16.3.07

Os sentimentos e as leis

Na carta à Folha (09/03) em que respondo às críticas que me haviam sido feitas por João Pereira Coutinho (07/03), digo que, ao contrário do que ele insinuara sobre a modernidade que defendo, é claro que há, nela, lugar para o sentimento. “Cada qual”, prossigo, “tem o direito de exprimir os seus sentimentos, que podem ser inteiramente diferentes de um indivíduo para o outro e que, como tudo no mundo, estão sujeitos a serem discutidos e criticados. Por isso mesmo, porém, as regras que possibilitam a coexistência de todas as diferenças – por exemplo, a de que ninguém tem o direito de impor os seus sentimentos aos outros – não podem deixar de ser universais e racionais”.
Coutinho acha que é impossível destrinçar desse modo o emocional do racional e, para prová-lo, relata o caso de Patrick e Susan Stübing, “dois irmãos que se apaixonaram, procriaram (quatro filhos) e que agora desejam derrubar a lei que proíbe o incesto. Fato: Patrick e Susan só se conheceram na idade adulta. Mas, ao contrário das personagens de Eça de Queirós, eles conheciam a filiação”. Segundo Coutinho, o que penaliza o incesto na Alemanha (e no Reino Unido) é “um fundo de repulsa emocional perante a idéia de que dois irmãos; uma mãe e um filho; um pai e uma filha possam viver como amantes. E quando falo de ‘repulsa emocional’, pretendo significar precisamente isso: uma reação instintiva que não tem nenhuma explicação racional”.
Pois bem, a verdade é que o exemplo de Coutinho prova exatamente o oposto do que ele supõe: isto é, prova a minha tese. Sem dúvida, a lei contra o incesto, tanto na Alemanha quanto no Reino Unido, originou-se desse “fundo de repulsa emocional” de que ele fala. Entretanto, ela está sendo questionada publicamente por Patrick e Susan. Quais são os argumentos de um lado e de outro?
No que segue, cito principalmente o SPIEGEL ONLINE (http://www.spiegel.de/panorama/justiz/0,1518,469479,00.html; http://www.spiegel.de/politik/deutschland/0,1518,468194,00.html). Os advogados do casal alegam que o Parágrafo 173, que proíbe o incesto, constitui uma inaceitável intromissão no direito fundamental da autodeterminação sexual dos adultos. Jerzy Montag, político do Partido Verde, considera que essa lei não se adapta ao século XXI, pois a moral não se impõe pelo código penal. Dieter Wiefelspütz, especialista jurídico do Partido Social Democrata, diz que o incesto ofende as concepções morais, “mas não considero que seja criminoso”. Wolfgang Neskovic, porta-voz jurídico dos partidos de esquerda no Bundestag, considera que não há fundamentos racionais para uma proibição. O Parágrafo seria, para ele, expressão de concepções morais ultrapassadas, que não devem ser tratadas por meio do direito penal. Neskovic lembra que o adultério e a homossexualidade já foram criminalizados na Alemanha. “Assim também o Parágrafo 173 é um remanescente da penalização do sexo no século passado”. Outros chamam atenção para o fato de que a Alemanha devia seguir o exemplo de muitos outros países, como a França, a Bélgica, a Holanda, Luxemburgo, Portugal, a Turquia, o Japão, a Argentina e o Brasil, onde o incesto não é mais um crime. “A questão é se a lei criminal deve ser usada para proteger as crenças culturais e puramente morais da sociedade”, observa Joachim Renzkikowski, especialista em lei criminal sexual da Universidade de Halle. E completa: “eu diria que não”.
E quanto aos que defendem o Parágrafo 173, será que se baseiam nos sentimentos da maioria? Não: nem eles o fazem. Fundamentam-se principalmente na presunção de que crianças geradas por relações sexuais entre parentes de primeiro grau tenham maior probabilidade de desenvolverem anomalias congênitas. Um dos mais ferrenhos defensores da lei, Norbert Geis, do Partido Democrata Cristão, afirma que, se depender dele, jamais se abolirá o Parágrafo 173, pois é preciso garantir “a defesa da família, a incolumidade psíquica das pessoas e a saúde das crianças”.
Seja qual for, portanto, a posição que se tome, o fato é que os argumentos usados, tanto por um lado quanto pelo outro, são principalmente racionais. Quase todos julgam, com razão, que os sentimentos morais pertencem à esfera privada e nela se resolvem, e quase ninguém apela a eles. É que, no mundo moderno, a lei, que pertence à esfera pública e deve ser universal, não se pode basear em sentimentos, que variam de época para época, de região para região, de pessoa para pessoa e, às vezes, em cada pessoa, de um momento para o outro, mas unicamente na razão, que se manifesta na discussão e na crítica.
Coutinho termina seu artigo afirmando que é a repulsa emocional que penaliza o incesto na Alemanha (e no Reino Unido): “porque se entende que a ‘sexualização’ da família excede um limite que a razão é incapaz de explicar, mas que os sentimentos da maioria justificam plenamente”. Ora, a discussão que cito mostra exatamente que os “sentimentos da maioria” não são mais, no mundo moderno, considerados como suficientes para justificar a penalização do incesto. E quando Coutinho encerra o seu artigo com a pergunta: “Serão os alemães, ou os ingleses, exemplos pré-modernos de romantismo reacionário?”, deve-se responder: A modernidade ainda não se realizou inteiramente em lugar algum, pois enfrenta resistências imensas. Os povos contemporâneos são desigualmente modernos. No que diz respeito à questão do incesto, como a qualquer outra, é moderno quem a submete seriamente à discussão racional (e é o que fazem, no momento, os políticos e juristas alemães que acima citei); e pré-moderno quem tenta subtraí-la a essa discussão, apelando ao irracional.

Um comentário:

Anônimo disse...

cicero,

a sua lucidez e clareza de pensamento, como sempre, me emocionam. fico muito feliz de contar com um intelectual do seu gabarito, dizendo, ou melhor, escrevendo, ao meu ver, as linhas mais pertinentes. linhas cheias, abarrotadas de razão.

grande beijo, querido!

estou adorando os textos!