6.10.12

Roberto Corrêa dos Santos: "O Porventura, de Antonio Cicero"



Com grande felicidade recebi, do grande artista e teórico da literatura e da arte Roberto Corrêa dos Santos, o seguinte belíssimo texto sobre o meu livro Porventura:





O Porventura, de Antonio Cicero


por Roberto Corrêa dos Santos



I



Alumbram-me, diga-se logo, nos poemas plasmados no Porventura, de Antonio Cicero, as sabedorias de vida e de arte verbal ali inscritas – sabedorias sempre a um tempo joviais e maduras; alumbram-se igualmente o ter-se feito no livro um trajeto que permite a todos o poder seguir sem asperezas de transcurso a variedade de pensamentos plásticos, modulares e rítmicos sobre coisas e existência várias e o quente espalhar-se nos versos um si assubjetivo e, portanto, público, exposto com as virtudes de um medido dizer, uma enunciação que não se transborda senão até o exato afeto a propagar-se do leitor no espírito: ora a voz ergue-se vivaz e aos saltos e alegre, ora a voz traz o desenho não do sussurro mas do construir-se um cantar em escrita e em tom, afirme-se, deliciosamente afagante: difícil não ser pelas linhas conduzido, em leveza não presente em poeta algum dos do Brasil e assim entregar-se ao bom traço das direções que Cicero faz ocorrer qual um acontecimento, um sopro, uma epifania sem distúrbio. Nas modéstia e brancura clássicas do Porventura, desde logo envolvido sou por frases que se encontram em apagamentos que avocam o, destaque-se, advérbio... ‘de dúvida’, de inexistente dúvida; alteia-se um porventura de forma nominal, a um passo do nome, do pronome, da massa de um quase-substantivo; não só de polidezas o termo do título se constrói. Em inventável ‘porventura, terias uma xícara?’ marcar-se-ia o talvez, não como dúvida ou hesitação, e sim como hipótese; não o sinal de um indagar retórico mas o grafismo de um movimento, de um balanço, um pêndulo elegante e risonho no mundo das frases, das tantas frases de hoje, escritas e desgraciadas; no porventura, esse, bem o talvez: um talvez a provavelmente deslocar-se para inserir-se entre o definido e o indefinido, constituindo outras macias sinuosidades na ordem normalmente dura das perguntas, e, ainda também, com o termo, o porventura, produz-se certa evidência – sendo título, e só (seus suplementos lá, no corpo dos versos) – de suavíssimo enigma; enigma posto na capa (junto ao sempre belo compor de Luciano Figueiredo), oferecendo no conjunto geral da obra uma tal interessante contemporaneidade a situar-se em parceria com os muitos feitos de arte visual constituídos ‘simplesmente’ pelas recolhas e pelo registros de matérias brandas que visam à partilha de mimos, de delicados mimos, como os de Brígida Baltar ou os de Daniela Seixas – aquela pesca orvalhos, brisas, noites, coloca-os em frascos; esta cola pestanas que tombam de seus olhos diante de folhas de papel de trabalho, e nascem sob adesivos discretos parênteses, parênteses vindos do corpo. Vem do corpo e do ar o Porventura, de Cicero: o livro guarda-os, protege-os, afaga-os; inteiro vi seu irmão Roberto, Corrêa como eu. E nele sorriu meu irmão Luizinho, Lulu Corrêa.


II


Poder-se-ia o porventura instalar-se em ‘faria eu isto de morrer agora se porventura não tivesses chegado a tempo’; na frase, como no retângulo editado, certa bênção pagã, recordos de aventurança, potências de um não-acontecer justo por destino: assim, instalam-se na espacial geometria de Cicero (a) o campo aberto, (b) a vida sagrada e sem dogma, (c) a possibilidade ardente, (d) o riso e a fenda, sem melancolias fracas. E a epígrafe, entretanto, põe-se a rasurar um dos porventura, aquele relativo à poesia: ‘a poesia’ – certifica, com quem escreve, Cocteau –, ‘a poesia, indispensável’. Dessa convicta firmeza, desse nenhum porventura entre os muitos outros porventura, vão-se fazendo esboços de uma aristocrática Poética e seus itens gerais. Descrevo-os: (1 poema 1) em estado de poesia, o não ser possível o amadurecimento: pode alguém tornar-se velho, somente velho; velho e, jovialmente, não maduro – deuses, sim, esses poderão madurar os amados, próximos e a virem; (2 poema 2) em estado de poesia, o impossível de evitar-se a morte, podendo-se, porém, afastar sombra e derrota; (3 poema 3) em estado de poesia, o perderem-se os rumos do olho e do ego, elaborando-se e firmando-se, e isso apenas possivelmente, o vigor do a tornar-se; (4 poema 4) em estado de poesia, o humor e o contraste lado a lado e no mesmo largo continente; (5 poema 5) em estado de poesia, o interditar-se das histórias pingentes e esmolas; (6 poema 6) em estado de poesia, a entrega à arte de fisgar o que para sempre escapa; (7 poema 7) em estado de poesia, o exame cuidadoso da coisa olhada, tendo em conta, dia a dia, o inadiável retorno; (8 poema 8) em estado de poesia, o estar sempre aquém no gesto de caminhar e caminhar em direção aos jamais suficientes louvores a mestres genealógicos; (9 poema 9) em estado de poesia, o saltar em voo, tendo o terreno; (10 poema 10) em estado de poesia, o ir à matéria do amor, a que suspende o repirar e o ver; (11 poema 11) em estado de poesia, os esquecimentos quanto a feitos quando feitos; (12 poema 12) em estado de poesia, o destacar da morte a cor; (13 poema 13) em estado de poesia, a deriva e o esmo em mapas idos, até refazer da origem um dêitico do aqui, e do já; (14 poema 14) em estado de poesia, o deflagrar de frases sobre o ativo e grande vazio; (15 poema 15) em estado de poesia, o bem o grande bem do desviar-se; (16 poema 16) em estado de poesia, o de novo esquecer-se do exato término-a-vir, dobrando-se por sobre a agoralidade, um termo seu, Cicero; (17 poema 17) em estado de poesia, o dar a ver, no menor, o miolo, o isto de entes segredando; (18 poema 18) em estado de poesia, o restar em páginas o vagado sobre solos e grãos; (19 poema 19) em estado de poesia, o precaver-se e o prosseguir; (20 poema 20) em estado de poesia, o concentrar, por vezes, todos os plurais; (21 poema 21) em estado de poesia, o abrir com as mãos o que seja natural, desentranhando-lhe duas não contornáveis cores provenientes de tintas básicas; (22 poema 22) em estado de poesia, o auscultar na seta à frente o sentido do vital antes; (23 poema 23) em estado de poesia, o aconchegar-se no macio bom das coisas, dando-se de algum modo ao pronto para o interromper; (24 poema 24) em estado de poesia, o traçar em pathos de distância o implacável mas retido grito; (25 poema 25) em estado de poesia, o reconhecer o terreno, defendendo-o se necessário; (26 poema 26) em estado de poesia, o saber – dele valendo-se – da potência das tinturas; (27 poema 27) em estado de poesia, o aceitar a hipótese de ser traído pelo que fez; (28 poema 28) em estado de poesia, o clarear, por curvos jeitos, modos alguns de as ilusões funcionarem; (29 poema 29) em estado de poesia, o aclamar as aberturas que se incorporam em virtude do muito mais do que houver no haver; (30 poema 30) em estado de poesia, o sublinhar o risco a inserir-se entre o incômodo, o outro, o pensamento; (31 poema 31) em estado de poesia, o indicar com beleza tonteante a quase infixável passagem do epifânico; (32 poema 32) em estado de poesia, o despedir-se; (33 poema 33) em estado de poesia, o despedir-se; (34 poema 34) em estado de poesia, o recolher-se no ao redor; (35 poema 35) em estado de poesia, o remeter a, o remeter a – dormir. Dormir, após as curvas verbais, as teclas das rimas em costuras internas como se pontos gráficos e notas musicais, as pianísticas, e a flauta soando, interrompendo-se, e as muitas ligas conjuntivas eeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee: as personagens surgindo e logo familiares, próximas: uma atual arte de mover e mover e mover um novo Sonho de uma noite de verão, por meio de um raro e outro como se, um como se poético-ficcional – feliz –, a girar o Porventura amplo, seu teatro lírico de radical delicadeza forte; assim o mirei seu operar, Cicero, mirei-o com todo o corpo – extasiado, sim: extasiado.



4 comentários:

Alcione disse...

Maravilha de artigo, tão bem interpretado, esse poeta vai longe, escreve também filosofia, "finalidades sem fim", realmente acho essencial que a galera conheça sua obra, para mim o melhor, pelo menos dos que conheço, tanto pela sua poética quanto pela sua filosofia, melhor de tudo, ele se comunica com agente pelo blog, muito democrático, adoro, por mim ele seria o nosso ministro da cultura, rss, desculpem mas acho que nossa juventude ganharia muito com isso, the best, Cicero você é demais!!!

Antonio Cicero disse...

Alcione,

nem sei como agradecer por palavras tão calorosas. Muito obrigado!

Beijo

EDSON disse...

Cícero, o 'Porventura' tem sido, ultimamente, um dos meus livros de cabeceira.
Tenho uma admiração grande por sua pessoa, e pelo poeta que és.
um forte abraço e continue a nos iluminar com o seu saber e a sua 'poiesis'!
O Axé mais vibrante,
do
EDSON DA BAHIA

Antonio Cicero disse...

Edson da Bahia,

muito obrigado! Suas palavras me fizeram feliz.

Grande abraço