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Grande vantagem do politeísmo. — Que o indivíduo estabelecesse seu próprio ideal e dele derivasse a sua lei, seus amigos e seus direitos — isso talvez fosse considerado, até então,
o mais monstruoso dos equívocos humanos e a idolatria em si; de fato, os poucos que ousaram fazê-lo sempre necessitaram de uma apologia diante de si mesmos, exclamando habitualmente: “Não fui eu! Eu não! Foi um deus através de mim!” Foi na maravilhosa arte e energia de criar deuses — o politeísmo — que esse impulso pôde se descarregar, que ele se purificou, se consumou e enobreceu: pois originalmente era um impulso vulgar e insignificante, ligado à teimosia, à desobediência e à inveja. Ser hostil a esse impulso para um ideal próprio: tal era, então, a lei de toda moralidade. Havia apenas uma norma: “o homem” — e cada povo acreditava possuir essa única e derradeira norma. Mas além de si e fora de si, num remoto sobre-mundo, era permitido enxergar uma pluralidade de normas: um deus não era a negação ou a blasfêmia contra um outro deus! Aí se admitiu, pela primeira vez, o luxo de haver indivíduos, aí se honrou, pela primeira vez, o direito dos indivíduos. A invenção de deuses, heróis e super-homens de toda espécie, e também de quase-homens e sub-homens, de fadas, anões, sátiros, demônios e diabos, foi o inestimável exercício prévio para a justificação do amor-próprio e da soberania do indivíduo: a liberdade que se concedia a um deus, relativamente aos outros deuses, terminou por ser dada a si mesmo, em relação a leis, costumes e vizinhos. Já o monoteísmo, esse rígido corolário da doutrina de um só homem normal — a crença num só deus normal, além do qual há apenas falsos deuses enganadores —, foi talvez o maior perigo para a humanidade até então: ela foi ameaçada pela prematura estagnação que, tanto quanto podemos ver, a maioria das outras espécies animais atingiu há muito tempo; em que todos crêem num só tipo normal e ideal em sua espécie, tendo definitivamente traduzido a moralidade dos costumes em sua carne e seu sangue. No politeísmo estava prefigurada a humana liberdade e variedade de pensamento: a força de criar para si olhos novos e seus, sempre novos e cada vez mais seus; de modo que somente para o homem, entre todos os animais, não existem horizontes e perspectivas eternas.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, Livro I, § 143.
Um comentário:
A Morte de Isolda (tradução de Jorge de Sena)
Nesta fluidez contínua de um tecido vivo
que se distende arfando como um longo sexo
viscosamente se enrolando em torno ao mundo
que não penetra mas ansiosamente
estrangula em húmidos anéis
fosforescentes de ansiedade doce
e resignada à morte
em roncos e estridências lacrimosas,
palpita a frustração do amor maldito
porque de um filtro só nasceu.
Por mais que de crescendo delirantes
se evolem as volutas de uma chama ambígua,
nesta fluidez sem tempo não há gozo algum,
mas o prazer remoto do que não foi vivido
senão como entressonho e fatal gesto;
e mesmo este balanço largamente harmónico
que se exaspera e expira em tão agudas poses
é cópula mental.
Nesta doçura que ao silêncio imóvel
acaba retornando, não há uma paz dos rostos que se pousam,
enquanto os sexos se demoram penetrados
no puro e tão tranquilo esgotamento da chegada
que só ternura torna simultânea.
Não há, mas só tristeza infinda e fina
e tão terrível de que, estrangulado,
o amor no mundo é morte impenetrável: dois
seres que o sexo destruiu,
estéreis como o sopro da serpente eterna.
Fica-nos o gosto da piedade.
E uma vontade de enterrá-los juntos
p’ra que talvez na morte – imaginada – se conheçam
melhor do que se amaram. E também o ardor
de uma impotência que se quis só sexo
virgem demais para um amor da vida.
8/3/1964
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