28.2.11

Antonio Cicero: "Longe"

O poeta Carlito Azevedo gentilmente publicou, na página mensal de poesia que assina no suplemento "Prosa e Verso", do jornal O Globo, dois poemas inéditos meus que, a pedido dele, eu lhe enviara.


Publico aqui um deles:


Longe

A chuva forte, o resfriado
real ou fingido, e eis-me livre
da escola e solto no meu quarto,
nos lençóis, nos mares de Chipre
ou no salão de Ana Pavlovna
ou no de Alcínoo, nas cavernas
de Barabar ou sob a abóbada
de Xanadu; perplexo em Tebas
e pelas veredas ambíguas
do sertão do corpo da língua,
cada vez mais longe de escolas
e de peladas e de bolas
e de promessas de futuros,
é mesmo errático meu rumo.

26.2.11

Alberto Pucheu: "A voz do sangue, o sangue da voz"




A voz do sangue, o sangue da voz

Tanto silêncio no ringue, no ringue
e na fome, tanto burburinho zoando simultaneamente,
que não posso distingui-los. E mesmo antes dos golpes
na cabeça, e mesmo antes de qualquer golpe
revolvendo as entranhas pelo avesso
(antes dos 4.500 quilos por impacto), e, mesmo antes,
tanto silêncio no ringue, no ringue
e na fome, tanto burburinho zoando
simultaneamente, que não posso distingui-los.
O ringue é o ringue, a fome é a fome, mas no ringue
(como na fome, como na fome do ringue, como no ringue
da fome), o silêncio é silêncio e burburinho,
e o burburinho, burburinho e silêncio. Quando,
no canto do amparo – sentado, curativos imediatos,
os segundos trabalhando a meu favor, a respiração em busca
de um ponto pacífico –, ouço a voz nítida do treinador
se erguendo do alarido da multidão e de ninguém,
não a escuto como um mandamento: infiel
e pecador, poderia traí-la. Escuto essa voz
desenrolar as últimas ataduras que envolvem o punho
do meu coração, espremê-lo ao sumo,
ao ponto de o gosto do sangue (de o gosto da fome) brotar comprimindo as gengivas por entre os dentes e o protetor,
me dando a certeza de que o próximo soar do gongo
será o último badalo com o qual meu adversário sonhará
antes de beijar a encardida lápide da lona.


PUCHEU, Alberto. A fronteira desguarnecida (poesia reunida 1993-2007). Rio de Janeiro: Azougue, 2007.

24.2.11

e.e. cummings: "Impression IV" / "Impressão IV"





Impressão IV


as horas sobem apagando estrelas e é
madrugada
nas ruas do céu a luz anda espalhando poemas

na terra uma vela é
extinta           a cidade
acorda

com uma canção em sua
boca tendo a morte em seus olhos

e é madrugada
o mundo
continua a assassinar os sonhos. . . .

vejo na rua em que homens
fortes cavam pão
e eu

vejo os rostos brutais das
pessoas contentes horríveis perdidas cruéis
                                        felizes

e é dia,

no espelho
vejo um homem frágil
sonhando
sonhos
sonhos no espelho

e
é crespúsculo           na terra

uma vela se acende
e é escuro.
as pessoas estão em casa
o homem frágil está na cama
a cidade
morre com a morte na boca tendo uma canção
                                        nos olhos
as horas descem,
levando à cena estrelas. . . .

na rua do céu a noite anda espalhando poemas




Impression IV


the hours rise up putting off stars and it is
dawn
into the street of the sky light walks
                              scattering poems

on earth a candle is
extinguished           the city
wakes
with a song upon her
mouth having death in her eyes

and it is dawn
the world
goes forth to murder dreams. . . .

i see in the street where strong
men are digging bread
and i

see the brutal faces of
people contented hideous hopeless cruel happy

and it is day,

in the mirror
i see a frail man
dreaming
dreams
dreams in the mirror

and it
is dusk           on earth

a candle is lighted
and it is dark.
the people are in their houses
the frail man is in his bed
the city
sleeps with death upon her mouth having a song in her eyes
the hours descend
putting on stars. . . .

in the street of the sky night walks scattering
                                        poems




CUMMINGS, E.E. "Tulips and chimneys (1923)". Complete poems: 1913-1962. New York and London: Harvest/HBJ Book, 1962.

21.2.11

Valério Bemfica: de "Retirada de propaganda da ONG do site do MinC foi ato soberano"




Valério Bemfica escreveu um excelente artigo, intitulado “Retirada de propaganda da ONG do site do MinC foi ato soberano”, publicado no jornal Hora do Povo, sobre a atual controvérsia entre os defensores do Creative Commons e os defensores do ECAD. A motivação do artigo foi rechaçar a declaração do deputado Paulo Teixeira (SP), líder do PT na Câmara dos Deputados, de que “a licença Creative Commons está dentro de uma política de governo”. Quem quiser ler o artigo inteiro, que é muito bom, vai encontrá-lo aqui no site do jornal: http://www.horadopovo.com.br/.

A seguir publico alguns excelentes trechos do mesmo:


[...]
É importante salientar que embolar software livre com Direito Autoral e com Lei de Patentes apenas gera uma grande confusão que só beneficia os tipos que financiam ONG’s como a CC. A decisão do governo brasileiro em apostar no software livre é correta. Ao invés de depender de alguns grandes oligopólios estrangeiros, investe-se em formar profissionais brasileiros, criar tecnologia nacional. Em lugar de gastar milhões de dólares anualmente em licenças de enlatados gringos, investir no desenvolvimento, por parte do próprio governo, de programas de computador que atendam mais adequadamente as nossas necessidades. Até aí tudo bem.

Mas o deputado deveria dar-se conta de que a Lei que rege a “proteção de propriedade intelectual de programa de computador” é uma, a dos Direitos Autorais é outra. Ou seja, a Lei brasileira reconhece que o tipo de conhecimento plasmado em um programa de computador e a criação artística são coisas absolutamente distintas. É por isso que existe uma Lei do Software e outra de Direitos Autorais. No primeiro caso justamente o que some é a figura do criador – da mesma maneira que no caso das patentes, também citado pelo deputado. Tanto nos softwares quanto nos medicamentos quem detém direitos não são os autores, mas os encomendantes. Pouco interessa se trezentos técnicos estiveram envolvidos na criação do último produto da Microsoft ou da Apple: os donos do produto serão o Bill Gates e o Steve Jobs. Não importa se milhares de cientistas foram os responsáveis pelo desenvolvimento de um novo medicamento: a patente será do laboratório. Já no campo dos direitos autorais a conversa é outra: independente de produtores, o criador é quem deterá os direitos. Investir no Software Livre significa retirar receita de monopólios como a Microsoft e a IBM. Atentar contra os Direitos Autorais é retirar dos autores a justa remuneração por seu trabalho e permitir que gigantes como a Google, o Facebook, a Telefónica, o YouTube, entre outros, ganhem fortunas com o tráfego de conteúdo que não lhes pertence, a custo zero.

EXEMPLO

Promover tal confusão só faz bem aos patrões do Sr. Lessig. É uma visão que rebaixa o artista criador. Será que o deputado precisa de um singelo exemplo para entender? Vamos lá. O pacote para escritório da Microsoft lançado em 2007 – menos de quatro anos atrás, portanto – custava uma boa grana. Com todas as suas proteções, bloqueios e patentes, batia na casa dos R$ 1.200,00. Foram milhões de dólares gastos em seu desenvolvimento, centenas de técnicos trabalhando. Hoje não vale nada. Nem sequer é comercializado. O Copyright ainda existe, mas ninguém dá bola para ele, nem a própria companhia detentora. Existe, é claro, uma nova versão, custando cerca de R$ 1.400,00. Já “Garota de Ipanema” foi composta em 1962. Trabalharam nela apenas duas pessoas, e o investimento foi zero (salvo, talvez, o custo de algumas doses de “cão engarrafado”). Quase cinqüenta anos depois continua sendo uma das músicas mais tocadas do mundo, tem centenas de novas gravações a cada ano: artisticamente, não perdeu nada de seu valor em cinco décadas. Financeiramente, ganhou.

Tentar fazer com que as duas coisas se equivalham interessa a quem? Única e exclusivamente a quem não consegue enxergar Garota de Ipanema como uma obra de arte, como fruto da mais elevada forma de expressão humana. Só a quem quer transformá-la em uma mercadoria, quer considerá-la como bytes a serem transmitidos em alguma rede privada. A legislação brasileira – como a da maioria dos países – reconhece cada obra como singular, como “extensão da personalidade de seu autor”, para usar os termos da UNESCO. E é por isso que as licenças de uso são dadas caso a caso e exclusivamente pelo autor ou por quem ele determinar como procurador. Entre a propriedade industrial do Windows, a patente do Viagra e o Direito Autoral de Tom Jobim e Vinícius de Moraes não há nada em comum, a não ser a entrevista do deputado e os argumentos de alguns desqualificados.

E não adianta vir com a falsa argumentação de que a Lei brasileira criminaliza quem baixa uma música ou a copia para seu aparelho de MP3, ou ainda quem copia trechos de um livro para uso próprio. Sendo advogado, o deputado deveria ler a Lei, especialmente em seu Título VII – “Das Sanções às Violações ao Direito Autoral”. Verá, sem dificuldade, que há uma série de penalidades cabíveis a quem violar os Direitos Autorais na execução pública e com o intuito de lucro. Nem uma linha ou referência à punição de fãs que, domesticamente, copiam obras, ou a estudantes dedicados. Não bastasse isso, o Capítulo IV da Lei exclui da cobrança de direitos autorais as cópias em um só exemplar e para uso próprio e o uso de obras “no recesso familiar”. Para completar, o deputado poderia consultar a jurisprudência: não existe na história dos tribunais brasileiros um só caso de processo e muito menos de condenação por cópia privada.

[...]

Dois terços do conteúdo “grátis” – e sem remuneração aos autores - disponível na internet (o que corresponde a 75% dos downloads) são colocados no ar por 100 usuários. Ou seja, 100 empresas que, através da cobrança de assinaturas ou da venda de publicidade vendem o que é dos outros e embolsam todo o lucro. O espírito de “livre circulação da cultura” na internet é uma falácia. Salvo raras exceções o que existe é um negócio – espúrio – que rouba o patrimônio dos autores para vendê-lo a terceiros. Por isso deve ser estabelecida no Brasil não a liberação dos direitos, mas a taxação dos provedores de acesso e conteúdo.

[...]

ECAD

Finalmente, comentemos a última das estultices repetidas à exaustão por alguns inimigos da cultura nacional e reproduzida pelo deputado: o papel do ECAD. Há tempos que o nome do escritório vem sendo transformado em palavrão. Qualquer notícia desfavorável é transformada em escândalo pela mídia – que não se conforma em ter de pagar o ECAD. E qualquer notícia favorável também é motivo de escarcéu. Ou seja, donos de meios de comunicação – principalmente rádios e TV’s – gostariam de não pagar pelo uso de músicas e fazem sistemática campanha contra o órgão encarregado pelos autores de fazer a cobrança.

[...]

Não há interferência do ECAD “na produção e na distribuição de bens culturais”. Só há cobrança por parte dele de obras já produzidas e distribuídas. Em momento algum o ECAD estabelece relação com os consumidores finais de alguma obra. A sua relação é com as empresas que se utilizam das músicas para ganhar dinheiro. O difícil papel de cobrar de quem acha que pode sustentar o seu banquete roubando o pão alheio.

O que o deputado no fundo ataca, mesmo que sem saber, é o conceito de Gestão Coletiva. Como o parlamentar conhece bem o movimento sindical, vamos propor um paralelo, para que ele entenda. Durante os anos do tucanato foi muito difundida a tese de que a regulação trabalhista era um entulho. Para que o trabalhador precisaria de uma série de leis e de entidades para protegê-lo? Muito melhor seria a “livre negociação”. Ou seja, um empregado do Bradesco, ao invés de juntar-se com todos os seus colegas e contar com a força do sindicato nas negociações, deveria é negociar sozinho com o seu patrão. Qualquer idiota é capaz de ver que, valendo a tese dos tucanos, férias, fundo de garantia, 13º salário e outras conquistas teriam virado coisa do passado.

Pois a tese do Creative Commons é a mesma. Ao invés de existir um único órgão de cobrança – o ECAD – onde todos os autores juntam sua força para negociar com os conglomerados de comunicação, o mais correto é registrar-se no site de uma ONG estrangeira. Se alguém quiser usar a música, pode negociar diretamente com o autor, sem passar por “intermediários”. Sem muito esforço é possível ver que, se cada autor for confrontado diretamente com os patrões da área, receberá muito menos. Não é à toa que em todos os países existem estruturas centrais de arrecadação e que elas nunca são controladas pelo Estado, mas pelos próprios autores. Na França, a Sacem; na Espanha, a Sgae; em Portugal, a SPA; na Alemanha, a Gema; nos EUA, a Ascap; na Inglaterra, a PRS; no Canadá, a Socan, etc.

Finalmente, algumas palavras sobre transparência. O deputado Paulo Teixeira deveria fazer uma pesquisa rápida na internet. Verá, no site do ECAD, todos os balanços da entidade desde 2004. Encontrará também todo o regulamento de Arrecadação e uma detalhada explicação dos mecanismos de distribuição. Também terá acesso ao ranking das músicas mais tocadas, dos autores mais executados, tudo isso dividido por região do Brasil. Terá também acesso ao banco de dados com todas as obras lá registradas e com os respectivos titulares. Anualmente o ECAD é auditado interna e externamente e precisa ter as suas contas aprovadas pelas dez associações autorais que o compõe. Pode também fazer uma visitinha rápida ao site do CC. Dá para encontrar os patrocinadores. Nenhum balanço ou auditoria. Dá para ver que os diretores são indicados pelos “supporters”, mas não para saber como a grana é gasta. A bem da verdade não dá nem para descobrir direito quem está registrado lá: a busca deve ser feita pelo Google, não por acaso um dos maiores benfeitores da ONG. Quem tem mais transparência? Quem esconde o jogo?

FISCALIZAÇÃO

O deputado deve lembrar que há pouco tempo o Congresso Nacional aprovou a lei que regulamentava as centrais sindicais. A direita mais reacionária incluiu um artigo que previa a fiscalização do dinheiro das entidades sindicais pelo Ministério Público. Foi preciso que o presidente Lula tivesse a coragem de vetar o esdrúxulo artigo. Quem deve fiscalizar o dinheiro dos sindicatos são os trabalhadores, disse ele. Aqui vale a mesma coisa: quem deve fiscalizar o dinheiro dos autores, decidir como ele será distribuído são eles mesmos.

Não há interferência do ECAD “na produção e na distribuição de bens culturais”. Só há cobrança por parte dele de obras já produzidas e distribuídas. Em momento algum o ECAD estabelece relação com os consumidores finais de alguma obra. A sua relação é com as empresas que se utilizam das músicas para ganhar dinheiro. O difícil papel de cobrar de quem acha que pode sustentar o seu banquete roubando o pão alheio.

O que o deputado no fundo ataca, mesmo que sem saber, é o conceito de Gestão Coletiva. Como o parlamentar conhece bem o movimento sindical, vamos propor um paralelo, para que ele entenda. Durante os anos do tucanato foi muito difundida a tese de que a regulação trabalhista era um entulho. Para que o trabalhador precisaria de uma série de leis e de entidades para protegê-lo? Muito melhor seria a “livre negociação”. Ou seja, um empregado do Bradesco, ao invés de juntar-se com todos os seus colegas e contar com a força do sindicato nas negociações, deveria é negociar sozinho com o seu patrão. Qualquer idiota é capaz de ver que, valendo a tese dos tucanos, férias, fundo de garantia, 13º salário e outras conquistas teriam virado coisa do passado.

Pois a tese do Creative Commons é a mesma. Ao invés de existir um único órgão de cobrança – o ECAD – onde todos os autores juntam sua força para negociar com os conglomerados de comunicação, o mais correto é registrar-se no site de uma ONG estrangeira. Se alguém quiser usar a música, pode negociar diretamente com o autor, sem passar por “intermediários”. Sem muito esforço é possível ver que, se cada autor for confrontado diretamente com os patrões da área, receberá muito menos. Não é à toa que em todos os países existem estruturas centrais de arrecadação e que elas nunca são controladas pelo Estado, mas pelos próprios autores. Na França, a Sacem; na Espanha, a Sgae; em Portugal, a SPA; na Alemanha, a Gema; nos EUA, a Ascap; na Inglaterra, a PRS; no Canadá, a Socan, etc.

Finalmente, algumas palavras sobre transparência. O deputado Paulo Teixeira deveria fazer uma pesquisa rápida na internet. Verá, no site do ECAD, todos os balanços da entidade desde 2004. Encontrará também todo o regulamento de Arrecadação e uma detalhada explicação dos mecanismos de distribuição. Também terá acesso ao ranking das músicas mais tocadas, dos autores mais executados, tudo isso dividido por região do Brasil. Terá também acesso ao banco de dados com todas as obras lá registradas e com os respectivos titulares. Anualmente o ECAD é auditado interna e externamente e precisa ter as suas contas aprovadas pelas dez associações autorais que o compõe. Pode também fazer uma visitinha rápida ao site do CC. Dá para encontrar os patrocinadores. Nenhum balanço ou auditoria. Dá para ver que os diretores são indicados pelos “supporters”, mas não para saber como a grana é gasta. A bem da verdade não dá nem para descobrir direito quem está registrado lá: a busca deve ser feita pelo Google, não por acaso um dos maiores benfeitores da ONG. Quem tem mais transparência? Quem esconde o jogo?

FISCALIZAÇÃO

O deputado deve lembrar que há pouco tempo o Congresso Nacional aprovou a lei que regulamentava as centrais sindicais. A direita mais reacionária incluiu um artigo que previa a fiscalização do dinheiro das entidades sindicais pelo Ministério Público. Foi preciso que o presidente Lula tivesse a coragem de vetar o esdrúxulo artigo. Quem deve fiscalizar o dinheiro dos sindicatos são os trabalhadores, disse ele. Aqui vale a mesma coisa: quem deve fiscalizar o dinheiro dos autores, decidir como ele será distribuído são eles mesmos.

BEMFICA, Valério. ““Retirada de propaganda da ONG do site do MinC foi ato soberano”. Hora do Povo, 9 e 10 de fevereiro de 2011.

20.2.11

Friedrich Nietzsche: § 343 de "A gaia ciência"





343

O sentido da nossa jovialidade. – O maior acontecimento recente – o fato de que "Deus está morto” de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular, mais desconfiado, mais estranho, "mais velho”: Mas pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande, distante e à margem da compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda que muitos soubessem já o que realmente sucedeu – e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado: toda a nossa moral europeia, por exemplo. Essa longa e abundante seqüência de ruptura, declínio. destruição, cataclismo, que agora é iminente: quem poderia hoje adivinhar o bastante acerca dela, para ter de servir de professor e prenunciador de uma tremenda lógica de horrores, de profeta de um eclipse e ensombrecimento solar, tal como provavelmente jamais houve na Terra?... Mesmo nós, adivinhos natos, que espreitamos do alto dos montes, por assim dizer, colocados entre o hoje e o amanhã e estendidos na contradição entre o hoje e o amanha, nós, primogênitos prematuros do século vindouro, aos quais as sombras que logo envolverão a Europa já deveriam ter se mostrado por agora: como se explica que mesmo nós encaremos sem muito interesse o limiar deste ensombrecimento, e até sem preocupação e temor por nós? Talvez soframos demais as primeiras conseqüências desse evento – e estas, as suas conseqüências para nós, não são, ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento, aurora... De fato. nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que "o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto "mar aberto”:



NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

18.2.11

Vicente Huidobro: "Arte poética"




Arte poética

Que o verso seja como uma chave
que abra mil portas.
Uma folha cai; algo passa voando;
que tudo quanto vejam os olhos criado seja,
e a alma de quem ouve fique tremendo.

Inventa mundos novos e cuida de tua palavra;
o adjetivo, quando não dá vida, mata.

Estamos no ciclo dos nervos.
pendura o músculo,
como lembrança, nos museus;
mas nem por isso temos menos força:
o vigor verdadeiro
reside na cabeça.

Por que cantais a rosa, oh poetas!
fazei-a florescer no poema.

Só para nós
vivem todas as coisas sob o Sol.

O poeta é um pequeno Deus.



Arte poética

Que el verso sea como una llave
que abra mil puertas.
Una hoja cae; algo pasa volando;
cuanto miren los ojos creado sea,
y el alma del oyente quede temblando.

Inventa mundos nuevos y cuida tu palabra;
el adjetivo, cuando no da vida, mata.

Estamos en el ciclo de los nervios.
El músculo cuelga,
como recuerdo en los museos;
mas no por eso tenemos menos fuerza:
el vigor verdadero
reside en la cabeza.

Por qué cantáis la rosa, ¡oh, Poetas!
Hacedla florecer en el poema.

Sólo para nosotros
viven todas las cosas bajo el Sol.

El poeta es un pequeño Dios.


HUIDOBRO, Vicente. Antología poética. Org. de Hugo Montes. Madrid: Castalia, 1990.

16.2.11

Giuseppe Ungaretti: "Fase": tradução de Sérgio Wax





Fase
Mariano, 25 de junho 1916

Anda que anda
reencontrei
o poço de amor

No olho
de mil e uma noites
descansei

Aos abandonados jardins
ela aportava
como uma pomba

Entre o ar
de meio-dia
que era um desmaio
apanhei-lhe
laranjas e jasmins


Fase
Mariano il 25 giugno 1916

Cammina cammina
ho ritrovato
il pozzo d'amore

Nell'occhio
di mill'una notte
ho riposato

Agli abbandonati giardini
ella approdava
come una colomba

Fra l'aria
del meriggio
ch'era uno svenimento
le ho colto
arance e gelsomini



UNGARETTI, Giuseppe. A alegria / L'allegria. Edição bilingue. Tradução de Sérgio Wax. Belém: CEJUP, 1992.

14.2.11

80 ANOS DE AUGUSTO DE CAMPOS




Hoje o poeta Augusto de Campos comemora 80 anos.

Nesta ocasião, a revista on-line ERRÁTICA (http://www.erratica.com.br/) lhe presta uma homenagem da qual me orgulho de participar.

13.2.11

Catulo: "vivamus, mea lesbia, atque amemus": trad. por Haroldo de Campos




vivamus, mea lesbia, atque amemus

Vivamos minha Lésbia, e amemos,
e as graves vozes velhas
- todas -
valham para nós menos que um vintém.
Os sóis podem morrer e renascer:
quando se apaga nosso fogo breve
dormimos uma noite infinita.
Dá-me pois mil beijos, e mais cem,
e mil, e cem, e mil, e mil e cem.
Quando somarmos muitas vezes mil
misturaremos tudo até perder a conta:
que a inveja não ponha o olho de agouro
no assombro de uma tal soma de beijos.



vivamus, mea lesbia, atque amemus

vivamus, mea lesbia, atque amemus,
rumoresque senum severiorum
omnes unius aestimemus assis.
soles occidere et redire possunt:
nobis, cum semel occidit brevis lux,
nox est perpetua una dormienda.
da mi basia mille, deinde centum,
dein mille altera, dein secunda centum,
deinde usque altera mille, deinde centum.
dein, cum milia multa fecerimus,
conturbabimus illa, ne sciamus,
aut nequis malus invidere possit,
cum tantum sciat esse basiorum.


CATULLUS, Gaius Valerius. Select poems of Catullus. Edited by Francis P. Simpson. London: Macmillan, 1948.

CAMPOS, Haroldo de. "catuliana". In: Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 2004.

12.2.11

Constantinos Caváfis: "Ιθάκη" / "Ítaca": trad. de Ísis Borges da Fonseca




Por sugestão do Aetano, publico "Ítaca", de Caváfis. A tadução é de Ísis Borges da Fonseca.




Ìtaca

Quando partires em viagem para Ítaca
faz votos para que seja longo o caminho,
pleno de aventuras, pleno de conhecimentos.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o feroz Poseidon, não os temas,
tais seres em teu caminho jamais encontrarás,
se teu pensamento é elevado, se rara
emoção aflora teu espírito e teu corpo.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o irascível Poseidon, não os encontrarás,
se não os levas em tua alma,
se tua alma não os ergue diante de ti.

Faz votos de que seja longo o caminho.
Que numerosas sejam as manhãs estivais,
nas quais, com que prazer, com que alegria,
entrarás em portos vistos pela primeira vez;
pára em mercados fenícios
e adquire as belas mercadorias,
nácares e corais, âmbares e ébanos
e perfumes voluptuosos de toda espécie,
e a maior quantidade possível de voluptuosos
                                        perfumes;
vai a numerosas cidades egípcias,
aprende, aprende sem cessar dos instruídos.

Guarda sempre Ítaca em teu pensamento.
É teu destino aí chegar.
Mas não apresses absolutamente tua viagem.
É melhor que dure muitos anos
e que, já velho, ancores na ilha,
rico com tudo que ganhaste no caminho,
sem esperar que Ítaca te dê riqueza.
Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem ela não te porias a caminho.
Nada mais tem a dar-te.

Embora a encontres pobre, Ítaca não te
                                        enganou.
Sábio assim como te tornaste, com tanta
                                        experiência,
já deves ter compreendido o que significam as
                                        Ítacas.



Ιθάκη

Σα βγεις στον πηγαιμό για την Ιθάκη,
να εύχεσαι νάναι μακρύς ο δρόμος,
γεμάτος περιπέτειες, γεμάτος γνώσεις.
Τους Λαιστρυγόνας και τους Κύκλωπας,
τον θυμωμένο Ποσειδώνα μη φοβάσαι,
τέτοια στον δρόμο σου ποτέ σου δεν θα βρεις,
αν μεν' η σκέψις σου υψηλή, αν εκλεκτή
συγκίνησις το πνεύμα και το σώμα σου αγγίζει.
Τους Λαιστρυγόνας και τους Κύκλωπας,
τον άγριο Ποσειδώνα δεν θα συναντήσεις,
αν δεν τους κουβανείς μες στην ψυχή σου,
αν η ψυχή σου δεν τους στήνει εμπρός σου.
Να εύχεσαι νάναι μακρύς ο δρόμος.
Πολλά τα καλοκαιρινά πρωϊά να είναι
που με τι ευχαρίστησι, με τι χαρά
θα μπαίνεις σε λιμένας πρωτοειδωμένους,
να σταματήσεις σ' εμπορεία Φοινικικά,
και τες καλές πραγμάτειες ν' αποκτήσεις,
σεντέφια και κοράλλια, κεχριμπάρια κ' έβενους,
και ηδονικά μυρωδικά κάθε λογής,
όσο μπορείς πιο άφθονα ηδονικά μυρωδικά,
σε πόλεις Αιγυπτιακές πολλές να πας,
να μάθεις και να μάθεις απ' τους σπουδασμένους.
Πάντα στον νου σου νάχεις την Ιθάκη.
Το φθάσιμον εκεί ειν' ο προορισμός σου.
Αλλά μη βιάζεις το ταξείδι διόλου.
Καλλίτερα χρόνια πολλά να διαρκέσει
και γέρος πια ν' αράξεις στο νησί,
πλούσιος με όσα κέρδισες στο δρόμο,
μη προσδοκώντας πλούτη να σε δώσει η Ιθάκη.
Η Ιθάκη σ'έδωσε τ' ωραίο ταξείδι.
Χωρίς αυτήν δεν θάβγαινες στον δρόμο.
Άλλα δεν έχει να σε δώσει πια.
Κι αν πτωχική την βρεις, η Ιθάκη δε σε γέλασε.
Έτσι σοφός που έγινες, με τόση πείρα,
ήδη θα το κατάλαβες οι Ιθάκες τι σημαίνουν.


KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas de K. Kaváfis. Tradução de Ísis Borges da Fonseca. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

9.2.11

Libério Neves: "Do ser o ser e ser seu parecer"





Do ser o ser e ser seu parecer

No quando em conversando assim contigo
e tido em ser um ser assim sincero
sou uma sombra boa, um vulto amigo

e sou, quando te falo, e quando sério
um grave ser sutil que nesta vida
transcende ao anjo, ardendo-se matéria

minha palavra então espessa vibra
ou tímida se evola, ou gruda como visgo
nos corações melífl uos das pessoas.

Contudo quando durmo (quando em sonho)
ou quando em meus re-versos me componho
um outro eu, em mim, pulsa e ressoa

uma linguagem funda e diferente!
pois uma coisa é ter-se o meu retrato
que mostra o magro rosto externamente,

enquanto que mostrado, em raios-X,
o dentro é contraponto e ponte exata
entre o ser-se o que é e o que se diz:

bem mais que olhos mansos nas capelas
ser o suspiro posto à luz das velas
queimando entre ser alma e ser matriz.



NEVES, Libério. "Do ser o ser e ser seu parecer". In: Suplemento Literário. Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais. Edição especial: "A música verbal de Libério Neves". Belo Horizonte, Novembro de 2010.

6.2.11

Paul Valéry: "Politique" / "Política"




Política

Repugno tudo o que quer me convencer – um partido, uma religião que busca adeptos, que quer o número e a propagação são marcados (para mim) pela ignomínia. Uma doutrina deve, para ser nobre, jamais ceder ao desejo de ser compartilhada. Sit ut est ut non sit [que seja como é ou que não seja].

Não quero fazer aos outros o que não gostaria que me fizessem.

Pois ocorre que, para atrair o número, introduz-se ou tolera-se o suficiente para aborrecer os alguns, e ocorre uma duplicidade, uma impureza na doutrina. Não se sabe mais se tal ponto é uma questão de fé ou não. Chega-se a misturas estranhas, a reservas secretas. São Tomás e o sangue de São Januário.

-- Ter razão. Querer ter razão – propagar. Querer convencer.

Isso leva aos milagres... à “publicidade”.



Politique

Je répugne à tout ce qui veut me convaincre -- Un parti, une religion qui cherche des adeptes, qui veut le nombre et la propagation, sont frappés (pour moi) d'ignominie. Une doctrine doit, pour être noble ne rien céder au désir d'être partagée. Sit ut est aut non sit.

Je ne veux pas faire aux autres ce que je ne voudrais pas qu'on me fît.

Car il arrive que pour attirer le nombre, on introduise ou l'on tolère ce qu'il faut pour dégoûter les quelques-uns, et il se fait un dédoublement, une impureté dans la doctrine. On ne sait plus si tel point est de foi ou ne 1'est pas. On arrive à des mixtures étranges, à des réserves secrètes. Saint Thomas et le sang de St Janvier.

Avoir raison. Vouloir avoir raison — Propager. Vouloir convaincre.

Ceci mène aux miracles... à la « publicité ».



VALÉRY, Paul. Cahiers I. Paris: Gallimard, 1973.

4.2.11

Giorgio Caproni: "Prima luce" / "Primeira luz": trad. por Aurora Fornoni Bernardini




Primeira luz

Leitosa de alvorada
nasce nas colinas,
gaguejando palavras ainda
infantis, a primeira luz.

A terra, com seu rosto
mádido de suor
abre ensonados olhos d'água
à noite que embranquece.

(São sempre os pássaros os primeiros
pensamentos do mundo).



Prima Luce

Lattiginosa d’alba
nasce sulle colline,
balbettanti parole ancora
infantili, la prima luce.

La terra, con la sua faccia
madida di sudore,
apre assonnati occhi d’acqua
alla notte che sbianca.

(Gli uccelli sono sempre i primi
pensieri del mondo).


CAPRONI, Giorgio. "Come un'allegoria (1932-35)". In: BERNARDINI, Aurora Fornoni (org. e trad.). Agamben comenta Caproni. Florianópolis: UFSC, 2011.

2.2.11

Michel Deguy: "L'amour est plus fort" / trad. de Marcos Siscar




O amor é mais forte que a morte vocês diziam
Mas a vida é mais forte que o amor e
A indiferente mais forte que a vida — A vida
Minha ou sua e nossa de alguma maneira
É em conjunto a única seqüência de
                              metamorfoses
(O neotênico converte-se em herói sexuado
Depois no barrigudo careca que apodrece como
                              um deus)
E banhos-duchas no Letes todos os meses
Lutos laqueados, renascimentos frágeis,
                              amnésias
E um velho mudo dentro de nós há tanto
                              tempo
Sobrevive sem dor ao ossuário das crianças


                             45° Oeste 60° Norte




L'amour est plus fort que la mort disiez-vous
Mais la vie est plus forte que l'amour et
L'indifférente plus forte que la vie – La vie
Mienne ou tienne et nôtre en quelque manière
Est ensemble la seule séquence de
                              métamorphoses
(Le néoténique se mue en héros à sexe
Plus tard en ventru chauve pourrissant comme
                              un dieu)
Et bains-douches au Lhété tons les mois
Deuils laqués, renaissances frêles, amnèses
Et un vieillard muet en nous depois longtemps
Survit sans douleur au charnier des enfants


                              40° Ouest 60° Nord





DEGUY, Michel. "Donnant donnant" / "Toma lá, dá cá". trad. de Marcos Siscar. In: A rosa das línguas. org. e trad. por Paula Glenadel e Marcos Siscar. São Paulo: Cosac & Naify; Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2004.