Em Póvoa de Varzim um grupo de escritores conversava casualmente um dia sobre os grandes inícios de romances. Entre os mais conhecidos mencionaram-se, é claro, o de Dom Quixote, o da Recherche, o de Moby Dick, o de Brás Cubas, o de L’Étranger etc. A conversa me levou a pensar nos grandes inícios também de obras filosóficas, como o da Metafísica de Aristóteles ou o do Discours de la méthode, de Descartes, e me lembrou uma coisa que eu já havia quase esquecido. É que, décadas atrás, ao ler o livro Beginnings, de Edward Saïd, fiquei decepcionado ao constatar que ele sequer mencionava um início que me parecia pelo menos tão notável quanto qualquer outro: o da Ciência da lógica, de Hegel. É claro que Saïd não era filósofo e se preocupava sobretudo com a literatura, mas, a meu ver, o começo da Ciência da lógica não é apreciável apenas enquanto filosofia, de modo que merece figurar em qualquer discussão sobre inícios importantes ou geniais. A bem da verdade, é preciso também reconhecer que não me refiro aqui ao começo absoluto do livro, uma vez que abstraio dos seus prefácios e da sua introdução; entretanto creio que, mesmo sem ser o início literal do livro, o primeiro capítulo da primeira parte do primeiro livro da Ciência da lógica pode e deve ser considerado como o início da LÓGICA propriamente dita de Hegel. Esse começo compreende, segundo o esquema dialético, três partes: A. Ser; B. Nada; e C. Devir. Não sou hegeliano e penso – como aliás explico no meu livro O mundo desde o fim – que a terceira parte, não obstante sua crucialidade para toda a dialética hegeliana, é simplesmente sofística. Entretanto, o que aqui me interessa é chamar atenção para as partes A. e B., que, conjuntamente, considero como um dos mais impressionantes princípios de um livro e um dos exemplos supremos do sublime filosófico. Sei que, longe de ser uma novidade, trata-se de um clássico que os filósofos, os professores e os estudantes de filosofia certamente já terão lido, relido e comentado, mas acredito que jamais o poderiam fazer em demasia; e que as outras pessoas provavelmente lucrarão com a leitura, ao menos uma vez na vida, do breve princípio desse grande e difícil livro. Ei-lo, primeiro em tradução para o português e, a seguir, no original alemão.
C.W.F. Hegel
Ciência da Lógica
Primeiro Livro
Primeira Parte
Primeiro Capítulo
A. Ser
Ser, ser puro, – sem qualquer outra determinação. Em sua imediaticidade indeterminada ele é igual apenas a si mesmo e também não é desigual a outra coisa, destituído de distinção interna ou externa. Através de qualquer determinação ou conteúdo que o diferenciasse internamente ou que o supusesse como diferente de outra coisa, ele perderia sua pureza. Ele é indeterminação e vazio puros. – Não há nada nele a ser contemplado, se é que se pode aqui falar de contemplação; ou então ele é só essa pura e vazia contemplação mesma. Tampouco há algo nele a ser pensado, ou então ele é do mesmo modo só esse puro pensamento. O ser, o imediato indeterminado é na verdade nada, e não mais nem menos que nada.
B. Nada
Nada, nada puro é simples igualdade consigo mesmo, perfeito vazio, ausência de determinação e conteúdo; em si mesmo, indiferenciação. – Porquanto contemplação ou pensamento possam aqui ser mencionados, vale como uma diferença se algo ou se nada é contemplado ou pensado.
Se são diferentes, então nada contemplar ou pensar tem um significado; logo nada é (existe) em nossa contemplação ou pensamento; ou melhor, ele é a contemplação ou o pensamento vazio mesmo, a mesma contemplação ou pensamento vazio que o próprio ser. – Nada é, portanto, a mesma determinação, ou melhor, a mesma indeterminação, que o puro ser e, com isso, simplesmente o mesmo que o puro ser.
Wissenschaft der Logik
Erstes Buch
Erster Abschnitt
Erstes Kapitel
A. Sein
Sein, reines Sein, - ohne alle weitere Bestimmung. In seiner unbestimmten Unmittelbarkeit ist es nur sich selbst gleich und auch nicht ungleich gegen Anderes, hat keine Verschiedenheit innerhalb seiner noch nach außen. Durch irgendeine Bestimmung oder Inhalt, der in ihm unterschieden oder wodurch es als unterschieden von einem Anderen gesetzt würde, würde es nicht in seiner Reinheit festgehalten. Es ist die reine Unbestimmtheit und Leere. - Es ist nichts in ihm anzuschauen, wenn von Anschauen hier gesprochen werden kann; oder es ist nur dies reine, leere Anschauen selbst. Es ist ebensowenig etwas in ihm zu denken, oder es ist ebenso nur dies leere Denken. Das Sein, das unbestimmte Unmittelbare ist in der Tat Nichts und nicht mehr noch weniger als Nichts.
B. Nichts
Nichts, das reine Nichts; es ist einfache Gleichheit mit sich selbst, vollkommene Leerheit, Bestimmungsund Inhaltslosigkeit; Ununterschiedenheit in ihm selbst. - Insofern Anschauen oder Denken hier erwähnt werden kann, so gilt es als ein Unterschied, ob etwas oder nichts angeschaut oder gedacht wird. Nichts Anschauen oder Denken hat also eine Bedeutung; beide werden unterschieden, so ist (existiert) Nichts in unserem Anschauen oder Denken; oder vielmehr ist es das leere Anschauen und Denken selbst und dasselbe leere Anschauen oder Denken als das reine Sein. - Nichts ist somit dieselbe Bestimmung oder vielmehr Bestimmungslosigkeit und damit überhaupt dasselbe, was das reine Sein ist.
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5 comentários:
Olá,
continuo às voltas com as implicações filosóficas da hipótese de António Damásio, O Erro de Descartes, o individual e o universal.
“Das Sein, das unbestimmte Unmittelbare ist in der Tat Nichts und nicht mehr noch weniger als Nichts.” vem a calhar:
Para Descartes, o “eu”, isto é a alma através da qual somos o que somos, é distinta do corpo. Para Descartes, a alma não só existiria como continuaria a ser o que é com ou sem corpo.
Para António Damásio, a evidência actual demonstra que o estado do corpo é qualificador - determina a percepção que temos daquilo que está a acontecer (ou daquilo que recordamos). Esta qualificação, atribuição de sofrimento ou prazer, por sua vez, determina a forma como reagimos: agimos com base num juízo feito a partir do estado do nosso corpo.
Um pulinho à frente, então:
se a consciência, (eu sentir-me “eu”), é uma experiência subjectiva, prq depende da forma como eu penso, que depende da forma como eu sinto, que depende do mEU corpo, podemos dizer: a experiência individual é universal – a minha experiência de consciência é igual à dos outros todos.
E se alguém argumentar:
se a consciência, (eu sentir-me “eu”), é uma experiência subjectiva, prq depende da forma como eu penso, que depende da forma como eu sinto, que depende do mEU corpo, podemos dizer: a experiência de cada um é única e por isso nada é universal.
Respondo:
precisamente, Nichts ist (..) was das reine Sein ist.
E assunto arrumado ; )
abraço, filipa.
caro antonio, esse papo de SER e NADA me lembrou o 1º peirceano. teria a ver?
abraços
Paulo,
Creio que tem a ver sim. Em primeiro lugar, tanto a lógica de Hegel quanto as meta-categorias de Peirce (primeiridade, secundidade e terceiridade) se baseiam, de diferentes maneiras, na forma triádica das categorias kantianas. Em segundo lugar, Peirce conhecia a lógica de Hegel, pensador que ele inicialmente desprezava, mas que, com o tempo, passou a estudar e admirar cada vez mais.
Parece-me, porém, que, enquanto as categorias de Peirce são fenomenológicas, aplicando-se, em primeiro lugar, à análise da experiência, de modo que a primeiridade pode ser concebida, por exemplo, como uma qualidade independente de qualquer relação, o SER da lógica de Hegel é o resultado puramente lógico da abstração absoluta, destituído de toda determinação qualitativa. É por essa razão que ele se revela idêntico ao NADA, o que não poderia ser dito da primeiridade.
valeu, antonio!
brigadão pela resposta.
apesar de eu ser totalmente ignorante em filosofia, me parece estranho duas coisas de nomes diferentes (SER e NADA) serem consideradas "iguais".
não seria um contra-senso? ou, no mínimo, pouco lógico?
ou o SER seria apenas o NADA em negativo?
como dois irmãos gêmeos. só q um negro e outro branco.
desculpa as bobagens. é que o assunto é realmente fascinante e não resisti a meter o bedelho.
abrações
Ser-ei-nada talvez? É isso? bjs
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