28.2.12
Roberto Feith: "O jogo da pirataria"
O seguinte -- excelente -- artigo de Roberto Feith foi publicado ontem na seção "Opinião" de O Globo:
O Globo, 27 de fevereiro de 2012
O jogo da pirataria
ROBERTO FEITH Desinformação pode ser imoral, mas funciona. Este fato ficou evidente na recente ofensiva de Google, Yahoo, You-Tube e outros gigantes agregadores de conteúdo contra projetos de lei que combatem a pirataria digital nos Estados Unidos, Espanha e outros países europeus.
A desinformação, neste caso, está em dizer que estes projetos de lei representam uma ameaça à liberdade de expressão. Isto equivale a um político corrupto no Brasil protestar que a lei da Ficha Limpa seria uma ameaça às liberdades civis.
Metáforas à parte, há três aspectos da campanha coordenada dos gigantes da internet contra as leis antipirataria que merecem uma reflexão:
A primeira é o estranho paradoxo de as mesmas empresas repetidamente flagradas secretamente violando a privacidade dos seus milhões de usuários assumirem o papel de paladinos da liberdade.
A segunda são as declarações indignadas destas corporações de que leis antipirataria equivalem à “censura”, expressão que evoca a atuação repressiva dos regimes ditatoriais do Irã e da China na internet. Mas desde quando é “censura” a ação de um juiz de direito numa sociedade democrática, tomada após ouvir os argumentos das partes e considerar as evidências do caso?
E a terceira, e mais instigante, é o fato singelo de que, na campanha dos gigantes da internet contra as leis antipirataria, nunca é mencionado que algumas destas mesmas empresas indiretamente faturam centenas de milhões de dólares com a pirataria.
É isto mesmo. Google, Yahoo e outros agregadores se apropriam indiretamente do trabalho de atores, diretores, jornalistas, compositores, cantores, produtores, escritores e editores para faturar com publicidade.
Esta afirmativa pode parecer extrema. Afinal, será que Sergey Brin e Larry Page, os jovens bilionários que criaram o Google com o genial slogan “do no evil”, seriam capazes de tamanha desfaçatez?
Esta é a deixa para a entrada em cena de um personagem que surgiu do anonimato nas últimas semanas: Kim Dotcom, criador do site de armazenamento e distribuição de conteúdo, especialmente conteúdo pirata, Megaupload.
Dotcom foi preso em janeiro na sua mansão na Nova Zelândia. Com seus helicópteros, coleção de carros de luxo e dezenas de milhões de dólares, ele representa o lado escondido da distribuição gratuita do trabalho de terceiros pela internet.
Ao contrário do estereótipo difundido por alguns, a distribuição ilegal via internet não é obra de jovens libertários compartilhando arquivos com amigos — isto é tão somente um proverbial boi de piranha. A pirataria na realidade é fruto do trabalho de Kim Dotcom e outros como ele, que vendem espaço publicitário aproveitando o tráfego de internautas gerado pelas descargas ilegais; assim, protegidos por uma suposta defesa da liberdade de expressão, ficam milionários explorando o trabalho de uns e a ingenuidade de outros.
E onde figuram Sergey Brin e Larry Page neste cenário? Google não oferece diretamente filmes e livros piratas. Mas o Megaupload não tem funcionários vendendo publicidade mundo afora. A publicidade veiculada no Megaupload e outros sites de descarga ilegal é distribuída pelas plataformas de mídia oferecidas pelos grandes agregadores da internet, tais como a Google Adwords. Para cada milhão de dólares dos anunciantes faturado pelo Megaupload, outros tantos são depositados nas contas dos agregadores. Para escritores, compositores, atores, diretores, músicos — zero.
O Megaupload não é o único site que fatura com o tráfego ilegal. Existem dezenas de outros. Mais de 90% das descargas piratas de livros brasileiros se originam no site americano 4shared, que, em parceria com os agregadores, fatura alto se apropriando do trabalho de escritores brasileiros.
O uso demagógico da defesa da liberdade de expressão atrasou a aprovação das leis antipirataria nos parlamentos dos Estados Unidos e da Europa. Mas, inevitavelmente, estas leis serão aprovadas porque são fundamentais para a continuidade da produção intelectual, cultural, científica e jornalística. E, sim, para preservar a genuína diversidade e liberdade de expressão.
A sociedade e o legislativo brasileiro não podem ignorar esta questão. Se cederem à pressão da desinformação em prol da impunidade dos piratas, a produção cultural e científica nacional vai definhar e crescerá o consumo no Brasil da produção cultural, jornalística e científica estrangeira, devidamente protegida pela lei nos seus países de origem.
Se este triste destino ocorrer, periga o Kim Dotcom se mudar para cá se conseguir se
livrar das acusações a que responde na Justiça da Nova Zelândia.
ROBERTO FEITH é jornalista e editor de livros.
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27.2.12
Ivan Junqueira: "Ária marinha"
Ária marinha
Tecla de sal
clave de sol
acorde oculto
num caracol
será o espectro
de infância morta
que desabrocha
como um farol?
serão ginetes
já sem memória
ficando esporas
no azul lençol?
será meu pai
debaixo d´água
com sua flauta
e seu punhal?
ou não será
em mim disperso
o som submerso
de outro coral?
resposta alguma
à tona sobe
mas eu indago
e lanço o anzol
JUNQUEIRA, Ivan. A rainha arcaica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
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Poema
24.2.12
Paul Celan: "Auch wir wollen sein" / "Também nós queremos estar": tradução de João Barrento
Também nós queremos estar
onde o tempo diz a palavra-limiar,
o milênio emerge da neve, remoçado,
o olhar errante
descansa no seu próprio espanto
e cabana e estrela
vizinhas se destacam no azul,
como se o caminho já estivesse percorrido.
Auch wir wollen sein,
wo die Zeit das Schwellenwort spricht,
das Tausendjahr jung aus dem Schnee steigt,
das wandernde Aug
ausruht im eignen Erstaunen
und Hütte und Stern
nachbarlich stehn in der Bläue,
als wäre der Weg schon durchmessen.
CELAN, Paul. A morte é uma flor. Poemas do espólio. Edição bilingue. Tradução, posfácio e notas de João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1998.
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Poema
19.2.12
Jacques Sternberg: "Bíblia"
Bíblia
Gosto muito de imaginar que a Bíblia foi inteiramente redigida por uma espécie de Alexandre Dumas ou Eugène Sue da época. Que ela não passa de um folhetim estritamente popular, redigida para fazer uma grana e para distrair um público muito amplo, um folhetim passavelmente aberrante cujo autor inventava as peripécias entre dois litros de vinho, morrendo de rir a cada novo episódio.
SERNBERG, Jacques. Dictionnaire du mépris. Paris: Calmann-Lévy, 1973.
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17.2.12
Waly Salomão: "Ataque especulativo"
ATAQUE ESPECULATIVO
Serei um poeta construtivista
Serei um poeta desconstrutivista
Serei um poeta
Serei um
Ser
Se
S
Sob o pano de fundo do indizível
SALOMÃO, Waly. Pescados vivos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
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16.2.12
Empédocles de Agrigento: poema ix.569 da Antologia grega: traduzido por José Paulo Paes
IX.569
ἤδη γάρ ποτ᾽ ἐγὼ γενόμην κοῦρός τε κόρη τε
θάμνος τ᾽ οἰωνός τε καὶ ἔξαλος ἔλλοπος ἰχθύς.
IX.569
Pois em verdade eu já fui rapaz, já fui donzela,
fui arbusto, pássaro, ardente peixe do mar.
PAES, José Paulo (org.). Poemas da Antologia grega ou palatina. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NOTA de A.C.: Esse poema da Antologia grega consiste no fragmento 117 (Diels/Kranz) da obra De natura, de Empédocles.
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Poema
13.2.12
Joseph Brodsky: "Odisseu a Telêmaco": tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher
Odisseu a Telêmaco
Caro Telêmaco,
encerrou-se a Guerra
de Tróia. Quem venceu, não lembro. Gregos,
sem dúvida: só gregos deixariam
tantos defuntos longe de seu lar.
Mesmo assim, o caminho para casa
mostrou-se demasiado longo, como
se Posseidon, enquanto ali perdíamos
nosso tempo, tivesse ampliado o espaço.
Não sei nem onde estou nem o que tenho
diante de mim, que suja ilhota é esta,
que moitas, casas, porcos a grunhir,
jardins abandonados, que rainha,
capim, raízes, pedras. Meu Telêmaco,
as ilhas todas se parecem quando
já se viaja há tanto tempo, o cérebro
confunde-se contando as ondas, o olho
chora entulhado de horizonte e a carne
das águas nos entope enfim o ouvido.
Não lembro como terminou a guerra
e quantos anos tens, tampouco lembro.
Cresce, Telêmaco meu filho, os deuses,
só eles sabem se nos reveremos.
Não és mais o garoto em frente a quem
contive touros bravos. Viveríamos
juntos os dois, não fosse Palamedes,*
que estava, talvez, certo, pois, sem mim,
podes, liberto das paixões de Édipo,
ter sonhos, meu Telêmaco, impolutos.
BRODSKY, Joseph. Quase uma elegia. Traduções de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.
* NOTA (por Antonio Cicero):
Ulisses jurara lutar ao lado de Menelau e dos outros gregos contra Troia. Quando, porém, Palamedes e Menelau foram buscá-lo para a guerra, ele tentou escapar desse compromisso, fingindo estar louco. Juntando bois bravos a um arado, saiu pelo campo, semeando sal. Foi Palamedes quem o desmascarou, pois quando colocou Telêmaco, o filhinho de Ulisses, em frente à parelha, este a freou para não atropelar a criança. Com isso, revelou que não estava realmente fora de si. Resultado: teve que ir à guerra, após a qual se extraviou pelo mar durante vinte anos.
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Poema
11.2.12
Marcel Proust: trecho de "À l'ombre des jeunes filles en fleurs"
[...] Compreendi melhor desde então que quando estamos apaixonados por uma mulher projetamos nela simplesmente um estado de nossa alma; que em conseqüência o importante não é o valor da mulher, mas a profundidade do estado; e que as emoções que uma moça medíocre nos dá podem permitir-nos fazer com que se elevem à nossa consciência partes mais íntimas de nós mesmos, mais pessoais, mais longínquas, mais essenciais do que poderia fazê-lo o prazer proporcionado pela conversação com um homem superior ou mesmo a contemplação e a admiração de suas obras.
[...] Je m’étais rendu mieux compte depuis qu’en étant amoureux d’une femme nous projetons simplement en elle un état de notre âme ; que par conséquent l’important n’est pas la valeur de la femme mais la profondeur de l’état ; et que les émotions qu’une jeune fille médiocre nous donne peuvent nous permettre de faire monter à notre conscience des parties plus intimes de nous-même, plus personnelles, plus lointaines, plus essentielles, que ne ferait le plaisir que nous donne la conversation d’un homme supérieur ou même la contemplation admirative de ses œuvres.
PROUST, Marcel. À l'ombre des jeunes filles en fleur. Paris: Gallimard, 1919.
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Paixão
9.2.12
Rainer Maria Rilke: "Das Lied des Selbstmörders" / "A canção do suicida": tradução de Augusto de Campos
A canção do suicida
É sempre assim: no último momento
alguém vem e me corta
a corda.
Há pouco era tão intenso o meu intento
que eu já sentia o infinito nos
intestinos.
Uma colher me é estendida,
a colher da vida.
Não, já cheguei ao limite.
Permitam-me que eu me vomite.
Sei que a vida é boa e grande
e o mundo tem beleza à bessa,
mas ela não entra no meu sangue,
apenas sobe à minha cabeça.
A outros ela nutre, a mim só me afeta.
Creiam, a nem todos ela apraz.
Agora, por mil anos ou mais
vou precisar de uma dieta.
Das Lied des Selbstmörders
Also noch einen Augenblick.
Daß sie mir immer wieder den Strick
zerschneiden.
Neulich war ich so gut bereit,
und es war schon ein wenig Ewigkeit
in meinen Eingeweiden.
Halten sie mir den Löffel her,
diesen Löffel Leben.
Nein ich will und ich will nicht mehr,
laßt mich mich übergeben.
Ich weiß, das Leben ist gar und gut,
und die Welt ist ein voller Topf,
aber mir geht es nicht ins Blut,
mir steigt es nur zu Kopf.
Andere nährt es, mich macht es krank;
begreift, daß man's verschmäht.
Mindestens ein Jahrtausend lang
brauch ich jetzt Diät.
RILKE, Rainer Maria. "Das Lied des selbstmörders" / "A canção do suicida". trad. Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto. Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2007.
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6.2.12
Fiódor Dostoiévski: trecho de "O idiota"
Agradeço a Bruno Cosentino por me ter lembrado do seguinte trecho de O idiota, de Dostoievski:
Uma vez que de todos os escritores russos até agora apenas esses três [Lomonóssov, Púchkin e Gógol] conseguiram dizer a cada leitor algo efetivamente seu, próprio seu, não tomado de empréstimo a ninguém, dessa forma esses três se tornaram imediatamente nacionais. Quem dentre os russos disser, escrever ou fizer algo de seu, de seu inalienável e não assimilado, imediatamente se tornará nacional, ainda que fale mal o russo."
Dostoiévski, Fiódor. O idiota. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 376, 377.
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2.2.12
Carlos Drummond de Andrade: "Confissão"
Confissão
Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde, ao voltar da festa.
Dei sem dar e beijei sem beijo.
(Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.
Do que restou, como compor um homem
e tudo o que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, múrmurios
de riso, entrega, amor e piedade?
Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro -vinha azul e doido-
que se esfacelou na asa do avião.
ANDRADE, Carlos Drummond de. "Claro enigma". In:_____Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
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