31.1.22

Armando Freitas Filho: "Escritório"

 



Escritório



Igual ao que as pedras pesam

os livros lidos, relidos e idos

me carregam, não sei se mais

ou menos, do que aqueles que não.

Do que aqueles tantos fechados

ou só folheados que curvam a tábua

da estante, que cavam um lugar

cerrados, cegos de mim, que vão fundo

mesmo ficando parados - à espera

e que apenas as traças atravessam.





FREITAS FILHO, Armando. "Escritório". In:_____ "Duplo cego". In:_____ Uma antologia . Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006. 

28.1.22

Paulo Henriques Britto: "À margem do Douro"

 



À margem do Douro



Não espero nada, e já me satisfaço

com a consciência de ainda estar em mim

e não de volta ao nada de onde vim.

Por ora, ao menos, ainda ocupo espaço,

junto a uma mesa no Cais da Ribeira;

permito-me, sem culpa, desfrutar

de pão, e queijo, e vinho, e vista, e ar,

todo o entorno da minha cadeira.

Que os dias que me restam não me tragam

apenas a miséria de contá-los

pra ao fim ver que as contas não fecham. Peço

demais? Eu, que não sou desses que tragam

a vida num só gole e no gargalo,

sem ter nem mesmo perguntado o preço.




BRITTO, Paulo Henriques. "À margem do Douro". In:_____ "Nenhum mistério". In:_____ Por Ora. Poesia reunida (1982-2018). Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2021.

26.1.22

António Carlos Cortez: "Lição de poesia"

 



Lição de poesia

 

 

Ganhar, perder tudo jogamos

dia a dia. Importa viver,

esquecer o que é preciso, lembrar

quanto entre nós foi dito, reescrito,

desmentido... Não nos disseram

que, fechada qualquer porta, o sentido

vem, noite após noite, vencer seu prazo,

derrotando o que pensaste teres vencido

e regressa, entre perdas, entre pedras,

como um dardo um ensurdecedor som mudo

— o amor que no viver s'esgota

exactamente como s'esgota tudo






CORTEZ, António Carlos. "Lição de poesia". In:_____ Diamante. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2021.


23.1.22

Giuseppe Ungaretti: "Mattina" / "Manhã": trad. de Geraldo Holanda Cavalcanti

 



Manhã

Santa Maria la Longa, 26 de janeiro de 1917


Ilumino-me

de imenso







Mattina

Santa Maria la Longa il 26 gennaio 1917


M''illumino

d'immenso






UNGARETTI, Giuseppe. "Mattina" / "Manhã". In: CAVALCANTI, Geraldo Holanda (seleção, tradução e notas). Poemas. Edição Bilíngue. São Paulo: EDUSP, 2017.

21.1.22

Fávia Souza Lima: "Nada não"

 



NADA NÃO


Toda coisa

que não fala

fala alguma coisa.

Qualquer coisa

que se sinta

-- mesmo nada -- 

não é nada

-- e fala alguma coisa.

Todo nada

que não fala

fala alguma coisa.

E não é nada.

___





LIMA, Flávia Souza. "Nada não". In:_____ "Pandêmicas". In:_____ Desjeitos. Rio de Janeiro: Numa Editora, 2021.

20.1.22

Christovam de Chevalider: "Medo"

 



Medo


                ao Ricardo


Meu medo não é o vírus

que pode me tirar o ar.

Temo pelo desconhecido 

medo maior que o do mar.


Meu medo, repito, não é o vírus

que pode de tudo me afastar.

Meu medo é perder teu sorriso

esse jeito tão teu de me olhar.


Meu medo, já disse, não é o vírus

ainda que ele possa me matar.

Medo maior é o desvario

de um dia não mais te encontrar.






CHEVALIER, Christovam de. "Medo". In:_____. Inventário de esperanças e outros poemas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2021.

18.1.22

Fernando Pessoa: "O dos castelos"

 



O dos castelos




A Europa jaz, posta nos cotovelos:

De Oriente a Ocidente jaz, fitando,

E toldam-lhe românticos cabelos

Olhos gregos, lembrando.


O cotovelo esquerdo é recuado;

O direito é em ângulo disposto.

Aquele diz Itália onde é pousado;

Este diz Inglaterra onde, afastado,

A mão sustenta, em que se apoia o rosto.


Fita, com olhar esfíngico e fatal,

O Ocidente, futuro do passado.


O rosto com que fita é Portugal.





PESSOA, Fernando. “O dos castelos”. In: Mensagem. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.

16.1.22

Fernando Pessoa / Álvaro de Campos: "Magnificat"

 



Magnificat



Quando é que passará esta noite interna, o universo,

E eu, a minha alma, terei o meu dia?

Quando é que despertarei de estar acordado?

Não sei. O sol brilha alto,

Impossível de fitar.

As estrelas pestanejam frio,

Impossíveis de contar.

O coração pulsa alheio,

Impossível de escutar.

Quando é que passará este drama sem teatro,

Ou este teatro sem drama,

E recolherei a casa?

Onde? Como? Quando?

Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?

É esse! É esse!

Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;

E então será dia.

Sorri, dormindo, minha alma!

Sorri, minha alma, será dia!






PESSOA, Fernando. “Magnificat”. In:_____ “Poesias de Álvaro de Campos“. In: “Ficções do interlúdio”. In:_____ Obra poética. Org. por Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1980.


9.1.22

José Gomes Ferreira: "LXIV: Sim, a morte vazia"

 



LXIV


Sim, a morte vazia,

sem anjos na paisagem,

nem a dor duma estrela

no silêncio medonho.


Só a morte vazia

e esta coragem 

de não querer enchê-la

de sonho.





FERREIRA, José Gomes. “LXIV: Sim, a morte vazia”. In: REIS-SÁ, Jorge; LAGE, Rui. Poemas portugueses: Antologia da poesia portuguesa do Séc. XIII ao Séc XXI. Porto: Porto Editora, 2009.


2.1.22

Ferreira Gullar: "A alegria"

 



A alegria


O sofrimento não tem

nenhum valor

Não acende um halo

em volta de tua cabeça, não

ilumina trecho algum

de tua carne escura

(nem mesmo o que iluminaria

a lembrança ou a ilusão

de uma alegria).


Sofres tu, sofre

um cachorro ferido, um inseto

que o inseticida envenena.

Será maior a tua dor

que a daquele gato que viste

a espinha quebrada a pau

arrastando-se a berrar pela sarjeta

sem ao menos poder morrer?


A justiça é moral, a injustiça

não. A dor

te iguala a ratos e baratas

que também de dentro dos esgotos

espiam o sol

e no seu corpo nojento

de entre fezes

       querem estar contentes.





GULLAR, Ferreira. “A alegria”. In: ______“Na vertigem do dia”. In:______Poesia completa, teatro e prosa. Org. por Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.