6.5.12

Eugénio de Andrade: "Espelho"




Espelho

Que rompam as águas:
é de um corpo que falo.

Nunca tive outra pátria,
nem outro espelho,
nunca tive outra casa.

É de um rio que falo;
desta margem onde soam ainda,
leves,
umas sandálias de oiro e de ternura.

Aqui moram as palavras;
as mais antigas,
as mais recentes:
mãe, árvore,
adro, amigo.

Aqui conheci o desejo
mais sombrio,
mais luminoso,
a boca
onde nasce o sol,
onde nasce a lua.

E sempre um corpo,
sempre um rio;
corpos ou ecos de colunas,
rios ou súbitas janelas
sobre dunas;
corpos:
dóceis, doirados montes de feno;
rios:
frágeis, frias flores de cristal.

E tudo era água,
água,
desejo só
de um pequeno charco de luz.

De luz?
Que sabemos nós
dessas nuvens altas,
dessas agulhas
nuas
onde o silêncio se esconde?
Desses olhos redondos,
agudos de verão,
e tão azuis
como se fossem beijos?

Um corpo amei,
um corpo, um rio,
um pequeno tigre de inocência,
com lágrimas
esquecidas nos ombros,
gritos
adormecidos nas pernas,
com extensas,
arrefecidas
primaveras nas mãos.

Quem não amou
assim? Quem não amou?
Quem?
Quem não amou
está morto.

Piedade,
também eu sou mortal.
Piedade
por um lenço de linho
debruado de feroz melancolia,
por uma haste de espinheiro
atirada contra o muro,
por uma voz que tropeça
e não alcança os ramos.

De um corpo falei:
que rompam as águas.



ANDRADE, Eugénio. Poemas de Eugénio de Andrade. Org. por Arnaldo Saraiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

4 comentários:

João Renato disse...

Cícero,
Eu acho esse um dos maiores poemas do Eugénio, aliás, é um dos maiores da poesia portuguesa.
Ele vai crescendo sempre, e acaba voltando ao começo.
Cada vez que o releio, percebo maior delicadeza e encantamento.
Não sei se foi intencional, mas quando ele diz "Nunca tive outra pátria", lembro da frase famosa do Fernando Pessoa.
JR.

Alcione disse...

A lua

A lua flutua
Majestosa
Solene e imperiosa
Tão vistosa
Toda prosa
(Ah! Debaixo dessa lua)
A montanha flutua
Num sonho sem fronteiras
Sussurros, galáxias
Cometas, meteoros,
A tal velocidade que
Nada parece mais fazer sentido
Senão quando você está comigo.

Jefferson Bessa disse...

Ah, é muito lindo! Sair das águas, dos reflexos para falar do corpo. Eugénio diz: "é de um corpo que falo".
O corpo/rio que nos dizem os versos...
Lindo demais!
Jefferson.

nina rizzi disse...

um dia beijei as marcas de senilidade nas mãos de eugénio de andrade
e nunca mais deixei de amar tais marcas, nos homens e mulheres
que a contavam, nas cidades baixias e imaginárias da minha ternura,
[o que não foi, o que já era, o nunca vir a ser

hoje olhei no espelho e não pude mais beijá-lo
o espaço estava um andar acima como observatório de mim
uma amiga dançava, amparada nas estrelas

era manhã e o sol já iluminava as lâmpadas pet, implacável
tinha nas mãos as marcas dos móveis antigos que ei de fazer
nos olhos um livro de perguntas, desmaterializar feito iluminaras do tarot.

[uma dose de razão, três de sensibilidade. nina rizzi]
*