx, ou qualquer outro moderno, aplica categorias modernas a "sociedades" tradicionais, não-modernas. Enquanto um pré-moderno qualquer, quando faz "história", aplica categorias tradicionais a "sociedades" tradicionais. Você não vê aqui nenhuma diferença substancial?

Ao WILSON: Marx não era ingênuo do ponto de vista científico, mas do ponto de vista filosófico. O fato de ele ter sido um hegeliano [invertido] não muda nada. Hegel, provavelmente, nem consideraria Marx um filósofo, uma vez que, para ele, Hegel, o materialismo não é filosofia. Suponho que, na Fenomenologia do Espírito, o marxismo não passaria das primeiras figuras da consciência: um escolado hegeliano nos limites da consciência sensível...

Abraço,

edg

Anônimo disse...

Prezado Antonio Cicero,

Não sei se concordaria com a sua tese, posto que se assim o fosse, o capitalismo não necessitaria destes mesmos ´think tanks´. Isso porque o que denominamos de capitalismo tem uma data, em tese, de nascimento. Não se trata de algo universal e perene, embora nos passe essa idéia. Não teria quatrocentos anos... Sendo que o que denominamos de Idade Média ultrapassa essa cifra, considerando a alta e a baixa Idade Média - evidentemente com inúmeras murações no que tange a oiconomia. E nesse sentido, necessitaríamos definir melhor o que é ideologia. O problema, em meu entender, é que essa ideologia está tão homiziada no chamado Micropoder ou nos aparelhos ideológicos, que acabamos não percebendo de uma forma mais evidente as suas engrenagens. Seria algo como já incorporado ao próprio sistema - no que me aflora agora um certo neologismo: ´engrenagens monodizadas´...

Mas entendo o que pensa... Aliás não estou nem sendo contra ou a favor, apenas estou querendo pensar a idéia de ideologia para esse caso (ad hoc)...

De qualquer forma, agradeço a sua ágora...

Jamais poderemos dizer que esse espaço não seja um dos mais democráticos do país...

Deveras, aqui estes exemplaria de democracias...

Antonio Cicero disse...

Caro Sidartha,

Obrigado pelas palavras generosas sobre o meu texto.

Quanto às críticas, receio que se dirigem mais contra as intenções que você precipitadamente me atribui do que contra o que eu realmente escrevi ou contra as minhas intenções reais.

Antes de explicar isso, quero falar dos pontos em que, realmente, não concordamos.

Você fala, por exemplo, de romper a “submissão a um sistema impessoal, que, não obstante permitir o ‘livre’ pensamento, obriga o pensante a se curvar aos seus imperativos materiais”. Por que colocar o “livre” de “livre pensamento” entre parênteses? Que pensamento, então, seria livre para você? O pensamento de Marx não era livre? O seu pensamento não é livre, na medida em que alguma coisa humana possa ser livre? Veja que, se você nega isso, desqualifica o seu próprio pensamento, logo, os seus próprios argumentos, praticando uma auto-contradição performativa.

E quanto ao capitalismo obrigar quem “não for proprietário de capital-mercadoria” a “se vender como mercadoria”? O trabalho sempre foi uma necessidade para praticamente todos os homens. A Bíblia o vê como uma maldição, uma praga rogada por Deus contra o homem: “Maldita é a terra por sua causa; com sofrimento você se alimentará dela todos os dias da sua vida. Ela lhe dará espinhos e ervas daninhas, e você terá que alimentar-se das plantas do campo. Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra”. Como afirmar que a venda da força de trabalho possa ser a “mais poderosa forma de submissão do ser humano”? Como não considerar isso, ao contrário, como um imenso progresso não só em relação à submissão, mas à degradação que eram a escravidão e a servidão pessoal? Você preferia ter sido um escravo do que ser um cidadão?


Mar por que digo que estão erradas as suas interpretações das minhas intenções com esse artigo? Porque, por exemplo, a minha intenção jamais foi a de fazer uma defesa do capitalismo. Minha intenção – que creio ter realizado – era mostrar que o socialismo baseado no marxismo-leninismo é estruturalmente incompatível com a sociedade aberta. Não tenho nada – nem escrevi nada – contra “ir além” do capitalismo, desde que, no mínimo, preservem-se os direitos humanos, o direito à a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual, a coexistência de uma multiplicidade de culturas e formas de vida, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. O que não se pode é voltar atrás dessas conquistas. Concordo quanto à possibilidade, na base da tecnologia moderna, de mudar a relação que temos com o trabalho. Já em 1844, nos seus “Manuscritos econômico-filosóficos”, Marx dizia que “calcula-se que na França, no nível atual de produção, um tempo de trabalho médio de cinco horas, por todos os capazes de trabalhar, seria suficiente para satisfazer todos os interesses materiais da sociedade”. Não sei se ele estava certo então, mas, hoje, não tenho a menor dúvida disso.

Os resultados terríveis das experiências revolucionárias do século passado são a prova material de que é preciso buscar caminhos diferentes para transformar as coisas. Por isso, se eu tivesse que definir a minha posição política hoje, diria que sou um reformista radical: e que considero lamentável que a palavra “reformismo” tenha sido usada como palavrão pelos soi-disant revolucionários. Observe que todos os textos que tenho escrito para a Folha têm esse sentido. Como poderia, por exemplo, o meu texto sobre a eutanásia ser considerado como uma “defesa da resignação”? O reformismo radical é o oposto de qualquer “defesa da resignação”.

Abraço,
Antonio Cicero

Anônimo disse...

Errata: ´Mutações`

Anônimo disse...

Caro Antonio,

Eu retiro, então, as aspas da liberdade de pensamento. De fato você tem razão, e eu mesmo fiquei encafifado depois de ter mandado o comentário, ao olhar pras aspas. Além disso me lembrei de Millôr, que salvo engano foi quem disse que "livre pensar é só pensar".

Eu vi uma defesa do capitalismo diante da experiência stalin-leninista em seu texto, mesmo não sendo sua intenção original defender o capitalismo. Uma defesa "por contraste" (similar talvez à defesa de Churchill pela democracia). Não me parece uma interpretação absurda do que você disse (como sabe a obra pode não se resumir à intenção do autor).

Também vi uma possível base para a aceitação resignada da atual sociedade em seus fundamentos essenciais, mas posso ter me excedido em termos de derivação lógica do seu argumento. Poderias, em outra ocasião, escrever (se já não fez isso) algo como um comentário ou acerto de contas com o atual sistema social.

Agora retomemos as discordâncias. O capitalismo de fato admite ou tolera uma dada organização político-institutional que aceita pensamentos discordantes em relação ao status quo, ou seja, tolera o livre pensamento. Mas, e aí reafirmo o que disse em minha primeira mensagem, esta liberdade é tolerada enquanto não for ameaça séria à supremacia concreta (seguida da predominância no universo ideológico) da lógica estrutural/estruturante do capital. Quando isso ocorre (por exemplo, em momentos em que estouram revoluções sociais, mas não apenas, como também momentos em que se constatam movimentos de pressão por maior democratização/inclusão social - por exemplo, o início dos anos 60 no Brasil), aí as forças sociais pró-capital ignoram as regras do jogo democrático e partem para a selvageria da ditadura.

É o caso do dono da bola que topa jogar com o pessoal. Quando, lá pelas tantas, o rumo do jogo desagrada ao dono, que se vê preterido em relação aos que estão jogando, ele resolve pôr a bola embaixo do braço e ir embora. As forças sociais dominantes na sociedade capitalista são como o dono da bola. Topam ou toleram jogar, mas enquanto estão ganhando, ou, no máximo, enquanto não perdem por muito (perde uma, ganha outra, ganha de novo e outra vez, perde de vez em quando etc). Quando começam a perder demais, aí toca vestir o figurino da chamada "cívica", do clamor "popular" pelos militares, pra dar um jeito na "baderna", na "ameaça à democracia" etc.

Quanto à necessidade de se trabalhar, esclareço e reitero meu argumento. De fato, como você disse, "o trabalho sempre foi uma necessidade para praticamente todos os homens". Trabalhar, sim, é uma necessidade. Mas trabalhar PARA O CAPITAL, isso não é uma necessidade para os homens, e sim apenas para a lógica de valorização do valor. A rigor, o trabalho vive sem o capital (basta lembrar de sociedades não-capitalistas, como nações indígenas etc), mas o inverso não é verdadeiro.

E a lógica da valorização do valor, com todos os seus elementos constitutivos, é a raiz de grande parte dos problemas que hoje nos assolam. A competitividade cada vez mais sem limites, que infla a porção individualista/egoísta e a insensibilidade dos seres humanos ao próximo, ao coletivo, ao público; a coisificação dos indivíduos, cuja "humanidade" reside em parcelas dispostas nas mercadorias que temos que ter (para sermos aceitos, queridos, reconhecidos socialmente), a padronização e "mediocrização" da cultura de massa, não obstante a resistência própria dos indivíduos que insistem na diversidade e na novidade cultural (não interessa, à indústria cultural, multidões de indivíduos com infinitas preferências culturais, e sim massas o mais padronizadas possível, cujos gostos podem ser atendidos por 7 ou 8 gêneros de mercadorias); as imensas desigualdades socioeconômicas; a disposição do direito de propriedade como estando acima do direito à vida (à vida digna, em condições decentes; etc.

É isso que critico. A mais poderosa forma de submissão é a venda da força de trabalho ao capital PORQUE, ao contrário do escravismo ou da servidão medieval, em que a submissão material ficava claramente expressa na submissão formal (formal, jurídica, institucionalmente o servo e o escravo eram considerados inferiores ao nobre e ao patrício), no capitalismo a submissão material se vê encoberta por uma igualdade formal, que dificulta a visão e percepção da natureza fundamental das relações de trabalho no capitalismo.

Mas concordo em relação à crítica das experiências desastrosas tentadas pela extrema-esquerda ou pelos socialistas revolucionários. Neste sentido, não estou distante de você, me filiando também à causa do reformismo consciente.

O caminho de transformações maiores passa pelas transformações menos ousadas em seus propósitos. Serão estas últimas que conferirão o lastro de democracia aos movimentos em prol de sociedades melhores, mais civilizadas, includentes socialmente e justas economicamente. Isso porque as grandes e rápidas transformações pressupõem um grande e concentrado poder político para realizá-las, e isso já deu mostras suficientes de não ser algo aceitável para quem defende a igualdade e a liberdade como valores fundamentais.

Como disse Delfim Netto, o mercado sabe produzir riqueza, mas não distribuí-la. A distribuição deve ser encargo da política, do Estado, na forma da efetivação do caráter republicano nas instituições estatais. Se tal coisa fosse incluída na pauta de anseios nacionais, já seria um grande avanço.

Saudações,
Sidartha

Anônimo disse...

DIGO:
...um escolado hegeliano nos limites da CERTEZA [e não consciência] sensível...
[é que a "certeza sensível" justamente não é ainda uma consciência de si]
edg

[tabita] disse...

**
o capitalismo necessita especificamente da ideologia por ele mesmo forjada.
não fosse o paradigma da propriedade privada, em suas formas estabelecidas pela burguesia no processo histórico, e não haveria patrões e empregados, salários, famílias tais como conhecemos, escolas idem, polícia, nem Estado burguês (leia-se, democracia dos ricos).
::

Anônimo disse...

AO EX-COLEGA DE PUC-SP, EDSON DOGNALDO GIL,

PREZADO EDSON, MUITOS CADERNOS DIDÁTICOS E PARADIDÁTICOS APÕEM A DÚVIDA QUANTO A MARX SER UM SOCIÓLOGO OU FILÓSOFO. EU MESMO, TALVEZ, O CONSIDERE UM SOCIÓLOGO COM UMA PROPOSTA. QUANTO A FILÓSOFOS - E ISSO DESDE ERAS PRIMEVAS - EU POSSO CONTAR NOS DEDOS QUANTOS SÃO; MAS TAMBÉM PORQUE É DIFÍCIL SABER, POSTO SER A PALAVRA FILOSOFIA, MESMO NA SUA RAIZ GREGA, MUITO INSUFICIENTE. NO BRASIL, HÁ PROFESSORES; NO MUNDO TODO, HÁ ALGUNS QUE SÃO CHAMADOS DE FILÓSOFOS, PORQUE TENTAM CRIAR SISTEMAS, MAS COM FALHAS INTRÍNSECAS ALARMANTES; POSSO CITAR DOIS CASOS, UM, POR SINAL, MUITO CARO A VOCÊ QUE É FICHTE COM O SEU PRINCÍPIO DA IDENTIDADE E A SUA EGOIDADE, QUE ME PARECE, COMO JÁ DESENVOLVI EM MEUS ESTUDOS SOBRE O PARADOXO DO ZERO, BEM ALQUEBRADO; O OUTRO SERIA KANT, QUE NA CRÍTICA COLOCA A MATEMÁTICA COMO UNIVERSALIDADE INABALÁVEL -- QUANTO A HEGEL, RATIFICO O MEU DESINTERESSE AINDA PELA SUA FILOSOFIA, POIS NÃO ME PARECE, NUM PRIMEIRO MOMENTO, MUITO ATRATIVA, TALVEZ POR INFLUÊNCIA DE SCHOPENHAUER, QUE O CRITIVAVA BASTANTE, CHAMANDO DE HEGELHARIA O SEU TEMPO DE UNIVERSIDADE. PODEM ATÉ DIZER QUE ERA INVIDIA DE SCHOPENHAUER, VAI LÁ SABER O POR QUÊ... PARA MIM, FILOSOFIA DEVE SER NÍTIDA COMO UM CÉU DE BRIGADEIRO, POIS QUEM ENVEREDA DEMAIS POR CONCEITOS -- PARECE NÃO TER MESMO NADA A DIZER... QUANTO A HEGEL, PODEREMOS SÓ FAZER ILAÇÕES EM RELAÇÃO A MARX, PORQUE MARX 1818-1883 3 HEGEL 1770 -1831, SE NÃO ESTOU ENGANADO PELA MINHA MEMÓRIA QUE JÁ FRAQUEJA...

Antonio Cicero disse...

Caro Edson Gil,

Acho que, quando você pergunta o que quero dizer com “sociedade como um todo”, está se referindo ao fato de que eu disse em resposta, ao Osrevni, que “há, nessas sociedades (em que domina o modo de produção capitalista), inúmeras ideologias burguesas e inúmeras ideologias não-burguesas. Não é imprescindível que nenhuma delas seja adotada pela sociedade como um todo, para que o sistema funcione”. O que quero dizer é simplesmente que não é necessário que todo o mundo (isto é, que praticamente todos os membros dessas sociedades) tenha a mesma ideologia, para que ela funcione.
As religiões pré-modernas constituíam um conjunto articulado de instituições, práticas, idéias e Weltanschauungen que, de certo modo, integravam as configurações culturais das comunidades às quais pertenciam. Suas cosmologias faziam parte desse conjunto. As religiões do livro tinham a pretensão de ter uma relação privilegiada com o Absoluto e com verdades absolutas. Como essas pretensões são incompatíveis com a razão, ocorre que, embora sejam, como todas as ideologias, toleradas pelo mundo moderno, elas não podem ser por ele levadas a sério. O resultado é que as religiões, de maneira geral, hoje articulam comunidades regressivas, profundamente anti-modernas.
Você diz que “quando faz história ou ciência social, Marx, ou qualquer outro moderno, aplica categorias modernas a "sociedades" tradicionais, não-modernas. Enquanto um pré-moderno qualquer, quando faz "história", aplica categorias tradicionais a "sociedades" tradicionais. Você não vê aqui nenhuma diferença substancial?”
Edson, vejo uma diferença substancialíssima. As categorias realmente modernas são categorias racionais, logo, universais, e devem poder ser aplicadas a qualquer sociedade, moderna ou pré-moderna. Já as categorias pré-modernas são, com poucas exceções, idiossincráticas, particulares, de modo que sua aplicação é, quando muito, limitada à cultura que a produziu. Tenha em mente que considero grande parte do pensamento grego – produzido, em geral (é bom lembrar), em comunidades mercantis, proto-capitalistas – como moderno.

Abraço,
Antonio Cicero

Antonio Cicero disse...

Caro Sidartha,

Em relação aos limites da tolerância no capitalismo, é uma tese que é tão difícil de demonstrar quanto de refutar. Um dos problemas é que os exemplos de ditadura em países capitalistas ocorrem justamente onde não teve lugar uma revolução burguesa de verdade, de modo que o poder das camadas sociais pré-capitalistas, profundamente anti-democráticas, é muito grande. Pense-se no excessivo poder relativo dos latifundiários nordestinos, na época do golpe de 64. Você fala, por exemplo, da pressão por maior inclusão social. Isso significa o que? Que havia grande exclusão social: que muita gente se encontrava excluída de participação política. Ora, nada comparável pode ser dito dos países onde se deu a revolução burguesa. Quanto à Alemanha e à Itália fascistas, é preciso ler o livro do historiador (marxista) Arno Mayer para compreender o que ele chama de “persistência do ancien régime” nesses países.
Você fala de trabalhar PARA O CAPITAL, como se isso fosse pior do que outros tipos de trabalho. Não gosto de ficar me repetindo no blog, e acho que, sobre esse assunto, já me repeti demais, mas, pela última vez, quero dizer que trabalhar para o capital é um progresso gigantesco, em relação à humilhação de trabalhar como escravo ou servo de alguém. Do mesmo modo, quanto à opinião de que a submissão ao capital, por não ser evidente, é pior do que a vassalagem ou a servidão a um senhor de escravos, considero-a simplesmente inaceitável. É a tese do “quanto pior, melhor”. Poucos se lembram hoje que, a partir dessa crença, quando ocorreu o golpe de 64, muitos esquerdistas acharam que, apesar do horror da repressão, ele representaria um progresso na luta popular, no sentido que seria um desmascaramento do caráter real do Estado brasileiro. Hannah Arendt conta que, na Alemanha de 1933, muitos esquerdistas também pensaram coisa semelhante, ao ver Hitler subir ao poder. Acho que não é nem necessário refutar esse tipo de idéia, que me repugna. É tudo o que tenho a dizer sobre esse assunto.
Quanto à questão da competitividade, individualismo, coisificação, padronização etc., considero-os ou bem pseudo-problemas, inventados por uma pulsão regressiva, ou bem problemas que devem ser resolvidos pelo caminho reformista. Mas falarei disso num próximo artigo.

Abraço,
Antonio Cicero

Antonio Cicero disse...

Prezada Denise Abramo,

Você está errada, não só do meu ponto de vista, mas do ponto de vista marxista. Não é o “paradigma” da propriedade privada que cria as relações sociais. A propriedade privada não passa da expressão jurídica de determinadas relações de produção.

Atenciosamente,
Antonio Cicero

Anônimo disse...

Caro ACicero,

Tinha em mente a síntese do seu argumento que você apresentou numa resposta ao Wilson: "O que digo não implica que o capitalismo não tenha ideologias ou think tanks. O que importa é que, diferentemente do feudalismo ou do socialismo real, ele não necessita, para funcionar, impor nenhuma ideologia determinada à sociedade como um todo".

Como disse desde o início, parece-me que você tem razão. Mas disso não se segue que o capitalismo tolere toda e qualquer ideologia. A rigor, o capitalismo não é compatível com nenhuma religião ortodoxa, universal [catolicismo, hinduísmo, islamismo etc.], p.ex. O Islã é o maior exemplo dessa incompatibilidade.

O capitalismo só se tornou possível em virtude da derrocada das religiões. O capitalismo é amoral, e se dá muito melhor com ideologias pretensamente neutras e universais como o ateísmo, o laicismo, o cientificismo, o materialismo etc.

Para resumir o que penso da relação do capitalismo REAL [não acha engraçado que esse qualificativo só seja aplicado ao socialismo?], faço um desafio: gostaria muitíssimo de conhecer uma aó empresa ou empresário que seja absolutamente ético e/ou religioso [no sentido ortodoxo, tradicional]. Ou, para facilitar: duvido que exista uma só empresa ou um empresário que seja, p.ex., católico e bem-sucedido nos negócios. Isso simplesmente é uma impossibilidade. [A ética, hoje, é usada como estratégia administrativa. Mas isso é, obviamente, anti-ético.]

Abraço,
edg

Anônimo disse...

ERRATA:

"Para resumir o que penso da relação do capitalismo REAL [não acha engraçado que esse qualificativo só seja aplicado ao socialismo?] com as "ideologias" pré-modernas e com a ética, faço um desafio:"

[Não consigo pensar direito dentro deste quadradinho do blog! edg]

Antonio Cicero disse...

Caro Edson Gil,

Sei que você não ignora que está se valendo de uma equivocação nas acepções da palavra “capitalismo”.

O que afirmo é que uma formação social em que domine o capitalismo (leia-se “o modo de produção capitalista”) não necessita, para funcionar, impor nenhuma ideologia particular à sociedade como um todo”. Não só a maior parte da população de um país capitalista não é composta de capitalistas, mas neles podem viver a seu modo e exprimir livremente o que pensam tanto católicos quanto marxistas, quanto positivistas, quanto neo-liberais etc.

Já o que você está afirmando é que um capitalista não pode ser também católico, ou que um bom capitalista não pode ser também um bom católico. É outra coisa. Talvez isso seja verdade para um católico muito rigoroso ou ultramontanista, mas fato é que há, no Brasil por exemplo, milhares de capitalistas que se consideram católicos: e que se sentiriam ofendidos com a sua declaração; e que a própria Igreja – o Vaticano – possui empresas capitalistas.

Abraço,
Antonio Cicero

Anônimo disse...

Caro ACicero,

AC: Sei que você não ignora que está se valendo de uma equivocação nas acepções da palavra “capitalismo”.

EDG: Creio que, até certo ponto, algum equívoco seja inevitável. É muito difícil saber exatamente onde começam e terminam e como se relacionam o capitalismo, o Estado de Direito, o republicanismo, a democracia, o liberalismo político e o econômico etc.

AC: O que afirmo é que uma formação social em que domine o capitalismo (leia-se “o modo de produção capitalista”) não necessita, para funcionar, impor nenhuma ideologia particular à sociedade como um todo”.

EDG: Você não acha que a Guerra do Iraque foi também uma guerra do capitalismo contra uma "ideologia" anticapitalista?

AC: Não só a maior parte da população de um país capitalista não é composta de capitalistas, mas neles podem viver a seu modo e exprimir livremente o que pensam tanto católicos quanto marxistas, quanto positivistas, quanto neo-liberais etc.

EDG: Discordo. Não é possível que cada um viva segundo suas crenças numa sociedade capitalista. Viver numa sociedade centrada no mercado significa ter de abrir mão de certas liberdades --em troca, claro, de muitas outras. Isso é evidente em relação aos religiosos ortodoxos e/ou fundamentalisas: têm de viver feito estrangeiros em sua própria terra, quando não como esquizofrênicos.

AC: Já o que você está afirmando é que um capitalista não pode ser também católico, ou que um bom capitalista não pode ser também um bom católico. É outra coisa. Talvez isso seja verdade para um católico muito rigoroso ou ultramontanista, mas fato é que há, no Brasil por exemplo, milhares de capitalistas que se consideram católicos: e que se sentiriam ofendidos com a sua declaração; ...

EDG: Nesse caso, deviam se sentir ofendidos pelo próprio papa, que não se cansa de dizer, de diversas maneiras, que ser católico é uma coisa difícil e para poucos. Aliás, isso não está nos evangelhos: é mais difícil um rico entrar no céu...? O capitalismo só tolera os religiosos desde que eles "vivam" a sua religião dentro de suas igrejas e de suas casas. A fé não é apenas um modo de pensar e de expressar-se [da boca pra fora], mas de viver, de ser.

AC: ...e que a própria Igreja – o Vaticano – possui empresas capitalistas.

EDG: O Vaticano é um Estado, não é a Igreja. Mas, que seja, a Igreja tem até banco... e você conhece algo mais anticristão que um banco? Que eu saiba a usura é um pecado; e o lucro exorbitante dos bancos não resulta da competência administrativa dos banqueiros.

Sim, o modo de produção capitalista é o mais versátil e o menos pior que já existiu -- pelo menos para nós, modernos, que vivemos depois das cosmologias, das religiões e dos argumentos de autoridade em geral. Mas está longe de ser neutro e tão tolerante quanto parece.

Abraço,
edg

Sidartha Silva disse...

Caro Antonio Cicero,

Por "forma de submissão mais poderosa" eu não entendo necessariamente uma forma "pior", mais violenta ou degradante para o submisso. Entendo, isso sim, uma forma mais eficiente em se auto-perpetuar.

É neste sentido que trabalhar para o capital é uma forma de submissão mais poderosa do que trabalhar para o nobre feudal ou para o patrício romano. Porque aquela camufla de modo muito mais eficiente a situação de submissão.

Evidentemente que eu não considero o trabalho sob o capital absolutamente "pior" - para o trabalhador - do que o trabalho escravo ou servil. Dizer isso seria retroceder em relação a Marx, que era um dos primeiros a destacar o caráter civilizatório do capitalismo e do modo de produção social burguês.

Mas que o trabalho sob o capital é uma forma de submissão, isso me parece fora de questão. O que toca é pensar na utopia do trabalho e de sua apropriação/controle cada vez maior pelos indivíduos que trabalham, eliminando-se de uma vez por todas a situação em que eles sejam submetidos ou oprimidos pela massa de riqueza que eles mesmos criam, e que é ditada pela lógica da própria auto-valorização (lógica que, nesse processo, mói seres humanos tal como uma máquina de moer cana, até tirar-lhes todo o suco vital, sobrando só o bagaço).

O trabalho no capitalismo admite, é claro, uma maior margem de manobra para a discussão das condições da submissão. De acordo com a correlação de forças ou a conjuntura econômica, é possível que o trabalho fique em situação mais confortável diante do patronato. A (gloriosa) experiência da socialdemocracia européia é uma prova disso.

Sobre a questão dos limites de tolerância no capitalismo, de fato esta é uma discussão muito complexa e difícil. Ao contrário de marxistas ortodoxos (e/ou obtusos), acredito que os países não-desenvolvidos não necessariamente estarão condenados ao arbítrio eterno de oligarquias pré-capitalistas (como latifundiários nordestinos, por ex). A história não está escrita, apesar do que dizem ou sugerem tantos estruturalistas vulgares.

Mas também não acho que seja o caso de esperar que a burguesia desses países promova a revolução democrática. Afinal, no atual estado das coisas, a burguesia brasileira, com tudo que tem de prussiana, anti-democrática e pré-capitalista, se beneficia muito da forma que tomou o capitalismo brasileiro (esplendidamente descrito por Celso Furtado, por exemplo).

A revolução democrático-burguesa, paradoxalmente, deverá ser alavancada pelas forças políticas filiadas à causa das classes subalternas. São estas que deverão se organizar para democratizar o Estado, tirá-lo de sua estrutural condição de ente privado, a serviço das oligarquias pré-modernas. São as forças políticas do trabalhismo quem deverão tornar republicanas as instituições estatais, abrindo caminho para a construção de uma sociedade efetivamente civilizada e democrática, em moldes similares aos das nações desenvolvidas.

Saudações,
Sidartha

Antonio Cicero disse...

Caro Edson Gil,

eis a continuação do nosso diálogo:

EDG: Você não acha que a Guerra do Iraque foi também uma guerra do capitalismo contra uma "ideologia" anticapitalista?

AC: De maneira nenhuma. Saddam Hussein não era nenhum modelo de religiosidade islâmica. Ficou provado também que o Iraque nada tinha a ver com o grupo de Bin Laden. O Iraque foi invadido, por um lado, por razões geopolíticas, interessantes aos monopólios ligados ao petróleo, que Bush e Cheney representam, e, por outro, porque a essa mesma gente interessava uma guerra, para justificar a imposição, nos Estados Unidos, de uma política interna extremamente regressiva, repressiva e anti-democrática.

EDG: Não é possível que cada um viva segundo suas crenças numa sociedade capitalista. Viver numa sociedade centrada no mercado significa ter de abrir mão de certas liberdades --em troca, claro, de muitas outras. Isso é evidente em relação aos religiosos ortodoxos e/ou fundamentalistas: têm de viver feito estrangeiros em sua própria terra, quando não como esquizofrênicos.

AC: É evidente que, se alguém quer ser respeitado numa sociedade aberta, deve respeitar o direito dos demais membros dessa sociedade. Tal pessoa não precisa viver de acordo com a concepção de vida de outros membros da sociedade, mas tampouco tem o direito de impor a sua concepção de mundo a esses outros. Essas regras de convivência civilizada não pertencem a nenhum grupo particular, mas são regras universais que permitem a maximização da liberdade individual de cada um. Se os ortodoxos e os fundamentalistas de que você fala não são capazes de aceitar isso, então são eles que escolhem ser estrangeiros na sua própria terra.
EDG: O capitalismo só tolera os religiosos desde que eles "vivam" a sua religião dentro de suas igrejas e de suas casas. A fé não é apenas um modo de pensar e de expressar-se [da boca pra fora], mas de viver, de ser.

AC: Se o modo de viver dos religiosos não tolera outros modos de viver e de ser, ele é que é incompatível com a convivência civilizada.

Abraço,
Antonio Cicero

Anônimo disse...

Caro ACicero,

AC: ...Saddam Hussein não era nenhum modelo de religiosidade islâmica. Ficou provado também que o Iraque nada tinha a ver com o grupo de Bin Laden.

EDG: Bin Laden tbém não tem muito a ver com o Islã. Mas boa parte dos shiitas sim. E eles são anticapitalistas viscerais.

AC: O Iraque foi invadido, por um lado, por razões geopolíticas, interessantes aos monopólios ligados ao petróleo, que Bush e Cheney representam,...

EDG: Ou seja, o capital.

AC: ...e, por outro, porque a essa mesma gente interessava uma guerra, para justificar a imposição, nos Estados Unidos, de uma política interna extremamente regressiva, repressiva e anti-democrática.

EDG: Antidemocrática talvez, mas não anticapitalista.

AC: É evidente que, se alguém quer ser respeitado numa sociedade aberta, deve respeitar o direito dos demais membros dessa sociedade. Tal pessoa não precisa viver de acordo com a concepção de vida de outros membros da sociedade, mas tampouco tem o direito de impor a sua concepção de mundo a esses outros. Essas regras de convivência civilizada não pertencem a nenhum grupo particular, mas são regras universais que permitem a maximização da liberdade individual de cada um. Se os ortodoxos e os fundamentalistas de que você fala não são capazes de aceitar isso, então são eles que escolhem ser estrangeiros na sua própria terra.

EDG: Você está deixando muitos aspectos do capitalismo de lado. Como disse o Sidartha, eu sou obrigado a vender ou comprar força de trabalho. E isso tem muitas implicações. Desde quando viver de salário [= ser explorado, gerar mais-valia, lucro] é um valor universal? Para gerar emprego é necessário mais desenvolvimento, e para isso é necessário que se aumente o consumo de mercadorias inúteis e/ou supérfluas cuja produção está levando a natureza ao colapso. O capitalismo não pode ser refreado. Nem pelo Estado; veja o que se passa com China.

AC: Se o modo de viver dos religiosos não tolera outros modos de viver e de ser, ele é que é incompatível com a convivência civilizada.

EDG: O ministro filósofo Luc Ferry proibiu o uso de véu e de símbolos religiosos nas escolas francesas. Do ponto de vista da tal da sociedade aberta, laica, ele está certíssimo. Mas quem é intolerante aqui? A menina pode ir à escola de micro-saia mas não de véu? A abertura não passa, muitas vezes, de puro preconceito, de pura ideologia, o corretismo político.

Como disse, o Ferry estava certo, e isso ficou demonstrado, mas apenas e justamente em decorrência do preconceito e da intolerância reinantes: a proibição evita a reação violenta dos intolerantes, que não são necessariamente adeptos de outras religiões, mas justamente de nenhuma.

Esta sociedade aberta de que você sempre fala é um ideal, que não existe realmente e talvez jamais exista. O que há é uma grande confusão entre laicismo e anti-religiosidade, entre agnosticismo e ateísmo, entre democracia e ditadura da maioria etc. As pessoas não suportam que os religiosos queiram viver sua fé em meio do mundo, mas se acham no direito de cultuar abertamente ídolos dos mais estúpidos e imorais.

Em São Paulo, p.ex., há televisão até no metrô. Onde está o meu direito de não assistir à TV, de não ouvir hits, de não ser assediado sexual e moralmente, de ser respeitado como ser autônomo, como um fim em si mesmo, e não como mero consumidor, como meio? O capitalismo é possível sem o fetichismo mercadológico que a todos nos escraviza? Duvido!

Kant não saiu de Koenigsberg. Hoje não sairia nem de casa. E morreria de fome, pois não há ocupação para quem não esteja disposto a fazer concessões morais, de molhar a mão, de dar um jeitinho, de transgredir regras e leis, de passar a perna etc.

Eu não conseguiria viver numa sociedade fechada, como a medieval ou a islâmica. Mas isso não me impede de enxergar os simulacros de abertura da sociedade em que vivo, muito menos sua intolerância em relação aos que simplesmente querem viver uma vida mais simples e menos desumana.

Abraço,
edg

[tabita] disse...

antonio cícero,

lamento que seja a sua compreensão a se mostrar equivocada em relação ao meu comentário.

em nenhum momento eu supus que 'é o paradigma da propriedade privada que CRIA as relações sociais'. o que escrevi foi que o capitalismo NECESSITA especificamente de sua própria ideologia.

significa dizer que, mesmo não criando as relações sociais, a ideologia cumpre um papel fundamental de sustentação das mesmas.

o que também significa que, do ponto de vista da compreensão do marxismo, a sua análise 'furou'.

sugiro dar um 'google' e pesquisar um conceito que ajudará: dialética. fundamental para não cair nas discussões sobre quem nasceu primeiro - o ovo, ou a galinha. a menos, claro, que seja esse o seu objetivo.

sem mais,
::

Antonio Cicero disse...

Prezada Denise Abramo,

A sua malcriadez acabou revelando duas das fontes das suas confusões conceituais: o Google e a Dialética. Cuidado: você só devia usá-los com muita moderação e prudência. O Google não deve substituir a leitura dos livros. A Dialética não deve substituir a razão.

Preste atenção: você diz que “o capitalismo NECESSITA especificamente da sua própria ideologia”. Em termos lógicos, isso quer dizer que a ideologia do capitalismo é a condição necessária do capitalismo. Trocando em miúdos, isso quer dizer que não há capitalismo sem a ideologia do capitalismo.

Se você pensar um pouquinho, verá que isso é uma bobagem. Por que? Porque o capitalismo já existia muito antes de haver uma ideologia do capitalismo. A ideologia do capitalismo se desenvolveu dos séculos XVII a XIX. Ora, já havia empresas capitalistas na Europa muito antes disso, desde o fim da Idade Média.

Mas não é necessário nem pensar na história, para entender o que estou dizendo. Suponha que um operário marxista-leninista do Recife herde – digamos, de um tio sem herdeiros diretos, que tenha migrado para São Paulo e lá se tornado capitalista – uma fábrica. Mesmo que ele continue a ser marxista-leninista, ter-se-á objetivamente tornado capitalista.

Mas, como você pretende ser marxista, e os marxistas, como todos os religiosos, só acreditam nos textos sagrados, eu, que não sou marxista, cito Marx (que tampouco era marxista):

“A sociedade não repousa sobre a lei. Isso é uma ilusão jurídica. A lei é que repousa sobre a sociedade. Ela deve ser a expressão dos interesses e das necessidades comuns dela, previamente surgidos [a palavra alemã é exatamente “hervorgehenden”] a cada vez a partir do modo de produção material, contra o arbítrio individual. O Code Napoléon, que tenho na mão, não criou a moderna sociedade burguesa. Ao contrário, a sociedade burguesa surgida no século XVIII e desenvolvida no século XIX [Marx está falando da Alemanha] encontrou no Code apenas uma expressão legal.”

"INTERESSES E NECESSIDADES PREVIAMENTE SURGIDOS". Coitado de Marx! Não tinha uma Denise Abramo para lhe explicar que não devia se preocupar com o que surgiu antes, o ovo ou a galinha.

Uma última observação: seus e-mails não contêm um único argumento. Eles apenas afirmam coisas como “mesmo não criando as relações sociais, a ideologia cumpre um papel fundamental de sustentação da mesma. O que também significa que, do ponto de vista da compreensão do marxismo, a sua análise ‘furou’”. Mas desde quando afirmar uma coisa é prová-la? Desde quando você provou qualquer coisa do que afirmou, para poder estar tão certa de que a minha análise ‘furou’? Largue os Googles, as dialéticas e os marxismos de pacotilha e veja se consegue aprender a pensar com a própria cabeça.

Saiba que, daqui para a frente, vou começar a cobrar por essas aulas que lhe estou dando de graça.

Atenciosamente,
Antonio Cicero

Anônimo disse...

Prezados Antonio Cicero, Denise e Edson,

Estou acompanhando o debate (bastante bom, por sinal), mas me permitam uma intervenção.

Antonio, penso que seu último comentário contém alguns equívocos. Na ânsia por suplantar Denise mantendo-se dentro dos pressupostos teóricos e dos argumentos de Marx, você pode ter forçado uma interpretação e uma lógica que não estão inteiramente de acordo com aqueles mesmos pressupostos e teorias.

A começar por dizer que existiam empresas capitalistas (no sentido que Marx confere ao termo "capitalismo") "muito antes" de existir uma ideologia do capitalismo. Ao que me pareceu, você foi muito mais materialista do que o rei.

Você, Antonio, aparentemente confundiu, no esquema marxista de análise, "empresas capitalistas" com "acumulação primitiva de capital". Antes do capitalismo não houve e nunca poderia ter havido "empresas capitalistas" (uma contradição lógica com o esquema teórico de Marx, já que você pretendeu dar aulas de marxismo), e sim acumulação primitiva de capital, o que é algo bem diferente.

Na verdade, Denise está correta quando lembra a necessidade de existência de uma concepção de mundo, uma ideologia favorável ou reprodutora da dimensão "material" ou socio-material do capital (para mim ela não disse que a produção material pressupõe a ideologia). O que havia antes da ideologia do capital não podiam ser as tais "empresas capitalistas", porque estas só podem existir no interior de todo um modo de organização social (cultural, ideológica, política) que reproduza a lógica de reprodução societal do capital - e que torne possível, portanto, se falar na existência de empresas ou unidades produtivas afinadas com a lógica de reprodução do capital.

A julgar que você estivesse correto, Antonio, como seria possível existirem empresas capitalistas sem um mercado capitalista? De acordo com o esquema marxista, o capitalismo é um sistema totalizante (envolve toda a sociedade) ou não é nada. Ele já começa como um sistema total, ainda que não inteiramente maduro (mas já com produção, ideologia, instituições políticas disciplinadoras etc), e este sistema total é que vai amadurecendo e se expandindo, engolindo ou eliminando outras formas de organização social.

Na verdade, o seu entendimento do materialismo de Marx não está correto. A idéia de que o capitalismo, em sua dimensão material, existe a despeito de uma ideologia que lhe seja necessária e absolutamente correspondente, é sua (em princípio, já que eu não conheço suas influências), e não de Marx. Insistir na posição de que a sua idéia pode ter guarida no próprio materialismo marxista é um equívoco, pois revela que o materialismo que você acredita ser de Marx na verdade é uma modalidade outra, mais rústica e vulgar de materialismo, relativamente ao de Marx.

O materialismo vulgar apresenta uma realidade social em que sua dimensão "material" possui uma autonomia perante outras dimensões da existência social. A partir daí, alguns vulgares enxergam uma determinação mecânica ou automática das formas de consciência pela dinâmica material "autônoma".

E você parece querer inaugurar uma outra modalidade do materialismo vulgar: como os demais materialistas vulgares, você assume a autonomia desta dimensão material (o capitalismo, produtivamente, funciona por si mesmo etc), mas diz que ela pode ficar lá no cantinho dela, se auto-reproduzindo, enquanto no mundo das idéias podemos pensar, ser e agir livremente (dentro daquele mínimo de regras etc). Sua concepção lembra também um outro autor, mas de modo igualmente simplista, Habermas e seu esquema "sistema X mundo da vida".

Não é Denise quem diz que o capitalismo necessita de uma ideologia correspondente. É Marx quem diz isso, e nem poderia dizer outra coisa, pois se dissesse entraria em contradição com a sua própria concepção totalizante de modo social de produção, o qual consiste em forças produtivas E em relações sociais (culturais, ideológicas, políticas, institucionais) de produção.

Indo no vácuo da sua brincadeira (bem irônica, é verdade) com Denise, deveria eu cobrar por esta aula?

Sigo na expectativa de acompanhar a continuidade do debate entre Cicero e Edson, com os dois lados mandando argumentos bastante bons (eu teria algo a comentar sobre essa noção de "sociedade aberta" de Antonio - para mim os liberais, à Karl Popper, fazem uma confusão prá lá de indevida entre "capitalismo" e "sociedade aberta", para não dizer que confundem tais coisas com democracia -, mas vou ficar na minha, até porque, analisando friamente, os liberais não estão inteiramente errados, embora sempre se considerem algo maior do que realmente são).

Cordiais saudações,
Sidartha

Anônimo disse...

Prezado Antonio Cicero,

Respeito o diálogo travado entre os seus já sabidos conhecimentos e o da colega de comentários Denise Abramo, embora eu não entenda por que o diálogo descambou um pouco para uma ´briga´ intelectual. O que me incomoda é usar o conceito razão sem realmente definir o que seria razão. Não acredito, particularmrnte, numa razão livresca ou de autoridade; porque uma visão unilateral; acho extremamente perigoso apoiar-se no magister dixit - isso tenta nos reconfortar em nossas dóxas, mas não afirma categoricamente, numa dialética, que o magister tenha sempre razão... Devemos, creio, ser mais parcimoniosos com o uso da razão... Ou senão tentarmos fundamentar com precisão, para que não possa pairar suspeita alguma...
Grato...
wilson luques

Antonio Cicero disse...

Caro Sidartha,

Estive muito ocupado, mas começo a pôr meus e-mails e o blog em dia. Ponho em forma de diálogo nossa correspondência:

SD - Mas que o trabalho sob o capital é uma forma de submissão, isso me parece fora de questão. O que toca é pensar na utopia do trabalho e de sua apropriação/controle cada vez maior pelos indivíduos que trabalham, eliminando-se de uma vez por todas a situação em que eles sejam submetidos ou oprimidos pela massa de riqueza que eles mesmos criam, e que é ditada pela lógica da própria auto-valorização (lógica que, nesse processo, mói seres humanos tal como uma máquina de moer cana, até tirar-lhes todo o suco vital, sobrando só o bagaço).

AC - Sua descrição é dramática, mas, se você pensar bem sobre a diferença entre o trabalho nas sociedades tradicionais de classe e no capitalismo, verá que é (1) que, nas primeiras, o trabalhador era forçado a trabalhar pela violência do senhor ou do capataz; (2) que, nas primeiras, o trabalhador não tinha como mudar de emprego, e era preso ao senhor e/ou ao solo; (3) que, nas primeiras, não havia mobilidade social vertical ou horizontal.

SD - O trabalho no capitalismo admite, é claro, uma maior margem de manobra para a discussão das condições da submissão.

AC – Concordo.

SD - Mas também não acho que seja o caso de esperar que a burguesia desses países promova a revolução democrática. Afinal, no atual estado das coisas, a burguesia brasileira, com tudo que tem de prussiana, anti-democrática e pré-capitalista, se beneficia muito da forma que tomou o capitalismo brasileiro (esplendidamente descrito por Celso Furtado, por exemplo).

A revolução democrático-burguesa, paradoxalmente, deverá ser alavancada pelas forças políticas filiadas à causa das classes subalternas. São estas que deverão se organizar para democratizar o Estado, tirá-lo de sua estrutural condição de ente privado, a serviço das oligarquias pré-modernas. São as forças políticas do trabalhismo quem deverão tornar republicanas as instituições estatais, abrindo caminho para a construção de uma sociedade efetivamente civilizada e democrática, em moldes similares aos das nações desenvolvidas.

AC – “Revolução democrático-burguesa”? Agora você está usando chavões leninistas ou maoístas. Parece um panfleto. Veja em que deram as “revoluções democrático-buguesas” da China e do Cambodja. Na América Latina, o grande líder seria sem dúvida o palhaço do Chávez.
Não é necessário nada disso. Há muita gente que pensa desse modo no PT. Mas, felizmente, é um partido complexo. O reformismo de Lula tem melhorado o Brasil sem necessidade desse tipo de demagogia ou populismo.

Abraço,
ACicero

Antonio Cicero disse...

Caro ACicero,

AC: ...Saddam Hussein não era nenhum modelo de religiosidade islâmica. Ficou provado também que o Iraque nada tinha a ver com o grupo de Bin Laden.

EDG: Bin Laden tbém não tem muito a ver com o Islã. Mas boa parte dos shiitas sim. E eles são anticapitalistas viscerais.

AC: Bin Laden tem tudo a ver com o Islã. E os religiosos fundamentalistas são, de fato, anti-capitalistas.

AC: O Iraque foi invadido, por um lado, por razões geopolíticas, interessantes aos monopólios ligados ao petróleo, que Bush e Cheney representam,...

EDG: Ou seja, o capital.

AC: Mas não foi contra a religião que Bush – que é religiosíssimo – invadiu o Iraque. De todo modo, eles são aliados da Arábia Saudita.

AC: É evidente que, se alguém quer ser respeitado numa sociedade aberta, deve respeitar o direito dos demais membros dessa sociedade. Tal pessoa não precisa viver de acordo com a concepção de vida de outros membros da sociedade, mas tampouco tem o direito de impor a sua concepção de mundo a esses outros. Essas regras de convivência civilizada não pertencem a nenhum grupo particular, mas são regras universais que permitem a maximização da liberdade individual de cada um. Se os ortodoxos e os fundamentalistas de que você fala não são capazes de aceitar isso, então são eles que escolhem ser estrangeiros na sua própria terra.

EDG: Você está deixando muitos aspectos do capitalismo de lado. Como disse o Sidartha, eu sou obrigado a vender ou comprar força de trabalho. E isso tem muitas implicações. Desde quando viver de salário [= ser explorado, gerar mais-valia, lucro] é um valor universal?

AC: Até hoje não se inventou um meio de viver sem trabalhar. Ou se trabalha pelo salário ou se trabalha para evitar o chicote do feitor. Viver de salário é bem mais digno do que ser escravo ou servo da gleba. Além disso, no capitalismo, é possível haver mobilidade social, tanto vertical quanto horizontal, coisa que não há em nenhum outro regime conhecido. E o capitalismo pode ser reformado: pode se tornar uma social-democracia, por exemplo. O Islã, como você sabe, aprova a escravidão.

AC: Se o modo de viver dos religiosos não tolera outros modos de viver e de ser, ele é que é incompatível com a convivência civilizada.

EDG: O ministro filósofo Luc Ferry proibiu o uso de véu e de símbolos religiosos nas escolas francesas. Do ponto de vista da tal da sociedade aberta, laica, ele está certíssimo. Mas quem é intolerante aqui? A menina pode ir à escola de micro-saia mas não de véu? A abertura não passa, muitas vezes, de puro preconceito, de pura ideologia, o corretismo político.

Como disse, o Ferry estava certo, e isso ficou demonstrado, mas apenas e justamente em decorrência do preconceito e da intolerância reinantes: a proibição evita a reação violenta dos intolerantes, que não são necessariamente adeptos de outras religiões, mas justamente de nenhuma.

AC: Essa questão do véu é muito complexa. As pesquisas de opinião entre os muçulmanos da Europa mostram que os mais satisfeitos são os que vivem na França. Na França, o direito do indivíduo é mais respeitado do que o da família, o que é mais racional. O que ocorre é que grande parte das meninas eram obrigadas pelas famílias a usar o véu, que elas detestavam. Com a proibição do véu, Ferry as liberou dessa penosa prestação de contas à Idade Média e lhes permitiu ser modernas.
EDG: Esta sociedade aberta de que você sempre fala é um ideal, que não existe realmente e talvez jamais exista. O que há é uma grande confusão entre laicismo e anti-religiosidade...

AC: O laicismo apenas põe as coisas nos devidos lugares. Na sociedade racional, a religião tem que ser um assunto exclusivamente privado e as religiões não podem passar de clubes. É assim mesmo que tem que ser.

EDG: Entre agnosticismo e ateísmo

AC: De maneira geral, o agnosticismo é um ateísmo envergonhado.

EDG: entre democracia e ditadura da maioria etc.

AC: Acho que essa confusão é perigosa. Por isso sempre digo que o fundamental na democracia é a sociedade aberta; são os direitos individuais.

EDG: As pessoas não suportam que os religiosos queiram viver sua fé em meio do mundo, mas se acham no direito de cultuar abertamente ídolos dos mais estúpidos e imorais.

AC: Acho que as pessoas devem ter o direito de cultuar abertamente os ídolos mais estúpidos e imorais. Eu já lhe disse que acho que toda religião é idólatra. O absoluto não pode ser nenhuma positividade. Pretender que seja uma positividade já é idolatria, o pior dos pecados.

EDG: Em São Paulo, p.ex., há televisão até no metrô. Onde está o meu direito de não assistir à TV, de não ouvir hits...

AC: Concordo com você: a televisão no metrô e o rádio alto são abusos. É preciso lutar contra isso. Já escrevi um ensaio sobre o assunto, que se encontra no meu site.

EDG: e não ser assediado sexual e moralmente

AC: Que quer dizer assédio moral? Você está muito politically correct.

EDG: de ser respeitado como ser autônomo, como um fim em si mesmo, e não como mero consumidor, como meio? O capitalismo é possível sem o fetichismo mercadológico que a todos nos escraviza? Duvido!
AC: Francamente, não sinto as coisas desse modo. Mais do que nunca, a privacidade é possível hoje. Onde ela não existia era nas comunidades pré-capitalistas. Ou você pensa que seria respeitado na sua vontade de ser ateu, na Idade Média? Hoje, num país em que, infelizmente, o individualismo ainda é insuficientemente cultivado, só leio os livros que quero, só ouço a música que quero, não assisto televisão, só converso com quem quero etc. etc.
EDG: Kant não saiu de Koenigsberg. Hoje não sairia nem de casa. E morreria de fome, pois não há ocupação para quem não esteja disposto a fazer concessões morais, de molhar a mão, de dar um jeitinho, de transgredir regras e leis, de passar a perna etc.

AC: Os jeitinhos etc. são resquícios pré-capitalistas.
EDG: Eu não conseguiria viver numa sociedade fechada, como a medieval ou a islâmica. Mas isso não me impede de enxergar os simulacros de abertura da sociedade em que vivo, muito menos sua intolerância em relação aos que simplesmente querem viver uma vida mais simples e menos desumana.

AC: Duvido que a sua vida seja desumana. A minha não é.


Abraço,

Antonio Cicero disse...

Caro Sidartha,

Ponho em forma de diálogo nossa discussão:

SD: Antonio, penso que seu último comentário contém alguns equívocos. Na ânsia por suplantar Denise mantendo-se dentro dos pressupostos teóricos e dos argumentos de Marx, você pode ter forçado uma interpretação e uma lógica que não estão inteiramente de acordo com aqueles mesmos pressupostos e teorias.

AC: Quem está ansioso é você. A minha interpretação é perfeitamente correta, argumentada e baseada nos textos pertinentes.

SD: A começar por dizer que existiam empresas capitalistas (no sentido que Marx confere ao termo "capitalismo") "muito antes" de existir uma ideologia do capitalismo. Ao que me pareceu, você foi muito mais materialista do que o rei.

AC: É claro que existiam empresas capitalistas antes de haver a ideologia do capitalismo. Nos Grundrisse, por exemplo, Marx diz, falando do século XV: “As formas históricas originais em que o capital inicialmente aparece de maneira esporádica ou local, ao lado dos antigos modos de produção, mas gradualmente os faz explodir, são a manufatura propriamente dita (ainda não a fábrica); esta surge onde há produção em massa para exportação, para o mercado externo – logo, na base do comércio marítimo ou terrestre de grande escala, e nos centros de tal comércio, como nas cidades italianas, em Constantinópolis, nas cidades flamengas e holandesas, em algumas cidades espanholas como em Barcelona etc.”
SD: Você, Antonio, aparentemente confundiu, no esquema marxista de análise, "empresas capitalistas" com "acumulação primitiva de capital".

AC: Você é que está confundindo as coisas. A tese da “acumulação primitiva” se aplica principalmente à Inglaterra, mas já foi mostrado que ela não se aplica bem, por exemplo, à Europa continental. Paul Sweezy mostrou que, no continente, foi nas cidades que se originou o capitalismo, nos centros de comércio. O trecho dos Grundrisse que citei mostra que Marx não ignorava que o capitalismo tivesse surgido também desse modo.

SD: Antes do capitalismo não houve e nunca poderia ter havido "empresas capitalistas"

AC: Eu jamais disse e jamais diria que antes do capitalismo houve empresas capitalistas. Isso vem da sua própria cabeça. Eu disse que antes da formação da ideologia capitalista houve empresas capitalistas, o que é muito diferente. Onde há empresa capitalista – onde há capitalista – necessariamente há capitalismo.

SD: (uma contradição lógica com o esquema teórico de Marx, já que você pretendeu dar aulas de marxismo),

AC: A confusão é toda sua. Pelo jeito, você também está precisando de umas aulas sobre Marx, para poder falar dele.

SD: e sim acumulação primitiva de capital, o que é algo bem diferente.

AC: Espero já ter dissipado essa confusão, que também era sua.
SD: Na verdade, Denise está correta quando lembra a necessidade de existência de uma concepção de mundo, uma ideologia favorável ou reprodutora da dimensão "material" ou socio-material do capital (para mim ela não disse que a produção material pressupõe a ideologia).

AC: Ela disse que não há capitalismo sem a ideologia do capitalismo. O que, como mostrei, está errado, segundo Marx.

SD: O que havia antes da ideologia do capital não podiam ser as tais "empresas capitalistas", porque estas só podem existir no interior de todo um modo de organização social (cultural, ideológica, política) que reproduza a lógica de reprodução societal do capital - e que torne possível, portanto, se falar na existência de empresas ou unidades produtivas afinadas com a lógica de reprodução do capital. A julgar que você estivesse correto, Antonio, como seria possível existirem empresas capitalistas sem um mercado capitalista?

AC: É possível, como diz Marx, onde há mercado externo. Não só a sua leitura de Marx é deficiente, mas também a sua leitura dos historiadores modernos que dialogam com as teses de Marx, como Braudel e Trevor Hopper. Cito-lhe este último:
“Antuérpia, Liège, Lisboa, Augsburgo, Milão, Lucca... temos apenas de enumerar esses nomes para ver o que ocorreu. Estes são os grandes nomes da história econômica européia. Às vésperas da Reforma, eram os herdeiros do capitalismo medieval, os promissores iniciadores do capitalismo moderno. Pois o capitalismo em larga escala, antes da revolução industrial, dependia do comércio a longa distância e de duas grandes indústrias: tecidos e minérios. Na Idade Média, graças ao comércio de longa distância da Itália, a indústria têxtil fora criada na Itália e em seu depósito no norte, Flandres. A partir do acúmulo financeiro assim criado, os capitalistas da Itália e de Flandres puderam mobilizar a indústria extrativista da Europa, ainda mais dispêndios,a mas em última análise ainda mais lucrativa. Em torno de 1500, todas as técnicas do capitalismo industrial estavam concentradas em umas poucas cidades da antiga rota renana de Flandres para a Itália [... ]” ANTES DA REFORMA do século XVI, que ideologia capitalista podia haver? O que havia era o Catolicismo. Entretanto, como você vê, havia o capitalismo incipiente.

SD: De acordo com o esquema marxista, o capitalismo é um sistema totalizante (envolve toda a sociedade) ou não é nada. Ele já começa como um sistema total, ainda que não inteiramente maduro (mas já com produção, ideologia, instituições políticas disciplinadoras etc), e este sistema total é que vai amadurecendo e se expandindo, engolindo ou eliminando outras formas de organização social.

AC: Você está errado. O capitalismo se distingue exatamente pelo fato de que, nele, a economia tem uma autonomia relativa muito maior do que em outros modos de produção.

SD: Na verdade, o seu entendimento do materialismo de Marx não está correto. A idéia de que o capitalismo, em sua dimensão material, existe a despeito de uma ideologia que lhe seja necessária e absolutamente correspondente, é sua (em princípio, já que eu não conheço suas influências), e não de Marx.

AC: Até agora você não mostrou texto algum de Marx que corroborasse essa tese. Eu já mostrei dois (um na resposta a Denise, outro aqui) que corroboram a minha. E não são panfletos políticos, que nada valem, mas trabalhos teóricos.

SD: Insistir na posição de que a sua idéia pode ter guarida no próprio materialismo marxista é um equívoco, pois revela que o materialismo que você acredita ser de Marx na verdade é uma modalidade outra, mais rústica e vulgar de materialismo, relativamente ao de Marx. O materialismo vulgar apresenta uma realidade social em que sua dimensão "material" possui uma autonomia perante outras dimensões da existência social. A partir daí, alguns vulgares enxergam uma determinação mecânica ou automática das formas de consciência pela dinâmica material "autônoma".

AC: Vulgar é esse tipo de classificação escolástica, herança pútrida dos falecidos dogmas do Diamat soviético, cujo sentido é sempre substituir a argumentação pelo rótulo.

SD: E você parece querer inaugurar uma outra modalidade do materialismo vulgar: como os demais materialistas vulgares, você assume a autonomia desta dimensão material (o capitalismo, produtivamente, funciona por si mesmo etc), mas diz que ela pode ficar lá no cantinho dela, se auto-reproduzindo, enquanto no mundo das idéias podemos pensar, ser e agir livremente (dentro daquele mínimo de regras etc).

AC: Por mim, a dimensão material não fica no seu cantinho, intocada, porque, como já lhe expliquei, sou um reformista radical. É o que se pode ser no mundo de hoje. O resto é pulsão regressiva, fingindo ser progresso.

SD: Sua concepção lembra também um outro autor, mas de modo igualmente simplista, Habermas e seu esquema "sistema X mundo da vida".

AC: EU acho Habermas simplista, mas me faz rir que você diga isso dele, pois, comparado com o seu marxismo escolástico, ele é extremamente sofisticado.

SD: Não é Denise quem diz que o capitalismo necessita de uma ideologia correspondente. É Marx quem diz isso,

AC: Jamais neguei que o capitalismo produza suas próprias ideologias.

SD: e nem poderia dizer outra coisa, pois se dissesse entraria em contradição com a sua própria concepção totalizante de modo social de produção, o qual consiste em forças produtivas E em relações sociais (culturais, ideológicas, políticas, institucionais) de produção.

AC: Outra simplificação sua. Para Marx, as forças produtivas entram em contradição com relações de produção; e as relações de produção entram em contradição com as ideologias etc. Você é que esquece a complexidade, no seu modelo simplório de uma totalidade sincrônica cujas instâncias são destituídas de especificidade temporal. Nesse ponto, não lhe faria mal ler um pouco de Althusser.

SD: Indo no vácuo da sua brincadeira (bem irônica, é verdade) com Denise, deveria eu cobrar por esta aula?

AC: Antes disso você ainda tem muito a aprender.

SD: Sigo na expectativa de acompanhar a continuidade do debate entre Cicero e Edson, com os dois lados mandando argumentos bastante bons (eu teria algo a comentar sobre essa noção de "sociedade aberta" de Antonio - para mim os liberais, à Karl Popper, fazem uma confusão prá lá de indevida entre "capitalismo" e "sociedade aberta", para não dizer que confundem tais coisas com democracia -, mas vou ficar na minha, até porque, analisando friamente, os liberais não estão inteiramente errados, embora sempre se considerem algo maior do que realmente são).

AC: Gosto do Edson porque ele é uma pessoa séria e inteligente. Ele é anti-liberal pela direita; você, pela esquerda: veja como eu tenho razão de associar o catolicismo ao marxismo-leninismo...

Abraço,
Antonio Cicero

Sidartha Silva disse...

Caro Cicero,

Dou seguimento ao formato de diálogo, mas mais para fazer alguns esclarecimentos.

SD - Mas que o trabalho sob o capital é uma forma de submissão, isso me parece fora de questão.

AC - Sua descrição é dramática, mas, se você pensar bem sobre a diferença entre o trabalho nas sociedades tradicionais de classe e no capitalismo, verá que é (1) que, nas primeiras, o trabalhador era forçado a trabalhar pela violência do senhor ou do capataz; (2) que, nas primeiras, o trabalhador não tinha como mudar de emprego, e era preso ao senhor e/ou ao solo; (3) que, nas primeiras, não havia mobilidade social vertical ou horizontal.

SIDARTHA: Eu já concordei com o fato de que o trabalho no capitalismo é fisicamente menos brutal - no que diz respeito às relações de trabalho - do que em períodos históricos anteriores. O capitalismo é uma força civilizatória relativamente ao feudalismo, à Antiguidade etc (Marx falava isso bem antes de carinhas como Hayek ou Friedman).

Mas disso não decorre que o capitalismo (ao contrário do feudalismo ou da antiguidade clássica) permita, a despeito de suas próprias diretrizes estrutural-ideológicas, a liberdade. Se você assim pensa, é porque ignora, em seu argumento, os elementos estruturais (com seu correspondente ideológico e cultural) de submissão ou de opressão próprios do sistema capitalista.

Além disso, há uma falha no seu argumento. Veja suas frases, extraídas do diálogo com Edson: "Até hoje não se inventou um meio de viver sem trabalhar. Ou se trabalha pelo salário ou se trabalha para evitar o chicote do feitor."

Perceba que da primeira para a segunda frase não há qualquer desdobramento lógico, embora você assim deixe entender. Porque da primeira frase (não se vive sem trabalhar), você desdobra a segunda (ou se trabalha pelo salário ou pelo chicote do feitor, nobre feudal, patrício romano etc).

Ora, o fato inegável de que não há vida sem trabalho NÃO É PRESSUPOSTO do segundo fato (trabalhar para outro, seja um capitalista de bons modos ou um escravocrata ou nobre feudal). São duas coisas totalmente distintas e sem ligação necessária entre si - a não ser para você, daí o seu engano.

Desde quando o trabalho humano só é possível na forma de submissão (formal, real) a outro que não trabalha e que não apenas controla como também recebe a maior parte dos frutos do trabalho? Onde está escrito que o trabalho submisso é tão eterno/transhistórico quanto o próprio trabalho?


O outro esclarecimento é sobre a minha menção à revolução democrático-burguesa. Foi você quem trouxe o termo à baila, em outra ocasião:

Antonio Cicero: "Um dos problemas é que os exemplos de ditadura em países capitalistas ocorrem justamente onde não teve lugar uma revolução burguesa de verdade, de modo que o poder das camadas sociais pré-capitalistas, profundamente anti-democráticas, é muito grande"

A tomar "revolução burguesa" ou "revolução democrático-burguesa" por chavão, você invocou primeiro. Eu inclusive não havia entendido a sua menção à "revolução burguesa" como chavão. Mas assim que usei o termo ele passou a ser chavão? Explique.

E depois disso você confundiu tudo, tentando me associar a maoístas, khmers etc. Bobagem. Eu apenas falava de um processo histórico ocorrido nos países capitalistas desenvolvidos (a tal "revolução burguesa", que chamei de "revolução democrático-burguesa", inexplicavelmente entendido por você como "chavão"). Não há chavão nenhum aqui, ora bolas, e sim conceitos analíticos que buscam apreender o sentido e a dinâmica de determinados processos ocorridos histórica e socialmente.

Retomando o meu argumento (esclarecido esse mal-entendido, que não sei porquê te possuiu), eu afirmei que não é possível esperar uma revolução burguesa (para usar um termo já usado por você, e que decerto você não considerará um chavão maoísta) de burguesias associadas a ou dependentes das "nações capitalistas desenvolvidas" (será isso outro chavão?). Por sinal, nem preciso recorrer a marxistas revolucionários para me amparar aqui. O Fernando Henrique Cardoso sociólogo (fielmente seguido pelo FHC presidente) é um dos primeiros a apontar a incapacidade da burguesia pátria em alavancar um projeto de desenvolvimento nacional autônomo e independente. Este, por sinal, é um dos pressupostos teóricos da política de abertura da economia nacional (o outro pressuposto está nas teorias econômicas ortodoxas da turma da PUC-Rio).

Mas, ao contrário de FHC (sociólogo, presidente etc), aparentemente também não deu certo imaginar que a burguesia transnacional (espero não ter que explicar o significado de cada termo ou conceito, sob pena de levar o rótulo de "chavão" na testa, talvez "brizolista"?) lideraria o processo de desenvolvimento nacional. A catástrofe dos anos 90 deve ter servido de lição.

Sobra quem? As classes subalternas nacionais. E, por favor, não pense que eu estou desmerecendo a experiência do governo Lula. Apenas não confunda projeto de desenvolvimento nacional com demagogia e populismo (a não ser que você considere Roosevelt um populista, ou Clement Attlee, ou os socialdemocratas suecos e alemães, socialistas franceses e italianos etc, etc).

O governo Lula avança, sim, e bastante, relativamente aos governos anteriores. Não por acaso, é um governo não apenas de esquerda (ou centro-esquerda), como oriundo das classes populares (trabalhadores, segmentos sociais marginalizados/excluídos etc).

Falta ainda, apenas, avançar de modo mais decidido contra os gargalos pré-modernos que impedem o livre curso da civilização brasileira. Quais sejam, a imensa concentração fundiária, a desigualdade socioeconômica monumental e a exclusão de vastas parcelas sociais da participação nas instituições político-formais (daí os fortes traços anti-republicanos que permanecem em grande medida do nosso Estado formalmente republicano, a despeito dos esforços contrários empreendidos pelo atual governo).

Enfim, problemas estruturais que já foram resolvidos nos países capitalistas desenvolvidos, não por acaso desenvolvidos e mais democráticos.

Então faça o favor de ir mais devagar no empenho em desfazer o argumento oponente. Com essa história de "revolução-burguesa-chavão-coisa-de-maoístas-khmers", por exemplo, você apenas inventou um interlocutor que não existia, para demoli-lo fácil e plasticamente.

Abraços,
Sidartha

Sidartha Silva disse...

Caro Antonio,

Com a extração de pedaços de textos de Marx você apenas demonstra uma coisa: que é capaz de extrair pedaços dos textos de Marx. Mas daí a compreender minimamente o conjunto do esquema teórico de Marx vai uma distância grande.

Seu erro, me parece, está em confundir "ideologia capitalista" com "reforma protestante". Tal identificação não é Marx quem faz, e sim Max Weber. Já que você pretende dar aulas sobre Marx, convém não confundi-lo ou misturá-lo com outro autor. Não me parece haver em Marx uma vírgula afirmando ter sido a Reforma do séc. XVI a matriz ou a origem da ideologia do capitalismo. Mas você pode tentar me refutar aqui, buscando algum versículo de Marx que contrarie o que eu acabei de dizer.

Os focos de capitalismo existentes antes da reforma protestante apenas atestam o aparente acerto de Marx, ao destacar não apenas a anterioridade relativa da dimensão material-produtiva relativamente ao plano superestrutural, mas ao mesmo tempo a existência de um sistema total (material + ideal), em que as dimensões material e ideológico-cultural interagem e se retro-alimentam mutuamente. Mesmo neste pequeno excerto que você destacou é possível ver dali não daria pra forçar, em Marx (ou na sua suposta compreensão do esquema teórico marxiano), essa associação entre ideologia capitalista e reforma.

Quando Marx fala da existência das formas originais do capital, em períodos históricos anteriores ao da emergência do capitalismo maduro, perceba que os elementos do sistema como totalidade já estão ali: manufatura e produção em massa (subdivisão de tarefas, administração/racionalização do tempo de trabalho), salário, preço e lucro, mercado (de exportação etc). Ora, não é possível que o empresário aí pense de forma não-capitalista. Portanto, ele necessariamente já está animado por uma racionalidade (forma de consciência) capitalista. Sem precisar ter esperado Lutero pregar as 95 teses nas portas da igreja etc.

Sobre Althusser para entender Marx, é melhor ler Marx para entender Marx (até porquê Althusser transforma o marxismo num estruturalismo engessado, formalista e quase a-histórico - até as ideologias são corpos duros, que entram em contradição com outros corpos duros (relações de produção, forças produtivas) e se espatifam etc - falta sensibilidade em Althusser, falta história, aquela história cheia de movimento de indivíduos, contradições e ambiguidades - enfim, falta E.P. Thompson a Althusser). Mas leia não apenas pedaços sem contexto, e sim relacionando-os no contexto da obra e de sua evolução. Não me consta que, analogamente, religiosos capazes de sacar um ou outro versículo das obras sagradas sejam melhores entendedores de uma religião. Podem ser até extremamente obtusos. E eu não vou fazer uma disputa para ver quem saca mais versículos (até porque estou longe dos meus livros neste momento), isso é coisa de quem tem uma relação dogmática com o conhecimento.

E sobre a identificação entre católicos e marxistas, em oposição aos liberais, espero que você não esteja querendo dizer ou sugerir que aqueles seriam "associados" ou associáveis por alguma suposta verve ou ranço "anti-democrático" em comum, daí se unirem contra o liberalismo. Até porquê liberalismo e democracia não se confundem nem um pouco (a despeito do que muitos liberais pensam acerca de si mesmos e de seus ideários, a rigor democracia não tem nada que ver com liberalismo. É plenamente possível ser anti-liberal e, ao mesmo tempo, pró-democracia). Mas isso já é outro debate.

Abraços,
Sidartha

Anônimo disse...

Caro ACicero,

AC: Bin Laden tem tudo a ver com o Islã.

EDG: Por quê? Você acha que o Islã é em si violento? Eu acho que não; acho que nenhuma religião seja em si violenta. E acho que o Bin Laden talvez nem exista... E se existir, talvez seja bem diferente do que dizem. -- Aliás parece que ele esteve nos EUA meses antes do 11/9, para consulta médica: que raio de anti-capitalista, de inimigo é esse?

AC: E os religiosos fundamentalistas são, de fato, anti-capitalistas.

EDG: E o capitalismo é anti-fundamentalistas, ou seja, os fundamentalistas são obrigados a adotarem o modo capitalista, americano de vida, mesmo quando sua religião, seu mundo nada tenha que ver com o american way of life.

AC: Mas não foi contra a religião que Bush – que é religiosíssimo – invadiu o Iraque. De todo modo, eles são aliados da Arábia Saudita.

EDG: Bush é um religioso moderno, capaz de crer numa coisa e fazer outra. A religião, na modernidade, virou uma ideologia entre outras. Nas sociedades tradicionais, a religião era um modo de viver, de religar-se com Deus, com a natureza e com o próximo.

AC: Até hoje não se inventou um meio de viver sem trabalhar. Ou se trabalha pelo salário ou se trabalha para evitar o chicote do feitor. Viver de salário é bem mais digno do que ser escravo ou servo da gleba. Além disso, no capitalismo, é possível haver mobilidade social, tanto vertical quanto horizontal, coisa que não há em nenhum outro regime conhecido. E o capitalismo pode ser reformado: pode se tornar uma social-democracia, por exemplo. O Islã, como você sabe, aprova a escravidão.

EDG: Ter de trabalhar é uma coisa, ter de ser explorado é outra bem diferente. Muito provavelmente houve escravos que tiveram uma vida mais digna do que muitos assalariados. E não me refiro à Revolução Industrial. Que diferença substancial há entre um trabalhador que recebe salário mínimo, trabalha em condições adversas, num canavial, p.ex., tem de viajar para trabalhar, e mora numa favela e um escravo? O status jurídico? E o capitalismo também não "aprova" a escravidão? No Brasil ainda há trabalho escravo! Você vai dizer que é um resquício pré-capitalista... Mas mesmo quando o "empregador" é uma multinacional como, sei lá, a Nike?

AC: Essa questão do véu é muito complexa. As pesquisas de opinião entre os muçulmanos da Europa mostram que os mais satisfeitos são os que vivem na França. Na França, o direito do indivíduo é mais respeitado do que o da família, o que é mais racional. O que ocorre é que grande parte das meninas eram obrigadas pelas famílias a usar o véu, que elas detestavam. Com a proibição do véu, Ferry as liberou dessa penosa prestação de contas à Idade Média e lhes permitiu ser modernas.

EDG: Grande parte, mas não todas: olhaí a ditadura da maioria! Uma parte teve de abrir mão de um costume, de uma tradição, por causa da intolerância da sociedade aberta. Eu posso ir à escola com a camisa do meu time de futebol, mas não com o crucifixo; posso ir com a calcinha aparecendo, mas não de véu. Por quê?

AC: O laicismo apenas põe as coisas nos devidos lugares. Na sociedade racional, a religião tem que ser um assunto exclusivamente privado e as religiões não podem passar de clubes. É assim mesmo que tem que ser.

EDG: Não sei se existe assunto exclusivamente privado: eu voto segundo as minhas crenças e valores. Querendo-se ou não, a religião transcende os limites da família ou do clube. O Estado laico não é o Estado anti-religioso, mas o Estado neutro: não fomenta nem coíbe a vida religiosa. Afinal a sociedade aberta defende ou não o direito de livre pensamento e expressão? Por que não posso expressar a minha fé?

AC: De maneira geral, o agnosticismo é um ateísmo envergonhado.

EDG: De maneira geral, mas não sempre e muito menos necessariamente. É claro que é possível suspender o juízo acerca da existência de Deus. O Estado laico tem de ser agnóstico e não ateu. O ateísmo é uma posição dogmática, e o Estado tem de ser neutro, deixando que cada um acredite ou não no que bem entenda.

AC: Acho que essa confusão [entre democracia e ditadura da maioria] é perigosa. Por isso sempre digo que o fundamental na democracia é a sociedade aberta; são os direitos individuais.

EDG: Mas por que então a religião é um direito de segunda categoria?

AC: Acho que as pessoas devem ter o direito de cultuar abertamente os ídolos mais estúpidos e imorais.

EDG: Também acho, desde que não prejudiquem ninguém. Mas então por que os religiosos não podem cultuar os seus? Por que os punks ou os membros de outra tribo qualquer podem viver segundo sua fé, mas os religiosos não?

AC: Eu já lhe disse que acho que toda religião é idólatra. O absoluto não pode ser nenhuma positividade. Pretender que seja uma positividade já é idolatria, o pior dos pecados.

EDG: Porque você interpreta Deus como um ente, ao modo de Heidegger, e não como o Ser. Pode-se muito bem, ao modo de Fichte, p.ex., compreender Deus como o Absoluto. Você mesmo está dizendo que a idolatria é pecado... segundo a religião cristã. Idolatria é substituir o Absoluto pela matéria, p.ex., ou, pior ainda, pelo poder, pelo dinheiro, pelo sexo etc., ou seja, os ídolos cultuados pela sociedade em geral e até pelo Estado.

AC: Concordo com você: a televisão no metrô e o rádio alto são abusos. É preciso lutar contra isso. Já escrevi um ensaio sobre o assunto, que se encontra no meu site.

EDG: Se fosse só isso, rádio e TV, até que as coisas não estariam nada mal. Infelizmente não se trata apenas de poluição. A vida sob o capitalismo está cada vez mais estressante, a começar da infância. Veja o exemplo dos professores brasileiros!

AC: Que quer dizer assédio moral? Você está muito politically correct.

EDG: Hehehe... assédio moral é, a rigor, todo tipo de tratamento desrespeitoso, ou seja, quando uma pessoa é tratada apenas como mero meio: coisa, mercadoria, empregado, objeto sexual etc. Mas é essa a regra na vida corporativa.

AC: Francamente, não sinto as coisas desse modo. Mais do que nunca, a privacidade é possível hoje. Onde ela não existia era nas comunidades pré-capitalistas. Ou você pensa que seria respeitado na sua vontade de ser ateu, na Idade Média?

EDG: Pois nós estamos chegando a um ponto em que o teísta será tratado como os ateus na Idade Média. Nas universidades a situação já está bem próxima disso: se for religioso não entra, se for de direita não entra, se for idealista... [refiro-me, claro aos professores]. Que raio de sociedade aberta, baseada no mérito, é esta?

AC: Hoje, num país em que, infelizmente, o individualismo ainda é insuficientemente cultivado, só leio os livros que quero, só ouço a música que quero, não assisto televisão, só converso com quem quero etc. etc.

EDG: Por muitos anos, não tive TV. Agora, com dois filhos pequenos, está difícil controlar o uso do aparelho. Tive de comprar um carro. Vou ter de comprar um celular. Vou ter de fazer upgrade. No computador e em... mim também! A coisa não tem fim... É a religião do progresso, do consumo, da mercadoria, da pressa... Isso não é o capitalismo?

AC: Os jeitinhos etc. são resquícios pré-capitalistas.

EDG: Você continua falando do capitalismo enquanto idéia, mas eu falo do capitalismo REAL. Os jeitinhos, a corrupção etc. são inerentes ao capitalismo: existem em todo o mundo capitalista. A busca desenfreada pelo lucro, pela vantagem leva o cidadão a fazer concessões morais, quando não a cometer delitos e crimes. P.ex., nós somos assaltados todos os dias pelos bancos, para falar de uma instituição eminentemente capitalista. Os caixas eletrônicos são programados para enganar o usuário, p.ex., oferecendo-lhe um produto qualquer na mudança de uma tela para outra: clicou, comprou. A propaganda em geral é mentirosa; não visa a atender uma necessidade, mas a criá-la. Meus filhos só assistem, e muito pouco, à TV Cultura, que, infelizmente, também passou a veicular propaganda: é puro assédio, pura sedução, pura violência.

AC: Duvido que a sua vida seja desumana. A minha não é.

EDG: Sim, nossa vida, a minha e a sua, não é "desumana". Mas nós somos a elite. Ali no farol da esquina há uma criança fazendo malabarismo para sobreviver. E se a vida dela é desumana, como pode a nossa não o ser? Você crê mesmo que o capitalismo, um dia, vai eliminar a injustiça social [entre outros problemas]?

Quanto a ser anti-liberal, não me vejo assim, não, nem à direita nem à esquerda. Posso ser anti-liberalismo, o que é bem diferente. Sou pela liberdade, como valor absoluto, transcendental, e contra o arbítrio dos espertos, dos poderosos e das autoridades em geral.

Abraço,

edg

Antonio Cicero disse...

Caro Wilson,

O diálogo com a Denise descambou exatamente por que me é intolerável o estilo "magister dixit" que ela empregou desde o primeiro comentário que fez. Infelizmente, trata-se do estilo favorito dos escolásticos/escolares marxistas-leninistas. Quanto ao emprego da palavra "razão" e da própria razão, considero-o imprescindível para desmascarar o caráter irracionalista da "dialética" marxista-leninista. Contra o irracionalismo "dialético" é preciso usar a crítica: e, como já expliquei em vários artigos publicados aqui no blog (dê uma clicada no marcador “Razão”), a crítica é a razão em estado puro.

Abraço,
Antonio Cicero

Antonio Cicero disse...

Dou seguimento ao formato de diálogo.

SD - Mas que o trabalho sob o capital é uma forma de submissão, isso me parece fora de questão.

AC - Sua descrição é dramática, mas, se você pensar bem sobre a diferença entre o trabalho nas sociedades tradicionais de classe e no capitalismo, verá que é (1) que, nas primeiras, o trabalhador era forçado a trabalhar pela violência do senhor ou do capataz; (2) que, nas primeiras, o trabalhador não tinha como mudar de emprego, e era preso ao senhor e/ou ao solo; (3) que, nas primeiras, não havia mobilidade social vertical ou horizontal.

SD: Eu já concordei com o fato de que o trabalho no capitalismo é fisicamente menos brutal - no que diz respeito às relações de trabalho - do que em períodos históricos anteriores. O capitalismo é uma força civilizatória relativamente ao feudalismo, à Antiguidade etc (Marx falava isso bem antes de carinhas como Hayek ou Friedman).

Mas disso não decorre que o capitalismo (ao contrário do feudalismo ou da antiguidade clássica) permita, a despeito de suas próprias diretrizes estrutural-ideológicas, a liberdade. Se você assim pensa, é porque ignora, em seu argumento, os elementos estruturais (com seu correspondente ideológico e cultural) de submissão ou de opressão próprios do sistema capitalista.
AC: Para mim, isso é um dogma inaceitável. A menos que você esteja usando a palavra “liberdade” de modo metafísico, como liberdade absoluta – mas, nesse caso, só o ser que é causa de si mesmo é livre, de modo que ser humano nenhum jamais foi, é ou será livre –, o capitalismo é o modo de produção que permite mais liberdade. Jamais houve tanta gente livre no mundo. Você não é livre? Não somos menos livres do que qualquer pessoa que já existiu.
SD: Além disso, há uma falha no seu argumento. Veja suas frases, extraídas do diálogo com Edson: "Até hoje não se inventou um meio de viver sem trabalhar. Ou se trabalha pelo salário ou se trabalha para evitar o chicote do feitor."
Perceba que da primeira para a segunda frase não há qualquer desdobramento lógico, embora você assim deixe entender. Porque da primeira frase (não se vive sem trabalhar), você desdobra a segunda (ou se trabalha pelo salário ou pelo chicote do feitor, nobre feudal, patrício romano etc).
Ora, o fato inegável de que não há vida sem trabalho NÃO É PRESSUPOSTO do segundo fato (trabalhar para outro, seja um capitalista de bons modos ou um escravocrata ou nobre feudal). São duas coisas totalmente distintas e sem ligação necessária entre si - a não ser para você, daí o seu engano.
Desde quando o trabalho humano só é possível na forma de submissão (formal, real) a outro que não trabalha e que não apenas controla como também recebe a maior parte dos frutos do trabalho? Onde está escrito que o trabalho submisso é tão eterno/transhistórico quanto o próprio trabalho?
AC: Na verdade, não há falha nenhuma no meu argumento. É preciso entendê-lo no seu contexto. Ao contrário de você, Edson ataca o capitalismo a partir de um ponto de vista religioso, pré-capitalista. O diz é que o capitalismo é pior que os outros modos de produção porque obriga os seres humanos a vender a sua força de trabalho. Aceitando, disputandi gratia, essa premissa, argumentei que, nos modos de produção históricos pré-capitalistas, também há trabalho e também há exploração: mas não se é obrigado a trabalhar pelo salário, em geral, mas pela violência. Mas, pensando bem, realmente fiz mal: eu não devia ter aceito nem a premissa do Edson. Afinal, mesmo numa formação social em que domine o capitalismo, é possível haver trabalhadores autônomos, que não trabalham pelo salário. Eu mesmo sou autônomo.
SD: O outro esclarecimento é sobre a minha menção à revolução democrático-burguesa. Foi você quem trouxe o termo à baila, em outra ocasião:
Antonio Cicero: "Um dos problemas é que os exemplos de ditadura em países capitalistas ocorrem justamente onde não teve lugar uma revolução burguesa de verdade, de modo que o poder das camadas sociais pré-capitalistas, profundamente anti-democráticas, é muito grande"
A tomar "revolução burguesa" ou "revolução democrático-burguesa" por chavão, você invocou primeiro. Eu inclusive não havia entendido a sua menção à "revolução burguesa" como chavão. Mas assim que usei o termo ele passou a ser chavão? Explique.
E depois disso você confundiu tudo, tentando me associar a maoístas, khmers etc. Bobagem. Eu apenas falava de um processo histórico ocorrido nos países capitalistas desenvolvidos (a tal "revolução burguesa", que chamei de "revolução democrático-burguesa", inexplicavelmente entendido por você como "chavão"). Não há chavão nenhum aqui, ora bolas, e sim conceitos analíticos que buscam apreender o sentido e a dinâmica de determinados processos ocorridos histórica e socialmente.
SD: Retomando o meu argumento (esclarecido esse mal-entendido, que não sei porquê te possuiu), eu afirmei que não é possível esperar uma revolução burguesa (para usar um termo já usado por você, e que decerto você não considerará um chavão maoísta) de burguesias associadas a ou dependentes das "nações capitalistas desenvolvidas" (será isso outro chavão?). Por sinal, nem preciso recorrer a marxistas revolucionários para me amparar aqui. O Fernando Henrique Cardoso sociólogo (fielmente seguido pelo FHC presidente) é um dos primeiros a apontar a incapacidade da burguesia pátria em alavancar um projeto de desenvolvimento nacional autônomo e independente. Este, por sinal, é um dos pressupostos teóricos da política de abertura da economia nacional (o outro pressuposto está nas teorias econômicas ortodoxas da turma da PUC-Rio).
Mas, ao contrário de FHC (sociólogo, presidente etc), aparentemente também não deu certo imaginar que a burguesia transnacional (espero não ter que explicar o significado de cada termo ou conceito, sob pena de levar o rótulo de "chavão" na testa, talvez "brizolista"?) lideraria o processo de desenvolvimento nacional. A catástrofe dos anos 90 deve ter servido de lição.
Sobra quem? As classes subalternas nacionais. E, por favor, não pense que eu estou desmerecendo a experiência do governo Lula. Apenas não confunda projeto de desenvolvimento nacional com demagogia e populismo (a não ser que você considere Roosevelt um populista, ou Clement Attlee, ou os socialdemocratas suecos e alemães, socialistas franceses e italianos etc, etc).
O governo Lula avança, sim, e bastante, relativamente aos governos anteriores. Não por acaso, é um governo não apenas de esquerda (ou centro-esquerda), como oriundo das classes populares (trabalhadores, segmentos sociais marginalizados/excluídos etc).
Falta ainda, apenas, avançar de modo mais decidido contra os gargalos pré-modernos que impedem o livre curso da civilização brasileira. Quais sejam, a imensa concentração fundiária, a desigualdade socioeconômica monumental e a exclusão de vastas parcelas sociais da participação nas instituições político-formais (daí os fortes traços anti-republicanos que permanecem em grande medida do nosso Estado formalmente republicano, a despeito dos esforços contrários empreendidos pelo atual governo).
Enfim, problemas estruturais que já foram resolvidos nos países capitalistas desenvolvidos, não por acaso desenvolvidos e mais democráticos.
Então faça o favor de ir mais devagar no empenho em desfazer o argumento oponente. Com essa história de "revolução-burguesa-chavão-coisa-de-maoístas-khmers", por exemplo, você apenas inventou um interlocutor que não existia, para demoli-lo fácil e plasticamente.
AC: Nesse caso, talvez eu realmente me tenha precipitado. Desculpe. É que a bandeira da “revolução democrático-burguesa” liderada pelo operariado já levou a algumas monstruosidades históricas. Certas conotações se prendem a certos termos, e tendem a prevalecer sobre a denotação analítica. O termo “revolução burguesa” tout-court não evoca as mesmas associações em mim.
Abraços,
ACicero

Antonio Cicero disse...

Caro Sidartha,

SD: Com a extração de pedaços de textos de Marx você apenas demonstra uma coisa: que é capaz de extrair pedaços dos textos de Marx. Mas daí a compreender minimamente o conjunto do esquema teórico de Marx vai uma distância grande.

AC: Os trechos de Marx que cito têm funções pontuais, como você sabe. Eu não citaria Marx se não estivéssemos discutindo exatamente o pensamento dele. Você disse que não havia empresas capitalistas antes de haver a ideologia do capitalismo. Citei um texto em que Marx fala exatamente de tais empresas. Parece-me que quem demonstrou não “compreender minimamente o conjunto do esquema teórico de Marx” foi você, ou não teria dito essa tolice.

SD: Seu erro, me parece, está em confundir "ideologia capitalista" com "reforma protestante". Tal identificação não é Marx quem faz, e sim Max Weber. Já que você pretende dar aulas sobre Marx, convém não confundi-lo ou misturá-lo com outro autor. Não me parece haver em Marx uma vírgula afirmando ter sido a Reforma do séc. XVI a matriz ou a origem da ideologia do capitalismo. Mas você pode tentar me refutar aqui, buscando algum versículo de Marx que contrarie o que eu acabei de dizer.

AC: A última frase sua apenas mostra que você não está seguro do que diz, e quer desqualificar qualquer referência que eu faça a algum texto de Marx que mostre o fato de que é você que não compreende minimamente o esquema teórico dele. Sinto muito, mas tais textos existem, e devem ser lembrados, para ajudá-lo a corrigir os equívocos que você tem cometido e ostentado. As idéias têm histórias mais longas do que você imagina. A tese da correspondência do capitalismo com o protestantismo não se originou em Weber, mas em Marx, que estava pondo em seus próprios termos a tese hegeliana da adequação do protestantismo à modernidade. Em “O capital”, Marx diz:

“Para uma sociedade de produtores de mercadoria, cuja relação social geral de produção consiste em se relacionarem com seus produtos como mercadorias, logo, como valores, e nessa forma coisificada relacionarem uns com os outros os seus trabalhos privados como trabalho humano homogêneo, o Cristianismo, com seu culto do homem abstrato, isto é, em seu desenvolvimento burguês – o Protestantismo, o deísmo etc. –, é a forma religiosa mais adequada”.

Foi a partir dessa sugestão que Weber, erroneamente pensando que o protestantismo houvesse precedido e produzido o capitalismo – tese que derrubaria o materialismo de Marx (materialismo que, como é de Marx, e não de Antonio Cicero, escapa da vulgaridade) -- escreveu o seu famoso “Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus” etc. Weber estava errado. Grandes historiadores modernos mostraram que o capitalismo surgiu antes do protestantismo.

SD: Os focos de capitalismo existentes antes da reforma protestante apenas atestam o aparente acerto de Marx, ao destacar não apenas a anterioridade relativa da dimensão material-produtiva relativamente ao plano superestrutural, mas ao mesmo tempo a existência de um sistema total (material + ideal), em que as dimensões material e ideológico-cultural interagem e se retro-alimentam mutuamente. Mesmo neste pequeno excerto que você destacou é possível ver dali não daria pra forçar, em Marx (ou na sua suposta compreensão do esquema teórico marxiano), essa associação entre ideologia capitalista e reforma.

AC: Espero que finalmente você tenha compreendido que eu não estou forçando nada em Marx. O que eu estava mostrando era que não havia nenhuma ideologia burguesa, NEM MESMO o Protestantismo, quando surgiram os primeiros focos de capitalismo. A ideologia que havia era a feudal, isto é, o Catolicismo.

SD: Quando Marx fala da existência das formas originais do capital, em períodos históricos anteriores ao da emergência do capitalismo maduro, perceba que os elementos do sistema como totalidade já estão ali: manufatura e produção em massa (subdivisão de tarefas, administração/racionalização do tempo de trabalho), salário, preço e lucro, mercado (de exportação etc). Ora, não é possível que o empresário aí pense de forma não-capitalista. Portanto, ele necessariamente já está animado por uma racionalidade (forma de consciência) capitalista. Sem precisar ter esperado Lutero pregar as 95 teses nas portas da igreja etc.

AC: O capitalista, enquanto age como capitalista, pensa como capitalista: mas isso ainda não é o que se entende por ideologia -- isto é por sistema de idéias – burguesa. Longe de terem ideologia burguesa, sabe-se que os capitalistas católicos do final da Idade Média achavam certo, por exemplo, se penitenciarem pelo pecado da ganância: ou seja, achavam pecado fazer o que, enquanto capitalistas, faziam. Mais tarde – não com Lutero, mas com Calvino – desenvolveu-se uma religião mais adequada a eles. Mas foi bem depois, principalmente na Inglaterra, com pensadores e escritores como Locke, Mandeville, Pope, Hume, Adam Smith etc. que se consolidaram as ideologias burguesas clássicas. O capitalismo não nasceu, como Minerva da cabeça de Júpiter, pronto, com escudo e lança, simultaneamente base e superestrutura, forças produtivas, relações de produção, Estado e ideologia. Isso é um sonho ingênuo e idealista, pois supõe que o capitalismo seja uma essência. Cada coisa veio num tempo diferente, embora articulado, de modo complexo, aos demais.

SD: Sobre Althusser para entender Marx, é melhor ler Marx para entender Marx (até porquê Althusser transforma o marxismo num estruturalismo engessado, formalista e quase a-histórico - até as ideologias são corpos duros, que entram em contradição com outros corpos duros (relações de produção, forças produtivas) e se espatifam etc - falta sensibilidade em Althusser, falta história, aquela história cheia de movimento de indivíduos, contradições e ambiguidades - enfim, falta E.P. Thompson a Althusser). Mas leia não apenas pedaços sem contexto, e sim relacionando-os no contexto da obra e de sua evolução. Não me consta que, analogamente, religiosos capazes de sacar um ou outro versículo das obras sagradas sejam melhores entendedores de uma religião. Podem ser até extremamente obtusos. E eu não vou fazer uma disputa para ver quem saca mais versículos (até porque estou longe dos meus livros neste momento), isso é coisa de quem tem uma relação dogmática com o conhecimento.

AC: Para compreender Marx, é melhor ler Marx do que Althusser. Mas este lhe faria bem, para você entender que o capitalismo não é uma essência que surge de uma vez só. É curiosa a sua arrogância: parece que o fato de que eu cite Marx para falar sobre o pensamento de Marx significa que eu não entendo o que Marx queria dizer. Já você, sem ter afirmado coisa alguma que não seja trivial nos manuais marxistas mais vulgares – e algumas coisas que, apesar de serem de pertencerem a esse domínio comum, estão erradas e são superficiais – se considera, por isso mesmo, um mestre no assunto.

SD: E sobre a identificação entre católicos e marxistas, em oposição aos liberais, espero que você não esteja querendo dizer ou sugerir que aqueles seriam "associados" ou associáveis por alguma suposta verve ou ranço "anti-democrático" em comum, daí se unirem contra o liberalismo. Até porquê liberalismo e democracia não se confundem nem um pouco (a despeito do que muitos liberais pensam acerca de si mesmos e de seus ideários, a rigor democracia não tem nada que ver com liberalismo. É plenamente possível ser anti-liberal e, ao mesmo tempo, pró-democracia). Mas isso já é outro debate.

AC: Com efeito.

Abraço,
ACicero

Antonio Cicero disse...

Caro ACicero,

AC: Bin Laden tem tudo a ver com o Islã.

EDG: Por quê? Você acha que o Islã é em si violento? Eu acho que não; acho que nenhuma religião seja em si violenta.

AC: Vou citar uma mulher que foi muçulmana e, tendo abandonado a religião, foi condenada a morte por uma fatwa. Pela lei islâmica, o apóstata é condenado à morte: o que já mostra o caráter violento dessa religião. Cito Hirsi Ali:

“[O Islã] é violento em seu cerne e antiocidental. O Alcorão foi criado no século 8. Àquela época, o próprio Ocidente era violento, retrógrado e ignorante. Quando nos referimos hoje ao Ocidente, pensamos em democracias livres e liberais, mas este é um Ocidente diferente daquele que os muçulmanos conheceram no século 8. Os líderes radicais muçulmanos não estão interpretando erroneamente o Alcorão. Não é esse o problema. O problema é que eles querem nos levar de volta ao século 8. Qualquer um pode ler as leis islâmicas referentes às mulheres, aos judeus, infiéis e descrentes. Podemos ler o que deve ser feito àqueles que abandonam a fé, cometem adultério. A violência está lá, bem explícita. Toda essa questão da interpretação tem origem nos muçulmanos que querem ser bons muçulmanos, que querem acreditar e ter fé e não querem ver sua religião inspirando violência. É esse grupo que diz que o Alcorão é mal interpretado. Mas isso não é verdade”.

EDG: E acho que o Bin Laden talvez nem exista... E se existir, talvez seja bem diferente do que dizem. -- Aliás parece que ele esteve nos EUA meses antes do 11/9, para consulta médica: que raio de anti-capitalista, de inimigo é esse?

AC: Na verdade, o problema dele não é com o capitalismo, mas com coisas que não existiam antes do capitalismo. O que os fundamentalistas odeiam é a laicidade, a sociedade aberta, os direitos humanos.

EDG: Ter de trabalhar é uma coisa, ter de ser explorado é outra bem diferente. Muito provavelmente houve escravos que tiveram uma vida mais digna do que muitos assalariados. E não me refiro à Revolução Industrial. Que diferença substancial há entre um trabalhador que recebe salário mínimo, trabalha em condições adversas, num canavial, p.ex., tem de viajar para trabalhar, e mora numa favela e um escravo? O status jurídico? E o capitalismo também não "aprova" a escravidão? No Brasil ainda há trabalho escravo! Você vai dizer que é um resquício pré-capitalista... Mas mesmo quando o "empregador" é uma multinacional como, sei lá, a Nike?

AC: Acho que é preciso lutar politicamente contra esse tipo de coisa: como foi feito em outros países capitalistas.

AC: Essa questão do véu é muito complexa. As pesquisas de opinião entre os muçulmanos da Europa mostram que os mais satisfeitos são os que vivem na França. Na França, o direito do indivíduo é mais respeitado do que o da família, o que é mais racional. O que ocorre é que grande parte das meninas eram obrigadas pelas famílias a usar o véu, que elas detestavam. Com a proibição do véu, Ferry as liberou dessa penosa prestação de contas à Idade Média e lhes permitiu ser modernas.

EDG: Grande parte, mas não todas: olhaí a ditadura da maioria! Uma parte teve de abrir mão de um costume, de uma tradição, por causa da intolerância da sociedade aberta. Eu posso ir à escola com a camisa do meu time de futebol, mas não com o crucifixo; posso ir com a calcinha aparecendo, mas não de véu. Por quê?

AC: As meninas que se sentiam oprimidas ficaram aliviadas; as outras não podem ser condenadas pela família ou pela comunidade por não usarem o véu, já que têm que obedecer a lei; ao mesmo tempo, são levadas refletir sobre a religião que herdaram: a se distanciarem de toda imediaticidade que se pretenda acima da crítica. Isso já é bom. Nada pode estar acima da crítica.
AC: O laicismo apenas põe as coisas nos devidos lugares. Na sociedade racional, a religião tem que ser um assunto exclusivamente privado e as religiões não podem passar de clubes. É assim mesmo que tem que ser.

EDG: Não sei se existe assunto exclusivamente privado: eu voto segundo as minhas crenças e valores. Querendo-se ou não, a religião transcende os limites da família ou do clube. O Estado laico não é o Estado anti-religioso, mas o Estado neutro: não fomenta nem coíbe a vida religiosa. Afinal a sociedade aberta defende ou não o direito de livre pensamento e expressão? Por que não posso expressar a minha fé?

AC: Já respondi a isso. Você pode
expressar a sua fé, até o ponto em que o seu direito não signifique desrespeitar o direito de quem não pensa como você. Acho que estamos dando voltas e nos repetindo.

AC: De maneira geral, o agnosticismo é um ateísmo envergonhado.

EDG: De maneira geral, mas não sempre e muito menos necessariamente. É claro que é possível suspender o juízo acerca da existência de Deus. O Estado laico tem de ser agnóstico e não ateu. O ateísmo é uma posição dogmática, e o Estado tem de ser neutro, deixando que cada um acredite ou não no que bem entenda.

AC: Jamais neguei isso.

EDG: Mas por que então a religião é um direito de segunda categoria?
AC: Não sei o que isso quer dizer.

AC: Acho que as pessoas devem ter o direito de cultuar abertamente os ídolos mais estúpidos e imorais.

EDG: Também acho, desde que não prejudiquem ninguém. Mas então por que os religiosos não podem cultuar os seus? Por que os punks ou os membros de outra tribo qualquer podem viver segundo sua fé, mas os religiosos não?

AC: De novo, acho que isso já foi respondido.

AC: Eu já lhe disse que acho que toda religião é idólatra. O absoluto não pode ser nenhuma positividade. Pretender que seja uma positividade já é idolatria, o pior dos pecados.

EDG: Porque você interpreta Deus como um ente, ao modo de Heidegger, e não como o Ser. Pode-se muito bem, ao modo de Fichte, p.ex., compreender Deus como o Absoluto. Você mesmo está dizendo que a idolatria é pecado... segundo a religião cristã. Idolatria é substituir o Absoluto pela matéria, p.ex., ou, pior ainda, pelo poder, pelo dinheiro, pelo sexo etc., ou seja, os ídolos cultuados pela sociedade em geral e até pelo Estado.

AC: Ou Deus é o Absoluto e, nesse caso, não é o Deus pessoal das religiões, ou é o Deus pessoal das religiões, e, nesse caso, não é o Absoluto, mas uma imagem, um ídolo que se coloca no lugar do Absoluto.

AC: Francamente, não sinto as coisas desse modo. Não percebo o mundo desse modo. Mais do que nunca, a privacidade é possível hoje. Onde ela não existia era nas comunidades pré-capitalistas. Ou você pensa que seria respeitado na sua vontade de ser ateu, na Idade Média?

EDG: Pois nós estamos chegando a um ponto em que o teísta será tratado como os ateus na Idade Média. Nas universidades a situação já está bem próxima disso: se for religioso não entra, se for de direita não entra, se for idealista... [refiro-me, claro aos professores]. Que raio de sociedade aberta, baseada no mérito, é esta?

AC: Desculpe, mas isso simplesmente não é verdade. Conheço religiosos que são professores.

AC: Hoje, num país em que, infelizmente, o individualismo ainda é insuficientemente cultivado, só leio os livros que quero, só ouço a música que quero, não assisto televisão, só converso com quem quero etc. etc.

EDG: Por muitos anos, não tive TV. Agora, com dois filhos pequenos, está difícil controlar o uso do aparelho. Tive de comprar um carro. Vou ter de comprar um celular. Vou ter de fazer upgrade. No computador e em... mim também! A coisa não tem fim... É a religião do progresso, do consumo, da mercadoria, da pressa... Isso não é o capitalismo?

AC: Acho o computador e a Internet duas das maiores coisas que já foram inventadas.

AC: Os jeitinhos etc. são resquícios pré-capitalistas.

EDG: Você continua falando do capitalismo enquanto idéia, mas eu falo do capitalismo REAL. Os jeitinhos, a corrupção etc. são inerentes ao capitalismo: existem em todo o mundo capitalista. A busca desenfreada pelo lucro, pela vantagem leva o cidadão a fazer concessões morais, quando não a cometer delitos e crimes. P.ex., nós somos assaltados todos os dias pelos bancos, para falar de uma instituição eminentemente capitalista. Os caixas eletrônicos são programados para enganar o usuário, p.ex., oferecendo-lhe um produto qualquer na mudança de uma tela para outra: clicou, comprou. A propaganda em geral é mentirosa; não visa a atender uma necessidade, mas a criá-la. Meus filhos só assistem, e muito pouco, à TV Cultura, que, infelizmente, também passou a veicular propaganda: é puro assédio, pura sedução, pura violência.

AC: Vivemos em mundos diferentes. Você vive num mundo terrível e intolerável, e o rejeita in limine. O meu às vezes é terrível, às vezes é maravilhoso, a maior parte do tempo não é nem uma coisa nem outra, mas é tolerável, e acho que ele pode ser melhorado.

AC: Duvido que a sua vida seja
desumana. A minha não é.

EDG: Sim, nossa vida, a minha e a sua, não é "desumana". Mas nós somos a elite. Ali no farol da esquina há uma criança fazendo malabarismo para sobreviver. E se a vida dela é desumana, como pode a nossa não o ser? Você crê mesmo que o capitalismo, um dia, vai eliminar a injustiça social [entre outros problemas]?

AC: Creio que isso é possível. Temos que lutar, politicamente, por isso.

Abraço,
ACicero

Anônimo disse...

Prezado Antonio Cicero,

Pegando fragmentos de discursos: ´no seu embate com um dos colegas, parece-me ressoar em suas idéias algo meio maniqueísta - uma certa paúra advinda de uma possível vinda de um certo marxismo canhestro. Eu penso que as coisas não são tão maniqueístas assim: como num clássico majestoso Corinthians x São Paulo - se não pensarmos em possibilidades até híbridas que possam contemplar sínteses ou outras inserções... Será que ficaremos ad infinitum advogando essas dicotomias já bem desgastadas: esquerda x direita ou Comunismo x Capitalismo? O problema, a meu ver, é esse entrincheiramento que vem a lume dentro de uma caverna platônica - onde não haveria uma tocha possível. E aí a (in) consequente defesa de um dos pólos. Quem já presenciou as experiências no leste europeu ou até mesmo em Cuba, sabe de alguns desconfortos que esse ´tal´de sociolismo ou comunismo poderia nos proporcionar -- e isso também valeria para o can(p)ibalismo ocidental. A idéia de trabalho, se formos analisar numa estrutura diacrônica, tem valorações, efetivamente, diversas. E a idéia de liberdade, embora conceito de difícil definição, perde-se nesses dois sistemas já anteriormente citados. Nascemos como já é sobejamente sabido num mundo simbolicamente construído, e claro que isso jamais seria uma novidade para você, porém e todavia, parece-nos um mundo imutável e bem arraigado em nossos incosncientes coletivos -- isso; o capitalismo parece que se tornou um inconsciente coletivo de nossos tempos -- sendo uma das formas mais arcaizantes da humanidade, embora juvenil em sua estrutura mental... Só mesmo Jung, não Freud, para nos dar conta disso...
grato

Antonio Cicero disse...

AC: Eu já lhe disse que acho que toda religião é idólatra. O absoluto não pode ser nenhuma positividade. Pretender que seja uma positividade já é idolatria, o pior dos pecados.

EDG: Porque você interpreta Deus como um ente, ao modo de Heidegger, e não como o Ser. Pode-se muito bem, ao modo de Fichte, p.ex., compreender Deus como o Absoluto. Você mesmo está dizendo que a idolatria é pecado... segundo a religião cristã. Idolatria é substituir o Absoluto pela matéria, p.ex., ou, pior ainda, pelo poder, pelo dinheiro, pelo sexo etc., ou seja, os ídolos cultuados pela sociedade em geral e até pelo Estado.

AC: Ou Deus é o Absoluto e, nesse caso, não é o Deus pessoal das religiões, ou é o Deus pessoal das religiões, e, nesse caso, não é o Absoluto, mas uma imagem, um ídolo que se coloca no lugar do Absoluto.

EDG: Em primeiro lugar, nem toda religião tem um Deus pessoal. Em segundo, o adjetivo "pessoal", quando referido a Deus, tem um sentido apenas analógico. Que tipo de pessoa pode ser infinita, eterna, onisciente etc.? Quanto às imagens sacras, elas são meros símbolos da divindade, que não o devem substituir – nem no catolicismo.

AC: Como estávamos falando de Deus, é evidente que me refiro aqui às religiões que supõem um Deus pessoal: e essas são as religiões mais importantes no Ocidente. Quanto a analogias, simbolismos etc., são justamente expedientes que tentam salvar o insalvável. A religião pretende dizer coisas muito precisas e definidas sobre como é o mundo, como é Deus, como devemos nos comportar etc.; mas toda vez que se revela a incompatibilidade da razão com qualquer dessas afirmações, ela pretende estar a falar analógica, simbolicamente... Como dizem os ingleses, “you can’t eat your cake and have it too”. “Double binding” não passa de desonestidade intelectual, do tipo que Popper já demoliu há muito. De qualquer modo, o papa Bento XVI diz muito claramente, na encíclica Spe Salvi:

“Non sunt elementa mundi, leges materiae quae tandem terrarum orbem et hominem regunt, sed personalis Deus qui stellas, universum scilicet, moderatur; nec leges materiae vel evolutionis constituunt extremum impulsum, sed ratio, voluntas, amor – Persona. Si vero hanc Personam novimus et Ipsa nos novit, tunc reapse inexorabile elementorum materialium dominium esse desinit extremus impulsus; tunc obnoxii non sumus terrarum orbi nec eius legibus; tunc liberi sumus.”

Traduzo:

“Não são os elementos do mundo, as leis da matéria que no final das contas regem o mundo e o homem, mas um Deus pessoal que regula as estrelas, isto é, o universo; nem as leis da matéria e da evolução constituem a última palavra, mas a razão, a vontade, o amor – uma Pessoa. Se realmente conhecemos essa pessoa e Ela nos conhece, então realmente o domínio inexorável dos elementos materiais deixa de ser a última palavra; então não somos servis ao universo e suas leis; então somos livres”.

Considero tudo isso pura idolatria. Pior: verdadeiro sacrilégio.

EDG: Pois nós estamos chegando a um ponto em que o teísta será tratado como os ateus na Idade Média. Nas universidades a situação já está bem próxima disso: se for religioso não entra, se for de direita não entra, se for idealista... [refiro-me, claro aos professores]. Que raio de sociedade aberta, baseada no mérito, é esta?

AC: Acho o computador e a Internet duas das maiores coisas que já foram inventadas.

EDG: Também acho, e, como sabe, procuro tirar proveito disso.

AC: Vivemos em mundos diferentes. Você vive num mundo terrível e intolerável, e o rejeita in limine. O meu às vezes é terrível, às vezes é maravilhoso, a maior parte do tempo não é nem uma coisa nem outra, mas é tolerável, e acho que ele pode ser melhorado.

EDG: Vivemos no mesmíssimo mundo, ACicero. Não sou o anti-moderno, conservador, que você parece pensar que sou. Do fato de eu defender as tradições pré-modernas não se segue que eu seja um tradicionalista. Na verdade, considero-me um moderno humanista transcendental, como diria Luc Ferry, na linha de Descartes, Rousseau, Kant, Fichte e outros.

EDG: Sim, nossa vida, a minha e a sua, não é "desumana". Mas nós somos a elite. Ali no farol da esquina há uma criança fazendo malabarismo para sobreviver. E se a vida dela é desumana, como pode a nossa não o ser? Você crê mesmo que o capitalismo, um dia, vai eliminar a injustiça social [entre outros problemas]?

AC: Creio que isso é possível. Temos que lutar, politicamente, por isso.

EDG: Sim, temos de lutar contra a miséria e a injustiça, mas não acho que os filósofos devam fazer eles mesmos política.

AC: Nisso, concordo com você. Mas lutamos através, por exemplo, do voto e da crítica.


Abraço,
edg

Antonio Cicero disse...

Wilson,

Minha posição está bem clara no artigo que postei hoje. Como nada do que li no seu comentário afetou os meus argumentos, não tenho nada a adicionar ao referido artigo.

Abraço,
ACicero

Anônimo disse...

Caro ACicero,

AC: Como estávamos falando de Deus, é evidente que me refiro aqui às religiões que supõem um Deus pessoal: e essas são as religiões mais importantes no Ocidente.

EDG: Tudo bem, mas então paremos de falar sobre “a” religião.

AC: Quanto a analogias, simbolismos etc., são justamente expedientes que tentam salvar o insalvável.

EDG: Segundo Cassirer, Eliade, Guénon, Jung e muitos outros estudiosos, o símbolo não se origina de expedientes da nossa consciência. A religião não era uma ideologia.

AC: A religião pretende dizer coisas muito precisas e definidas sobre como é o mundo, como é Deus, como devemos nos comportar etc.;...

EDG: O mais importante nas religiões não é o seu conteúdo dogmático, mas justamente o rito e a moral. Ela não visa, em primeiro lugar, à inteligência, à razão, mas ao sentimento e à vontade. O objetivo das religiões não é esclarecer, mas salvar.

AC: ...mas toda vez que se revela a incompatibilidade da razão com qualquer dessas afirmações, ela pretende estar a falar analógica, simbolicamente... Como dizem os ingleses, “you can’t eat your cake and have it too”. “Double binding” não passa de desonestidade intelectual, do tipo que Popper já demoliu há muito.

EDG: Eu penso justamente o contrário, mas não diria que Popper e os que pensam como ele são desonestos, e sim que são ingênuos e/ou ignorantes. A maioria dos grandes homens não pode ser toda ela desonesta. E se o cristianismo fosse uma má árvore, não teria dados bons frutos. Sem o cristianismo não haveria o ocidente como tal ["Cristandade ou Europa"] ou os direitos humanos, p.ex. Até alguns ateus mais bem informados do que o Popper admitem isso.

AC: De qualquer modo, o papa Bento XVI diz muito claramente, na encíclica Spe Salvi:...

EDG: Você é mais papista do que eu... Mas o trecho que cita não ajuda em nada, pois não esclarece o que vem a ser Pessoa. Acho que já lhe disse o que penso a respeito. O Deus pessoal é o demiurgo de Platão ou o Deus de Eckhart, e não o próprio Bem ou o Supra-Ser ou a Divindade – o Absoluto. Já se trata de uma primeira apreensão ou manifestação, e não do não-manifesto, não-dual etc. É claro que o exoterismo tem de ser, em alguma medida, idólatra, pois é essa a nossa condição de seres finitos. Para nós o infinito só pode se dar no finito.

Mas vamos deixar essa discussão para quando você escrever outro artigo sobre religião, já que para Marx esta não passava de ópio para o povo.

Abraço,
edg

Antonio Cicero disse...

Prezado Sidartha,

Continuo nosso diálogo:

SD: E, já antecipando a síntese de todo o meu argumento, penso que seu engano reside na noção de "ideologia". Aparentemente, para você, ideologia se refere, necessariamente, a todo um universo sistêmico de idéias em planos diversos, já plenamente desenvolvido, amplo e complexo, ou não se refere a nada. Sugiro existir uma gradação aí, que escapa a você.

AC: Vou ser inteiramente sincero. Ando ocupadíssimo, sem tempo para quase nada. Sinto que estamos nos repetindo e que isto não vai levar a nada porque, para você, tornou-se uma questão de honra não reconhecer que estava errado. Essa sua “síntese” já mostra isso, pois, no fundo, transforma a discussão num problema verbal. Levando a sua “gradação” às últimas conseqüências seria possível dizer que até um peido já é ideologia. É o método escolástico de discussão: nesse caso, por definição, você não poderia deixar de ter razão. Assim, não me interessa continuar esta discussão. Mas vou, pela última vez, resumi-la.
Para mim a questão não se reduz a palavras. “Ideologia” é um conceito que nunca foi plenamente desenvolvido por Marx, e que adquiriu diferentes sentidos ao longo da sua obra. Além disso, Engels, Kautsky, Lênin, Lukacs, Gramsci etc. acabaram por redefini-lo. Entretanto, no sentido em que o tenho usado – e que, como é o mais comum hoje, achei que não precisava definir (mesmo porque não cabem tais definições em artigos de jornal) – ela significa uma racionalização dos interesses de determinada classe ou categoria social. Em outras palavras: ela reflete os interesses de determinada classe social. Quando se trata da racionalização dos interesses da classe dominante, então ela tende a “naturalizar” as relações sociais que correspondem aos seus interesses. É evidente que, se a ideologia reflete os interesses de uma classe social, então esses interesses em si ainda não são ideologia: do contrário teríamos uma petição de princípio: a ideologia refletiria a própria ideologia.
Pois bem, a primeira tese que defendi não é de Marx (não sigo catecismo algum, e estou longe de pensar que Marx seja o pensador mais importante do mundo: como filósofo, o próprio Feuerbach é mais importante do que ele; a Hegel e a Kant, não se pode nem compará-lo). Mesmo não sendo de Marx, porém, o que defendi não é incompatível com o que o Marx maduro defendia em suas obras científicas, principalmente em “O capital”. Marx teria compreendido – e talvez até tenha chegado a pensar – o que afirmo, mas a verdade é que as ambições políticas e a luta ideológica o desviaram da pura racionalidade. Refiro-me à tese que tanto deixa os marxistas-leninistas indignados, de que o modo de produção capitalista é capaz de funcionar sem necessidade de que nenhuma ideologia particular seja compartilhada pela maior parte da sociedade. Para mim, isso é simplesmente um fato.
Não tendo compreendido o que eu dizia, mas com a arrogância dogmática típica dos marxistas-leninistas, a Denise Abramo me enviou um e-mail em que decretava que “o capitalismo necessita especificamente da ideologia por ele mesmo forjada” etc. Não era isso que estava em questão no meu artigo. Mesmo que fosse verdade que “o capitalismo necessitava da ideologia por ele mesmo forjada”, isso em nada invalidaria o que eu havia afirmado. Era concebível, por exemplo, que os capitalistas necessitassem da sua ideologia, sem que isso significasse que toda a sociedade tivesse que compartilhá-la. Entretanto, o fato é que não é verdade que o capitalismo não exista sem a sua ideologia, do ponto de vista de Marx. Seria até possível dizer que, para se tornar o modo de produção dominante, o capitalismo necessita da ideologia burguesa; mas acontece que o modo de produção capitalista não é dominante desde que surge. O capitalismo surge como um modo de produção subordinado, quando se estabelecem, numa formação social dominada pelo modo de produção feudal, relações de produção capitalistas. O capitalista surge, portanto, numa formação social dominada por um modo de produção que lhe é hostil. Como o Catolicismo – a ideologia feudal – era totalitária, ela era a religião-ideologia do próprio capitalista. Foi preciso tempo e ampliação do capitalismo, para que os burgueses conseguissem produzir ideologias que racionalizassem os – nas palavras de Marx – “interesses e necessidades previamente surgidos”. Do mesmo modo, na produção capitalista, houve operários bem antes de se desenvolver uma ideologia operária.

Mas vamos aos textos que você aduz em defesa da sua tese.

SD: Comecemos pela apresentação sumária do método de Marx ("3. O método da Economia Política" contido na Introdução de "Para a Crítica da Economia Política"):
"Quando estudamos um dado país [ou sociedade] do ponto de vista da Economia Política, começamos por sua população, divisão em classes, repartição cidade/campo, ramos da produção, preço das mercadorias etc. Parece que o correto é começar pelo real e pelo concreto (...). Se começássemos pela população, teríamos uma representação [em princípio] caótica do todo (...). Através de uma análise [por meio de] abstrações cada vez mais tênues, [atingiríamos] determinações as mais simples. Chegados a este ponto, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso [partindo das abstrações isoladoras], até dar de novo com a população, mas desta vez não com uma representação caótica [e empiricista] de um todo, porém como uma rica TOTALIDADE DE DETERMINAÇÕES E RELAÇÕES diversas".
"O concreto é concreto porque é a SÍNTESE DE MUITAS DETERMINAÇÕES (...)."

AC: Desculpe, Sidartha, mas a própria escolha desse texto mostra que você não o compreendeu. Trata-se de um texto de metodologia e epistemologia, que nada tem a ver com a nossa discussão. Na realidade, Marx está criticando o método empirista dos economistas ingleses, que supunham que tinham de começar o estudo pelo empiricamente dado, como a população. Ora, o empiricamente dado, a população, se revela uma abstração, quando isolado das determinações conceituais que permitem entendê-lo. Tenho certeza de que não foi por má-fé, mas por não ter entendido o texto – suponho que você não tenha formação filosófica – que você tenha interrompido a citação na frase que diz “parece que o correto é começar pelo real e pelo concreto”. Ocorre que fundamental é a frase subseqüente, que você omitiu: “No entanto, a uma consideração mais atenta, isso se mostra falso”. O certo, para Marx, não é ir do concreto material ao pensamento abstrato, mas construir, a partir das determinações abstratas do pensamento, o concreto de pensamento. Este último é que é a síntese de múltiplas determinações. Assim, é a partir de categorias como trabalho, divisão do trabalho, valor de troca, mais-valia, modo de produção etc. que se chega, no final, a compreender o Estado, por exemplo, e o mercado mundial. Segundo Marx, o erro de Hegel havia sido pensar que, como se vai do abstrato ao concreto, o abstrato produz o concreto, isto é, o pensamento produz a matéria. Marx diz que o concreto que o pensamento produz não é um concreto material, mas um concreto de pensamento. Espero que você tenha compreendido que isso nada tem a ver com a discussão em pauta.

SD: De A Ideologia Alemã vem a tese de que, para Marx (e Engels), "não conhecemos senão uma ciência, a da história", termo que faz sentido ao se constatar que:
"A maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de mais nada, da natureza dos meios de existência (...) [Contudo] Não se deve considerar esse modo de produção sob esse único ponto de vista, ou seja, ENQUANTO REPRODUÇÃO DA EXISTÊNCIA FÍSICA dos indivíduos. AO CONTRÁRIO, ele representa, já, um modo determinado da atividade desses indivíduos, UM MODO DE VIDA determinado. A MANEIRA COMO OS INDIVÍDUOS MANIFESTAM [IDEALMENTE] SUA VIDA REFLETE EXATAMENTE O QUE ELES SÃO [material-concretamente]".

AC: Esse texto não está tão distante da conversa quanto o anterior, mas não prova o que você quer. Trata-se apenas da expressão do materialismo de Marx. A última sentença, que você põe em caixa alta, não é bem assim. Ela diz simplesmente, no original: “Assim como os indivíduos exprimem [äussern] a sua vida, assim eles são” (Wie die Individuen ihr Leben äußern, so sind sie). Isso é praticamente um truísmo, para quem não é idealista. Sartre diz coisa parecida. O que você pôs entre colchetes é interpretação sua, mas ainda que fosse de Marx, não provaria o que você quer. E a frase seguinte diz: “Portanto, o que os indivíduos são depende das condições materiais de sua produção”.

SD: Em consonância com tal perspectiva, aparece, nas Teses Sobre Feuerbach: "A essência do homem não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado [com isso Marx e Engels refutavam a idéia de essência humana como essência religiosa em Feuerbach]. Na sua realidade, ela é O CONJUNTO DAS RELAÇÕES SOCIAIS".

AC: Essa citação, de novo, nada tem a ver com a nossa discussão. Explico. A diferença com Feuerbach é outra. O que Feuerbach achava é que a religião consistia na alienação da essência do homem, que devia ser recuperada. Ora, para Marx, não há essência humana a-histórica. Para Marx, o ser do homem é o conjunto das suas relações sociais. Isso nada tem a ver com a nossa discussão.

SD: Conforme Lukács (um cara que, como dizemos nós mineiros, estudou "um tiquim" Marx), "O jovem Marx já havia visto e proclamado que toda sociedade constitui uma totalidade [em nota de rodapé, ele aponta uma citação de Marx contida em A Miséria da Filosofia]".

AC: Lukacs estudou mais Hegel do que Marx. De todo modo, é um truísmo que toda sociedade constitui uma totalidade; ou não seria UMA sociedade. A formação social brasileira, por exemplo, é uma totalidade. Isso não impede que, mesmo sendo o modo de produção capitalista dominante nela, ela comporte também traços do modo de produção esclavagista, do modo de produção feudal e até de outros modos, não categorizados, entre os índios; nem impede que o senhor de escravos pense como capitalista e o capitalista seja marxista. Você nunca ouviu falar do “Bom Burguês”, que era marxista?

SD: Em O Capital, já como corolário do método marxiano do modo de produção como sistema total, ele lembra que: "o valor da força de trabalho CONTÉM UM ELEMENTO HISTÓRICO E MORAL".

A última citação mostra, de modo claro e inequívoco, a mútua compenetração entre o econômico e o extra-econômico no ser social no esquema teórico marxiano.

AC: É lamentável que você diga isso, porque, de novo, mostra que nada compreendeu do texto que cita. O que Marx está dizendo é que o valor da força de trabalho é dado pelo mínimo de mercadorias suficientes para reproduzir a vida dele e da sua família; esse mínimo, entretanto, não é um absoluto fixo para sempre, para todas as sociedades, mas varia, de sociedade para sociedade, segundo vários fatores, como o clima, os hábitos, a moral etc. Isso nada a ver com o que está em pauta.

SD: Feito o meio de campo, vamos agora acabar com essa ambiguidade e confusão que pairam quando você menciona o termo "ideologia" (finalmente definido por você como "sistema de idéias"). De modo "althusseriano", você secciona (transformando em estruturas) relações de produção, ideologias e etc (conforme a sua seguinte passagem: "Para Marx, as forças produtivas entram em contradição com relações de produção; e as relações de produção entram em contradição com as ideologias etc").

Ora, antes de mais nada as ideologias se confundem com as relações sociais de produção, já que estas não são outra coisa que não um complexo idealístico que expressa o seu ser (material) social histórico.

AC: Isso mostra que você não sabe o que são as relações sociais de produção. Você poderia ler com mais cuidado a Ideologia Alemã, que você cita. Nela, Marx explica:

“A produção da vida, tanto da própria no trabalho quanto da alheia na procriação, agora aparece como uma relação dupla: por um lado como uma relação natural, por outro como uma relação social – social entendemos no sentido de ser a cooperação de vários indivíduos, seja em que condições for, seja por quanto tempo, seja para que fim.”

Evidentemente portanto, que, para Marx, as relações sociais não são um “complexo idealístico”, pois incluem as relações de produção.

Agora, sobre a minha afirmação das contradições entre forças produtivas e relações de produção etc., cito também a Ideologia Alemã, no mesmo capítulo:

“Esses três momentos, as forças de produção, o estado da sociedade e a consciência podem e têm que entrar em contradição um com o outro”.

Sidartha, o resto do seu comentário apenas reitera o que você já afirmara antes, que eu considero já ter refutado. Acho que sua teima vem de orgulho ferido. Sinto muito. Como não tenho tempo para ficar me repetindo, e já estou cansado deste assunto, decidi não responder mais a comentário nenhum sobre esse assunto. Da minha parte, esta discussão está encerrada. Sugiro que você e a Denise organizem um grupo de estudos.

Abraço,
Antonio Cicero

Sidartha Silva disse...

###################
ANTONIO CICERO
ela [IDEOLOGIA] significa uma racionalização dos interesses de
determinada classe ou categoria social. Em outras palavras: ela
reflete os interesses de determinada classe social. Quando se trata da
racionalização dos interesses da classe dominante, então ela tende a
"naturalizar" as relações sociais que correspondem aos seus
interesses. É evidente que, se a ideologia reflete os interesses de
uma classe social, então esses interesses em si ainda não são
ideologia: do contrário teríamos uma petição de princípio: a ideologia
refletiria a própria ideologia.
(...)
o fato é que não é verdade que o capitalismo não exista sem a sua
ideologia, do ponto de vista de Marx.
(...)
Era concebível, por exemplo, que os capitalistas necessitassem da sua
ideologia, sem que isso significasse que toda a sociedade tivesse que
compartilhá-la.
(...)
o modo de produção capitalista é capaz de funcionar sem necessidade de
que nenhuma ideologia particular seja compartilhada pela maior parte
da sociedade
###################

Cicero, os trechos acima permitem ver que, neste último e-mail, você
se perdeu completamente (nem me refiro a essas interpretações
pitorescas de Marx, ou aos assassinatos à lógica que você comete).

Já que você se fechou numa definição de ideologia específica, me concentro nas suas próprias definições (de ideologia, de capitalismo etc).

Sempre nos seus termos, pergunto: como uma ideologia pode ser
dominante se não há a necessidade de que toda ou a maior parte da
sociedade incorpore esta ideologia? Você já respondeu: neste caso não
se tratará de ideologia, pois toda ideologia, conforme você, por
definição é ideologia dominante (de uma classe/segmento social
dominante), ou não será ideologia (não foi isso que você, aliás, me
ensinou, ao mostrar como eu estava errado em supor que havia ideologia
nos restritos focos de capitalismo nascente? Pois é. Supondo que você
está certo, veremos onde é que essa certeza vai te levar).

Dos seus malabarismos argumentativos extrai-se o seguinte:

(1) Só se pode falar em ideologia se ela for a racionalização/reflexão
dos interesses da classe dominante, e como tal correspondente a uma
"naturalização" dos mesmos pelo conjunto da sociedade.

Por sinal, já que você pensa assim, nem precisava ter entrado na
discussão sobre ideologia e capitalismo, pois se (para você):

(2) "O capitalismo não necessita de uma ideologia capitalista",

ou

(2) "O modo de produção capitalista é capaz de funcionar sem
necessidade de que nenhuma ideologia particular seja compartilhada
pela maior parte da sociedade".

Então - conforme (1) -, a rigor ele não necessita de ideologia nenhuma.

Deixaremos de lado o assassinato à lógica que você cometeu (primeiro
me ensina que ideologia só pode ser dominante, depois assume o meu
próprio ponto de vista - o dos capitalistas que vão seguindo com os seus focos de ideologiazinha particular, da qual em princípio talvez só eles precisassem de fato, pois que nem todo mundo precisa seguir uma ideologia capitalista dominante etc. Ou seja, você fala que a ideologia só pode ser dominante, mas ao mesmo tempo lembra que ela pode ser restrita aos capitalistas, e portanto não dominante etc. Um assombro...).

Mas, se para você o capitalismo não necessita de ideologia alguma
(pois se necessitasse imediatamente estaríamos falando de ideologia
dominante, como você se cansou de tentar me ensinar), o que fez do
capitalismo o sistema social dominante?

Se não foi a ideologia (pois que essa, pra você, é convencimento e
imposição forçada de valores a uma maioria social, e o capitalismo não precisa disso...), pode ter sido, quem sabe, uma intrínseca propriedade do capitalismo em satisfazer as necessidades humanas sem precisar coagir nenhum
indivíduo no plano ideológico. Provavelmente as próprias e inerentes faculdades do capitalismo em proporcionar fartura material e liberdade espiritual teriam conquistado o coração e a mente de todos aqueles que passaram, então, a aceitar, tranquila, consciente e decididamente, viver sob a égide das sociedades capitalistas.

Só existe, portanto, o capitalismo como dimensão estritamente
produtiva, um ou outro eco idealístico daquela dimensão e uma
liberdade infinita de formas de consciência também infinitamente
diversas. É o próprio reino da liberdade!

Mas já que é assim, por que então foram necessários séculos de
violência, assassinato e coerção de massas populacionais enormes,
graças a leis de cercamento da propriedade ou de privatização de
espaços anteriormente públicos (como florestas, por exemplo, quando madeira e terras passaram a ser ativo econômico), e de leis contra a "vadiagem", dirigida às massas já livres de meios de trabalho ou de propriedades (ou seja, prontas para irem para as fábricas venderem o que lhes restava, a força de trabalho) causada, a propósito, pela
própria política de expulsão em massa dos campos submetidos à
enclosure.

Deveremos ignorar tudo isso, pois, afinal, nem no início e nem na
atualidade dos tempos do capitalismo foi necessário que os
capitalistas forçassem toda ou a maior parte da sociedade a
compartilhar sua "ideologia", que só pode vir entre aspas por não ser, de fato, uma ideologia (nos seus termos, de ideologia dominante etc)?

Sua última mensagem me fez pensar que, na verdade, você diz isso do
capitalismo - esse mundo da ausência de uma ideologia dominante - por não ter muita noção do que significa a ideologia capitalista, e do que foi necessário fazer para que ela fosse efetivamente "naturalizada" pelos indivíduos (naturalizada a ponto de alguém achar que ela nem existe como hegemônica/dominante):

- A disposição subjetiva para o trabalho (e para a sua consequente
intensificação), por exemplo, já tido como fim em si mesmo, como valor
auto-referido (o trabalho dignifica etc). O que, a propósito, foi
explorado por Weber. Contudo, o que Weber faz "por cima" (enfatizando
as possíveis conexões causais entre esferas moral/religiosas e o ethos
capitalista), tanto quanto o que Marx faz "por baixo" (enfatizando o
processo histórico de construção brutal das condições concretas
necessárias ao desenvolvimento do capitalismo, como uma massa de
indivíduos livres de tudo, exceto dos próprios corpos, um grupo de
proprietários do conjunto dos meios de produção, as leis que forjaram,
a ferro e sangue, nos indivíduos a "liberdade" de irem vender sua
força de trabalho aos empregadores etc).

- O fomento (científico, inclusive) ao consumo ilimitado, outro
exemplo, condicionado à existência de um modo de produção em massa de
mercadorias padronizadas, nos fazendo descobrir necessidades antes
inimagináveis pelos bárbaros do passado (como, por exemplo,
danceterias sofisticadas para cachorros de estimação, guloseimas com
"tempero" de fios de ouro, geladeiras com 537 funções novas, em
substuição à geladeira com 536 funções do passado etc).

- A incorporação subjetiva do caráter inquestionável da existência da
propriedade privada dos meios de produção, bem como das classes
sociais (empregados, empregadores) que correspondem àquela forma
histórica de divisão social do trabalho; a aceitação forçada/resignada
do fato de que só existe uma forma de sobreviver, que é por via do
mercado (vendendo ou comprando força de trabalho, seja você autônomo,
biscateiro, assalariado formal, informal etc), um último exemplo.

Dizer que "o modo de produção capitalista é capaz de funcionar sem
necessidade de que nenhuma ideologia particular seja compartilhada
pela maior parte da sociedade", equivale a dizer que aqueles elementos
acima dispostos, e que fazem parte de qualquer definição de "ideologia
capitalista", não necessariamente devem ser contínua e
sistematicamente bombardeados nas mentes de cada um e do maior número
possível de indivíduos - e não apenas dos capitalistas.

Pena que só agora fui entender a essência do seu argumento agora (eu sou meio devagar pra entender algumas coisas). Teria me poupado muito tempo (meu, seu e dos que acompanham o seu blogue).

Abraços,
Sidartha

Anônimo disse...

Caro Cicero,

A fim de sintetizar minha última intervenção no debate, que de fato já cansou a beleza dos viventes, resumo em três parágrafos a minha última crítica a você. Você cometeu dois atentados, um contra a lógica e o outro contra a história. E no último parágrafo explico que ser reformista não implica em ser cego, ou em ver as coisas como elas não são de fato.

O primeiro atentado foi contra a lógica. Você trabalha com uma noção de ideologia que, conforme a sua própria definição, só pode ser "dominante" (e, até que se alcance tal condição, não caberia falar em ideologia). Ao mesmo tempo, porém, afirma que a ideologia pode ser restrita aos capitalistas e nunca à maioria da sociedade - portanto, não se trata de ideologia dominante, ou nem mesmo de ideologia, conforme a sua própria definição. Mas, se é assim, como você pode falar em "ideologia capitalista"? Conforme você mesmo, você não poderia. Pois ideologia é ideologia dominante, mas a ideologia capitalista, embora dominante (por ser ideologia), não é dominante (?!), porque o capitalismo não necessitaria disso. Enfim, você se contradiz espetacularmente.

E o segundo atentado é contra a história. Se o capitalismo não necessita de uma ideologia dominante, como se explica então a história de séculos de violência com as quais se forjaram as condições objetivas e subjetivas necessárias à consecução do próprio sistema capitalista (por exemplo, o processo de constituição de uma massa de indivíduos totalmente despossuídos de meios de produção, exceto a sua própria capacidade de trabalho; a concentração destes mesmos meios de produção na forma de propriedade privada dos mesmos por um grupo de empregadores; a forja não apenas da disposição como da assimilação da noção de trabalho como um fim ou valor em si mesmo nobre, dignificante etc)? E como se explica a atual dinâmica das sociedades capitalistas, com o contínuo bombardeamento, sobre as cabeças dos indivíduos, dos fundamentos da sociedade de mercado(consumismo, intensificação dos ritmos e tempos de trabalho etc)?

Eu sou reformista, sim, e não revolucionário. Mas nem por isso eu sou obrigado a ser cego ou a ver a sociedade capitalista como de fato ela não é - suposta promotora da liberdade de pensamento, da diversidade de modos e concepções de vida não mercantilizados etc. Se tais coisas existem, existem APESAR do sistema capitalista, e não por causa dele ou de sua suposta generosa condição de "sistema social sem ideologia dominante" (e veja que curioso: não há ideologia capitalista dominante, mas tudo que é fundamental em nossa sociedade segue firmemente essa ideologia "não dominante":mercado, assalariamento, lucro, consumo... Deve ser só uma coincidência...)

Abraços e adeus,
Sidartha

Antonio Cicero disse...

Caro Sidartha,

Como já adverti antes, perdi o interesse nas suas interpretações delirantes das minhas palavras e das de Marx. E meu tempo é precioso. Interprete como quiser.

Abraço,
Antonio Cicero

Stefanie disse...

Olá Cícero.

Tive o prazer de conhecer o seu trabalho pelo meu professor de Jornalismo Impresso da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, onde curso o meu 4° ano de jornalismo.

Nós produzimos um jornal distribuído gratuitamente em Campinas e gostaria muito de entrevistá-lo para o nosso jornal.

A entrevista pode ser feita por telefone e prometo não tomar muito o seu tempo.

Desde já agradeço,

Stefanie Archilli

Antonio Cicero disse...

Prezada Stefanie,

Darei a entrevista com prazer, mas prefiro fazê-lo por e-mail, pois gosto mais de escrever do que de falar. Poste aqui o endereço do seu e-mail. No lugar de publicá-lo, escreverei para ele, de modo que você terá o endereço do meu, para fazer a entrevista.

Um abraço,
Antonio Cicero

Aetano disse...

Caro Cicero,

Vc é impressionante!
Quanto aos diálogos aqui travados, gostaria apenas de observar que não deixa de ser sintomático q a discussão sobre Deus tenha sido menos acalorada que a discussão sobre Marx.

Abraços

Aetano