12.5.12

Sophia de Mello Breyner Andresen: "No poema"




No poema

Transferir o quadro o muro a brisa
A flor o copo o brilho da madeira
E a fria e virgem liquidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso

Preservar de decadência morte e ruína
O instante real de aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa




ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. "Livro sexto". In: Obra poética. Alfragide: Editorial Caminho, 2011.

2 comentários:

A VIDA NUMA GOA disse...

A essa transferência, a essa preservção daremos o nome de poesia.

Ruy Lozano disse...

O que cabe no poema, Cícero? Penso em Ferreira Gullar e em seu "Não há vagas", e também em Manoel de Barros e neste "Matéria de poesia", que transcrevo:

"Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia.

O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para a poesia.

Terreno de 10 x 20, sujo de mato — os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia

As coisas que levam a nada
têm grande importância.

Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
por exemplo, pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia.(...)"

Barros, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo. Editora Leya. 2010