As Musas, a Memória e o esquecimento
Vivemos
numa época que – com a Internet, os computadores, os celulares, os tablets etc. – experimenta o desenvolvimento
de uma tecnologia que tem, entre outras coisas, o sentido manifesto de acelerar
tanto a comunicação entre as pessoas quanto a aquisição, o processamento e a
produção de informação. Seria, portanto, de esperar que, podendo fazer mais
rapidamente o que fazíamos outrora, tivéssemos hoje à nossa disposição mais
tempo livre. Ora, ocorre exatamente o oposto: quase todo o mundo se queixa de
não ter mais tempo para nada. Na verdade, o tempo livre parece ter encolhido
muito.
Acontece
que a poesia exige mais tempo livre do que a fruição de obras pertencentes a
outros gêneros artísticos. Não precisamos nos concentrar numa canção ou numa
pintura ou numa escultura ou na arquitetura de um prédio para que elas nos
deleitem. Podemos apreciá-las en passant.
Não é assim com um poema escrito. Quem lê um poema como se fosse um artigo, um
ensaio ou um e-mail, por exemplo, não é capaz de fruí-lo. Para apreciar um
poema é necessário dedicar-lhe tempo.
E como
ninguém tem tempo para quase nada, por que perder tempo com algo que nada
ensina de útil? A menos que o faça para se distrair um pouco do trabalho. Mas,
como distração, não são poucos os que hoje afirmam que a poesia ficou para
trás: que foi superada pelos joguinhos eletrônicos, por exemplo, que exigem
menos pensamento e teriam mais a ver com o ritmo da vida contemporânea.
Pois bem,
penso o contrário. É exatamente numa época de aceleração desembestada que a
poesia mais se faz desejável. Por quê? Porque o que me parece inteiramente
indesejável é a aceitação passiva da inevitabilidade do encolhimento do nosso
tempo livre.
A verdade
é que, se praticamente não temos mais tempo livre, isso ocorre porque
praticamente todo o nosso tempo – mesmo aquele que se pretende livre – está
preso. Preso a quê? Ao princípio do trabalho, ou melhor – inclusive,
evidentemente nos tais joguinhos eletrônicos –, ao princípio do desempenho. Não
estamos livres quase nunca porque nos encontramos numa cadeia utilitária em que
parece que o sentido de todas as coisas e pessoas que se encontram no mundo, o
sentido inclusive de nós mesmos, é sermos instrumentais para outras coisas e
pessoas.
Nessas
circunstâncias, nada e ninguém jamais vale por si, mas apenas como um meio para
outra coisa ou pessoa que, por sua vez, também funciona como meio para ainda
outra coisa ou pessoa, e assim ad infinitum. Pode-se dizer que
participamos de uma espécie de linha de montagem em moto contínuo e vicioso, na
qual se enquadram as próprias “diversões” que se nos apresentam imediatamente.
Em tal
situação, parece-me que uma das poucas ocasiões em que conseguimos romper a
cadeia utilitária cotidiana e nos libertarmos da prisão utilitária do mundo do
desempenho é quando nos deixamos levar a viajar por uma obra de arte: a viajar,
por exemplo, através de um poema. Ao viajar por um poema, deixamos de lado o
princípio do desempenho e apreendemos a vida em si.
As Musas
eram tidas pelos gregos como filhas da deusa Memória. Normalmente, supõe-se que
isso signifique que elas guardam o passado. Penso que a leitura dos poetas
gregos mostra o contrário. O que o fato de que as Musas sejam filhas da Memória
significa é que aquilo que elas produzem seja inesquecível: seja memorável.
Assim são os grandes poemas. É isso que permite que, por exemplo, o poeta romano
Horácio (que, aliás, estudou em Atenas) possa dizer, na sua Ode III.xxx, (que se encontra também em latim aqui: http://antoniocicero.blogspot.com/2010/02/carpe-diem-o-seguinte-artigo-publicado.html) sobre
sua poesia:
Erigi um monumento mais duradouro que o bronze,
mais alto do que a régia construção das pirâmides
que nem a voraz chuva, nem o impetuoso Áquilo
nem a inumerável série dos anos,
nem a fuga do tempo poderão destruir.
Nem tudo de mim morrerá, de mim grande parte
escapará a Libitina: jovem para sempre crescerei
no louvor dos vindouros, enquanto o Pontífice
com a tácita virgem subir ao Capitólio.
Dir-se-á de mim, onde o violento Áufido brama,
onde Dauno pobre em água sobre rústicos povos reinou,
que de origem humilde me tornei poderoso,
o primeiro a trazer o canto eólio aos metros itálicos.
Assume o orgulho que o mérito conquistou
e benévola cinge meus cabelos,
Melpómene, com o délfico louro.
3 comentários:
Cícero, entro pelo labirinto atemporal desse texto a fruí-l, repetidamente, como um afogado.
Temos tempo.
Salvemos as musas!
Excelente texto, obrigada! Há um tempo estou tentando escrever um proêmio com um chamamento às musas. Não sei onde estão; também não sei o que esperar delas. Que Musas chamar nos dias de hoje?
Caro Cícero,
Belíssima imagem esta da "linha de montagem em moto contínuo e vicioso". Bela e acertada, pois estamos mesmo enredados numa teia sem fim de utilitarismo. A questão é que esta instrumentação do humano (e da natureza) tem de fato um fim último, que é reproduzir o capital: o ser-capital, abstrato, cego e formal se vale das pessoas para sua perpetuação.
Sei que sua linha de pensamento não é propriamente marxista, mas a Crítica do Valor resgata o pensamento de Marx da teoria do valor-trabalho, considerando o marxismo tradicional da luta de classes ultrapassado e ressaltando como os aspectos abstratos do capital e a lógica da mercadoria subordinam a concretude sensível do mundo, entre elas a existência humana e seus significados, que se transformam, de fato, num instrumento dessa linha de montagem em moto contínuo que é a modernidade.
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