O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 29/12/2007:
O relativismo e a modernidade
A proposição de que toda verdade é relativa, tão ouvida hoje em dia, é insustentável
As ideologias "pós-modernas" abraçaram o relativismo com a mesma inconseqüência com que atacavam a modernidade. Parece-me claro que muitas das teses de pensadores extremamente influentes, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Richard Rorty e seus discípulos, podem ser consideradas relativistas, mesmo se eles próprios, como é natural, jamais tenham querido assim se rotular.
É mais comum um filósofo relativizar, de algum modo, a verdade, do que confessar-se relativista. Nietzsche, um dos pensadores mais citados hoje em dia, é claramente relativista, embora seja mais freqüentemente classificado de "perspectivista".
O fato é que é comum ouvir-se hoje em dia que "toda verdade é relativa". Essa proposição, porém, é insustentável. Por quê? Porque incorre no que os lógicos chamam de autocontradição performativa. Essa se manifesta no seguinte dilema: se a própria proposição "toda verdade é relativa" for relativa, segue-se que nem toda verdade é relativa; por outro lado, se a proposição "toda verdade é relativa" não for relativa, segue-se, igualmente, que nem toda verdade é relativa. Desse modo, o relativismo universal se desmente ao ser afirmado.
Mas o relativismo é inviável também do ponto de vista prático ou político. Embora ele seja muitas vezes defendido a partir de uma atitude pluralista, em que o relativista, negando-se a tomar qualquer verdade como absoluta, aceita que haja verdades diferentes daquelas em que acredita, ele, com isso, acaba por minar a sua própria posição.
É que, como diz Platão sobre o relativista Protágoras: "ele é vulnerável no sentido de que às opiniões dos outros dá valor, enquanto que esses não reconhecem nenhuma verdade às palavras dele". Assim, enquanto o relativista aceita, por princípio, que sejam relativamente verdadeiras as crenças do anti-relativista ou absolutista (seja ele, por exemplo, um terrorista jihadista), esse não reconhece absolutamente nenhuma verdade nas teses -que, para ele, não passam de manifestações de fraqueza, decadência etc- do relativista.
Pior ainda: o relativismo é capaz de se transformar no seu oposto. "Da equivalência de todas as ideologias, todas igualmente ficções", afirmava Mussolini, sob a influência de Nietzsche, "o relativismo moderno deduz que cada qual tem o direito de criar-se a sua própria e impô-la com toda a energia de que é capaz".
E qual foi a ideologia que Mussolini criou e impôs com toda a energia de que foi capaz? O fascismo, para o qual, como afirmou em "A Doutrina do Fascismo", "o Estado é um absoluto". Eis como é simples a transformação do relativismo em absolutismo.
A modernidade filosófica mesma não é nem jamais foi relativista, pelo menos nesse sentido vulgar. É verdade que, desde o princípio, Descartes e, mesmo antes dele, Montaigne, por exemplo, puseram em questão todos os pretensos conhecimentos dados ou positivos -o que, de certo modo, equivale a relativizá-los. Entretanto, os pretensos conhecimentos positivos são relativizados por esses pensadores a partir da crítica efetuada pela razão: a partir, portanto, da razão crítica.
Assim, ao mesmo tempo em que, por um lado, todos os pretensos conhecimentos positivos são reconhecidos como relativos, por outro lado, a razão (enquanto faculdade de criticar) é reconhecida, desde o princípio da modernidade, como um absoluto epistemológico. Não que ela não possa criticar a si própria: ao contrário, nunca é demais lembrar que, na "Crítica da Razão Pura", de Kant, a razão é tanto sujeito quanto objeto da crítica. Entretanto, justamente ao criticar e questionar a si própria, a razão não pode deixar de se afirmar.
De todo modo, o reconhecimento de que a razão crítica - ou negativa - é epistemologicamente absoluta equivale ao reconhecimento de que nenhum pretenso conhecimento positivo é absoluto: ou, em outras palavras, de que todo pretenso conhecimento positivo é relativo.
Por sua vez, o reconhecimento da relatividade – logo, da falibilidade – de todo pretenso conhecimento positivo é o que torna possível conceber a constituição das condições da produção do conhecimento científico empírico – entre as quais a sociedade aberta – e a concomitante rejeição de toda pretensão de pretenso conhecimento que se furte ao exame aberto e livre das suas pretensões cognitivas.
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31 comentários:
Caro Cicero,
A verdade pode até ser relativa, mas, do ponto de vista prático e político, só até quando se faz necessário algum de tipo de ação conjunta, coletiva.
Aí as partes envolvidas, por mais que tenham suas verdades próprias, peculiares, têm de discutir o que se deve fazer.
Um exemplo bem atual disto é a discussão sobre o aquecimento global, que a princípio atinge-nos a todos, aos países todos, à toda humanidade. É verdade que está havendo um aquecimento global? Que este aquecimento tende a tornar a vida inviável na terra dentro de um tempo relativamente curto? E o que causa tal aquecimento? O que deve ser feito? Etc. Se as partes responsáveis pelo assunto abandonarem toda essa discussão, alegando que a verdade é relativa, o que irá acontecer? Estaremos satisfeitos? seguros?
Pode-se pensar também em exemplos de ramos de conhecimento considerados menos positivos.
Imaginemos o problema de pessoas que se juntam para editar uma revista literária, ou uma coletânea de poemas, ou algo que o valha.
Antes de qualquer coisa, consideremos que este é um trabalho socialmente relevante tendo que vista que os leitores, por uma questão de economia de sua atenção, confiam a tais editores a seleção de informações relevantes.
E então? Imaginemos mais.
Os editores provavelmente discordarão entre si a respeito do valor dos textos a publicar. O que eles devem fazer? Abandonar tal discussão porque a verdade é uma coisa relativa? A cada um deles reservar algumas páginas para publicar o que bem entenderem? O que os leitores acharão disto? Sentir-se-ão seguros de que estão diante de uma boa seleção de textos e que os editores pouparam seu tempo de busca por boa literatura?
Citei esses exemplos para ilustra aquilo que defendi lá encima, que a verdade é relativa até que tenhamos de resolver algum problema prático, mesmo que seja em questões aparentemente tão etéreas quanto a poesia.
Um abraço, meu caro.
Caro Héber,
vou mais longe do que você. Acho que, na prática, não tem sentido tomar a verdade como relativa, mesmo independentemente de qualquer comprometimento coletivo. Eis uma correspondência que troquei com um amigo exatamente sobre esse assunto:
Caro Antonio Cicero,
Entendo o que quer dizer, mas sempre tive problema com essa tese... Você diria que o heliocentrismo, p.ex., ainda pode ser revisado? Ou o fato de o cérebro e não o coração ser a origem do sistema nervoso? Ou a certeza de que um dia vamos morrer? Enfim, não existe nenhuma certeza, nenhum conhecimento absoluto de ordem empírica?
Abraço,
Edson Dognaldo Gil
Caro Edson,
A sua pergunta é muito boa.
O que ocorre é que o nível de abstração em que nego que qualquer conhecimento positivo seja absoluto é muito mais alto do que aquele em que se dão os nossos conhecimentos práticos e científicos.
É um pouco como o que ocorre com a física relativista. A dilatação do tempo, por exemplo, segundo a qual o tempo passa tanto mais rápido quanto mais rapidamente um objeto se mova, é algo que só se observa a velocidades próximas da luz. Como tais velocidades jamais são alcançadas pelos objetos cotidianos, os efeitos da relatividade não são observáveis na vida corrente. Assim, no dia-a-dia, devemos nos comportar e falar como se o tempo fosse o mesmo para todos os objetos, mesmo sabendo que, em última análise, não é assim.
Do mesmo modo, no nível da vida corrente, tenho certeza absoluta de estar sentado em frente ao meu computador, respondendo o seu e-mail. Suponha que, por alguma razão, você estivesse impaciente por receber esse e-mail e me ligasse, de modo que ocorresse o seguinte diálogo:
Edson: Você está respondendo o meu e-mail?
Antonio: Estou sentado em frente ao computador, escrevendo o artigo.
Edson: Verdade mesmo?
Antonio: Verdade absoluta.
Nesse caso, eu estaria sendo muito mais veraz do que se tivesse respondido, à última pergunta, no lugar de “verdade absoluta”, “verdade relativa”. Por que? Porque esta última resposta lhe daria a falsa impressão de que eu não estava realmente dedicado a responder o seu e-mail.
Em outras palavras, o uso das palavras “verdade”, “verdadeiro”, “absoluto”, “relativo” é diferente no nível de abstração em que o meu artigo sobre o relativismo está escrito e no nível de abstração da conversa cotidiana. No nível da vida corrente, é verdade que tenho certeza absoluta de estar sentado em frente ao meu computador, respondendo o seu e-mail. Não seria assim se eu estiver a filosofar, tentando descobrir, como Descartes, de que é que posso ter certeza absoluta. Nesse caso, eu estaria usando a expressão “certeza absoluta” com um rigor muito maior, e a simples evocação da possibilidade de que eu pudesse estar a sonhar ou a delirar já seria suficiente para desqualificar o caráter absoluto da minha certeza de estar sentado em frente ao meu computador. Assim, é somente em última análise – jamais no nível da vida prática – que todo conhecimento positivo deve ser qualificado de relativo.
No que diz respeito à ciência, vale algo parecido. A diferença é que a racionalidade científica parte exatamente do reconhecimento da relatividade de todo pretenso conhecimento positivo, que ela interpreta, na prática, como a falibilidade desse conhecimento. Isso significa:
(1) ser capaz de expor qualquer tese à crítica;
(2) aceitar como absolutamente verdadeira a tese cuja negação implicaria em autocontradição formal ou transcendental-pragmática;
(3) aceitar como verdadeira a tese que, (a) não ultrapassando o âmbito da imanência e (b) sendo consistente, sistemática, abrangente e dotada tanto de capacidade heurística quanto de poder explicativo tão ou mais amplos que as teses alternativas, (c) tenha resistido às tentativas sistemáticas de refutação, mesmo embora (d) seja, em princípio, refutável;
(4) estar disposto a rejeitar uma tese previamente sustentada, uma vez que ela tenha sido refutada e/ou superada por outra que, dotada de igual ou maior abrangência, capacidade heurística e poder explicativo, tenha resistido às tentativas sistemáticas de refutação, mesmo embora seja, em princípio, refutável;
(5) defender as condições políticas do exercício irrestrito da crítica, isto é, defender a sociedade aberta à crítica irrestrita.
Ora, as teses aceitas como verdadeiras no (3) ou (4) o são na mesma medida em que é verdadeiro que me encontro sentado em frente ao meu computador. O heliocentrismo, o papel central do cérebro no sistema nervoso, o fato de que um dia vamos morrer são absolutamente verdadeiros, no sentido em que é absolutamente verdadeiro que me encontro sentado em frente ao meu computador, entendendo-se “absolutamente verdadeiro” como a qualificação do máximo de certeza empírica que podemos alcançar. Isso só não é correto em última análise, mas, na linguagem cotidiana, isso é corretíssimo.
Mas por que, então, não abandonar a “última análise” e ficar simplesmente no plano das certezas pragmático-empíricas? Porque é exatamente a última análise, isto é, o reconhecimento da relatividade – logo, da falibilidade – de todo pretenso conhecimento positivo, que preside à constituição das condições da produção do conhecimento científico empírico – entre as quais a sociedade aberta – e a concomitante rejeição do pseudo-conhecimento.
Abraço,
Antonio Cicero
31 de Dezembro de 2007 19:08
belíssimo post e mais bela discussão ainda - que belo princípio p/ o ano que se inicia : )
abraço,
filipa
Caro Cicero,
Muito oportuna a tua referência à variação nos significados das palavras "verdade", "absoluta", "relativa", "relativismo", ao longo dos diferentes contextos.
Ao ler o título da tua coluna, a primeira coisa que me veio à cabeça foi o relativismo nas ciências sociais, âmbito em que a abordagem me parece bastante aceitável, tendo em vista a diversidade cultural, social e histórica entre os povos. Ou seja: não haveria leis gerais sobre fenômenos sociais uma vez que cada povo/comunidade usa estruturas conceituais muito particulares (sua cultura) para interpretar e dar um sentido à sua vida em sociedade.
Pois bem, menosprezar e desqualificar a cultura peculiar de uma comunidade diferente da nossa tornou-se algo condenável dentro do espírito pós-moderno. Quem assim se comporta é acusado de etnocentrismo.
Mas essa acusação é muitas vezes estendida até mesmo a quem questiona os pontos de vistas de uma cultura diferente, o que já me parece um abuso e uma distorção do relativismo cultural.
Enquanto princípio epistemológico nas ciências sociais e humanas, o relativismo cultural parece-me bastante válido para elucidar várias questões. Mas invocar o relativismo cultural para tentar bloquear debates inter-culturais a respeito de questões que interessam à humanidade como um todo ou a um conjunto de diferentes comunidades, isso aí já me soa um exagero. É o que tem acontecido, por exemplo, ao se discutir desde o problema do valor em literatura até questões políticas globais tais como o terrorismo islâmico radical. Por incrível que pareça há cabeças pensantes a insinuar que não deveríamos questionar a ação terrorista e/ou os regimes totalitários islâmicos, pois se trata de uma cultura diferente, uma verdade diferente (a mesma crítica faço eu aos falcões americanos e à sua disposição de impor ao resto do mundo, pela força, o seu modelo político-ecônomico, ao invés de dialogar de modo sensível às diferenças de opinião e aos interesses particulares de cada povo envolvido no conflito).
Li em algum lugar que esquimós podem distinguir centenas de diferentes tonalidades de branco, enquanto nós, habitantes dos trópicos, distinguimos meia dúzia delas apenas (nossas estruturas de conceituais ou de significados quanto ao branco são bem diferentes, portanto). Quantas tonalidades diferentes de branco há afinal? Onde está a verdade? A resposta a esta pergunta talvez nunca possa ser dada com certeza, tendo em vista tudo o que já colocaste sobre a falibilidade do conhecimento positivo. A este propósito, eu vejo sentido na abordagem de Peirce, que, ao discutir a entre o sujeito e o objeto, distingue entre objeto dinâmico e objeto imediato, e sugere que, enquanto sujeitos do conhecimento, nós jamais poderemos ter certeza de que o nosso recorte particular de um objeto (objeto imediato) representa uma apreensão completa de todas as propriedades do mesmo (objeto dinâmico).
A incerteza a respeito da verdade não quer dizer que devamos abandonar sua busca. Voltemos àquela questão sobre quantas tonalidades tem o branco afinal. Talvez a resposta não nos interesse tanto já que traria um conhecimento inútil para nós brasileiros. Mas saber as centenas de tons brancos pode ser uma questão de vida ou morte para os esquimós. E o seria para nós também, caso fossemos atingidos por uma nova era glacial. Aí talvez se tornasse crucial reconhecermos e acatarmos a verdade dos esquimós sobre o branco como superior à nossa.
Será que estou sendo muito pragmaticista, Cicero?
Um abraço.
Caro Héber,
Tenho falado sobre esses assuntos na minha coluna da Folha. Para não me repetir, sugiro que você dê uma olhada nos seguintes: "A controvérsia do multiculturalismo" (postado em 8/4); "A razão da modernidade" (1/7); "Barbárie e civilização" (29/7); e "Os limites da diversidade cultural" (18/12).
Falo com mais profundidade sobre esses temas no ensaio "A sedução relativa", publicado no livro "O silêncio dos intelectuais", org. p. Adauto Novaes (Companhia das Letras, 2006).
Mas pretendo, nos próximos artigos da coluna, desenvolver um pouco o que disse no último ("O relativismo e a modernidade"). Acho que o que tenho dito é, de fato, pertinente às suas preocupações.
Abraço,
Antonio Cicero
E no entanto, mesmo se o relativismo fere o princípio de não-contradição, a própria lógica contemporânea trata o conceito de verdade com muita parcimônia. Vide a máquina de Tarski, incapaz de classificar um livro que desafia sua própria definição de verdade. Já Gödel, muito mais preocupado com matemática do que com filosofia, apontava que o conceito de verdade como puramente lingüístico (aliás, como Aristóteles, para quem a verdade é uma "noção", não um "conceito").
O motivo talvez seja o fato de que um fenômeno natural não esteja sujeito à idéia de uma verdade: se chove, chove. Pronto. Mas é a tradução sensorial e lingüística das percepções que permite a aplicação de valores como Verdadeiro e Falso. Daí paradoxos como o do mentiroso ou da máquina de Tarski.
É por isso que toda verdade, para efeitos práticos, se apresenta como relativa: ela está inserida na estrutura lingüística, no caso, do ser humano. E essa estrutura varia, com menor ou maior intensidade, histórica e geograficamente.
A verdade absoluta, porém, é uma necessidade (já dizia Platão), sem a qual toda ciência é frágil. Encontrar um conjunto de axiomas estável é uma exigência da necessidade de saber e agir. Daí as religiões, os grandes sistemas filosóficos, as academias...
Todas essas estruturas são de fundamental importância, mas têm prazo de validade, ou melhor, têm um funcionamento circunscrito às limitações que, um dia, fatalmente se apresentarão. São paradigmas, pra usar a terminologia de Kuhn. Substituem-se periodicamente.
Acho que uma fórmula "simpática" seria dizer que as verdades podem ser relativas, mas temos de agir como se não o fossem. (Graças a toda essa problemática lógica citada no começo do comentário, temos computadores. Que funcionam perfeitamente, mas entram em pane quando confrontados a paradoxos que nosso "relativismo natural" deixa passar.)
Aproveito para desejar um excelente 2008.
Caro Osrevni,
Não entendo bem você chamar Aristóteles e Tarski para apoiar o relativismo. Nem um nem outro era relativista, e Tarski desenvolveu a sua concepção semântica da verdade a partir de Aristóteles. É sem dúvida essa concepção semântica que você acha que está “inserida na estrutura lingüística” do ser humano. E seu relativismo vem de pensar que também que essa estrutura lingüística varia histórica e geograficamente.
Não concordo com isso. Em primeiro lugar, se a existência dessas variações justificasse o relativismo, não poderíamos estar aqui a falar, em português, das concepções de Aristóteles ou de Tarski.
Em segundo lugar, justamente a concepção semântica da verdade, pelo menos para os autores em questão, nada tem a ver com relativismo. Aristóteles diz, por exemplo, na “Retórica”, que “tanto os homens são por natureza dispostos para a verdade quanto, na maior parte das vezes, atingem a verdade”; e, na “Metafísica”, diz que “é correto que a filosofia seja chamada de ciência da verdade. Pois o fim da ciência teórica é a verdade”. Ora, Tarski diz explicitamente que queria que a sua definição da verdade “fizesse justiça às intuições vinculadas com a concepção aristotélica da verdade, intuições que encontram sua expressão nas conhecidas palavras de Aristóteles: ‘Dizer do que é que não é, ou do que não é que é, é falso, enquanto que dizer do que é que é, ou do que não é que não é, é verdadeiro’”.
O fato de que critico o relativismo vulgar não tem nada a ver com platonismo. Ao contrário, acho que é possível criticar o platonismo a partir das posições que defendo (vide o meu ensaio “Proteu”, em “Finalidades sem fim”, mas não a partir do relativismo vulgar (como, aliás, os próprios diálogos de Platão mostram).
Reconheço que talvez eu, no artigo que você critica, não tenha deixado as minhas posições suficientemente claras. De qualquer modo, no artigo que saiu hoje na Folha de São Paulo, tento esclarecê-las um pouco. Postarei esse artigo aqui daqui a algumas horas.
Obrigado pelos votos de excelente 2008. Que seja excelente para você também.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro Antonio Cícero
Cheguei aqui via Pandorama. Creio, portanto, que chego atrasado neste debate sobre relativismo.
Ainda assim, gostaria de fazer uma observação.
No início de seu texto, você afirma que Foucault, Deleuze, Derrida e Rorty são relativistas. Isto me parece um equívoco, ao menos parcial. Confesso que meu conhecimento da filosofia de Deleuze e Derrida é (ainda) bastante rudimentar. Mas Rorty eu conheço bem. É sobre ele que gostaria de lhe falar.
Rorty jamais afirmou que a verdade é relativa, ou que não existe verdade. O que ele afirma é que a noção de "verdade como correspondência com a realidade" é uma noção que traz mais problemas do que soluções, problemas para os quais não encontramos -- e nunca encontraremos -- uma solução adequada. Não vou entrar nos detalhes técnicos que embasam a posição rortyana -- o ataque de Sellars ao "mito do Dado", a desconstrução Quineana da distinção analítico-sintético, a filosofia do "segundo" Wittgenstein, a relação mente-corpo tal como entendida por Dennett -- porque, bem, este não é o espaço apropriado para isso.
O que quero é sublinhar que uma coisa é dizer que não há justificação para uma crença que não seja outra crença (o antifundacionismo algo cético de Rorty); outra, completamente diferente, é dizer que, na falta de um critério último de justificação, todas as crenças são igualmente válidas. Este segundo passo, que é o relativismo, Rorty nunca deu.
Rorty, por exemplo, afirma enfaticamente que a democracia liberal é melhor do que o comunismo. E o que critério que ele usa para justificar esta afirmação -- o fato de que a democracia promove mais justiça social e liberdade individual, e menos crueldade e humilhação do que o comunismo --, ainda que não esteja fundado em algo transcendente (como a Natureza, ou a Verdade), é no entanto perfeitamente defensável, e operacional.
Um último comentário. O relativismo é uma posição que se pode defender -- mas não uma posição que alguém possa de fato ocupar. Pois o relativismo absoluto pressupõe aqui que Putnam chama de o ponto-de-vista de Deus: o movimento de projetar-se para fora de nossa própria consciência, de modo a escapar das contingências de nossos jogos de linguagem e crenças. Isto, claro está, é uma impossibilidade.
Um abraço,
Antonio Engelke
Caro Antonio,
Seja benvindo. Suas observações são interessantes. Vou comentar algumas delas.
1) Você diz:
“Rorty jamais afirmou que a verdade é relativa, ou que não existe verdade”.
No texto também digo que os pensadores que cito jamais quiseram ser rotulados como relativistas.
Mas Rorty afirma (em “Solidarity or objectivity?”) que “‘relativismo’ é um epíteto tradicional aplicado ao pragmatismo pelos realistas. Três diferentes pontos de vista são comumente assim designados”. E o terceiro ponto de vista que ele cita é o que chama de “pragmático” ou “etnocêntrico”, segundo o qual “nada há a dizer sobre a verdade ou a racionalidade fora das descrições dos procedimentos familiares de justificação que dada sociedade – a nossa – usa numa ou noutra área de investigação”. Ele não se considera relativista porque acha que só é propriamente relativista quem ache ou que qualquer crença equivalha a qualquer outra, ou que o termo “verdadeiro” é equívoco, tendo tantos significados quanto procedimentos de verificação.
Entretanto,
a) Ele reconhece que sua posição é um tradicionalmente, na considerada relativista pelos realistas. Ocorre que o próprio senso comum é realista. Rorty reconhece, portanto, que, segundo o uso tradicional da palavra, ele é relativista. Só isso já me daria o direito de chamá-lo de “relativista”, a partir de uma perspectiva wittgensteiniana.
b) Ao chamar o seu ponto de vista de “pragmático” ou “etnocêntrico”, ele incorre em ambiguidade, pois reconhece que outras sociedades podem ter outros procedimentos de justificação. Se ele é etnocêntrico, é porque acha que os procedimentos de justificação da sociedade dele é que dizem algo sobre a verdade, mas não os demais, se divergirem dos dela. Entretanto, ao falar de “dada sociedade – a nossa”, ele não está singularizando a sua sociedade particular, como estaria se tivesse dito, por exemplo, “nada há a dizer sobre a verdade ou a racionalidade fora das descrições dos procedimentos familiares de justificação que os Estados Unidos da América usam numa ou noutra área de investigação”. A expressão “dada sociedade – a nossa” pode ser usada por qualquer um, de qualquer sociedade: trata-se, na verdade, de um universal. Ao usá-la, ele está portanto reconhecendo que, se pertencesse a outra sociedade, acharia que os procedimentos de justificação dessa outra sociedade, e não os daquela a que pertence, dizem algo sobre a verdade. Isso é uma forma de relativismo cultural.
2) Você diz:
“Rorty, por exemplo, afirma enfaticamente que a democracia liberal é melhor do que o comunismo. E o que critério que ele usa para justificar esta afirmação -- o fato de que a democracia promove mais justiça social e liberdade individual, e menos crueldade e humilhação do que o comunismo”.
E se alguém defender um sistema de castas, dizendo (como Nietzsche, aliás, praticamente o faz em “O Anticristo”) que melhor do que justiça social é a hierarquia social; que melhor do que liberdade individual é a disciplina; e que o que os escravos sentem como crueldade e humilhação é apenas a manifestação da afirmação da vida e da vontade de poder da casta dos senhores?
Por último, também acho o relativismo indefensável, mas não pela razão que você alega. Essa razão, aliás, me parece inteiramente relativista.
Abraço
Obrigado pela resposta, Antonio Cicero. Tenho algumas observações a fazer sobre o que você disse.
Parte de nosso desacordo está no que entendemos por “relativismo”, ou no que seria necessário para classificar um pensador como “relativista”. Creio que pode-se entender o relativismo de duas formas que, apesar de semelhantes ou “próximas”, são bastante distintas.
Relativismo (1): É o que você aponta em relação ao antifundacionalismo de Rorty, isto é, o reconhecimento da relatividade da justificação para as crenças; se não há um critério de último de justificação que garanta o estatuto de verdade a alguma crença em particular, então a Verdade será sempre relativa, contingente, produto de configurações particulares de tempo, lugar e acaso. A passagem de Rorty que você citou é um exemplo deste raciocínio.
Relativismo (2): É aquilo que chamei de “o passo seguinte”, que Rorty nunca deu: a aceitação da ideia de que, uma vez que não dispomos de um critério último de justificação, todas as crenças são igualmente válidas. Ou, para dar um exemplo claro: “já que não temos uma maneira final, um argumento absoluto ao qual recorrer para decidir entre democracia liberal e nazismo, então estas duas formas de vida política se equivalem”.
De fato, se relativismo é (1), então você tem razão em dizer que Rorty é um pensador relativista. Mas creio que esta maneira de colocar o relativismo é demasiadamente ampla, genérica, e portanto não muito apropriada. Pois o cerne da questão do relativismo (1) é o problema do critério – um problema que é central ao ceticismo. Ou seja, se você definir o relativismo da maneira (1), será obrigado a incluir sob a sua rubrica os pensadores da tradição cética. Os céticos sustentam a impossibilidade de um critério último de justificação – mas isto não faz deles pensadores relativistas. Para um cético, o que importa é “continuar investigando”, que é exatamente o que importa para Rorty. Rorty está o tempo todo nos exortando a abandonar a pretensão de definir a Verdade, ou de alcançá-la, e nos incentivando a tentar inventar vocabulários que permitam viver com menos desigualdade, crueldade e sofrimento. (É irônico, contudo, que Rorty seja hostil ao ceticismo, e se declare um discípulo do holismo de Davidson. Mas isto é outro papo.)
No final de suas observações sobre o meu comentário, você pergunta: o que faremos se alguém evocar argumentos filosóficos para justificar uma posição absolutamente contrária a tudo aquilo que acreditamos como sendo bom e justo? Em outras palavras, se abrirmos mão de um critério que nos permita afirmar a nossa Verdade (ou o virtuosismo intrínseco dela), como refutaríamos um filósofo nazista experiente? Minha resposta, seguindo Rorty, é: não refutaríamos. É impossível fazê-lo. O filósofo nazista e eu ficaríamos longas horas argumentando em círculos. Aliás, você ou qualquer filósofo realista também não conseguiria refutá-lo definitivamente.
Talvez o melhor candidato a critério absoluto para uma argumentação do tipo que se exige contra um filósofo nazista experiente seja o de Natureza Humana. Ou seja, ao fim e ao cabo, você poderia evocar a Natureza Humana como fundamento para a sua concepção de que a democracia liberal é melhor do que o nazismo. Mas se o filósofo nazista tiver lido Clifford Geertz, você estará em apuros. Entre elogios à penetrante atividade intelectual do antropólogo americano, ele lembraria a você do fato de que todas as sociedades, em todas as épocas ou lugares, apresentam alguma forma de moral, religião ou estrutura familiar – mas estas formas de construções morais, práticas religiosas e estruturas familiares são tão diferentes entre si, que só seria possível reuni-las sob um mesmo conceito, de vigência universal, valendo-se de uma generalização tão larga que o próprio conceito perderia rigor científico, porque demasiadamente abstrato. E finalizaria, ainda com Geertz: “a noção de que a essência do que significa ser humano é revelada mais claramente nesses aspectos da cultura humana que são universais do que naqueles que são típicos deste ou daquele povo, é um preconceito que não somos obrigados a compartilhar”.
Creio que o que está por trás de sua pergunta é a sensação de que nós, o Ocidente liberal democrático, inevitavelmente perderíamos força de persuasão ou capacidade argumentativa caso abríssemos mão de um fundamento último para as concepções morais que nos são mais caras. Devo reconhecer que este é um medo bastante plausível, mas que pode ser superado. Apenas acadêmicos muito intelectualizados se preocupam com coisas como "fundamentos universais". De modo geral, as pessoas se contentam em defender os direitos humanos porque, afinal, "é a coisa certa a se fazer", porque elas foram socializadas numa cultura que lhes inculcou isso. Este vocabulário, que postula a igualdade fundamental dos homens perante a lei, já foi naturalizado no Ocidente (o que não significa que ele não possa ser aperfeiçoado). Caso a academia inteira venha algum dia a concordar com Rorty – e chegar à conclusão de que não há critérios de validade independente de contexto capazes de fundamentar nossa concepção de direitos humanos –, isto não teria impacto algum nas leis e nos costumes. A vida continuaria a transcorrer como sempre: conservadores querendo conservar, progressistas querendo reformas, revolucionários querendo revoluções.
A defesa dos direitos humanos por Rorty baseia-se não em fundamentos absolutos, mas em seus méritos relativos: como são instrumentos adequados para evitar a crueldade e a humilhação, devemos elogiá-los, valorizá-los. É também o que pensa o velho Joseph Schumpeter: “Reconhecer a validade relativa das próprias convicções, mas ainda assim defendê-las resolutamente, é o que distingue o homem civilizado do bárbaro”. Comentando esta passagem, Isaiah Berlin certa vez disse que “pedir mais do que isso talvez seja uma necessidade metafísica profunda e incurável, mas permitir que isso determine nossa prática é sintoma de uma imaturidade moral e política igualmente profunda, e mais perigosa”.
Schumpeter e Berlin, parece-me, não são considerados relativistas.
Grande abraço,
Antonio Engelke
ps – sobre sua réplica ao último ponto de meu comentário... Touché! Mas perceba: a referência ao pragmatismo de Hilary Putnam não foi sem razão. Estou de acordo com Putnam quando ele diz que “elementos do que chamamos de ‘linguagem’ ou ‘mente’ penetram tão profundamente no que chamamos ‘realidade’ que o próprio projeto de representar a nós mesmos como mapeadores de algo que ‘não depende da linguagem’ está, desde o início, fatalmente comprometido.” Meu objetivo, ao trazer Putnam para o debate, era o de lembrar a você que o Realismo é, como o Relativismo, uma “tentativa impossível de enxergar o mundo a partir de Lugar Nenhum”.
Caro Antonio,
Desculpe a demora a lhe responder alguma coisa. É que estou sem absolutamente tempo nenhum. Assim que terminar alguns trabalhos pendentes, no final da semana, voltarei à nossa discussão.
Abraço
Aguardo ansiosamente!
Querido Cicero, esses debates aqui no teu blog, vários deles, dariam um belo livro. Já pensaste nisso?
O conteúdo é riquíssimo e as discussões fazem a gente ir mais fundo do que em textos acadêmicos domesticados pela ABNT.
Forte abraço,
Héber Sales
Caro Antonio,
De fato, o antifundacionismo de Rorty é, para mim, uma espécie de relativismo. Rorty está certo de não se considerar cético. O que ele pensa não é ceticismo, pois os céticos, ao contrário dele, duvidam de que seja possível conhecer a verdade. Rorty não duvida disso. Ele apenas acha que a verdade não pode ser fundamentada de modo universalmente aceitável. E pensa que isso não é necessário.
(Uma curiosidade: você sabia que fui eu que trouxe Rorty ao Brasil, em 1994? Ele era simpaticíssimo. Waly Salomão e eu organizávamos então o “Banco Nacional de Idéias”, para o qual concebemos um ciclo de conferências chamado “O relativismo enquanto visão do mundo”. Editamos um livro (CICERO, A. e SALOMÃO, W. O relativismo enquanto visão do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994), que contém as palestras desse ciclo, inclusive a do Rorty, chamada “Relativismo: encontrar e fabricar”. Nessa época, tive o privilégio de conversar algumas vezes com ele).
Na verdade, cético sou eu. Mas o meu ceticismo se chama “falibilismo”. Eu jamais invocaria a natureza humana para discutir com o filósofo nazista, por razões que explico no artigo "A evolução e a natureza", de 7/9/2008, que você pode ler neste blog.
Mas sustento que o falibilismo derrota racionalmente o “filósofo nazista”. Veja bem: não pode haver discussão que não seja racional, isto é, que não pressuponha uma razão comum entre os interlocutores. Aquele que não reconheça essa razão exclui a si mesmo da discussão; e exclui as suas teses da racionalidade. Ora, é a própria razão que nos mostra que toda tese, isto é, toda posição particular, determinada, definida é contingente. Tanto pode, portanto, ser verdadeira quanto pode ser falsa. Assim, a priori, como condição de possibilidade da discussão, cada interlocutor precisa concordar que, em princípio, a sua tese – seja qual for – pode ser falsa. Isso, porém, já é uma verdade absoluta. É, portanto, uma verdade absoluta que todas as “verdades” positivas são contingentes. Por si só, o reconhecimento dessa verdade absoluta já destrói as pretensões às verdades absolutas – e positivas – do nazista. O artigo que você critica se baseia nessa verdade absoluta. É dela que, em última análise, se seguem as instituições liberais que garantem uma sociedade aberta, os direitos humanos, os procedimentos jurídicos modernos, a garantia da autonomia da ciência e da arte etc.
Mas penso que seria redundante repetir aqui o que eu já disse em artigos que se encontram neste blog. Recomendo que você leia, além do que está comentando, os seguintes: “O falibilismo versus o relativismo” (13.1.08) e “A questão da história”.
Abraço
Caro Antonio,
O artigo que publiquei hoje, chamado "Foucault e o fundacionismo", tem a ver com a nossa discussão.
Abraço
Caro Antonio Cícero
Sim, é claro que conheço o livro que você organizou junto com o Waly Salomão! Aliás, foi através dele que tomei contato com o Rorty pela primeira vez. Foi lendo aquele artigo, no início do meu mestrado, que comecei a me interessar pelas idéias malucas do Rorty (e veja só, hoje estou começando a escrever uma tese de doutorado sobre o aproveitamento da filosofia rortyana para as ciências sociais...) Sou muito grato a você, saiba disso – por este primeiro contato com o Rorty e também pela sua generosidade em debater comigo aqui.
Concordo que Rorty não seja totalmente cético, até pela posição dele em favor do holismo de Davidson, como comentei antes. Mas concordo também com a leitura que Michael Williams faz da obra de Rorty – e ele nota muitos pontos muito semelhantes, senão iguais, às idéias de Hume. (O excelente artigo de Williams pode ser encontrado na edição sobre Rorty da série de livros “Contemporary Philosophy in Focus”, editado por Charles Guignon e David R. Hiley.)
Sobre a questão do filósofo nazista, eu começaria dizendo que nós colocamos as coisas de modos diferentes: eu falei em “refutar” o filósofo nazista, você falou em “derrotá-lo”. São duas coisas distintas. Mas vou acompanhar sua argumentação, e tecer meus comentários em cima dela.
Se bem entendi, você está dizendo que um filósofo liberal falibilista derrotaria um filósofo nazista acusando-o de ser um dogmático, e, portanto, um inimigo da razão. Mas o filósofo nazista poderia responder (muito sacanamente) dizendo:
1) “Você afirma que ‘a própria razão nos mostra que toda tese (...) é contingente’. Ora, não vejo como a razão necessariamente nos mostre uma coisa dessas. A razão não barra a posição dogmática, não é incompatível com ela. Você poderia até dizer que o dogmatismo é a razão que trai a si mesma – mas não que ele é uma forma de irracionalismo. O reconhecimento da falibilidade pelas partes envolvidas num debate não é uma condição de possibilidade para que ele se dê; é, talvez, sua situação ideal. Portanto, eu não estou excluído do debate racional apenas porque acredito que minhas teses não podem em princípio ser falhas. Podemos, por exemplo, debater sobre Deus – cuja existência não pode ser nem demonstrada nem refutada –, e fazer isso de forma absolutamente racional.”
2) “Se você quiser dizer que, ao não reconhecer a falibilidade de minhas convicções eu estou automaticamente me colocando na posição de ‘inimigo da razão’, tudo bem – desde, é claro, que a gente discuta este vínculo entre “falibilidade” e “razão” ao qual você se refere. Se não, vejamos. O falibilismo que você diz defender, e no qual se apóia para fazer suas afirmações, não pode ser absoluto, sob pena de cair no mesmo tipo de contradição que o relativismo. Ou seja, nem tudo poder ser falível; deve haver, necessariamente, alguma certeza (ou algumas). No que se refere ao nosso debate aqui, caberia perguntar: você possui alguma certeza de que a democracia liberal é intrinsecamente melhor do que o nacional-socialismo? Se possui, qual é o critério que você utiliza para justificar que esta certeza é afinal uma certeza? Pois se você tiver um critério último, absoluto e inquestionável, de justificação para afirmar que a sua democracia é intrinsecamente melhor do que o meu nacional-socialismo, estará caindo em contradição, posto que negando o falibilismo que diz praticar; mas se você não tiver este critério último ou absoluto, isto é, se tiver apenas critérios relativos, então por que eu ou qualquer outra pessoa deveria acreditar que eles são necessariamente superiores aos critérios de que disponho?”
Enfim, meu ponto é o seguinte: apesar de você ter razão ao dizer que o nazismo é menos racional do que o liberalismo democrático, não vejo muita utilidade nisso na hora do debate com um filósofo nazista. Não creio que a discussão possa ser vencida por aí. Penso, ao contrário, que seria mais eficiente ressaltar as conquistas reais, os progressos práticos feitos sob o sistema liberal-democrático – e esfregá-los na cara do nazistão dizendo: “você não pode falar o mesmo de si e do sistema que defende”. Claro, ele começará a enumerar as vantagens dele, ou aquilo que ele julga serem progressos e conquistas etc. Mas a verdade é que nós teremos uma história mais instrutiva para contar.
Pedir mais que isso é pedir uma instância de julgamento, um tribunal que seja superior ao homem, que o transcenda de alguma forma. Mas não há tal tribunal. O homem não pode ser julgado por nada além dele próprio – e a antropologia nos ensinou que não existe um Homem com H maiúsculo, e sim homens. Aliás, desconfio de que, se houvesse mesmo essa coisa chamada Homem, e se ele pudesse de fato recorrer a um Tribunal Universal da Razão Absoluta, não estaríamos até hoje vivendo nesta zorra que está aí.
Por fim, um comentário sobre o seu elogio do falibilismo (já tinha lido seus outros textos antes de você indicá-los: o site todo é muito bom). Concordo que a razão, ao questionar a si mesma, não pode deixar de se afirmar. E concordo também que o falibilismo foi (e é) importante na construção do mundo moderno. Mas você vai além, e diz que “se as sociedades liberais ou abertas têm um pressuposto central, trata-se de algo racional e oposto à fé: trata-se, isto é, do falibilismo.” É aí que discordo de você.
Não creio que o falibilismo seja um pressuposto central das sociedades liberais. Ele é importante, de fato – mas não central. Creio que não é necessário entrar em detalhes sobre o que a noção de centro evoca – “fundamento”, “núcleo da estrutura”, “ponto inaugural de irradiação” e assim por diante. Vou direto ao que interessa.
Considere, por exemplo, esta passagem da Declaração de Independência dos Estados Unidos, redigida por Thomas Jefferson em 1776:
“Consideramos auto-evidentes as seguintes verdades: todos os homens foram criados iguais, e dotados por seu criador de determinados direitos inalienáveis, dentre os quais se incluem a vida, a liberdade e a busca da felicidade, e é para assegurar estes direitos que os governos foram instituídos”.
Jefferson considerava evidente por si mesma a verdade da igualdade natural dos homens, e a verdade dos direitos à vida, liberdade e busca por felicidade. Se são verdades evidentes por si mesmas, é porque elas fundam a si próprias. Logo, não era necessário nem demonstrar racionalmente a prova de sua evidência, nem evocar qualquer outra crença para justificá-las. O ponto que quero sublinhar aqui é que, no ato de fundação do sistema político que encarnaria, melhor do que qualquer outro, os ideais e valores mais caros à modernidade, não é o falibilismo que dá o tom. Ao contrário, é o dogmatismo. Jefferson não era um gênio excêntrico isolado (embora fosse um tipo caladão, de poucas palavras); se escreveu o que escreveu, e do modo como escreveu, era porque traduzia em larga medida um consenso entre seus pares. E não há absolutamente nada de falibilista neste consenso...
Um abraço,
Antonio
ps - vou ler o artigo sobre Foucault agora.
Caro Antonio,
1) A razão nos mostra que toda tese é logicamente contingente porque só as tautologias são logicamente necessárias. As tautologias não são teses. Uma tautologia é por exemplo ‘se p, então p’. Uma tese é, por exemplo, ‘p’. Pois bem, ‘p’ sempre pode ser verdadeira, mas também sempre pode ser falsa. Se alguém afirma ‘p’, outra pessoa sempre pode afirmar ‘-p’, isto é, “não é verdade que p”. Uma tese sempre admite uma contradição. Faz parte da definição de tese que ela admite uma antítese. Tanto uma tese quanto a sua antítese são sempre contingentes. É irracional negar isso. Não é ilógico que você acredite que sua tese seja verdadeira ou que a defenda com unhas e dentes, mas afirmar que a sua tese não pode em princípio ser falsa é violar a lógica. Posso debater racionalmente sobre a existência de Deus exatamente porque a tese de que Ele existe é contingente. Por outro lado, a tese tautológica de que “Se Deus existe, então Deus existe” não pode ser debatida por que é tautológica. De novo: isto, que estou dizendo agora, não é uma tese minha, mas uma necessidade lógica. Não é concebível uma não-tautologia que não possa ser negada. En passant: não concordo com você quando afirma que a tese da existência de Deus não possa ser demonstrada nem refutada. Ao contrário, penso que ela é falsa e pode ser refutada.
2) O falibilismo é absoluto pelas razões que explico no item anterior. Ele consiste exatamente no reconhecimento da verdade (tauto)lógica de que toda tese é contingente. Ele mesmo não é refutável porque não consiste numa tese, mas numa tautologia não-trivial.
3) O nacional-socialismo é recusável in limine pois, exatamente na medida em que recusa o falibilismo, ele é irracional. Não é preciso mais que saber disso para refutá-lo. Já a democracia liberal é racional, pois se baseia exatamente no reconhecimento da falibilidade do homem.
4) Não é “o homem” que está em jogo aqui, mas a própria razão. E a razão significa em primeiro lugar crítica e negação.
5) Estamos aqui falando do fundamento da sociedade aberta, não das justificativas históricas que podem ter sido dadas para ela. É claro que a própria noção de falibilismo data do século XX. Isso não quer dizer que não seja ela que vai até o fundamento da sociedade aberta. De todo modo, a própria idéia de direitos humanos não seria concebível sem o falibilismo que Descartes, avant la lettre, descobriu.
Abraço
Cícero, caro
Respondo seu comentário depois -- agora, vou ver o meu mengão jogar.
Só uma coisa: o meu último comentário não siu publicado aqui. Chamo a atenção porque outros leitores podem eventualmente acompanhar o nosso debate, e ficarão sem entender o porque desta sua última resposta a mim.
Abraço,
Antonio,
desculpe. Na minha cabeça, eu tinha postado o seu comentário. Agora já está.
Abraço,
ACicero
Bom, vamos lá:
Concordo que, logicamente, você tem razão em dizer que o nazismo é irracional. Mas isso coloca um problema: o uso do conceito de “racional” e “irracional”. Nazistas, como sabemos, não rasgam dinheiro, ou andam pelas ruas rastejando e babando, emitindo grunhidos ininteligíveis. São pessoas como nós: são capazes de dar sentido às suas ações, tomam suas atitudes com vistas a determinados fins etc.
Perdoe minha insistência, mas não vejo como se possa refutar o nazismo apenas dizendo-o mais “irracional” que a democracia. Seria o mesmo que tentar derrotar ou refutar as religiões: também elas são por definição dogmáticas, ou irracionais, no seu dizer. Alguns intelectuais talvez pudessem ficar impressionados com o seu argumento lógico, mas se fosse o caso real de um debate aberto e público entre nazistas e democratas liberais, bem, desconfio que ele não teria impacto algum. Nos jornais, nos cafés, nas mesas de bar, as pessoas perguntariam pelas práticas nazistas, pela vida dentro de um regime totalitário, pela liberdade, pelo respeito aos direitos, pelas minorias, pela crueldade, violência e assim por diante. Portanto, se o que interessa é derrotar o nazista, e não meramente provar nossa perspicácia argumentativa, teríamos necessariamente que discutir tais questões, tais práticas. A batalha seria ganha, ou perdida, nas descrições que nós faríamos deles, e vice-versa.
Aqui vai uma confissão desavergonhada: nosso debate está sendo uma ótima oportunidade para eu aprender sobre o falibilismo. Não li Peirce, por exemplo; de Popper, conheço pouco (mas o que gosto mesmo é da crítica que Giddens lhe faz). Ainda assim, arrisco um palpite: se toda tese é contingente – ou relativa – isso não inclui a própria tese de que toda tese é contingente (relativa)? Ou, colocando de outro modo: de que ponto de vista absoluto alguém emite o juízo segundo o qual todos os juízos são relativos?
No item 4 de seu último comentário, você fala da Razão como se ela fosse uma entidade descolada do homem, que vagasse por aí, solta pelo ar. A razão só se efetua na linguagem e pela linguagem – não há razão sem pensamento, e não há pensamento fora da linguagem. O que nos levaria a uma outra discussão: a de que a linguagem não é uma estrutura fixa, firme e inconcussa...
E sim – eu e você estamos falando do fundamento da sociedade aberta. A meu ver, noções como a igualdade fundamental entre os homens, ou a defesa das liberdades individuais, não são meras justificativas históricas dadas para a sociedade aberta. São, com efeito, partes constitutivas do arcabouço que a fundamenta. Nossa diferença está no fato de que você coloca o falibilismo no centro do fundamento, e eu não. Aliás, não estou muito seguro de que haja algo como um “centro de fundamento”.
Abraço,
Antonio
Caro Antonio,
Que o nazista seja racional no seu uso de dinheiro não tem a menor importância para a discussão. Onde ele não pode deixar de ser racional é na discussão. Quando deixa de ser racional na discussão, ele já a perdeu. Um "argumento irracional" não é um argumento.
Em filosofia, não é o “impacto” do argumento no grande público que conta. Esse impacto, aliás, não pode ser medido desse modo. Kant jamais teve influência no grande público e, no entanto, o mundo em que o grande público do mundo moderno vive foi imensamente influenciado pelo pensamento do autor da Crítica da razão pura. Indiretamente e em última instância, a razão sempre ganha. E ganha precisamente porque, em última análise, só ela é realmente pública. O irracional, como a religião, é sempre, no fundo, privado, e a razão demonstra isso. A razão consiste na demonstração da falta de consistência ou fundamento de um argumento determinado.
Penso já ter explicado por que a afirmação de que toda tese é contingente ou relativa não é uma tese. Uma tese afirma alguma coisa em oposição a outra coisa. Se ela não afirmasse alguma coisa determinada, não seria uma tese. Ora, uma coisa determinada é uma coisa que pode consistentemente ser negada. Ou seja: uma tese é uma proposição que pode consistentemente ser negada. Exatamente por isso é que ela pode ser objeto de discussão, com uma pessoa defendendo a verdade e outra pessoa, a falsidade dessa tese.
Uma tese que não pudesse consistentemente ser negada seria uma contradição em termos: isto é, não seria uma tese. Já a afirmação de que uma tese pode consistentemente ser negada não é uma tese, pois não pode consistentemente ser negada. Isto é, a negação dela resultaria contraditória. Seria como dizer: “uma proposição que pode consistentemente ser negada não pode consistentemente ser negada”. Por isso, a proposição de que uma tese é contingente é uma proposição necessária, e não uma tese.
A razão não é uma entidade descolada. Ela só existe na primeira pessoa e consiste, em primeiro lugar, na negação ou crítica. Mas acho melhor não discutir este ponto, que é mais complexo, antes de ficar claro o primeiro, sobre o qual sugiro que você reflita.
Abraço.
Meu caro Antonio Cícero,
1) Acho que entendi seu ponto sobre o falibilismo, e agradeço o esclarecimento. Minha dificuldade estava em reconhecer a tautologia do argumento que sustenta o falibilismo.
2) Creio que é desnecessário você me lembrar de que filósofos podem sim influenciar o grande público, e de que a “absorção popular” não serve de critério de julgamento para a obra de um filósofo. Não era este o meu ponto, quando escrevi o último comentário – releia com atenção e você o perceberá. Aliás, minha esperança é que, com o tempo, um filósofo como o Rorty seja cada vez mais lido, e suas idéias, difundidas. Ao contrário de você, acredito que isto seria algo positivo, benéfico.
3) Quando você afirma que “Em filosofia, não é o ‘impacto’ do argumento no grande público que conta”, tenho a sensação de que estamos a discutir coisas distintas. Eu não estou (ou estive) apenas debatendo a questão de como refutar o nazismo “em filosofia”; se fosse este o caso, seu argumento seria suficiente. Inclusive seria ótimo se as coisas se passassem desta maneira. Já imaginou se, para derrotar o nazismo, tudo o que tivéssemos que fazer fosse escalar alguns filósofos falibilistas experientes para debater a portas fechadas com filósofos nazistas? Aí, finda a reunião, os nazistas sairiam cabisbaixos, porque derrotados pelo argumento de sua própria irracionalidade – assumindo, é claro, que não houvesse um filósofo nazista suficientemente cínico na sala a ponto de dizer “ok, reconheço que talvez a raça ariana possa não ser superior e que os judeus não sejam afinal a escória da espécie; mas, veja, ainda assim estou quase convicto de que estou certo em acreditar nisso” –, e, de volta ao quartel general da Águia na Montanha, explicariam ao seu bigodudo líder: “Chefe, perdemos. Os argumentos deles foram superiores ao nossos. Achamos melhor o senhor anunciar eleições para o mês que vem”.
4) Quanto à questão mais complexa sobre a razão, seria uma prazer acompanhar sua exposição (assim como também sua refutação da existência de Deus: estou curioso).
Um abraço,
Antonio
Antonio,
É verdade que os nazistas dificilmente seriam convencidos por argumentos. O mesmo se pode dizer dos fundamentalistas religiosos. Isso significa apenas que eles são irracionalistas. Não adianta discutir com eles.
O irracionalismo, contudo, só é aparentemente mais forte do que a razão. A longo prazo, ele perde a parada. Por que? Porque a razão, que se manifesta em primeiro lugar como crítica, não é uma construção, como as ideologias. Por isso, ela é indestrutível, ao contrário dessas construções. Ela é antes destrutiva, como o vento que derruba os castelos de cartas das ideologias e religiões. E os castelos de cartas tendem a cair, mas o vento fica. Sempre há uma nostalgia de ilusões. O mundo aberto parece desolado aos fracos de espírito. Mas, a longo prazo, as ilusões perdem o encanto.
Rorty é muito simpático mas, infelizmente, o antifundacionismo dele, como todo antifundacionismo, está sujeito a tropeços semelhantes aos de Foucault, de que falo no meu artigo mais recente. O que ele não percebeu – e é também o problema dos diversos positivismos – é que o esgotamento do fundacionismo positivo, baseado em Deus, na natureza humana etc. – não significa a impossibilidade de toda fundamentação. O ceticismo mais radical, a crítica mais radical acaba constituindo, ela mesma, o fundamento necessário: um fundamento negativo, ao contrário daqueles que caíram. Em outras palavras, a simples negação do fundamento ainda não é suficiente e acaba por se autocontradizer, como mostro no exemplo de Foucault. Mais radical é o fundamento absolutamente negativo.
No momento, estou sem tempo para entrar nas questões que você menciona no item (4). Espero estar mais livre dentro de alguns dias.
Abraço.
Caro Antonio Cícero
Pois eu penso justo o oposto: adianta sim discutir com nazistas e fundamentalistas religiosos, e é o que devemos fazer, sempre. O que não adianta é apenas chamá-los de irracionais, e achar que isto encerra a discussão.
E penso também, como um bom cético, que todo tipo de posição filosófica está sujeita a tropeços. É precisamente por este motivo que, por mais que eu entenda seus argumentos, saio desta nossa conversa com a impressão de que você defende o falibilismo de uma forma, digamos, dogmática. Dizer que tudo pode falhar, exceto o falibilismo, é uma contradição performativa.
Abraço,
Antonio
Antonio,
Você disse que entendeu o meu ponto sobre o falibilismo e que sua dificulade estava em "reconhecer a tautlogia do argumento que sustenta o falibilismo"
Agora você volta ao mesmo ponto, como se não tivesse sido resolvido. Desculpe, mas o dogmático é você.
Abraço
Sim, caro Cicero, a princípio tive dificuldades em entender seu ponto, mas depois consegui. Mas entender é uma coisa, concordar é outra.
E continuo discordando de que a defesa do falibilismo possa se dar de uma forma não-falibilista. Talvez eu não seja inteligente o suficiente. Talvez eu esteja errado. De qualquer forma, ao fim e ao cabo, me parece que a sua postura é contraditória, não importa o que você diga sobre a tautologia etc.
Agora, se em função disso você quiser me chamar de dogmático, tudo bem. É apenas irônico, dado que eu sou capaz de reconhecer a falibilidade de minha posição -- e você, não.
Abraço,
Antonio
Antonio,
a verdade é que se você entende a minha posição e não concorda, embora não seja capaz de apresentar argumentos racionais contra ela, você é dogmático e, no fundo, não reconhece erro nenhum.
Ué, mas eu apresentei argumentos contra a sua posição: creio que ela é contraditória.
Pode ser então você não considere meus argumentos "racionais" -- ao que eu responderia (seguindo Rorty) que eu apenas me recuso me falar à sua maneira.
E não vejo como o fato de eu discordar de você, sabendo e assumindo que eu posso estar errado, faça de mim um dogmático.
Abraço,
Antonio,
O que você diz é: “continuo discordando de que defesa do falibilismo possa se dar de uma forma não-falibilista”.
Discordar não é ainda apresentar argumentos.
Além disso, você diz: “me parece que a sua postura é contraditória”.
“Me parece” is just not good enough, como diria Rorty. Você tinha que provar o que lhe “parece”. Mas não; o que você diz é: “não importa o que você diga sobre a tautologia etc.” Ou seja, você não aceita nem é capaz de refutar argumento nenhum, não importa qual ele seja. Não aceita por dogma. Não é que você não fale à minha maneira. É que você fala à maneira dogmática.
Não posso perder tempo com dogmas ou brincadeiras. Encerro aqui, “dogmaticamente”, esta discussão.
Passe bem.
"Portanto, a cultura nunca nos oferece significações absolutamente transparentes, a gênese do sentido nunca está terminada. Aquilo a que chamamos com razão nossa verdade, sempre o contemplamos apenas num contexto de signos que datam o nosso saber. Sempre lidamos apenas com arquiteturas de signos cujo sentido não pode ser posto à parte, pois ele nada mais é senão a maneira pela qual aqueles se comportam um em relação ao outro, pela qual se distinguem um do outro - sem que tenhamos sequer a consolação melancólica de um vago relativismo, já que cada uma dessas operações é realmente uma verdade e estará salva na verdade mais compreensiva do futuro..." (Merlau-Ponty - Signos)
Esa resposta é oq q n entendi
Eu iria argumentar a favor de Rorty, mas vi que o Antonio Claudio Engelke o fez brilhantemente. Melhor que eu que sou graduado em filosofia. Apenas gostaria de acrescentar alguns tópicos sobre a discussão entre relativismo, racionalidade, etc. O que Rorty diz em Verdade e Progresso é que a verdade não pode ser relativa, mas sim sua justificação. Mas também diz com Davidson, que não é o 'verdadeiro' é algo indefinível. O único critério para a verdade é a justificação. Contudo, não há justificação absoluta. Noto que o Cícero está apegado ao vocabulário ou ao jogo de linguagem apodítico, que se pretende aretórico, e não percebe a ambiguidade da sua própria linguagem. Palavras como razão, verdade, racionalidade, são todas ambíguas porque históricas, porque é impossível lhes dar uma definição descontextualizada, sans phrase. Todas as tentativas de desambiguação da linguagem fracassaram. Por fim, trago a luz a retórica. Aristóteles foi mais sábio que Platão por perceber que toda argumentação se dirige a um auditório e que é preferível o verossímil que persuade do que o verdadeiro que não convence. Havia entre os gregos uma noção pouco lembrada atualmente, a endoxia. Entre a doxa e a episteme está a endoxia, o razoável. Ela é semelhante à noção de Tópica aristotélica: a opinião dos melhores, da maioria, e dos mais sábios. Duas pessoas podem defender duas teses contrárias e ambas serem razoáveis. Entre o relativismo e o realismo está a razoabilidade, e só pode haver razoabilidade pela justificação a um auditório, ao qual é preciso ter modéstia para se dirigir e se adaptar a suas premissas.
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