8.3.09

Vanguarda e fetiche

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 7 de março:


Vanguarda e fetiche


DE MANEIRA geral, as teses vanguardistas são verdadeiras na medida em que abrem caminhos, e falsas na medida em que os fecham. João Cabral de Melo Neto, por exemplo, julgava inferior a poesia que falasse "de coisas já poéticas", pois acreditava que a poesia devia procurar "elevar o não-poético à categoria de poético".

Essas teses se tornaram dogmas entre muitos jovens poetas. Ora, para começo de conversa, é questionável a tentativa de tomar a temática de uma obra de arte como base para pronunciar juízos estéticos sobre ela.

Tais teses não são verdadeiras senão pela metade. No caso mencionado, são verdadeiras porquanto afirmam que a poesia não precisa falar de coisas já poéticas; por outro lado, porquanto implicam proibir a poesia de falar de coisas já poéticas, são falsas.

Afinal, o que é uma coisa já poética senão uma coisa de que a poesia já falou ou de que já falou muito? E por que não poderia um poeta fazer excelente poesia ao falar de algo de que muitos outros poetas já tenham falado? Então Goethe não deveria ter escrito a sua obra-prima porque já houvera, antes dele, não sei quantos "Faustos"?

Jamais um grande poeta temeu abordar pela enésima vez um tema poético (Fausto, Ulisses, Orfeu, Narciso, a brevidade da vida, a juventude, a velhice, o sol, a noite, o amor, a saudade, a beleza etc.). Ele o aborda e é capaz de fazê-lo como se ninguém antes o tivesse feito: como se não fosse um tema poético. Só o poeta fraco quer fazer algo tão "novo" que não possa ser comparado com o que os grandes mestres do passado já fizeram. O poeta forte, longe de temer tal comparação, provoca-a.

É claro que ao que afirmar que os poetas fortes não temem tema algum, não tenho a menor intenção de insinuar que Cabral seja um poeta fraco. Cabral não temia coisa alguma: ele estava apenas, de acordo com o ethos vanguardista, proscrevendo aquilo que pensava haver superado.

Ao se opor aos temas poéticos tradicionais, Cabral estava reagindo contra preconceitos arraigados que haviam sido usados para desclassificar a sua própria produção poética. Sérgio Buarque de Hollanda relata que Domingos Carvalho da Silva, por exemplo, membro do grupo conhecido como Geração de 45, ao qual o próprio Cabral havia pertencido, "decretara que o bom verso não contém esdrúxulas (apesar de Camões), que a palavra "fruta" deve ser desterrada da poesia, em favor de "fruto", e a palavra "cachorro" igualmente abolida, em proveito de "cão'; e mais, que o oceano Pacífico (adeus Melville e Gauguin!) não é nada poético, bem ao oposto do que sucede com seu vizinho, o oceano Índico".

Ora, já na primeira estrofe de "Cão sem Plumas", João Cabral infringe dois desses tabus: "A cidade é passada pelo rio / como uma rua / é passada por um cachorro; / uma fruta / por uma espada".

O que ocorre é que se, antes do modernismo, determinadas formas haviam sido fetichizadas, isto é, se a elas (por exemplo, às rimas) atribuíam-se determinados poderes, o legado da vanguarda foi a desfetichização dessas formas tradicionais.

Mencionei um poeta que atribui às palavras "fruto", "cão" e "Oceano Índico" certa virtus poética da qual as palavras "fruta", "cachorro" e "Oceano Pacífico" são carentes. Ora, ao desencantar as formas encantadas, a vanguarda mostrou que na poesia ou no poético não existe prêt-à-porter à disposição do poeta, nestas ou naquelas formas fixas ou rimas ou metros ou palavras.

Inversamente, mostrou também que a poesia não é necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada. Isso implica o reconhecimento de que a poesia se encontra somente em obras singulares, onde é o produto de uma combinação imprevisível e irreproduzível de fatores que não podem ser definidos a priori.

Mas essa descoberta é o resultado final da atividade das vanguardas: é o que ficou depois que elas terminaram o seu trabalho, isto é, depois que percorreram o caminho que nos trouxe da pré-modernidade à modernidade plena.

Esse caminho, porém, não foi uma linha reta. A história nunca é assim. Antes de desfetichizar as formas tradicionais, a vanguarda as manteve fetichizadas, porém inverteu o valor desse feitiço.

Se tradicionalmente as formas convencionais haviam sido as únicas formas admissíveis na poesia, a vanguarda passou a tomá-las como as únicas formas inadmissíveis na poesia. Foi assim que Cabral proscreveu justamente os temas tradicionalmente poéticos.

12 comentários:

Climacus disse...

nunca entendi essa colocação de João Cabral, que aparece em entrevistas e nos poema, sobre os temas já desgastados da poesia, pois, eu vejo todos os temas em seus poemas, eu vejo o mundo todo, o mundo de Cabral.

Me disse...

o Cabral era perfeito *--*

Sandra Baldessin disse...

Oi poeta! Excelente artigo. Concordo que um objeto (ou tema) não sofre a "despoetização" apenas porque já foi muito abordado. As palavras embrulham o mundo, quando o poeta as desembrulha, certas coisas saem à luz toda particular do seu próprio olhar.
Ou é assim, ou não existe o que chamamos poesia.

Besitos afetusosos.

(Sandra, de Rio Claro, lembra?)

Anônimo disse...

òptimo!

A.C

Jefferson Bessa disse...

Li atentamente o texto! E gostei muito, Cícero. Penso que, por exemplo, a atitude e toda obra de Cabral fica como exemplo de discussão e produção riquissíma, como você faz no artigo. E que todos tomem como exemplo o empenho e a atitude desses artistas para pensar e construir ( buscando o novo ou não) importantes obras de arte.
Não estaríamos assim buscando superar a vanguarda, assim como a vanguarda buscou superar as formas tradicionais? Não seria uma necessária atitude de força para esse momento?

Abraços
Jefferson

Anônimo disse...

Caro poeta,vale lembrar que,se Cabral desprezava os termos já poéticos,desconfiava também de sua própria nova linguagem.Lembro as palavras de Luiz Costa Lima sobre a Fábula de Anfion:"Agora a poesia é atacada de frente,pois se duvida de sua significação.Seu dilema se mostra nos termos de poesia ou não-poesia.A bala que dispara pode dirigir-se à própria cabeça.Por essa razão o passo que observamos o deixa à beira do abismo:o silêncio." Você tem razão,como sempre,quando diz que Cabral não temia nada.E é esse profundo senso crítico,como você também já lembrou,que faz dele,pra mim,o maior poeta brasileiro.
Grande abraço!

Anônimo disse...

lindo o seu artigo, cicero!

vejo a poesia como uma janela, aberta e arejada, para o mundo. nela, tudo deve. nada, nunca, na poesia, pode ser predeterminado.

eu, por exemplo, não me veria integrado a nenhum tipo de movimento literário que tivesse, em questão, uma predeterminação de combate a um outro movimento. eu tenho a alma livre, detesto amarras, odeio, por exemplo, que me rotulem ou que rotulem a minha poesia. acho que belezas não podem ser excludentes. belezas, ao meu ver, devem ser complementares.

vou dizer-lhe uma coisa bem sincera: tenho bastante dificuldade de trocar, de dialogar, com muitos poetas (com MUITOS, não com TODOS) por conta de um olhar preconceituoso que possuem acerca do que é de 'bom tom' para a poesia, do que é 'conveniente' para a obra poética.

certa vez, mostrei um poema de minha autoria para uma pessoa que possui um site literário e ela questionou o valor poético das minhas linhas por conta de palavrões contidos nos versos. tal pessoa me disse não achar correto o uso de palavrões na poesia. nada mais foi questionado. a questão estava centrada na predeterminação de que, nos versos, não é de 'bom tom' o uso de palavrões, como se estes, a priori, fossem palavras 'inapropriadas, 'indevidas'. a minha ojeriza foi tamanha que lhe mandei uma resposta bem abusada (rs), dizendo, entre outras coisas, que quem não queria mais o poema publicado no site literário era eu!

a poesia, em/por princípio, pode tudo. nada é 'indevido'. como escrevi, numa obra poética, tudo deve. não é o tema, tampouco o não uso de certas palavras, que determinará se um poema é ou não apreciável. isso é uma grande besteira, é uma burrice de dar dó.

eu não gosto do bom gosto. eu não gosto de bom senso. não gosto dos bons modos. não gosto.

belezas não são excludentes; são complementares. aquecem e enriquecem a alma, o olhar.

meus parabéns pelo texto!

um beijo grande nocê, meu poetósofo de primeira!

Anônimo disse...

Prezado Antônio Cícero,

Uma ocasião, escutei alguém dizer que o artista não faz arte.
O artista faz.
Quem faz arte é o falsificador.
Assim, acho que o poeta só deveria ter compromisso com a sua singularidade.
O João Cabral com a dele, e cada macaco no seu galho.
Um abraço,
JR.

ADRIANO NUNES disse...

Amado Cicero,

Parabéns!


Abraço forte!
Adriano Nunes.


p.s: outro poema meu, o mais novo:

"PASSAM POR MIM VESTÍGIOS" (PARA BRUNO BESSA)


Passam por mim vestígios de desejos
Que nunca pude ter, desassossegos
Noturnos dessa vida, desapegos
De tudo que sei ser, que só versejo.


Apressam-se revoltos, com um medo
De arremedos servis, todos os sonhos
Que, no meu coração de bardo, ponho.
Sem poder reverter o que concebo,


Condeno-me, de vez, à luz do cárcere
Poético, sem corpo, sem espírito.
Passam por mim dilúvios de misteres,


Os meus versos desfeitos, sons transcritos,
Isso que sinto ser, o que me fere,
O fim que finjo ver em meus escritos.



Adriano Nunes.

Antonio Cicero disse...

Adriano,

Belo soneto. Parabéns.

Abraço

Anônimo disse...

lindíssimo, adriano!

você está ARREBENTANDO na poesia!

tenho adorado os seus poemas, sempre lindos, elegantes, bem escritos e elaborados. adoro a sua fluência com a língua, é bonita bonita bonita.

parabéns, meu querido!
beijo grande!

ADRIANO NUNES disse...

Grande Cicero e Encantador Paulinho,

Muito obrigado pelas palavras! Fico feliz em saber que o meu soneto agradou a ambos!

Abraço forte!
Adriano Nunes.