Agradeço a Adriano Nunes por me ter chamado a atenção para um texto -- postado por nosso amigo comum Domingos da Mota -- que o grande poeta português Alexandre O'Neill escreveu sobre Bob Dylan mais de quarenta anos atrás:
"Alexandre O'Neill: "O Fanhoso de Minnesota"
Mais do que uma característica vocal, a "fanhosez" (real ou por mim imaginada?) de Bob Dylan é uma qualidade estilística alimentada por uma recusa, um a contrapelo de quem sabe, muito conscientemente, conter-se na efusão do sentimento e, até, "desmentir" no cantar a palavra que canta.
Não que ele desminta a palavra a nível do conceito e da "mensagem". O que acontece é que Dylan a rejeita como lugar-comum cantabile, como repositório-comum de sentimentos pré-catalogados e como air de bravoure. Diríamos que Dylan não maiusculiza nada. As massas verbais que, sem ornatos, debita dão conta de muita coisa bela, grande, divertida ou terrível, mas a força comunicante do trovador está, principalmente, no partido que ele tira da monotonia, repetição e progressão "fanhosas" de um texto maravilhosamente aliado à música. Este é um caminho de voluntária pobreza.
Um mínimo de suporte e de efeitos, para um máximo de comunicação verbal. "Sentir? Sinta quem ouve!", apetece dizer, parafraseando Fernando Pessoa, a propósito do discurso de Bob Dylan.
Isso a que eu chamo de "fanhosez", que musicalmente deve ter uma explicação, muito em particular no campo da balada, ganha em Dylan as características um estilo. Para muitos, tal estilo não passa de maneirismo. Mas Dylan sabe, com e depois de Woody Guthrie, de Pete Seeger e Brassens, que a palavra só move mundos quando é entendida na sua integridade. E Dylan é, também, um excelente poeta, isto é, alguém capaz de entender que "o lirismo é o desenvolvimento de um protesto".
Do "fanhoso" do Minnesota não se poderá dizer, como Flaubert de um cantor de ópera sua criatura: "Havia nele algo de cabeleireiro e de toureiro".
Ponham nele os ouvidos certos baladeiros portugueses e espanhóis que fazem das palavras vazadouros das mais simplesmente sentimentos.
in: Jornal A Capital, 1 de Janeiro de 1974
5 comentários:
Cicero,
Viva! Viva!
Beijos,
Adriano Nunes
Caro Antonio Cícero,
Citando as fontes, partilhei este texto que colhi na cronologia da Prof. Maria do Carmo Sequeira, do Facebook, e que lhe foi enviado por Luís Américo Fernandes.
Grato pela sua divulgação.
Abraço,
DM
Caro Cicero,
A Maria Antónia Oliveira (autora da edição das prosas de Alexandre O'Neill) apontou, nos comentários a esse texto publicado num jornal há poucos dias, duas gralhas. Transcrevo um excerto do comentário e o link para o artigo de jornal onde foi publicado.
"Este texto tem duas gralhas e uma delas que interfere na compreensão do texto — "façanhez" em vez de "fanhosez". Foram buscar o texto à net, onde circula com estas gralhas. Porém, a informação da primeira publicação em jornal não a tiraram do mesmo sítio, mas de alguém que partilhou uma foto que fiz deste texto, sem gralhas, onde constava esta data. Enfim, para facilitar, foi copy / paste e nada de verificar. Jornalismo não é isto. Não estão a fazer um bom trabalho. E não custava nada fazê-lo. Toda a gente sabe que os textos da net não são fiáveis.
Este texto, tal como as demais prosas de Alexandre O'Neill, foram editadas por mim para a Assírio & Alvim. "O Fanhoso do Minnesota" está no livro "Uma Coisa em Forma de Assim" (2004)."
http://sol.sapo.pt/noticia/527579/-o-fanhoso-do-minnesota
Tenho uma cópia do texto (em imagem) que, se quiser, lhe posso enviar por email.
Cumprimentos,
Sandra
Obrigado, Sandra. Curiosamente, a palavra "fanhosez" está correta, na sua primeira ocorrência, no texto. Acabo de corrigir a segunda ocorrência.
Atenciosamente
Caro Antonio Cicero,
Pelo que me cabe, e porque foi através de uma partilha que fiz no Facebook, que Adriano Nunes lhe fez chegar este texto de Alexandre O'Neill, agradeço a Sandra A. a correcção das gralhas. Só que, fui verificar, e no texto que partilhei não existe a palavra "façanhez", mas sim "fanhosez", duas vezes.
Obrigado.
Abraço,
DM
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