13.2.08

Antero de Quental: Divina comédia

DIVINA COMÉDIA

Erguendo os braços para o Céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: - «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
Num turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: - «Homens! porque é que nos criastes?!»



QUENTAL, Antero de. Sonetos. Lisboa: Sá da Costa, 1962, p.176.

3 comentários:

Anônimo disse...

que lindo poema, cicero!

é aquela tal estória: será que somos feitos à imagem e semelhança de/dos deus/deuses ou o contrário?

o foda é que, ainda por cima, usamos os deuses como bodes espiatórios, coitados, por serem responsáveis por nossa existência e, portanto, culpados, em parte, pelas atrocidades por nós cometidas. que sacanagem com os caras (rs)...

arrebentou!

beijo, bonito!

Unknown disse...

estranho tempo

que percorro a cada dia

transcendendo, remoendo

no beiral das portas

tempo arguto, irônico

esconderijo da lembrança, pai do esquecimento

estrada sinuosa que conduz à morte

inexorável fim de toda a carne

tábula rasa de poetas e comerciantes

rebeldes e medrosos

conformistas e revolucionários

amantes indeléveis e homens secos, sem paixão

solitários

diamantes à mercê dos dias, das horas,

que atravessas

sem disfarces, implacável

como abismo interminável

precipício, foice e fim

Oleg disse...

Que ironia trágica: pedindo ajuda a um ser supremo, o poeta descobre, no lugar dele, um buraco de Sartre! Pode ter sido um dos dilemas irresolúveis que o levaram, no fim das contas, ao suicídio... Não é, porém, um exemplo do pensamento cético nem, muito menos, ateu, mas sim o drama de um intelectual que, por um lado, não aceita "cette création où les enfants sont torturés", nem chega, por outro, a "être le médecin", descrito de forma meio paradoxal.