24.4.14

Helio Jaguaribe: "O 'jardim antropológico' é uma insensatez"



Ontem recebi um convite para participar de uma manifestação do movimento "Índio É Nós". Tendo lido o Manifesto desse movimento, considero-o inteiramente equivocado. Minha posição, nesse ponto, aproxima-se da de Helio Jaguaribe. Eis aqui um excelente artigo dele publicado originalmente no dia 26 de abril de 2008, na Folha de São Paulo, e ainda atual, sobre essa questão.



As terras indígenas são uma ameaça à soberania nacional?

SIM

O "jardim antropológico" é uma insensatez

HELIO JAGUARIBE

TODOS OS países americanos se confrontaram com a questão indígena. É indiscutível que em todos eles a relação entre europeus colonizadores e a população nativa foi originariamente conflituosa. Esse conflito conduziu ao extermínio das populações costeiras (Brasil), levando os nativos a se refugiarem no interior remoto de cada um desses países.

É a partir sobretudo do século 19 que se diferenciam a conduta dos europeus e a de seus descendentes nas Américas. Nos EUA, a opção da população branca foi o extermínio dos nativos: "a good indian is a dead indian".

O Brasil não teve política indigenista até o início do século 20. O índio foi romantizado por José de Alencar e outros. Mas a conduta real, por parte dos que se adentraram pelo Oeste, foi de espoliação das terras indígenas, com violenta expulsão dos nativos.

A política indigenista no Brasil não foi, originariamente, formulada pelo governo federal, e sim por esse grande pioneiro que foi o general Rondon.

Encarregada da extensão das linhas telegráficas até Cuiabá, a Missão Rondon, como foi designada, se defrontou com as populações indígenas do interior do país. A política adotada por Rondon foi a de total respeito aos índios, reconhecidos como legítimos proprietários das terras.

Meu saudoso pai, general Francisco Jaguaribe de Mattos, então jovem capitão, foi o geógrafo e cartógrafo da missão. Dele tenho narrativas diretas de como se procedia então. Seus membros, nos freqüentes encontros com os índios, os abordavam pacificamente, incorporando os que desejassem. O lema de Rondon era: "Morrer se necessário, matar, nunca".

A política indigenista de Rondon partia do suposto de que o índio era o brasileiro nativo, que devia ser tratado respeitosamente pelos civilizados e induzido, pacificamente, a se incorporar à cidadania, recebendo conveniente educação e assistência.

A República manteve a política indigenista de Rondon. De acordo com suas idéias (ele mesmo tendo ascendência indígena), estimava-se que, gradualmente, a total população indígena, ora da ordem de 700 mil entre 190 milhões de habitantes, seria incorporada à cidadania brasileira.

Em anos mais recentes, a política indigenista brasileira passou a ser orientada por etnólogos. Estes, diversamente de Rondon, não intentavam a pacífica incorporação do índio, mas a preservação das culturas indígenas. Para isso, adotou-se a prática da delimitação de amplas áreas nos sítios povoados por índios, como reservas.

A política de reservas vem sendo aplicada sem levar em conta os imperativos de defesa nacional, o que ocorre nos diversos casos em que elas se estendem até nossas fronteiras com países vizinhos. As autoridades militares têm alertado o governo, com toda a razão, sobre o perigo da prática.

Por essas e outras razões, a política indigenista brasileira requer uma urgente a ampla revisão. Desde logo, independentemente da nova orientação que se lhe dê, é preciso estabelecer uma faixa que acompanhe as fronteiras do Brasil com outros países e dela excluir as reservas indígenas. Em termos mais amplos, importa questionar: que objetivos deve ter tal política, ademais da proteção do índio?

Por outro lado, a perpetuação de culturas nativas, em que se fundamenta, no Brasil, a política de reservas, carece de sentido em termos antropológicos, pois é impossível sustar o processo civilizatório. As populações civilizadas do mundo são descendentes de populações tribais, que seguiram, em todos os países, o secular caminho que leva paleolíticos a se transformarem em neolíticos e estes, em civilizados. 
Criar um "jardim antropológico", à semelhança de um jardim zoológico, é uma insensatez. Cabe ao governo federal zelar pela unidade do país, e não contribuir para autonomizar supostas nações indígenas que, no limite do caso, poderiam apelar para a ONU para lhes salvaguardar a independência e ser objeto de penetração estrangeira.


A nossa política indigenista não pode ter outro objetivo senão o da incorporação pacífica do índio à cidadania brasileira, para tal lhe dando toda a assistência requerida: sanitária, educacional e profissional. 




17 comentários:

Nobile José disse...

cicero,

já leu o artigo da noemi hoje na folha; está mto interessante!

abrçs.

Antonio Cicero disse...

Obrigado por me chamar atenção para o artigo da Noemi que, realmente, é excelente. Vou pedir a ela autorização para publicá-lo aqui.

Abraço

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,

Desde já, assim como Antonio Cicero, concordo com a posição de Hélio. Por quê? Porque é inadmissível negar que o ser humano é fruto de um processo constante de evolução. Segundo que é risível e ridículo achar que o tido "europeu colonizador" já nasceu prontozinho, feitozinho, evoluído desde sempre. E que todo ser humano sempre foi como hoje é. Ora, só quem nunca leu sobre a história da humanidade pode aceitar o fato de que o homem já sabia, desde os primórdios, por exemplo, que PV =nRT, que a talidomida causa focomelia, que é possível com profixalia evitar cáries, que o sódio é um metal alcalino, que há relatividade e mais e além. Tudo foi feito, sim, muito lentamente, num processo que levou milhares de anos, processo este que transformou o ser humano selvagem em um ser civilizado. Não me venham, aqui falar de maldade ou bondade, que é outro aspecto de que, aqui, no momento, não convém discutir. O cerne da questão é: é certo, óbvio, que os índios merecem a devida proteção estatal e assistência, mas querer que eles não acompanhem o desenvolvimento humano, não venham a fazer parte do processo civilizatório é perigoso, desumano e desonesto. É como querer expô-los num jardim zoológico, um "jardim antropológico ". Além disso, a questão das terras indígenas precisa ser revista, legalmente, com cuidado, para evitar ameaças à soberania nacional. Quando a razão impera o homem tende a evitar retrocessos e barbárie. As ondas de massa, aquela multidão encantada por uma causa qualquer, muitas vezes, levam às distorcidas soluções, a enganos grosseiros. Como diz Immanuel Kant em "A metafísica dos costumes": "age com base em uma máxima que pode também ter validade como uma lei universal".


Abraço forte,
Adriano Nunes

Anônimo disse...

Excelente o artigo da Noemi publicado na Folha. Em suma: sem diálogo não se atravessa nem a esquina para comprar um picolé. É urgente enxergar óbvio: é, a meu ver, até um crime, negar ao povo indígena o abrigo da assistência estatal; é preciso chancelar sua condição de absolutamente capaz, e em contrapartida, necessário preservar sua cultura e suas tradições.

É um aparente paradoxo, mas que diabos de mundo é esse, onde o que é visível não é enxergado? Negar ao Índio a proteção do Estado é o mesmo que condená-lo ao pódio mais vil do esquecimento. Consumar a dizimação de uma etnia, que foi essencial em nossa formação. Ora, até mesmo nós já fomos representados pelo Cacique Juruna, em nosso Parlamento...

Arsenio Meira Júnior

Antonio Cicero disse...

Também penso ser “um crime negar ao povo indígena o abrigo da assistência estatal”. Mas isso está de acordo com a afirmação de Hélio Jaguaribe de que a política indigenista deve ter o objetivo “da incorporação pacífica do índio à cidadania brasileira, para tal lhe dando toda a assistência requerida: sanitária, educacional e profissional” [ênfase minha].

Por outro lado, que significa “preservar” a cultura e as tradições dos índios? Manter os indivíduos que compõem uma etnia indígena presos a ela? Mas nas condições cada vez mais cosmopolitas em que vivemos, os índios, como todos os seres humanos, são hoje cidadãos, em primeiro lugar, do mundo. Como todos os seres humanos, eles devem ter o direito de escolher viver no interior do Amazonas ou no Rio de Janeiro, ou em Paris, ou em Calcutá; e de estudar português, inglês, francês, grego, chinês ou tupi-guarani: como quiserem.

A “cultura brasileira” se forma a partir de contribuições culturais de um sem número de povos. A dos índios é uma delas. Sua cultura está presente em palavras de origem indígena que fazem parte de nossa língua, em quitutes, em lendas, em artefatos etc. Em Belém do Pará, por exemplo, essas contribuições se manifestam de modo esplêndido. E elas lá nada têm a ver com a manutenção de etnias “puras”.

O Brasil de hoje é composto da miscigenação de descendentes de europeus, africanos, asiáticos e americanos, isto é, índios. Não teria sentido que o Estado estimulasse os descendentes de alemães ou italianos, ou judeus, ou russos, ou índios a se manterem “puros” e isolados. Ao contrário: viva a mistura! Que, em princípio, todos possam entrar no Parlamento, como o Juruna entrou.

Luiz Augusto disse...

Não conheço o manifesto, mas algumas coisas no artigo me incomodaram e acho que merecem ser mencionadas. A primeira é a analogia entre o jardim zoológico e o "jardim antropológico". É uma analogia absurda; se não viesse de HJ, eu diria que é uma estratégia retórica desonesta. Como pôr no mesmo plano um ambiente artificial, que detém seres arrancados do habitat e mantidos artificialmente (no sentido etimológico) para deleite de um público urbano, e a demarcação de um espaço para que determinados grupos possam NÃO ser arrancados do habitat, NÃO dependerem de artifício e NÃO se tornarem peça de circo? A analogia não se sustenta.

Também incomoda que ele assuma a postura estranhamente hegeliana de unificar o "processo civilizatório" como caminhada unívoca rumo a uma espécie de sujeito absoluto, ideal de civilização etc. É a típica ilusão do século XIX que desaguou em desastres no século seguinte, e que me surpreende ler em HJ. Pode-se justificar qualquer coisa com isso, a começar pela "impaciência" com índios chatos que insistem em levar a vida que sempre levaram em vez de aceitar de uma vez a harmoniosa incorporação ao mundo civilizado. Que essa incorporação costume se dar sob a forma de mão de obra barata e desprovida de direitos é melhor não mencionar... Só vai adiar a inevitável "tomada de consciência" desses teimosos. Algo me diz que essa arrogância do "civilizado" está difícil de manter-se, considerando o estado deplorável do planeta.

Falando em arrogância, um subtexto do artigo é que o "processo civilizatório" é inescapável. Ele tem razão. Mas do ponto de vista do colonizado, não é bem um processo, é um rolo compressor. Achei tocante a descrição da missão Rondon, mas é importante acrescentar que não foi o primeiro grupo de pessoas que quiseram respeitosamente se aproximar de indígenas para aos poucos incorporá-los à civilização. Esses foram os jesuítas. Tratavam os índios com respeito e amor, e ainda tiravam deles aquelas terríveis crenças bárbaras para os tornarem dóceis cordeiros de Deus. É claro que os demais civilizados não queriam saber de tanto idealismo e se aproveitaram do fato de que os índios, ainda por cima, tinham se tornado indefesos, para passar por cima das missões e levar os novos cordeiros acorrentados. Eram os chamados bandeirantes, muitos deles hoje nome de ruas e avenidas na civilizada São Paulo.

Vejamos só o que aconteceu com os índios ao longo do século XX e, agora, também, no XXI. O que acontece hoje e que nem é tão diferente do que recai sobre a população brasileira em geral, excluída a zona sul e correlatas. Não seria o avanço do latifúndio e da soja o análogo contemporâneo do bandeirante, como a missão Rondon seria a análoga dos jesuítas? Segue mais uma citação, essa sem autor de renome... é popular, mesmo: "de boas intenções, o inferno está cheio".

Portanto, a conclusão de que a política indigenista "não pode" (caramba, "não pode"?) ter outro objetivo senão a incorporação do índio é perigosa... Mais uma maneira de liberar territórios para a exploração predatória. Ah, sim, e também liberar gente para ocupar nossas periferias, que pelo visto precisam de mais população; talvez HJ esteja achando elas um tanto despovoadas. E para isso, "assistência"... interessante termos de "assistir" gente que durante séculos e séculos viveu sem a ajuda de ninguém. E com o argumento de que é para "incorporá-la ao processo civilizatório". Talvez devêssemos incentivar essa incorporação levando esse pessoal num tour por aquilo que os espera no "Brasil civilizado": um passeio pela avenida Brasil, uma visita a Bangu, um sobrevôo do fundo da baía de Guanabara, uma visita ao sistema Cantareira. Quem sabe eles não se animam. A guia pode ser a Katia Abreu.

PS: o argumento sobre as fronteiras é verdadeiro, mas não justifica todo o resto.

Nobile José disse...

prezados,

acabo de ler o Estatuto da Igualdade Racial, que ao tentar defender os direitos dos negros, acaba por 'ressuscitar' a ideia de divisão de seres humanos por raça.

devemos lutar para o fim do preconceito, a partir da ideia equivocada de raça; e não afirmar a existência de raças como critério para sua defesa.

o que existe é cor de pele; cores diferentes. e as pessoas não podem ser discriminadas por serem de determinada cor.

as ações afirmativas no Brasil baseadas no critério de raça são completamente equivocadas, e guardam relação com o mesmo tipo de pensamento que acredita na necessidade da preservação de 'jardins antropológicos'.

o que existe é o ser humano, que vem construindo (a duras penas) seu processo civilizatório.

restaurar a ideia de raça, ou ainda, tentar preservar, à força, um modo de vida pré-moderno, são exemplos notórios de atitude reacionária travestida de ato revolucionário.

abrçs a todos!

Antonio Cicero disse...

Caro Luiz Augusto,

A analogia entre o jardim zoológico e o jardim antropológico não é absurda. Há, na África do Sul, por exemplo, jardins zoológicos que se dão exatamente em espaços que constituem os habitat originais dos animais que os habitam. Estes não são, portanto, arrancados de seus habitat, nem se tornam animais de circo. O que caracteriza esses jardins zoológicos é se dão em territórios demarcados, nos quais se preservam as condições ecológicas necessárias para a sobrevivência dos animais que neles se encontram. É o que se pretende fazer dos territórios em que vivem os índios. Exatamente aqui já se encontra um grave erro. É verdade que cada espécie animal necessita de condições ecológicas específicas para sobreviver. Os índios, porém, não constituem uma espécie animal, mas fazem parte da espécie humana. As condições ecológicas necessárias para sua sobrevivência são, portanto, as de todo ser humano. Consequentemente, um índio não tem habitat natural diferente do dos demais seres humanos. Seu habitat pode estar tanto na Amazônia quanto na Suécia. Quem pensa o oposto expulsa os índios da espécie humana. Não pode haver pior racismo.

Quanto ao processo civilizatório, não há por que considerá-lo do modo estereotipado e caricatural em que você parece tomá-lo no resto do seu artigo. Não vou falar sobre isso aqui porque discuto extensamente esse assunto em meu ensaio “Da atualidade do conceito de civilização”, que, caso lhe interesse, você pode encontrar em www.academia.edu.

Anônimo disse...

Oi Cícero,

Quando manifestei uma possível preservação das tradições e dos costumes, pensei e penso justamente como você talvez tenha me expressado de forma turva. Ou seja: jamais "manter os indivíduos que compõem uma etnia indígena presos a ela"; mas, sobretudo, dar acesso a quem quiser permanecer sob tal teto, não obstante o cosmopolitismo já consolidado definitivamente. A maioria, já instalada em Belém ou aqui mesmo no Recife, em Paris ou em Madri, precisa ter o direito de ir e viver, e casar e viver livre. É isso.
Abraços do
Arsenio

Luiz Augusto disse...

Se a apalvra "habitat" só se aplica a animais, usemos outra... "terras ancestrais" está melhor? A questão é que delinear espaços que permanecem a salvo das poderosíssimas pressões econômicas não se parece em nada nem com os jardins zoológicos, nem com as reservas de safári da África, que não são jardins zoológicos mas também servem para agradar turistas (e também nada tem a ver com reservas indígenas). Acho pouco gentil distorcer palavras para desqualificar um argumento fazendo soar como racismo. Aliás, "pouco gentil" foi um eufemismo. Se for algo necessário para sustentar a analogia, então a analogia continua absurda.

Quanto ao resto, enfim, não sei se vale a pena, mas o fato é que a perspectiva do HJ continua me incomodando e considero importante que isso esteja explicitado. É algo terrivelmente perigoso cair na tentação de postular esse telos histórico irreversível, porque o passo seguinte é assumir, como aconteceu de fato na história, que existe um sujeito desse telos, que no passo seguinte dificilmente resistirá a declarar que todos os demais estão "no caminho" da realização desse destino. O último passo é tentar removê-los do caminho. Ou então... dar um jeito de absorvê-los. Bem se vê que um equívoco simples, por meio da arrogância, vai parar em desastre. Aconteceu no Brasil, aconteceu na Rússia, aconteceu na Alemanha, e vai continuar acontecendo sempre que esses passos forem dados.

Aetano disse...

Estou lendo “Da atualidade do conceito de civilização”. O texto é formidável. Fiz uma pausa para dizer: Antonio Cicero é o meu "ipse dixit".

Aetano

Antonio Cicero disse...

Muito obrigado, querido Aetano! Grande abraço!

Antonio Cicero disse...

Luiz Augusto,

A seguir, cito e comento trechos do seu comentário.

“Se a palavra "habitat" só se aplica a animais, usemos outra... "terras ancestrais" está melhor?”

O uso da expressão “terras ancestrais” é interessante, pois se trata de uma expressão usada pelos ideólogos do ancien régime contra o mundo moderno. Tem tudo a ver com a anti-modernidade desse discurso indigenista que, no fundo, não passa de nostalgia reacionária pelo mundo pré-moderno e pré-crítico.

“A questão é que delinear espaços que permanecem a salvo das poderosíssimas pressões econômicas não se parece em nada nem com os jardins zoológicos, nem com as reservas de safári da África, que não são jardins zoológicos mas também servem para agradar turistas (e também nada tem a ver com reservas indígenas)”.

O que você está falando é de espaços que finjam estar fora do movimento do mundo globalizado. Seriam espaços que serviriam para agradar ao turismo antropológico ou tardo-rousseauista; e que, no entanto, não estariam a salvo de todo tipo de interesse missionário ou evangélico. E, quanto a interesses econômicos, é curioso você não ver que alienar desse modo amplos territórios do Brasil serve apenas, no fundo, a interesses econômicos internacionais – esses sim, poderosíssimos – que, há muito tempo, pretendem precisamente “internacionalizar”, isto é, separar do Brasil, a Amazônia.

“Acho pouco gentil distorcer palavras para desqualificar um argumento fazendo soar como racismo. Aliás, "pouco gentil" foi um eufemismo. Se for algo necessário para sustentar a analogia, então a analogia continua absurda”.

O racismo de suas teses não é intencional, mas continua sendo racismo pretender que não seja meramente acidental, logo, que seja essencial, para os índios, o modo de vida, digamos, “ancestral” que lhes atribuímos.


“Quanto ao resto, enfim, não sei se vale a pena, mas o fato é que a perspectiva do HJ continua me incomodando e considero importante que isso esteja explicitado. É algo terrivelmente perigoso cair na tentação de postular esse telos histórico irreversível [...]"

Não se trata de nenhum “telos histórico”, mas do fato de que a razão crítica já destruiu toda ilusão de que possa subsistir um mundo pré-crítico no mundo moderno. Mas não tenho tempo para aqui repetir o que eu já disse em livros e ensaios, como o que acima citei.

Repito aqui apenas que o Estado brasileiro tem obrigação de dar aos índios as melhores condições possíveis de integração, inclusive, é claro, bolsas de estudo em todos os níveis.

Ralfe Ecard disse...

Cícero, primeiro um elogio. Sei que os comentários são aprovados por você e por isso louvo a abertura a ideias contrárias aqui. Este é um pensamento de um homem que ama a civilização e a razão.

Vou tecer pequenos comentários. Tenho medo quando vejo o quanto moralizante é o pensamento. Tenho medo desta interpretação de evolução que li aqui, que evolução é algo bom e inevitável, é ficar melhor do que antes. Evolução é sobreviver, somente isso, não nos torna melhor, nem mais qualificados a pensar que podemos impor ao outro nossa "verdade".

Somos sobreviventes do Holocausto, dos genocídios, da barbárie "civilizatória" do massacre dos indígenas e dos povos pelos "conquistadores", somos evoluídos disso tudo.
A discussão não é lógica, 2+2=4, isso ninguém discute, a discussão é cultural, a cultura e não o pensamento crítico humanizou o homem. O pensamento crítico aliás deveria proteger a cultura, a minoria, o diferente, a diferença.

É bobagem achar que os índios podem ficar "aquartelados" em qualquer área, seja zoológica ou antropológica. O contato e a troca é uma constante, não existe sistema ideal e proteger fronteiras é proteger os índios. Mas achar que eu, por exemplo, ocidental, terceiro mundo, omisso, bebedor de refrigerantes , Brasileiro e empregado sub-pago tenho algo a fornecer aos índios melhor do que eles próprios construíram, que tolice, que autoritarismo!!! Por bem, será que não estamos esquecendo de perguntar aos interessados o que eles querem?

Um pensamento póstumo: O problema de Prometeu não foi o fogo roubado, bendito tenha feito isso, foi ignorar o monte, ignorar a morte, ignorar a dúvida, ignorar a fome dos pássaros.

A humildade que pode salvar o homem é, reconhecer-nos, somos sempre selvagens.

Um abraço de quem te admira e segue este blog com fervor.

Ralfe Gomes Ecard

Anônimo disse...

Cícero e demais participantes,

Fico com a ideia e a luz plantadas por Carlos Drummond de Andrade, em seu belíssimo poema "Os últimos Dias", publicado no livro A ROSA DO POVO, no longínquo ano de 1945, cujo trecho transcrevo aqui, com a permissão do editor do Blog, posto que algumas estrofes guardam inequívoca relação com o tema abordado. Por favor, leiam devagar. Obrigado e Abraços do
Arsenio Meira Júniot

[...]
O tempo de conhecer mais algumas pessoas,
de aprender como vivem, de ajudá-las.

De ver passar este conto: o vento
balançando a folha; a sombra
da árvore, parada um instate
alongando-se com o sol, e desfazendo-se
numa sombra maior, de estrada sem trânsito.

E de olhar esta folha, se cai.
Na queda retê-la. Tão seca, tão morna.

Tem na certa um cheiro, particular entre mil.
Um desenho, que se produzirá ao infinito, e cada folha é uma diferente.

E cada instante é diferente, e cada
homem é diferente, e somos todos iguais.

No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra o silêncio global, mas não seja logo.

Antes dele outros silêncios penetrem,
outras solidões derrubem ou acalentem
meu peito; ficar parado em frente desta estátua: é um
torso de mil anos, recebe minha visita, prolonga para trás meu sopro, igual a mim
na calma, não importa o mármore, completa-me.

O tempo de saber que alguns erros caíram, e a raiz
da vida ficou mais forte, e os naufrágios
não cortaram essa ligação subterrânea entre homens e coisas;
que os objetos continuam, e a trepidação incessante
não desfigurou o rosto dos homens;
que somos todos irmãos, insisto.

Em minha falta de recursos para dominar o fim,
entrentanto me sinta grande, tamanho de criança, tamanho de torre,
tamanho da hora, que se vai acumulando século após século e causa vertigem,
tamanho de qualquer João, pois somos todos irmãos.

E a tristeza de deixar os irmãos me faça desejar
partida menos imediata. Ah, podeis rir também,
não da dissolução, mas do fato de alguém resistir-lhe,
de outros virem depois, de todos sermos irmãos,
no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime
cotidiano, tudo, mas tudo é nosso irmão.

O tempo de despedir-me e contar
que não espero outra luz além da que nos envolveu
dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,
pequena amplo fulgurante, facho lanterna, faísca,
estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,
mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo
é boa medida, irmãos, vivamos o tempo.

Uma parte de mim sofre, outra pede amor,
outra viaja, outra discute, uma última trabalha,
sou todas as comunicações, como posso ser triste?

A tristeza não me liquide, mas venha também
na noite de chuva, na estrada lamacenta, no bar fechando-se,
que lute lealmente com sua presa,
e reconheça o dia entrando em explosões de confiança, esquecimento, amor,
ao fim da batalha perdida.

Este tempo, e não outro, sature a sala, banhe os livros,
nos bolsos, nos pratos se insinue: com sórdido ou potente clarão.
E todo o mel dos domingos se tire;
o diamante dos sábados, a rosa
de terça, a luz de quinta, a mágica
de horas matinais, que nós mesmos elegemos
para nossa pessoal despesa, essa parte secreta
de cada um de nós, no tempo.

E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,
submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor
rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,
mas não a quero negando as outras horas nem as palavras
ditas antes com voz firme, os pensamentos
maduramente pensados, os atos
que atrás de si deixaram situações.
Que o riso sem boca não a aterrorize
e a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,
dedos torcidos, lívido
suor de remorso.

E a matéria se veja acabar: adeus composição
que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.
Adeus, minha presença, meu olhar e minas veias grossas,
meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,
sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, idéia de justiça, revolta e sono, adeus,
adeus, vida aos outros legada.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
(1902 - 1987)

(In "A Rosa do Povo, editora Record, 1991)

Antonio Cicero disse...

Caro Ralfe,

Primeiro, obrigado pelo elogio.
Em seguida, não vou falar da questão que você levanta sobre a evolução, porque não é disso que aqui se trata.

Contudo, repudio o relativismo implícito na sua suposição de que haja uma verdade “nossa” que se oponha à verdade dos índios. Como diz o grande poeta espanhol António Machado:

“Tua verdade, não: a Verdade.
E vem comigo buscá-la.
A tua, guarda-a para ti.”

Em outras palavras, se conhecemos a verdade sobre determinado assunto, então, quem não concorda com ela está errado; e se eles conhecem a verdade, então, quem não concorda com eles está errado.

E quem disse que os índios aceitariam uma posição relativista como a sua? Segundo o antropólogo Lévy-Strauss que, aliás, baseou-se, entre outras coisas, nos seus estudos dos índios brasileiros, a “atitude de pensamento em nome da qual rejeitam-se os ‘selvagens’ (ou todos os que são chamados de tais) para fora da humanidade, é justamente a atitude mais marcante e mais distintiva dos próprios selvagens”.

E é paradoxal que Lévy-Strauss, tendo sido o mestre dos etnólogos que criaram essa confusão relativista, tenha sido capaz de dizer também o seguinte: “sabe-se, com efeito, que a noção de humanidade, a englobar, sem distinção de raça ou de civilização, todas as formas da espécie humana é de aparição muito tardia e de expansão limitada”.

É claro, pois essa noção de humanidade, sem a qual não seria possível pensar, por exemplo, em direitos humanos, é resultado da razão crítica, desenvolvida principalmente, embora não apenas, na modernidade.

Logo, você está errado nesse ponto: se foi a razão crítica que criou a noção de humanidade, é ela – e não as culturas particulares que, como diz Lévy-Strauss, nem sequer aceitavam essa noção, que “humaniza” o ser humano. Na verdade, é por causa dela que você, que não é índio, se preocupa com os índios. E é por causa dela que eu também me preocupo com eles. Apenas, acho, como Hélio Jaguaribe, que nenhum ser humano merece viver preso num jardim antropológico.

Abraço

Anônimo disse...

Antônio, bom dia! Sobre o texto bem como em seus respectivos comentários, de alto nível por sinal me estranham algumas premissas sendo que não tendo a pretensão de a todas abordar e também chegando bastante atrasado ao mesmo, pontuo apenas o que mais estranhamento me causa.
A abordagem ontológica do tema carece naturalmente de um início, escolho para tanto a exclusão de determinados clichês e, mais uma vez não tendo a pretensão de esgotar o tema começo pelo fim materializado em pergunta: como determinar o destino de um grupo humano desconsiderando sua auto determinação como uma entidade viva(cultura, na definição etnológica clássica) enquanto portadora de sentido e significado? Nesse sentido o reproduzido e referendado artigo de Helio Jaguaribe revela-se de um simplismo gritantemente partidário de teorias á muito superadas sobre o tema; a clara alusão ao retrato do "bom selvagem papel em branco" ou pasto para brancos evidencia uma leitura pobre e partidária da mentalidade medieval pré consciência antropológica da distinção como ferramenta de posse enquanto depreciada e contaminada pela miopia utilitarista que levou a humanidade aos horrores do colonialismo/escravismo.Associar o índio ao Estado no Brasil hoje(07/01/21) é certificar seu fim como indivíduo portador de existência e representação; ou podemos excluir desse debate os diversos interesses que há muito fazem destes alvo dos poucos donos do Jardim Latifundio Brasil. Lembrei me do saudosos irmãos Vilas Boas, do imenso Darcy Ribeiro, enfim de pessoas que realmente escreviam com propriedade sobre o "objeto" em questão. Mas, e finalmente o foco da minha atenção desde a primeira linha não foi o primarismo teórico nem o egocentrismo cego pela luz da dementada realidade; desta-se a ignorância partidária da extinção(anexar/reprimir/resignar) como modo de "inclusão". enfim, um texto triste. Grande abraço, admiro ser trabalho. Miguel Lopes. mik_76history@hotmail.com