23.7.16
J.P. Cuenca: "Tudo é teatro"
Ontem foi publicado na Folha de São Paulo o seguinte ótimo artigo de João Paulo Cuenca:
Tudo é teatro
Feira de livros, cidade do interior. Depois de um debate aproxima-se uma estudante e pergunta, sem qualquer vestígio de timidez: "Você é um personagem?" Não sei o que dizer. Respondo algo como "acho que sim". E ela retruca: "O tempo inteiro?"
No prefácio da edição da Aeroplano de "Me segura qu'eu vou dar um troço" (1972), livro do Waly Salomão recém reeditado pela Companhia das Letras, o Antônio Cícero lembra da prisão do poeta e o cita numa entrevista: "Eu transformava aquele episódio, teatralizava logo aquele episódio, imediatamente, na própria cela, antes de sair. Eu botava como personagens e me incluía, como Marujeiro da Lua. Eu botava como personagens essas diferentes pessoas e suas diferentes posições no teatro: tinha uma Agente Loira Babalorixá de Umbanda, tinha um Investigador Humanista e o investigador duro. O que quer dizer tudo isso? Você transforma o horror, você tem que transformar. E isso é vontade de quê? De expressão, de que é isso? Não é a de se mostrar como vítima."
A teatralização da vida e dos seus dramas, hoje concentrada no smartphone onde metade dos leitores lerá este texto, não é de hoje –e muito menos dos anos 1970, que o diga o engenhoso fidalgo mais famoso de todos. O tema pode ser iluminado de diferentes ângulos, mas o que me traz aqui é o que o Cícero tira dessa declaração do Waly Salomão.
Ele escreve: "A vítima é o objeto nas mãos do outro. Todos nós já fomos vítimas de diferentes coisas, em diferentes momentos; porém é preciso ativamente rejeitar esses momentos, relegando-os, ainda que recentíssimos, ao passado –ainda que recentíssimo. Quem aceita a condição de vítima no presente, quem diz: "sou vítima" está, ipso facto, a tomar como consumada a condição de não ser livre. É contra essa atitude de implícita renúncia à liberdade que Waly teatraliza sua situação."
A teatralização defendida por Cícero –e por Waly– não deve ser interpretada como simples defesa do delírio dentro de um esquema binário entre realidade e imaginação. A proposta não é escapista, muito pelo contrário: trata-se de estar profundamente acordado. "Não se trata de opor o teatro ao não-teatro. O que ele julga é, antes, que tudo é teatro."
A potência desse teatro, máquina que rejeita autocomiseração, está numa certa posse de si, mesmo em momentos extremos. No limite, o único poder que temos é sobre nossa própria consciência. É ela –não as prisões que habitamos, corpos ou celas– que faz de nós quem somos. Os personagens de nós mesmos que somos.
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