2.7.12

Entrevista a Amarílis Lage




Há cerca de dez dias, concedi uma entrevista a Amarílis Lage, que usou alguns trechos da mesma em matéria intitulada "Um claro enigma", publicada no suplemento "Eu & Fim de Semana", do jornal Valor Econômico. Resolvi aqui postar a entrevista integral.


Entrevista a Amarílis Lage:




Amarlis Lage: Gostaria de começar abordando um tema sobre o qual vi você falar em uma entrevista na Globo News. Nela, você apontava uma diferença da poesia em relação à forma como lidamos com outros bens culturais: podemos desfrutar de uma música sem prestar muita atenção a ela, por exemplo, mas a poesia exige tempo, exige um mergulho. Por isso, seria “incompatível” com nosso tempo. Mas, também por isso, seria “necessária” ao nosso tempo. Achei essa ideia muito interessante e gostaria de entendê-la melhor. Hoje, é comum a impressão de que a poesia tem pouca visibilidade ou impacto (aliás, gostaria de saber se você compartilha essa impressão). Isso seria reflexo dessa incompatibilidade? A produção artística tem sido pressionada por aspectos como consumo e velocidade?

Antonio Cicero: Na aurora da cultura ocidental, na Grécia, a poesia era cantada. A poesia lírica se dava como letras de canções. Tudo indica que a poesia épica, como a de Homero, consistia num recitativo, isto é, numa espécie de rap. Nesse tempo, ela podia ser fruída passivamente, como hoje fruímos uma canção. Já a poesia escrita é diferente. Ela exige concentração. Ela consome tempo. Por isso, seu público sempre foi muito reduzido, em comparação com o público da poesia musicada. Hoje essa situação é mais dramática, pois nos encontramos presos a uma cadeia utilitária em que o sentido de cada coisa e pessoa que se encontra no mundo, o sentido inclusive de cada um de nós mesmos, é ser instrumental para outras coisas ou pessoas. Ninguém – nada – jamais vale por si, mas apenas como meio para outra coisa ou pessoa que, por sua vez, também funciona como meio para ainda outra coisa ou pessoa. Estamos praticamente o tempo todo trabalhando ou desempenhando, inclusive – e talvez sobretudo – através dos computadores, da Internet, dos celulares, dos tablets etc. Como ter tempo para a poesia? No entanto, parece que, justamente por isso, é ela que pode nos livrar, ao menos temporariamente, dessa cadeia, proporcionando-nos acesso a outra temporalidade. Ela representa uma alternativa à vida totalmente escravizada ao princípio do desempenho.

Enquanto pensava sobre isso, acabei me lembrando do papel que a internet pode ter. De modo geral, o mundo digital é muito associado a imediatismo e dispersão. Porém, algumas pessoas com as quais conversei consideram a internet um ambiente muito propício para a poesia. Um dos aspectos levantados foi o fato de tanto a poesia quanto o mundo virtual ultrapassarem a questão da linearidade. Outro, mais prático, se referia à facilidade para a divulgação de poemas, já que o espaço para a poesia seria restrito nas editoras e livrarias. Em sua opinião, a internet tem um efeito significativo sobre a produção, a divulgação ou a leitura de poesia no Brasil? Se sim, de que forma isso ocorre?


Sim. Como você observa, hoje qualquer um com acesso à Internet pode nela publicar seus poemas. Por outro lado, isso mesmo significa que os poemas de um poeta desconhecido provavelmente passarão despercebidos em meio a centenas de milhares de outros poemas de outros desconhecidos. E a Internet não propicia a atenção, mas a dispersão do internauta: o que significa também que ela não propicia as condições de concentração necessárias para a plena fruição da poesia.

Outra ideia com a qual tenho me deparado com frequência é a de que a poesia brasileira hoje vive um momento marcado pela diversidade. Você concorda com essa percepção ou vê pontos de convergência na boa poesia contemporânea? Havia de fato no passado (refiro-me, especificamente, ao século passado), uma percepção mais clara de quais eram os nomes e os modelos dominantes?

Há sem dúvida uma grande diversidade na poesia contemporânea. Não vejo nenhuma tendência dominante. Tampouco há modelos dominantes. Creio, entretanto, que o debate em torno do cânone poético continua, com o mesmo grau aproximado de concordância e discordância. Poucos hoje discordam, por exemplo, da importância de Bandeira, Drummond, Cabral, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Ferreira Gullar ou Augusto de Campos.

Vi uma entrevista na qual você dizia que “não há poesia contemporânea - ou melhor, não há boa poesia contemporânea - que se pretenda imune às influências vanguardistas”. De que forma essa influência se dá na boa poesia contemporânea? Lembro que você se referia à liberdade em relação ao uso das formas no poema. A influência se dá também em outros aspectos?

Antes da experiências das vanguardas era comum o fetichismo de determinadas formas poéticas. Uma sequência de versos que correspondesse a certas formas fixas – a um soneto, por exemplo – era já tida como um poema. Por outro lado, um texto que violasse certas regras tradicionais – que não consistisse de versos métricos, por exemplo – não era considerado um poema. Ao produzir textos que, violando essas regras tradicionais, não só pretendiam ser poemas, mas, efetivamente, funcionavam como verdadeiros poemas, as vanguardas mostraram a possibilidade da invenção de novas formas poéticas e superaram o fetichismo tradicional. Essas são as maiores lições que elas nos legaram. Além disso, os grandes poetas vanguardistas, como todos os grandes poetas, deixaram-nos poemas admiráveis, que muito nos ensinam sobre a poesia.

Ainda sobre o uso das formas – vejo que parte da crítica olha essa heterogeneidade com muita desconfiança. Posso exemplificar com trechos de um texto relativamente recente da Iumna Maria Simon publicado na Piauí: “O passado, para o poeta contemporâneo (...) ficou reduzido, simplesmente, à condição de materiais disponíveis, a um conjunto de técnicas (...) que podem ser repetidos, copiados e desdobrados”; “Até onde vejo, as formas poéticas deixaram de ser valores que cobram adesão à experiência histórica e ao significado que carregam”; “O poeta entra na dita contemporaneidade como um consumidor, que pode usar todas as formas disponíveis sem se comprometer”.
Essa tem sido uma questão central para a crítica no Brasil?
Que desafios e vantagens você acha que essa heterogeneidade traz para o poeta e para o leitor?


Sobre a primeira citação que você faz, isto é, “O passado, para o poeta contemporâneo (...) ficou reduzido, simplesmente, à condição de materiais disponíveis, a um conjunto de técnicas (...) que podem ser repetidos, copiados e desdobrados”, observo o seguinte. Desde sempre, o passado da poesia ofereceu aos poetas materiais e técnicas. Os poetas lírico gregos, como Píndaro, por exemplo, citavam em seus poemas versos inteiros de Homero. Atenaios dizia que as tragédias atenienses eram migalhas de Homero. O poeta romano Horácio se gabava de ter transplantado formas gregas para o latim. Os poetas contemporâneos fazem algo equivalente. Por que, porém, pensar que, na poesia contemporânea o passado “ficou reduzido” a materiais e técnicas, quando ele era muito mais que isso, para os antigos? Cada poeta tem sua relação singular com o passado, que jamais se reduz a técnicas ou materiais, embora também inclua estes. O que me parece redutiva é a leitura que Simon faz dos poetas contemporâneos.

Sobre a segunda citação, isto é, “Até onde vejo, as formas poéticas deixaram de ser valores que cobram adesão à experiência histórica e ao significado que carregam”, observo o seguinte. Formas jamais cobram coisa nenhuma. Um soneto tinha um sentido para Petrarca, outro, completamente diferente, para Ronsard, que se lixava para o sentido que o soneto tivera para Petrarca, outro, completamente diferente, para Góngora, que se lixava para o sentido que o soneto tivera para Ronsard ou Petrarca; e o mesmo pode ser dito, em relação a seus predecessores, de um soneto de Baudelaire ou de Mário de Andrade ou de Drummond, ou de Paulo Henrique Britto. No fundo, Simon é vítima do fetichismo da forma, que descrevi acima.

Sobre a terceira citação, isto é, “O poeta entra na dita contemporaneidade como um consumidor, que pode usar todas as formas disponíveis sem se comprometer”, observo o seguinte. Primeiro, todo produtor é também um consumidor. Segundo, em cada poema, tudo é conteúdo: e tudo é forma. É entre formas que se repetem e formas que não se repetem que se criam todos os poemas. A sintaxe do poema, as relações paronomásticas das palavras que o compõem e as próprias palavras são formas/conteúdos. Em relação a tais formas, as formas fixas não possuem nenhum privilégio. Trata-se apenas de formas que são catalogadas porque se repetem. No final, o que conta é a totalidade das formas/conteúdos que interagem entre si para produzir um objeto absolutamente singular. Dado que não há fórmulas nem receitas para criar tais objetos, todos os poemas bons são experimentais. É pena que a professora não se tenha dado ao trabalho de observar de perto como trabalham os poetas contemporâneos. Ela talvez tivesse então percebido que como eles, ao contrário dela, não são vítimas do fetichismo da forma fixa, são capazes de usar tais formas simplesmente na qualidade de autoimposições formais arbitrárias que, contrapondo-se à espontaneidade criativa, imponham tensões estimulantes ao processo da produção do poema. Tal é o sentido, por exemplo, da afirmação de João Cabral de que a rima é necessária, pois “para se criar algo, é necessário um esforço. Um obstáculo diante do ser o obriga a muito mais esforço e faz com que ele atinja o seu extremo”. É normalmente com esse propósito que os poetas contemporâneos usam as formas fixas. Elas são, para eles, meios, e não fins.

Terceiro, o compromisso do poeta é e deve ser, em primeiro lugar, com a poesia, isto é, com o poema que está concretamente a fazer, e nem com esta ou aquela forma tomada de modo isolado ou abstrato, nem com esta ou aquela ideologia.

Você já mencionou também que um dos poetas mais marcantes na sua formação foi Carlos Drummond de Andrade. Como isso reflete em seu trabalho? Acha que, de modo geral, a poesia feita hoje no Brasil dialoga com a poesia de Drummond? Se sim, como?


Com certeza se reflete em meu trabalho, porém não sei dizer como. Dado que Drummond é, a meu ver, o maior poeta que já tivemos, creio que nenhum poeta contemporâneo pode deixar de, de algum modo, dialogar com ele. Aliás, Drummond já fazia tudo o que a professora Simon condena nos contemporâneos, tanto tendo usado as formas fixas (magistralmente) quanto tendo feito poemas experimentais (magníficos).

Nesse cenário que parece ser tão diverso, seria muito interessante se pudéssemos apresentar aos leitores alguns poetas que têm produzido trabalhos importantes no Brasil, como é o seu. O senhor poderia me ajudar indicando alguns de seus pares e me ajudando a ver onde o trabalho deles se destaca?


O problema de tais listas é que, com certeza, a gente sempre se esquece de algum nome importantíssimo. Mas cito os nomes que primeiro me ocorreram, em ordem alfabética: Alberto Pucheu, Alex Varella, Armando Freitas Filho, Arnaldo Antunes, Cláudia Roquette Pinto, Eucanaã Ferraz, Nelson Ascher, Ricardo Silvestrin, Salgado Maranhão...

Um comentário:

Robson Ribeiro disse...

Cicero,

Sua palestra na FLIP foi fascinante.

Obrigado!

Um abraço!