24.8.16

Manuel António Pina: "Neste preciso tempo, neste preciso lugar"




Neste preciso tempo, neste preciso lugar

No princípio era o Verbo
(e os açucares
e os aminoácidos).
Depois foi o que se sabe.
Agora estou debruçado
da varanda de um 3º andar
e todo o Passado
vem exactamente desaguar
neste preciso tempo, neste preciso lugar,
no meu preciso modo e no meu preciso estado!

Todavia em vez de metafísica
ou de biologia
dá-me para a mais inespecífica
forma de melancolia:
poesia nem por isso lírica
nem por isso provavelmente poesia.
Pois que faria eu com tanto Passado
senão passar-lhe ao lado,
deitando-lhe o enviesado
olhar da ironia?

Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?
Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Lá em baixo, na rua, passa para sempre
gente indefinidamente presente,
entrando na minha vida
por uma porta de saída
que dá já para a memória.
Também eu (isto) não tenho história
senão a de uma ausência
entre indiferença e indiferença.



PINA, Manuel António. "Neste preciso tempo, neste preciso lugar". In:_____. "Nenhuma palavra e nenhuma lembrança". In:_____. Poesia reunida. Lisboa: Ass´rio & Alvim, 2001.

Um comentário:

Anônimo disse...

Maravilhoso!!! obrigado ... não conhecia o poeta.

Vinicius