13.1.13

Murilo Mendes: "O utopista"




O utopista

Ele acredita que o chão é duro
Que todos os homens estão presos
Que há limites para a poesia
Que não há sorrisos nas crianças
Nem amor nas mulheres
que só de pão vive o homem
que não há um outro no mundo.




MENDES, Murilo. "Os quatro elementos". In:_____. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

14 comentários:

Anônimo disse...

Caramba, é um poema bastante inteligente. A incompatibilidade semântica dos versos com o título é desconcertante. E tudo se resolve no último verso, na negação do outro mundo. Sendo a crença em outro mundo a base de qualquer utopia, parece-me uma descrição pelo inverso, que define o que é o utopista por aquilo que ele não é.

Antonio Cicero disse...

Caro Erick,

Penso que uma outra interpretação é cabível. A palavra grega “topos” quer dizer lugar. A palavra “ou” quer dizer “não”. “Ou topos” – que se pronunciaria “utopos” seria algo como o “não-lugar” ou o “lugar nenhum” de que fala a canção dos Titãs. Não existia, para os gregos, a palavra “topia”, mas More a concebeu como algo mais abstrato do que “topos”. Seria uma espécie de “lugaridade”, isto é, a propriedade de ser um lugar. “Ou topia”, que se pronuncia “utopia”, seria então uma espécie de negação da propriedade de ser um lugar. E ficou sendo o nome da cidade ideal imaginada por More. Mas veja: a palavra “ou”, isto é, “não”, é a base dela. Ela é, então, em primeiro lugar, a negação da propriedade de ser – ou de ter – um lugar no mundo.

Marx, tendo em mente a obra de More, dizia que “são utópicos aqueles que separam as formas políticas das suas condições sociais e as concebem como dogmas universais, abstratos”. Isto é, os pensadores utópicos eram, segundo ele, ainda idealistas e não, como ele, materialistas históricos.

Pois bem, o poema do Murilo Mendes, usando o sentido original da palavra “utopia”, concebe exatamente os materialistas, para quem “o chão é duro”, como os verdadeiros utopistas. Com efeito, para muitos marxistas, o mundo em que vivemos é irremediável. Para eles, os homens estão presos a suas classes sociais, a poesia e a arte são produtos ideológicos, logo limitados, toda felicidade que esse mundo aparenta é ilusória, a única coisa que conta neste mundo são as condições materiais de vida (o “pão”), e “não há um outro no mundo”.

Veja bem que o verso, tal como aparece no livro Poesia completa e prosa não diz “não há um outro mundo”, mas “não há um outro no mundo”. Assim, o que ele está dizendo que não há um outro, além do homem, no mundo. Em outras palavras, para o utopista materialista, não há Deus.

E, se nos lembrarmos de que Murilo Mendes era católico, entenderemos que ele está fazendo é inverter a acusação que os materialistas – e Nietzsche – fazem ao cristianismo: o de que o Deus – ou o “outro mundo” não passa da negação do mundo real, material. Para Murilo, então, quem realmente nega o mundo real é exatamente o utopista.

E não estarão certos tanto o materialista, quando toma a religião como, no fundo, negação do mundo, quanto o religioso, quando, simetricamente, toma o utopismo como, no fundo, negação do mundo?

Anônimo disse...

Caro Cicero,

li errado o último verso. Isso realmente muda tudo. Para mim, a inversão feita pelo Murilo estava evidente, pois o materialismo da descrição contrastava com utopia. Ainda assim, eu ignorei o que, agora, você ressaltou: negar "sorriso nas crianças" e "amor nas mulheres" é, também, negar uma parte do mundo.

Quanto a sua pergunta, concordo, ambos estão certos. No entanto, você faz a oposição materialista X religioso, e religioso X utopista. Vejo que o materialista marxista identifica-se, com certeza, com o utopista. Porém fico com uma dúvida conceitual: o materialismo se resume ao marxista? Arrisco dizer que um materialismo niilista me parece opor-se razoavelmente tanto ao utopismo quanto ao pensamento religioso.

Antonio Cicero disse...

Caro Erick,

concordo com o que você diz. Nem todo materialismo é utopista. Além disso, embora a ideologia de muitos -- e, talvez, da maior parte -- dos marxistas possa ser descrita como "utopista" no sentido de Murilo, creio que o pensamento do próprio Marx não se identifica necessariamente com isso. E o niilismo radical a que você se refere opõe-se, de fato tanto ao utopismo quanto ao pensamento religioso.

Abraço

Lucas disse...

Eu acho interessante como o poema pode te levar a ver dois tipos de otimismo: o materialista que quer fazer brotar um sorriso na mulher pela atuação militante e material do mundo, daquele otimismo que diz poder ver o sorriso da mulher, e ao dizê-lo nomeia-se uma nova forma de constatar alí um sorriso onde antes não se via.

Arthur Nogueira disse...

cicero,

é um privilégio acompanhar, além dos belos poemas que você disponibiliza neste espaço, discussões como essa, provocada pelo erick, a quem agradeço imensamente.

beijos

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,

sempre uma alegria vir aqui! (Meu recanto mais querido!!!!!)



Abraço forte,
Adriano Nunes

carlos disse...

Fiquei satisfeito ao ler Murilo Mendes em seu Blog e no seu Facebook. Murilo Mendes é natural de minha cidade (ou eu sou natural da cidade dele) Juiz de Fora, e hoje empresta seu nome ao Museu da Universidade Federal de Juiz de Fora o MAMM: http://www.ufjf.br/mamm/
Belas foram as interpretações deste fantástico poema...vimos que o mesmo foi mais interpretado que escrito. E esta é a função de um poema. Aproveitando o espaço vai mais um belo poema de outro fenomenal poeta de Juiz de Fora, Pedro Nava:
O Defunto
A Afonso Arinos de Melo Franco

Quando morto estiver meu corpo
evitem os inúteis disfarces,
os disfarces com que os vivos,
só por piedade consigo,
procuram apagar no Morto
o grande castigo da Morte.

Não quero caixão de verniz
ou os ramalhetes distintos,
os superfinos candelabros
e as discretas decorações.

Eu quero a morte com mau gosto!

Dêem-me coroas de pano.
Dêem-me as flores de roxo pano,
angustiosas flores de pano,
enormes coroas maciças,
como enormes salva-vidas,
com fitas negras pendentes.

E descubram bem minha cara:
que a vejam bem os amigos.
Que a não esqueçam os amigos
que ela perturbe os amigos
e que lance nos seus espíritos
a incerteza, o pavor, o pasmo...
E a cada um leve bem nítida
a idéia da própria morte.

Descubram bem esta cara!

Descubram bem estas mãos:
Não se esqueçam destas mãos!
— Meus amigos! Olhem as mãos!
Onde andaram, que fizeram,
em que sexos se demoraram
seus lábios quirodáctilos?
Foram nelas esboçados
todos os gestos malditos:
até furtos fracassados
e interrompidos assassinatos...

— Meus amigos! Olhem as mãos
que mentiram às vossas mãos...
Não se esqueçam:
elas fugiram
da suprema purificação
dos possíveis suicídios...
— Meus amigos! Olhem as mãos,
as minhas e as vossas mãos!

Descubram bem minhas mãos!

Descubram todo o meu corpo.
Exibam todo o meu corpo
e até mesmo do meu corpo
as partes excomungadas,
as partes sujas sem perdão,
que eu esmagava nos sábados
e aos domingos renasciam!

— Meus amigos! Olhem as partes...
Fujam das partes...
Das punitivas, malditas partes...
— Meus amigos! Arranquem as suas...
Esmaguem as suas...
Amputem as suas...

Eu quero a morte nua, crua,
terrífica e habitual,
com o seu velório habitual

Ah, o seu velório habitual...
Não me envolvam num lençol:
a franciscana humildade,
bem sabeis que não se casa
com meu amor pela Carne
com meu apego ao Mundo.

Eu quero ir de casimira:
calça listrada, plastron...
com os mais altos colarinhos,
com jaquetão com debrum...

Dêem-me um terno de ministro
ou roupa nova de noivo...
E assim, solene e sinistro,
quero ser um tal defunto,
um morto tão acabado,
tão aflitivo e pungente,
que a sua lembrança evenene
o que restar aos meus amigos
de vida sem minha vida.

— Meus amigos! Lembrem de mim.
Se não de mim, deste morto,
deste pobre terrível morto,
que vai se deitar para sempre,
calçando sapatos novos!
Que se vai como se vão
os penetras escorraçados,
as prostitutas recusadas,
os amantes despedidos,
como os que saem enxotados
e tornariam sem brio
a qualquer gesto de chamada.
Meus amigos! Tenham pena,
senão do morto, ao menos
dos dois sapatos do morto!
Dos seus incríveis, patéticos
sapatos pretos de verniz.
Olhem bem estes sapatos,
e olhai os vossos também...

Pedro Nava, Rio de Janeiro, 23 julho de 1938 Publicado no livro O Defunto (1967).

Anônimo disse...

Fico esplendidamente maravilhado ao imaginar minha estimulante nota de protugueix

Elly disse...

gostaria de saber suas opiniões sobre a ultima frase do verso "Que não há um outro no mundo" desde já agradeço!

Antonio Cicero disse...

Elly,

acho que o que penso sobre essa frase está dito no meu primeiro comentário, logo depois do primeiro comentário de todos, que é o do Erick.

Abraço

Unknown disse...

O que quer ser um filofiló utopista

Ricardo disse...

Grande Murilo! Posso sugerir uma publicação do mesmo Murilo Mendes? O extraordinário "As ruínas de Selinunte". Grande abraço!!

Antonio Cicero disse...

Caro Ricardo,

Muito obrigado pela sugestão. Acabo de postar "As ruínas de Selinunte" no blog.

Grande abraço