O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 5de abril de 2008:
A astúcia do diabo
NUM POEMA em prosa, Baudelaire põe em cena um pregador segundo o qual a mais admirável astúcia do Diabo é nos persuadir de que não existe. Não é difícil entender por que, se o capeta existir, terá interesse em nos fazer crer o contrário.
Em primeiro lugar, ele saberá que quem acredita que ele existe tende a acreditar que também Deus existe (o poeta João Cabral foi a exceção que confirma a regra), coisa que não lhe interessa. Além disso, provavelmente lhe parecerá mais fácil induzir à tentação as pessoas que sequer acreditam que ele exista do que as que o temem.
De todo modo, para uma pessoa que crê que o demo não só existe como que pretende, sob algum disfarce ou através de algum mandatário, persuadir-nos de que não existe, exatamente a persuasividade e a racionalidade de seus argumentos atestarão a sua origem diabólica. E tal pessoa pensará a mesma coisa sobre qualquer consideração que ponha em questão a existência de Deus. Sendo assim, argumento nenhum jamais poderá fazê-la duvidar dessas crenças. Com efeito, a astúcia de satanás é postulada exatamente para blindá-las contra o assalto de qualquer crítica.
Naturalmente aquilo que, do ponto de vista do crente, é força, do ponto de vista da razão é fraqueza. Para esta, tudo o que se imuniza à crítica, tudo o que se furta à prova é irracional. Racionais são a própria crítica, a abertura à crítica e tudo aquilo que, enfrentando a crítica – ainda que diabólica –, a ela sobreviva. Já o irracionalismo é – como a própria tese da astúcia do Diabo – a tentativa de desqualificar o racional.
Observe-se que, se a tese – ou melhor, se a falácia – da astúcia do Diabo caracteriza o arquiinimigo de Deus como aquele que argumenta e critica, isto é, como aquele que é racional, ela explicitamente caracteriza os crentes e, implicitamente, o próprio Deus, como irracionalistas. Na verdade, embora há tempos não seja essa a doutrina dominante da Igreja Católica, trata-se de uma tese perfeitamente compatível com algumas das concepções mais vetustas do Cristianismo. O apóstolo Paulo, por exemplo, regozija-se de que, segundo o profeta Isaías, Deus mesmo tenha afirmado: "Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes".
Ora, que a doutrina de uma religião possa ser irracionalista ou conter fortes elementos irracionalistas não é surpreendente, já que ninguém é religioso graças a considerações intelectuais, mas por outros motivos, como o desejo de comunidade.
Mais surpreendente é observar que diferentes variantes da falácia da astúcia do Diabo, adaptadas para os mais diferentes fins, tenham sido adotadas por pensadores laicos e modernos.
Em psicanálise, por exemplo, a denegação é a astúcia através da qual o analisando (análogo ao Diabo) nega a interpretação do analista (análogo ao crente). Ao fazê-lo, porém, ele inconscientemente a confirma, segundo o analista. O próprio Freud – tendo reconhecido que, desse modo, garante-se sempre o triunfo do analista, pois, quando o paciente o aprova, lhe dá razão, mas, quando o contradiz, trata-se apenas de um sinal de resistência, o que de novo lhe dá razão – explica que essa questão só se resolve na prática, no contexto concreto da análise.
Um exemplo mais grave é a tese de Heidegger de que o mundo moderno já se encontra tão destituído, do ponto de vista espiritual, que não consegue mais sequer perceber a falta de Deus como uma falta. Assim, do mesmo modo que o crente supõe que aquele que negue a existência do Diabo ou de Deus involuntariamente a confirma, Heidegger supõe que aquele que negue sentir falta de Deus com isso dá, também inconscientemente, ainda maior evidência da falta que Ele faz do que aquele que abertamente reconheça sentir falta d'Ele.
Muitos outros exemplos poderiam ser dados, mas considero especialmente interessante – por poder ser estendida a grande parte do pensamento marxista sobre ideologia – a afirmação de Adorno de que a aparente liberdade em vigor no mundo moderno torna mais difícil a percepção da servidão real em que se vive, a qual, com isso, é agravada. Isso quer dizer que aquele que, no mundo moderno, pretenda ser livre ou demonstrar a sua liberdade é ainda mais dominado do que quem já se considere escravo. Pelo mesmo raciocínio, quanto menos um pensmento se considere ideológico, tanto mais o será.
É assim que, há séculos, a falácia da astúcia do Diabo tenta in limine desqualificar qualquer objeção que se pretenda fazer ao irracionalismo a que ela no fundo serve.
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16 comentários:
Vida: labareda e calmaria.
Sábios não se sabem sábios.
Só observam, como felinos.
A vida empresta aos loucos o que tira aos poetas.
Aos idiotas, dá a ilusão de ser feliz.
A astúcia do Diabo,´dará sempre muitos versos poeta querido!!No Cordel,se observamos bem...é tão rico...eu fiz uns agora...na ilusão...beijos cariocas.
Um poema põe-se à vista
Quando dialoga com o cão
Quando pena uma conquista
Já perdeu-se na amplidão
Pôs a crença na bonança
Titubeou duas danças
Creu não creu o pau comeu...
Atado ao fiel da balança...
Nina Araújo.
pensador,
boas comparações, texto claro. eu particularmente acho que aquilo que se nega com mais veemência é aquilo que se teme com mais fervor.
sempre proveitosa a vinda,
abraços!
Caro Antonio,
Adorei! Perdi a conta do número de vezes em que vi esse tipo de argumento ser utilizado. Mais uma vez, sua explicação certeira torna clara a compreensão de um assunto normalmente mistificado. Parabéns.
Até o curso!
abraço,
lucas nicolato
Prezado Antônio Cícero,
Creio que a sutil vivissecção que fizestes do tipo de pensamento que se apóia na falácia da "Astúcia do Diabo" aplica-se (infelizmente) com precisão ao Cardeal Joseph Ratzinger:http://www.mulheresdeolho.org.br/?cat=19
Digo infelizmente porque através de algumas de suas colocações infelizes esse Cardeal do Santo Ofício me fêz perceber a grandeza de percepção de Geopolítica que possuía o cardeal que ocupava o posto de Papa antes dele.
Antonio,
No comentário anterior eu disse "até o curso!", mas eu não sabia que o curso tinha sido adiado. Fica meio sem cabimento a frase. Então pode ignorar o comentário. Só queria dizer que gostei muito desse artigo em particular.
um abraço,
lucas
Um banho de filosofia a essa hora da manhã pra descrente nenhum perder a fé na taba:
Se de fato existem
Provável que estejam por perto
Se deus e o diabo são imaginação
Não o são a Terra e o Sol
-um novo leitor que chega.
Caro Antonio Cicero, teus artigos sao otimos pois mesmo que por vezes nao concordemos totalmente com o conteudo, tua maneira pausada e reflexiva de escrever, nos faz parar, pensar e ponderar.
O Antonio Vieira num de seus sermoes (O do Santissimo Sacramento de 45), toca em alguns do temas abordados por voce sobre a falacia da existencia, sobre a eficacia do 'misterio' e do 'encoberto', e sobre a nem sempre clara relacao entre agnosticismo e razao. Nao deixa de ser divertido e ironico quando Vieira troca de lugar a imagem do diabo pela do "Politico".
Pois é, tem de ficar de olho nessas espertezas que têm o objetivo de levar as pessoas a uma obediência cega.
Impedir a crítica e o uso da razão é desumano, ou melhor, anti-humano (e ainda assim, para nossa tristeza, humano, demasiadamente humano).
Forte abraço,
Héber Sales
Caro Lucas,
achei que tinha postado seus comentários e deixei para respondê-los depois; e aí vi que não os tinha nem postado. Desculpe. Agora sim, eles estão aí.
De qualquer modo, entendi a coisa do pop desde o primeiro comentário. Obrigado.
Abraço grande,
Antonio Cicero
Caro Antonio,
Não há do que se desculpar!
um abraço,
lucas
perfeito! :)
Prezado Antônio,
A astúcia do diabo é realmente um perigo. O seu texto é brilhante ao apontar as sutilezas desta astúcia. Somente discordo que há o pergigo de generalizar a astúcia. Em algumas situações existe uma cartografia da verdade que exclui outros espaços de entendimento. Aí é a astúcia de deus imperando. PARABÉNS pelo blog.
O PODER DA PALAVRA EM ISRAEL
(ES.23)
(PV.28.9) - O QUE DESVIA OS OUVIDOS DE OUVIR A LEI, ATÉ A SUA ORAÇÃO SERÁ ABOMINÁVEL; (JÓ.34.10) – PELO QUE VÓS, HOMENS SENSATOS, ESCUTAI-ME: (AR.90.9)
(AP.2.12) - Estas cousas diz Aquele que tem a espada afiada de dois gumes: (1CO.14.18) – Dou graças à Deus, porque falo em outras línguas mais dos que todos vós; (CL.4.4) – para que eu o manifeste como devo fazer; (EC.15.22) – porque Ele não faz gosto de ter uma multidão de filhos infiéis e inúteis: (JB.10.30) – Eu e o Pai somos um: (1CO.6.17) - Mas quem se une ao Senhor, é um Espírito com Ele: (MT.12.30) – Quem não é por mim, é contra mim, e quem comigo não ajunta espalha: (JB.12.48/49) Quem me rejeita e não recebe as minhas palavras, tem quem o julgue, a própria palavra que tenho proferido, essa o julgará no último dia; porque eu não tenho falado por mim mesmo, mas o Pai, que me enviou, Esse me tem prescrito o que dizer e o que anunciar: (JB.15.20) – Lembrai-vos da palavra que eu vos disse: (PV.18.21) – A morte e a vida estão o poder da língua, o que bem a utiliza come do seu fruto: (EC.28.22) – Muitos morreram passados ao fio da espada, porém não tantos como os que morreram pela sua língua: (NM.24.4) – Palavra Daquele que ouve os ditos de Deus, o que tem a visão do Todo-Poderoso e prosta-se, porém de olhos abertos. (MT.3.17) – E eis uma voz do céu que dizia: (SL.149.6) – Nos seus lábios estejam os altos louvores de Deus, na suas mãos espada de dois gumes:
(IL.113.9) – E VÓS OUVISTES A PALAVRA DO HOMEM SÁBIO, QUE UNE AS ALMAS, AO ESCREVER A SANTA LEI; QUE PODE LER A SUA ORAÇÃO, LENDO AO ESPÍRITO DO DEUS VIVO EM SI:
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