7.2.14

Adriano Nunes: "Linchamentos e a banalização do mal"





Linchamentos e a banalização do mal


Que dizer ante a onda de linchamentos que anda ocorrendo nas cidades brasileiras? Vê-se que as pessoas estão usando o argumento hobbesiano de que "ninguém é obrigado (quando falta a proteção da lei) a deixar de proteger-se com todos os meios de que dispuser." não só ao pé da letra, como também ao corpo todo e ao espírito. Em primeiro, um aviso aos desavisados: não falta a proteção da lei. Se há precariedade na segurança pública, isso não justifica agir com as próprias mãos, num regresso à barbárie onde "bellum omnium contra omnes". A má administração não justifica a violência gratuita. Não se deve viver à luz da "subsombra desumana dos linchadores" . Não se deve tomar este ponto de fragilidade de uma administração estatal (seja ela qual for!) para justificar anarquia plena e desmedida. O próprio Hobbes constata solidamente que "qualquer governo é melhor que a ausência de governo." Não se deve justificar a nossa hipocrisia e nossa maldade, o nosso poder imanente de fazer o mal ao outro porque "mal com mal se paga". Ainda para crentes e não crentes, o ensino cristão de que devemos amar ao próximo como a nós mesmos deve imperar como se fosse o imperativo categórico mor de Immanuel Kant. Ou não se deve fazer jus ao termo "humano" definidor da espécie que abrange cada homem em particular?

Expressões como “bandido bom é bandido morto” soam como um violento atentado contra todos os direitos e garantias universais e individuais que foram conquistados ao longo do tempo. Tais ditos proclamam a violência explícita, a vingança privada. Não se trata de defender bandido: trata-se de dar à vida o valor que ela merece, seja a vida de quem for. E o argumento contrário de que “ e se fosse com você ou com um parente seu”, “se ele tivesse assassinado algum familiar seu”, não justifica o apedrejamento moderno, não dá crédito e licença para que se cometam arbitrariedades de fundo animalesco. Não se admite com o Estado Civil, isto é, onde deve haver, ao menos, o mínimo de convivência e tolerância, mas que, acima de tudo, impere a razão, este renovado espetáculo de crueldade. E não há razão para pagar violência com violência, morte com morte. No Estado Constitucional Brasileiro, no Código Penal, não há abertura para a pena de morte.

Esses acontecimentos brutais fazem-nos lembrar da carnificina que ocorria durante o apogeu do Império Romano, vislumbrada no Coliseu de Roma. Ali, a violência e a morte viravam espetáculo para a plateia sedenta de sangue. Mais de 6.000 animais foram assassinados ao ar livre. Milhares de gladiadores, criminosos e cristãos morreram para entretenimento do povo. Um período de brutalidade que durou 400 anos, mas que, agora, parece ressurgir, nas ruas, nova arena, para deleite de bárbaros que se dizem fazer justiça, que se declaram estabilizadores da ordem, advogados de acusação e juízes ao mesmo tempo, e executores. E quem for defender o criminoso (vítima de linchamento!), no exato momento do ato desumano, pode correr o risco de reviver o que acontecera com o monge Telemachus, em 404 d. C., quando entrara na arena romana, numa tentativa de separar dois gladiadores, e fora linchado até a morte pela plateia que assistia ao embate, pois a mesma se sentira ofendida porque o monge atrapalhara o duelo mortal entre os gladiadores.

Pior ainda é ver pessoas que se dizem culturalmente esclarecidas proferirem frases como "Tá com dó? Leva pra casa", numa agressão irônica àqueles que prezam pela supremacia da Constituição que proíbe claramente qualquer forma de tortura em seu artigo 5º, além , também, de garantir o direito à defesa jurídica pelos crimes cometidos, tendo assim declarado no mesmo  artigo, inciso LIV  que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Talvez, esses defensores da vingança privada precisem ler  “Eichmann em Jerusalém”, de Hannah Arendt, para entenderem o perigo de se propagar o mal. É permitido falar sem pensar. A Constituição garante. Mas adverte Hannah Arendt: “Agir e falar são ainda manifestações externas da vida humana; e esta só conhece uma atividade que, embora relacionada com o mundo exterior de muitas maneiras, não se manifesta nele necessariamente nem precisa ser ouvida nem vista nem usada nem consumida para ser real: a atividade de pensar.”


                                                                                                                                                                  Adriano Nunes



REFERÊNCIAS:


HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de Rosina D'Angina. São Paulo: Martin Claret, 2012, p. 240.

VELOSO, Caetano. "O cu do mundo". Circuladô. Philips, 1991.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações determinadas pelas emendas constitucionais de revisão nº  1 a 6/94, pelas emendas constitucionais nº 1/92 a 73/2013 e pelo decreto legislativo nº 186/2008. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2013.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 106.

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