7.6.14

Ferreira Gullar: "A farsa das galerias e a ditadura dos curadores"



Essa gratuidade da arte contemporânea se reflete ainda, por exemplo, numa obra como aquela levada para uma galeria onde o cara pega um cachorro, amarra numa coleira, deixa ele preso numa gaiola durante dias sem dar comida nem água, e o cachorro então morre. Aí o cara vai lá e escreve numa placa: arte perecível. Agora, se ele faz isso no quintal da casa dele, não é arte. Mas na galeria é arte. Quer dizer: o que transforma a obra dele é a instituição. Que vanguarda é essa que precisa da instituição? Vê como é tudo uma besteirada? Uma farsa? Uma bobagem? Essa postura da arte contemporânea não leva a lugar nenhum.



GULLAR, Ferreira. In: "Um alquimista chamado Ferreira Gullar. Entrevista a João Pombo Barile". In: Suplemento. Belo Horizonte:  Secretaria de Estado de Cultura, março/abril 2014.

7 comentários:

Beto Queiroz disse...

A lucidez do Poeta. Se os poetas são mesmo as antenas da raça (como queria E.Pound), eis uma antena que não desliga.
A dona Adélia Prado, poetisa de primeira grandeza, dia desses mostrou o mesmo em relação às práticas políticas,apontando o mundo cinzento em que vivemos...ambos, visionários que não se deixaram cegar pelas novas 'instituições' de cunho ptista.
Abraços ao poeta A.Cícero.
Beto
http://betoqueiroz.com

Antonio Cicero disse...

Abraço,Adalberto!

Gabriela Motta disse...

(Desculpe-me se estou enviando novamente o comentário...)

Olá, não quero aqui defender especificamente a obra de Guillermo Vargas Habacuc, artista a quem se refere Gullar. Porém, a rapidez e superficialidade com a qual Ferreira critica obras de arte contemporânea não condiz com tudo o que ele escreveu sobre o assunto, especialmente nos anos 60 e 70. A Teoria do não objeto é apenas um dos seus excelentes artigos sobre arte produzida hoje. Obviamente, a história deste cachorro, desta obra, é bem mais complexa do que circulou na imprensa e na internet.
Abaixo, reproduzo parte do texto da wikpedia sobre o assunto.
Abraços, Gabriela Motta

In August, 2007, Vargas displayed his "Exposición N° 1" in the Códice Gallery in Managua, Nicaragua. The exposition included the burning of 175 pieces of crack cocaine and an ounce of marijuana while the Sandinista anthem played backwards.[8][9] The work also included an emaciated dog tied to a wall by a length of rope with "Eres Lo Que Lees" ("You Are What You Read") written on the wall in dog food.[8][9] The work attracted controversy when it was reported that the dog had starved to death as part of Vargas's work.[5][8] Photographs of the exhibit appeared on the Internet, showing the dog tied to the wall in a room full of standing people. There are no indications in the photos of where or when they were taken, nor of who took them. The outrage triggered by the photos and the allegations that the dog had been left to starve to death quickly spread internationally via blogs, e-mails, and other unconfirmed sources, including internet petitions to prevent Vargas from participating in the 2008 Bienal Centroamericana in Honduras that received over four million signatures.[9][10] Vargas has endorsed the petition, saying that he, too, has signed it.[11]

Juanita Bermúdez, the director of the Códice Gallery, stated that the animal was fed regularly and was only tied up for three hours on one day before it escaped.[8][9] Vargas himself refused to comment on the fate of the dog,[5][9] but noted that no one tried to free the dog, give it food, call the police, or do anything for the dog.[5] Vargas stated that the exhibit and the surrounding controversy highlight people's hypocrisy because no one cares about a dog that starves to death in the street.[5] In an interview with El Tiempo, Vargas explained that he was inspired by the death of Natividad Canda, an indigent Nicaraguan addict, who was killed by two Rottweilers in Cartago Province, Costa Rica, while being filmed by the news media in the presence of police, firefighters, and security guards.[12]

Antonio Cicero disse...

Gabriela,

A verdade do que Gullar diz, isto é, que a única coisa que faz com que se chame a "obra" de Vargas de "arte" é o fato de se encontrar numa galeria – ou seja, numa instituição artística – não é afetada em nada pelos dados da Wikipedia que você traz. E isso se aplica não somente à maldade que Vargas fez com o cachorro como à sua “queima de 175 pedaços de cocaina de crack e uma onça de marijuana enquanto o hino sandinista era tocado de traz para a frente”. Longe de ser superficial, a crítica de Gullar é profunda, pois, dado que, como dizia Peter Bürger, as vanguardas históricas surgiram como um movimento de contestação da “instituição arte”, é ridículo que a pretensa “vanguarda” contemporânea dependa exatamente da instituição para existir.

Quanto à questão ética, que Gullar não comenta aqui, penso que o fato de que Vargas jamais tenha negado que o cachorro houvesse morrido de fome fala por si. A maldade que ele cometeu é abominável. E a coisa é até agravada pela afirmação dele de que a indignação provocada pela maldade cometida contra o cachorro mostre “a hipocrisia das pessoas, porque ninguém se importa com um cachorro que morra de fome na rua”. Por esse raciocínio, também qualquer crime contra seres humanos se justificaria, já que há gente morrendo de fome em vários lugares do mundo. E quanto à história de Natividad Canda: será que ele não entende que uma atrocidade não justifica outra? Francamente...

Gabriela Motta disse...

Oi Cícero, concordo contigo sobre a questão ética em relação ao trabalho de Habacuc. Ou seja, ainda que sim, isto seja uma obra de arte, ela é ruim por tentar abordar determinados problemas reencenando-os.
Sobre Burger, ainda que ele esteja correto em relação às vanguardas históricas, sabe-se que prontamente as instituições foram capazes de absorvê-las, tornando a questão mais complexa. Além disso, ao "contestarem as instituições"(certamente era mais do que isso), estas obras nomeavam este "inimigo", existindo mesmo nesta relação entre aquilo que se faz e aquilo contra o que se faz. Ninguém chama um mictório de obra de arte, a não ser que ele esteja assinado R Mutt, e dentro de uma instituição.
Hoje, nenhum artista pode querer-se vanguarda, pois isso simplesmente não existe. (concordo absolutamente com tua fala no seminário moderno x contemporâneo).
Sobre Ferreira Gullar, ele só pôde chamar de arte as experiências de Helio Oiticica e Lygia Clark porque estava ao lado desses artistas, acompanhando suas pesquisas sobre desmaterialização do objeto artístico. Experimentos esses que também foram rapidamente absorvidos pelo sistema institucional da arte.
No fim, arte sempre é uma projeção – dos artistas, das instituições, dos críticos – e, com isso, pode ser boa ou ruim.

Antonio Cicero disse...

Gabriela,

Não confundamos a “Fontaine” de Duchamp com as bobagens de Vargas e companhia. “Fontaine” foi o caso-limite da vanguarda. Por isso, ela tem grande importância histórica. Depois dela, não tem mais sentido uma “obra” cujo sentido seja a contestação da instituição-arte. Tudo aquilo que hoje pretenda sê-lo não passa, no fundo, de um produto da instituição que finge contestar. É o que Gullar pontua.
Já os relevos de Helio Oiticica e os Bichos de Lygia Clark, por exemplo, são obras de arte independentemente da instituição. Não devem, portanto, ser confundidos com as bobagens de Vargas.
Não penso que a arte seja uma “projeção” de artistas, instituições e críticos, mas o produto de um corpo a corpo tão intenso entre a matéria e o espírito que eles às vezes chegam a se transformar um no outro.

Anônimo disse...

A vanguarda é a própria anti-instituição. Mesmo que, posteriormente, se aposse dos poderes institucionais, num processo natural. É por isso que se transforma - sempre - no próximo alvo...

Gullar tem razão para dar e emprestar. E dificilmente ele é raso ou superficial. Pode-se discorda dele e de quem quer que seja. A questão não é essa. É conceito. O mais elementar, diga-se.

Arsenio Meira