29.12.20

Katia Maciel: "achados"

 


Agradeço à querida Katia Maciel por me ter dedicado o seguinte belo poema do seu excelente livro Plantio:



achados

         

                para Antonio Cicero


cicero me disse que esquecemos os poemas

se não escrevemos esquecemos

para onde vão os poemas?

os esquecidos 

esqueci um

no banho

corri até aqui

e cá estamos





MACIEL, Katia. "achados". In:_____. Plantio. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019. 

27.12.20

Guillaume Apollinaire: "Et toi mon cœur" / "E tu, meu coração": trad.: Antonio Cicero

 


E tu, meu coração



E tu, meu coração, por que bates


Feito um vigia melancólico

observo a noite e a morte






Et toi mon cœur



Et toi mon cœur pourquoi bats-tu


Comme un guetteur mélancolique

j'observe la nuit et la mort






APOLLINAIRE, Guillaume. "Et toi mon coeur". In: ENZENSBERGER, Hans Magnus (org.). Museum der modernen Poesie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2002.

25.12.20

Alberto da Costa e Silva: "Soneto de Natal"

 



Soneto de Natal



Como esperar que o dia pequenino,

com a mesa, a cama, o copo, as cousas simples,

desate em nossas mãos os lenços cheios

de canções e trigais e ninfas tristes?


Menino já não sou. Como de novo

conversar com os pássaros, o peixes,

invejar o galope dos cavalos

e voltar a sentir os velhos êxtases?


A linguagem dos grãos, do manso pêssego,

a bem-amada ensina e novamente

sinto em mim o odor de esterco e leite


dos currais onde a infância tange as reses,

sorve a manhã e permanece neste

cantor da relva mínima e dos bois.





COSTA E SILVA, Alberto da. "Soneto de Natal". In:_____. "Poemas dos vinte anos". In:_____. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. 


23.12.20

Daniel Jonas: "Três rosas choram, brancas e tombadas"

 



Três rosas choram, brancas e tombadas


Três rosas choram, brancas e tombadas.

No mármore em murmúrio nada se ouve

E tudo o que é é nada do que houve…

Oblíqua cai a chuva nas lombadas…

Na biblioteca parda tudo tomba:

As rosas, as velhinhas, hirtos círios.

E agora tudo chora, grutas, lírios,

E as gárgulas do choro são a tromba…

É nada o que nos move, a paz, a guerra…

Tanto saber errado e tanto crânio!...

O príncipe é que estava certo, o dânio!

E as rosas murcharão, quem as enterra?

Mas quase me esquecia ao que vinha:

Passar-te a mão pela pele tão lisinha…







JONAS, Daniel. "Três roas choram, brancas e tombadas". In:_____. Nó: Sonetos. Porto: Assírio e Alvim, 2014.

20.12.20

Gastão Cruz: "Leitura"

 



Leitura



Como quem liga outro

computador e ouve

um som já conhecido

tocarás o meu corpo


Só as mãos interpretam 

essa espécie de ruído

depois virão os lábios

ler o texto acendido





CRUZ, Gastão. "Leitura". In:_____. "Rua de Portugal". In:_____. Os poemas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2009.

16.12.20

Arthur Rimbaud: "Ma Bohème" / "Minha Boêmia"

 



Minha Boêmia

   (fantasia)


Lá ia eu, de mãos nos bolsos descosidos;

Meu paletó também tornava-se ideal;

Sob o céu, Musa! Eu fui teu súdito leal.

Puxa vida! A sonhar amores destemidos!


O meu único par de calças tinha furos.

– Pequeno Polegar do sonho ao meu redor

Rimas espalho. Albergo-me à Ursa Maior.

– Os meus astros no céu rangem frêmitos puros.


Sentado, eu os ouvia, à beira do caminho,

Nas noites de setembro, onde senti tal vinho

O orvalho a rorejar-me as fronte em comoção;


Onde, rimando em meio à imensidões fantásticas,

Eu tomava, qual lira, as botinas elásticas

E tangia um dos pés junto ao meu coração!





Ma Bohème

 (fantaisie)


Je m’en allais, les poings dans mes poches crevées ;

Mon paletot aussi devenait idéal ;

J’allais sous le ciel, Muse! et j’étais ton féal ;

Oh! là! là! que d’amours splendides j’ai rêvées !


Mon unique culotte avait un large trou.

– Petit-Poucet rêveur, j’égrenais dans ma course

Des rimes. Mon auberge était à la Grande-Ourse.

– Mes étoiles au ciel avaient un doux frou-frou


Et je les écoutais, assis au bord des routes,

Ces bons soirs de septembre où je sentais des gouttes

De rosée à mon front, comme un vin de vigueur ;


Où, rimant au milieu des ombres fantastiques,

Comme des lyres, je tirais les élastiques

De mes souliers blessés, un pied près de mon coeur !










RIMBAUD, Arthur. "Ma Bohème" / "Minha Boêmia". In: BARROSO, Ivo (org. e trad.). Arthur Rimbaud. Poesia completa. Edição bilingue. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.



13.12.20

Antonio Cicero: "Auden e Yeats"

 



Auden e Yeats

 

Eu exaltaria Auden,

viajante atormentado,

dialético e bizarro,

e lhe faria uma ode

se a tanto minha perícia

e minha audácia bastassem.

     

Ou quem sabe, Yeats, numa tarde

feito esta, tão vadia,

possa a leitura da tua

poesia, pura Musa,

inspirar a minha arte

se eu lhe implorar: Poesia,

na prisão destes meus dias

ensina-me a elogiar-te.

 

 


       CICERO, Antonio. "Auden e Yeats". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

10.12.20

Luis Turiba: "Paridela"

 


Paridela


ativar a consciência da construção do poema

captar sinalizações

escolher suas bases de sustentação

válvulas de escape abertas

indignar-se da alma ao ventre

espinha ereta ,

conexões com as ancestralidades ativadas

sal a gosto

o prazer de abrir um bom dicionário

garimpar palavras luminosas que caibam no corte do

alfaiate

deixar de molho por 3 dias mesmo que tenha nascido de 9

meses

cortar o cordão umbilical com a inspiração

limpar nos detalhes o líquido amniótico para deixá-lo chorar

até a estreia do primeiro mamar

pendurar no varal tendo o cuidado de não despolui-lo por •

completo

salpicar um pouco de sangue quente para o batismo de axé

soltá-lo ao vento com 3 pedras portuguesas em cada bolso

tirar a venda de seus olhos

... '

se sobreviver, -

ganhará a eternidade '

da garrafa de algum náufrago






TURIBA, Luis. "Paridela". Rio de Janeiro: 2020.

8.12.20

Christopher Ernest Dowson: "Vitae summa brevis spem nos vetat incohare longam": trad. de Nelson Ascher

 



Vitae summa brevis spem nos vetat incohare longam



A alegria, o desejo, o pranto, o amor

E a raiva duram pouco.

Nada disso, que eu saiba, há de transpor

O umbral conosco.


Poucos dias de rosas e de vinho:

Surge num vago sonho

E logo se desfaz nosso caminho

Dentro de um sonho.







Vitae summa brevis spem nos vetat incohare longam




They are not long, the weeping and the laughter,

Love and desire and hate:

I think they have no portion in us after

We pass the gate.


They are not long, the days of wine and roses:

Out of a misty dream

Our path emerges for a while, then closes

Within a dream.







DOWSON, Ernest Christopher. "Vitae summa brevis spem nos vetat incohare longam". In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.



6.12.20

Armando Freitas Filho: "Vincent"

 



Vincent



O barulho da cor gritante

daquele quadro: a pincelada

chicoteava e custava achar

o tom certo sobreposto

ao outro sem apagá-lo de todo.

A intenção do pincel era

a de incrementar o pigmento

até o limite do inacabado

da exasperação, da intensidade

do sentimento, adensando-o

para muito além do esperado.

E a pintura mesmo depois de seca

mesmo depois dos séculos

acontecia viva no instante

em que o olhar a capturava.







FREITAS FILHO, Armando. "Vincent". In:_____. Arremate. Poemas (2013-2019). São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

4.12.20

Salvatore Quasimodo: "Tu chiami una vita" / "Tu pedes uma vida": trad. por Geraldo Holanda Cavalcanti

 



Tu pedes uma vida



Cansaço de amor, tristeza,

tu pedes uma vida

que dentro, profunda, tem nomes

de céus e jardins.


E fosse minha carne

que o dom do mal transforma.





Tu chiami una vita



Fatica d'amore, tristezza,

tu chiami una vita

che dentro, profonda, ha nomi

di cieli e giardini.


E fosse mia carne

che il dono di male trasforma.







QUSIMODO, Salvatore. "Tu chiami una vita" / "Tu pedes uma vida". In:_____. Poesias. Edição Bilingue. Org. e trad. por Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 1999.

1.12.20

Age de Carvalho: "EU INTIMO-ME"

 



Eu, intimo-me

a reconhecer


(em ti, contigo

em viagem – nós,

dois faróis na estrada

farejando a escuridão luxuosa,

abolindo tempoespaço

à visao da grande nebulosa:

tu, era eu-todo-estrelado,

o céu, espelho)


-me em

mim-mesmo





CARVALHO, Age de. "EU, INTIMO-ME". In:_____. Ainda: em viagem. Belém: ed.ufpa, 2015.

28.11.20

Philip Larkin: "Forget what I did" / "Esquecer o que": trad. de Rui Carvalho Homem

 



Esquecer o que



Parar o diário

Foi aturdir a memória,

Foi um começo em branco,


Começo que já não cicatriza

Com tais palavras, tais acções,

Que tornaram inóspito o acordar.


Queria-as terminadas,

Despachadas para enterro

E rememoradas


Como as guerras e os invernos

Que faltavam para lá das janelas

De uma infância opaca.


E as páginas vazias?

Se vierem a preencher-se,

Que seja com a observação


De recorrências celestes,

O dia em que vêm as flores,

E quando partem as aves.






Forget What Did


Stopping the diary

Was a stun to memory,

Was a blank starting,


One no longer cicatrized

By such words, such actions

As bleakened waking.


I wanted them over,

Hurried to burial

And looked back on


Like the wars and winters

Missing behind the windows

Of an opaque childhood.


And the empty pages ?

Should they ever be filled

Let it be with observed


Celestial recurrences,

The day the flowers come,

And when the birds go.





LARKIN, Philip. "Forget what I did" / "Esquecer o que". In: Janelas altas. Trad. e org. por Rui Carvalho Homem. Lisboa: Cotovia, 2004.


26.11.20

António Botto: "Quem não ama não vive"

 



Quem não ama não vive


Já na minha alma se apagam

As alegrias que eu tive;

Só quem ama tem tristezas,

Mas quem não ama não vive.


Andam pétalas e folhas

Bailando no ar sombrio;

E as lágrimas, dos meus olhos,

Vão correndo ao desafio.


Em tudo vejo Saudades!

A terra parece morta.

– Ó vento que tudo levas,

Não venhas á minha porta!


E as minhas rosas vermelhas,

As rosas, no meu jardim,

Parecem, assim caídas,

Restos de um grande festim!


Meu coração desgraçado,

Bebe ainda mais licor!

– Que importa morrer amando,

Que importa morrer d'amor!


E vem ouvir bem-amado

Senhor que eu nunca mais vi:

– Morro mas levo comigo

Alguma cousa de ti. 






BOTTO, António. "Quem não ama não vive". In: VIEGAS, Francisco José (org.). Cem poemas para salvar a nossa vida. Lisboa: Quetzal, 2014.

24.11.20

Ferreira Gullar: "Nem aí..."

 



Nem aí...



Indiferente

      ao suposto prestígio literário

e ao trabalho

do poeta 

               à difícil faina

a que se entrega para

inventar o dizível,

sobe à mesa

             o gatinho

             se espreguiça

             e deita-se e

             adormece

                             em cima do poema    





GULLAR, Ferreira. "Nem aí...". In:_____. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.



22.11.20

Bertolt Brecht: "Vom armen B.B." / "Sobre o pobre B.B.": trad. Antonio Cicero

 



Ontem, por engano, apaguei os poemas de Brecht que tinha no blog. Como gosto muito deles, resolvi republicá-los, pouco a pouco. Aí vai o primeiro, que postei em 2007:

Um dia, no ano passado, ousei traduzir um dos poemas de que mais gosto, de um dos poetas de que mais gosto, Bertolt Brecht. Depois, vi que ele já havia sido traduzido várias vezes, inclusive por dois amigos que admiro muito, Nelson Ascher e Paulo César de Souza, cujas traduções -- é o mínimo que posso dizer -- não são em nada inferiores à minha. É possível até que eu já as tivesse lido; mas é mais provável que não, pois, além de não me lembrar de tê-lo feito, confesso que, normalmente, quando gosto muito de um poema na sua língua original, como desse, deixo de prestar a devida atenção às suas traduções.

De todo modo, o poema é o famoso “Sobre o pobre B.B.”, e o apresento em seguida, primeiro na minha tradução, depois em alemão.

Sobre o pobre B.B.

Eu, Bertolt Brecht, sou das florestas negras.
Minha mãe me trouxe para as cidades
Dentro do ventre. E o frio das florestas
Estará comigo ao me cobrir a laje.

Na cidade de asfalto estou em casa e a caráter,
Com todos os últimos sacramentos
Ministrados: jornais, tabaco, conhaque:
Desconfiado, indolente e enfim satisfeito.

Sou amável com os outros. E visto
Meu chapéu-coco, como todo o mundo.
Digo: são bichos de cheiro esquisito
E digo: e daí? Também sou, no fundo.

Às vezes, nas cadeiras de balanço,
Coloco algumas moças, de manhã,
E digo: em mim vocês têm, eu garanto,
Alguém em quem não podem confiar.

À tarde me reúno com colegas.
Tratamo-nos de “gentleman”, então.
Eles dizem, com os pés à minha mesa:
As coisas vão melhorar. E não pergunto: quando.

Na madrugada cinza, abetos mijam
E piam os pássaros, que são seus vermes.
Na cidade, meu copo se esvazia,
Largo o charuto e durmo um sono leve.

Assentamo-nos, uma geração leviana,
Em prédios que quiséramos indestrutíveis
(assim construímos os arranha-céus da ilha de Manhattan
E as finas antenas sobre o Atlântico a nos divertirem).

Destas cidades ficará quem as atravessou, o vento!
A casa faz feliz quem nela come: quem a esvazia.
Sabemos sermos efêmeros
E que depois de nós o que virá será sem valia.

Nos terremotos vindouros, que não seja meu fado
Deixar por amargura o meu Virginia se apagar,
Eu, Bertolt Brecht, largado nas cidades de asfalto,
Oriundo das florestas negras, no ventre da mãe, tempos atrás.



Vom armen B.B.

Ich, Bertolt Brecht, bin aus den schwarzen Wäldern.
Meine Mutter trug mich in die Städte hinein
Als ich in ihrem Leibe lag. Und die Kälte der Wälder
Wird in mir bis zu meinem Absterben sein.

In der Asphaltstadt bin ich daheim. Von allem Anfang
Versehen mit jedem Sterbsakrament:
Mit Zeitung. Und Tabak. Und Branntwein.
Misstrauisch und faul und zufrieden am End.

Ich bin zu den Leuten freundlich. Ich setze
Einen steifen Hut auf nach ihrem Brauch.
Ich sage: Es sind ganz besonders riechende Tiere
Und ich sage: Es macht nichts, ich bin es auch.

In meine leeren Schaukelstühle vormittags
Setze ich mir mitunter ein paar Frauen
Und ich betrachte sie sorglos und sage ihnen:
In mir habt ihr einen, auf den könnt ihr nicht bauen.

Gegen Abend versammle ich um mich Männer
Wir reden uns da mit “Gentlemen” an.
Sie haben ihre Füße auf meinen Tischen
Und sagen: Es wird besser mit uns. Und ich frage nicht: Wann?

Gegen Morgen in der grauen Frühe pissen die Tannen
Und ihr Ungeziefer, die Vögel, fängt an zu schrein.
Um die Stunde trink ich mein Glas in der Stadt aus und schmeiße
Den Tabakstummel weg und schlafe beunruhigt ein.

Wir sind gesessen, ein leichtes Geschlechte
In Häusern, die für unzerstörbare galten
(So haben wir gebaut die langen Gehäuse des Eilands Manhattan
Und die dünnen Antennen, die das Atlantische Meer unterhalten).

Von diesen Städten wird bleiben: der durch sie hindurchging, der Wind! Fröhlich machet das Haus den Esser: er leert es.
Wir wissen, daß wir Vorläufige sind
Und nach uns wird kommen: nichts Nennenswertes.

Bei den Erdbeben, die kommen werden, werde ich
hoffentlich Meine Virginia nicht ausgehen lassen durch Bitterkeit
Ich, Bertolt Brecht, in die Asphaltstädte verschlagen
Aus den schwarzen Wäldern in meiner Mutter infrüher Zeit.

 



BRECHT, Bertolt. Vom armen B.B." / "Sobre o pobre B.B". In: BENTLEY, Eric (org.). Poems by Bertolt Brecht / Gedichte von Bertolt Brecht. New York: Grove, 1967.

20.11.20

Casimiro de Brito: "10"

 



10


Quem foi pedra e peixe antes de ser pássaro,

quem foi barro e árvore antes de ser nuvem,

quem foi homem antes de ser mulher

e mulher antes de ser homem,

pai antes de ser filho e vagido

antes de ser música

transporta um saber anterior

ao dom da palavra.




BRITO, Casimiro de. "10". In:_____. Arte de bem morrer. Lisboa: Roma Editora, 2007.


18.11.20

Derek Walcott: "Midsummer, Tobago" / "Meio do verão, Tobago": tradução por Nelson Ascher

 



Meio do verão, Tobago


Vastas praias lapidadas pelo sol.

Calor branco.
Um rio verde.

Uma ponte,
palmeiras crestadas, amarelas

da casa que, na sesta estival,
cochila agosto afora.

Dias que retive,
dias que perdi,

dias que, como filhas, crescem para fora
da enseada dos meus braços.







Midsummer, Tobago



Broad sun-stoned beaches.

White heat.
A green river.

A bridge,
scorched yellow palms

from the summer-sleeping house
drowsing through August.

Days I have held,
days I have lost,

days that outgrow, like daughters,
my harbouring arms.






WALCOTT,  Derek. "Midsummer, Tobago" / "Meio do verão, Tobago". In: ASCHER,  Nelson (organização e tradução). Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.


16.11.20

Antonio Cicero: "Falar e dizer"

 



Falar e dizer

                                                       a Waly Salomão

 

Não é possível que portentos não tenham ocorrido

Ou visões ominosas e graves profecias

Quando nasci.

Então nasce o chamado

Herdeiro das superfícies e das profundezas então

Desponta o sol

E não estremunha aterrado o mundo?

Assim à idade da razão

Vazei os olhos cegos dos arúspices e,

Fazendo rasos seus templos devolutos,

Desde então eu designo no universo vão

As coisas e as palavras plenas.

Com elas

Recôndito e radiante ao sopro dos tempos

Falo e digo

Dito e decoro

O caos arreganhado a receber-me incontinente.






CICERO, Antonio. "Falar e dizer". In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1966.

14.11.20

Paulo Sabino: "Meu mundo, minha moeda"

 




Meu mundo, minha moeda



meu corpo, minha regra:

porque a vida só vale se agrega

o valor e a condição que me cabem:

ser quem decide molde e cor da roupagem


meu corpo, minha regra:

porque a vida só vale a entrega

quando vestido o que trago na bagagem:

nada às escondidas na hora da triagem


meu corpo, minha regra:

porque a vida só vale a quimera

daquilo que me alimenta de coragem:

seja eu o espelho da minha imagem





SABINO, Paulo. "Meu mundo, minha moeda". In:_____. Um para dentro todo exterior. Rio de Janeiro: Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda., 2018. 


11.11.20

Ivan Junqueira: "O poema"

 



O poema



Que será o poema,

essa estranha trama

de penumbra e flama

que a boca blasfema?


Que será, se há lama

no que escreve a pena

ou lhe aflora à cena

o excesso de um drama?


Que será o poema:

uma voz que clama?

Uma luz que emana?

Ou a dor que o algema?




JUNQUEIRA,  Ivan. "O poema". In:_____. "A sagração dos ossos". In:_____. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Record, 1999. 

9.11.20

José Régio: "Momento"

 



Momento


Quem, nos meus olhos ardentes,

Na minha testa cansada,

Perpassa os dedos clementes,

Poisa a mão fresca orvalhada...?


Talvez a brisa da tarde,

Que passa, e não faz alarde...


Talvez a brisa da tarde!


Sim, só a brisa; e mais nada.







RÉGIO, José. "Momento". In:_____. Antologia. Org. por Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.











7.11.20

Giuseppe Ungaretti: "Silenzio" / "Silêncio": trad. por Geraldo Holanda Cavalcanti

 



Silêncio



Conheço uma cidade 

que cada dia se enche de sol 

e tudo é arrebatado nessa hora 


Dela parti uma tarde 


No coração perdurava o limar 

das cigarras 


Do navio 

laqueado de branco 

vi 

minha cidade sumir 

deixando 

por um instante 

no ar toldado um abraço de luzes 

suspensas






Silenzio


Conosco una città

che ogni giorno s’empie di sole

e tutto è rapito in quel momento


Me ne sono andato una sera


Nel cuore durava il limio

delle cicale


Dal bastimento

verniciato di bianco

ho visto

la mia città sparire

lasciando

un poco

un abbraccio di lumi nell’aria torbida

sospesi.







UNGARETTI, Giuseppe. "Silenzio" / "Silêncio". In:_____. "Il porto sepolto" / "O porto sepulto". In: Poemas. Org. e trad. por Geraldo Holanda Cavalcanti. São Paulo: Edusp, 2017.

1.11.20

Jorge de Sousa Braga: "Mississipi"

 


Mississipi


Há muito tempo que não saio de casa (a não ser para ir ao 

                                              supermercado ou à geladaria)

Se soubesses a confusão de rios que vai no meu quarto

Estou morto por te apresentar o Mississipi

Estou morto que venhas estou morto por ouvir

o som irritante da campainha da entrada

Há muito tempo que não saio de casa

Se soubesses a vontade que tenho de passear

no interior da tua orelha






BRAGA, Jorge de Sousa. "Mississipi". In:_____. Boca do Inferno. Porto: Gota de Água, 1987.

30.10.20

Daniel Freidenberg: "Piu avanti

 


Piu avanti



Nem Deus nem Lúcifer, o
protagonista desta história
chora e também reza, embora
disfarce muito bem.
Hoje abriu uma porta:
um dia de sol não é
o paraíso, mas
é dia e faz sol
e ele abriu uma porta.






Piu avanti


Ni Dios ni Lucifer, el
protagonista de esta historia
llora y también reza, aunque
lo disimula muy bien
Hoy ha abierto una puerta:
un día de sol no es
el paraíso, pero
es de día, y hay sol
y él ha abierto una puerta






FREIDENBERG, Daniel. "Piu avanti". In: KOVADLOFF, Santiago (org. e trad.). In:_____. A palavra nômade. Poesia argentina dos anos 70. São Paulo: Iluminuras, 1990. 


28.10.20

T.S. Eliot: "The hollow men" / "Os homens ocos": trad. por Caetano W. Galindo

 



Os homens ocos



I


Somos os homens ocos

Somos homens empalhados

Apoiados todos juntos

Com chapéus cheios de palha. Ah!

Nossas vozes secas, dado

Sussurrarmos juntos

São mudas, sem sentido,

Como vento em capim ressequido

Ou patas de ratos nos cacos de vidro

De nossa cave seca


Forma sem corpo, sombra sem cor

Paralítica força, gesto sem impulso;


Os que tenham ido

Olhando firme, ao reino outro da morte

Recordam-nos — se tanto — não como perdidos

De almas violentas, mas apenas

Como os homens ocos

Os empalhados.


 








The Hollow Men


I


We are the hollow men

We are the stuffed men

Leaning together

Headpiece filled with straw. Alas!

Our dried voices, when

We whisper together

Are quiet and meaningless

As wind in dry grass

Or rats' feet over broken glass

In our dry cellar


Shape without form, shade without colour,

Paralysed force, gesture without motion;


Those who have crossed

With direct eyes, to death's other Kingdom

Remember us -- if at all -- not as lost

Violent souls, but only

As the hollow men

The stuffed men.





ELIOT, T.S. "The hollow Men I" / "Os homens ocos I". In: _____. "The hollow men" / "Os homens ocos". In: GALINDO, Caetano W. (org. e trad.). T.S. Eliot. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


26.10.20

Antero de Quental: "Despondency"

 



Despondency



Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram

Ninho e filhos e tudo, sem piedade. . .

Que a leve o ar sem fim da soledade

Onde as asas partidas a levaram. . .


Deixá-la ir a vela, que arrojaram

Os tufões pelo mar, na escuridade,

Quando a noite surgiu da imensidade,

Quando os ventos do Sul se levantaram. . .


Deixá-la ir, a alma lastimosa,

Que perdeu fé e paz e confiança,

À morte queda, à morte silenciosa. . .


Deixá-la ir, a nota desprendida

Dum canto extremo. . . e a última esperança. . .

E a vida. . . e o amor. . . deixá-la ir, a vida!





QUENTAL, Antero de. "Despondency". In: SÉRGIO, António (org.). Antero de Quental: Sonetos. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1963.

24.10.20

Dênis Rubra: "arte do desentendimento"

 



arte do desentendimento



            não escrevo

            sobre o que detenho.


            escrevo

                     para apropriar-me

            do que há

            no mundo.


            para inventar oceanos,

            terra,

            céu,

            gente.


            para preencher-me de vazio,

            do que não é pleno,

            do espanto inquieto

            e do questionamento

            sobre tudo o que eu penso que eu sei.


ser poeta é desentender.




RUBRA, Dênis. "arte do desentendimento". In:_____. é muito cedo pra pensar. Rio de Janeiro: Rubra Editora, 2017.


22.10.20

MARCIAL: Epigrama 1. 46

 



1. 46


Se você exclama, Edilo: “Vou gozar – 

Depressa!” – o meu tição se esfria, apaga.

Prolongue o ato que eu irei mais rápido.

Pra ir depressa, diga: “Devagar”.





MARCIAL. Epigrama 1. 46. In: PIGNATARI, Décio (org. e trad.).  31 poemas do Rigveda e Safo a Apollinaire. Campinas: UNICAMP, 2007.





I. XLVI


Cum dicis 'Propero, fac si facis,' Hedyle, languet      

Protinus et cessat debilitata Venus.  

Expectare iube: velocius ibo retentus.      

Hedyle, si properas, dic mihi, ne properem.  





MARTIALIS, Marcus Valerius. Epigramma XLVI. In:_____. Epigrammata. In: PHI Workplace 10.00. Silver Mountain Software, 2004.

19.10.20

Nelson Ascher: "Tropical"

 



Tropical



a musa teima

nas entrelinhas

deste poema

como na minha


cabeça um símio 

banal se abana

inverossímil 

entre bananas





ASCHER, Nelson. "Tropical". In: HOLLANDA,  Heloísa Buarque de (org.). Esses poetas: uma antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998.

17.10.20

Carlos Cardoso: "Cavalos marinhos"

 



Cavalos-marinhos



Há na palma de minha mão

um cavalo-marinho.


No fundo do que sou

mergulho

em raras profundezas.


Talvez assim entenda

que viver

não é acordar após dormir

e que não há maior beleza

que a solidão

e o fechar os olhos e partir.


Vejo que são rasas as pessoas

pelas partículas que vejo.


Se assim creio, assim crio

nesse mar selvagem

e apenas sumo

entre os redemoinhos

e os cavalos-marinhos


entre ondas

que abrigam e afogam

para dentro me jogam

me deixando lá.





CARDOSO, Carlos. "Cavalos marinhos". In:_____. Melancolia. Rio de Janeiro: Record, 2019.

15.10.20

Antonio Cicero: "As Musas, a Memória e o esquecimento"

 



As Musas, a Memória e o esquecimento

  

Vivemos numa época que – com a Internet, os computadores, os celulares, os tablets etc. – experimenta o desenvolvimento de uma tecnologia que tem, entre outras coisas, o sentido manifesto de acelerar tanto a comunicação entre as pessoas quanto a aquisição, o processamento e a produção de informação. Seria, portanto, de esperar que, podendo fazer mais rapidamente o que fazíamos outrora, tivéssemos hoje à nossa disposição mais tempo livre. Ora, ocorre exatamente o oposto: quase todo o mundo se queixa de não ter mais tempo para nada. Na verdade, o tempo livre parece ter encolhido muito.

Acontece que a poesia exige mais tempo livre do que a fruição de obras pertencentes a outros gêneros artísticos. Não precisamos nos concentrar numa canção ou numa pintura ou numa escultura ou na arquitetura de um prédio para que elas nos deleitem. Podemos apreciá-las en passant. Não é assim com um poema escrito. Quem lê um poema como se fosse um artigo, um ensaio ou um e-mail, por exemplo, não é capaz de fruí-lo. Para apreciar um poema é necessário dedicar-lhe tempo.

E como ninguém tem tempo para quase nada, por que perder tempo com algo que nada ensina de útil? A menos que o faça para se distrair um pouco do trabalho. Mas, como distração, não são poucos os que hoje afirmam que a poesia ficou para trás: que foi superada pelos joguinhos eletrônicos, por exemplo, que exigem menos pensamento e teriam mais a ver com o ritmo da vida contemporânea.

Pois bem, penso o contrário. É exatamente numa época de aceleração desembestada que a poesia mais se faz desejável. Por quê? Porque o que me parece inteiramente indesejável é a aceitação passiva da inevitabilidade do encolhimento do nosso tempo livre.

A verdade é que, se praticamente não temos mais tempo livre, isso ocorre porque praticamente todo o nosso tempo – mesmo aquele que se pretende livre – está preso. Preso a quê? Ao princípio do trabalho, ou melhor – inclusive, evidentemente nos tais joguinhos eletrônicos –, ao princípio do desempenho. Não estamos livres quase nunca porque nos encontramos numa cadeia utilitária em que parece que o sentido de todas as coisas e pessoas que se encontram no mundo, o sentido inclusive de nós mesmos, é sermos instrumentais para outras coisas e pessoas.

Nessas circunstâncias, nada e ninguém jamais vale por si, mas apenas como um meio para outra coisa ou pessoa que, por sua vez, também funciona como meio para ainda outra coisa ou pessoa, e assim ad infinitum. Pode-se dizer que participamos de uma espécie de linha de montagem em moto contínuo e vicioso, na qual se enquadram as próprias “diversões” que se nos apresentam imediatamente.

Em tal situação, parece-me que uma das poucas ocasiões em que conseguimos romper a cadeia utilitária cotidiana e nos libertarmos da prisão utilitária do mundo do desempenho é quando nos deixamos levar a viajar por uma obra de arte: a viajar, por exemplo, através de um poema. Ao viajar por um poema, deixamos de lado o princípio do desempenho e apreendemos a vida em si.

As Musas eram tidas pelos gregos como filhas da deusa Memória. Normalmente, supõe-se que isso signifique que elas guardam o passado. Penso que a leitura dos poetas gregos mostra o contrário. O que o fato de que as Musas sejam filhas da Memória significa é que aquilo que elas produzem seja inesquecível: seja memorável. Assim são os grandes poemas. É isso que permite que, por exemplo, o poeta romano Horácio (que, aliás, estudou em Atenas) possa dizer, na sua Ode III.xxx, (que se encontra também em latim aqui: http://antoniocicero.blogspot.com/2010/02/carpe-diem-o-seguinte-artigo-publicado.html) sobre sua poesia:

Erigi um monumento mais duradouro que o bronze,
mais alto do que a régia construção das pirâmides
que nem a voraz chuva, nem o impetuoso Áquilo
nem a inumerável série dos anos,
nem a fuga do tempo poderão destruir.
Nem tudo de mim morrerá, de mim grande parte
escapará a Libitina: jovem para sempre crescerei
no louvor dos vindouros, enquanto o Pontífice
com a tácita virgem subir ao Capitólio.
Dir-se-á de mim, onde o violento Áufido brama,
onde Dauno pobre em água sobre rústicos povos reinou,
que de origem humilde me tornei poderoso,
o primeiro a trazer o canto eólio aos metros itálicos.
Assume o orgulho que o mérito conquistou
e benévola cinge meus cabelos,
 Melpómene, com o délfico louro.

 


Antonio Cicero

13.10.20

Antonio Carlos Secchin: "Disk-Morte"

 



Disk-Morte



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SECCHIN, Antonio Carlos. "Disk-Morte". In:_____. Desdizer. Rio de Janeiro: Topbooks, 2017.

11.10.20

Rogério Batalha: "Não há pontes de regresso"

 



Não há pontes de regresso



no primeiro

ciscar do dia

o galo anuncia


a inaudível

ciranda 

das coisas


à noite verde

sua morte amarela

ao jatobá verde

seu graveto seco.


o galo

anuncia


às labaredas

jovens

e velhos:


não há pontes de regresso.






BATALHA, Rogério. "Não há pontes de regresso"

9.10.20

Antonio Cicero: "Templo"

 



Templo


 

Para que as Musas residentes lá no Olimpo

façam meus poemas palavras que desejem,

eu que, à sombra de um deus muito mais triste, habito

a fralda de uma montanha muito mais verde,

 

declaro não serem os versos que escrevo obras

de arte mas bases, paredes e donaires

de templos construídos com mãos e com sobras

de paixões, mergulhos, fodas, livros, viagens

 

(precário material com o qual é elaborado

tudo o que merece aspirar a eterna glória)

e -- ainda com os seus andaimes -- os consagro

a elas, às filhas alegres da Memória,

 

deusa que não é, como querem crer os néscios,

a guardiã do passado, com o qual pouco

se importa, mas antes a que nos oferece o

esquecimento quando canta o imorredouro.






CICERO, Antonio. "Templo". In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record,  1996.

7.10.20

Ricardo Silvestrin: "a fera do tempo nunca se sacia"

 



a fera do tempo nunca se sacia

tudo se perde, se cria

e nada muda o seu movimento

almas, ânimos, sinas

da minha cara ao que ninguém imagina

o que sobra é esse momento

joguem-se os relógios ao vento

queimem-se os calendários

o tempo não mais se conta

a fera que ande às tontas

 




SILVESTRIN, Ricardo. "a fera do tempo nunca se sacia". In:_____. Quase eu. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

5.10.20

Millôr Fernandew: "Não é segredo"

 



Não é segredo.

Somos feitos de pó, vaidade

E muito medo.





FERNANDES, Millôr. "Não é segredo". In:_____. CALCANHOTTO, Adriana (org.). Haicai do Brasil. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014.

3.10.20

Diogo Bernardes: "Cantiga III"

 



Cantiga III



No meu peito o meu desejo

Da razão se fez tirano,

Vejo nele certo dano,

Incerto remédio vejo.



Voltas


Para de todo perder-me 

Este mal por passar tinha, 

Ir eu contra a razão minha 

Que morre por defender-me. 

Da parte do meu desejo 

Me passo, para meu dano, 

Vejo que nisso m'engano, 

Mas nenhum remédio vejo.

Se lhe quero resistir, 

Trata-me com mais crueza, 

Ou com força ou natureza 

Sua lei me faz seguir. 

Imigo mortal o vejo 

De razão e desengano, 

Dele me vem todo o dano,

E eu por ele me rejo.




BERNARDES, Diogo. "Cantiga III". In: SILVEIRA, Francisco Maciel (org.). Poesia clássica. São Paulo: Global Editora, 1988. 

1.10.20

Antonio Cicero: "Huis clos"

 



Huis clos

 

Da vida não se sai pela porta:

só pela janela. Não se sai

bem da vida como não se sai

bem de paixões jogatinas drogas.

E é porque sabemos disso e não

por temer viver depois da morte

em plagas de Dante Goya ou Bosh

(essas, doce príncipe, cá estão)

que tão raramente nos matamos

a tempo: por não considerarmos

as saídas disponíveis dignas

de nós, que, em meio a fezes e urina

sangue e dor, nascemos para lendas

mares amores mortes serenas.





CICERO, Antonio. "Huis clos". In:_____. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2012.

29.9.20

Adriana Calcanhotto: "Metade"

 



Metade


Eu perco o chão

Eu não acho as palavras

Eu ando tão triste 

Eu ando pela sala

Eu perco a hora, 

Eu chego no fim

Eu deixo a porta aberta

Eu não moro mais em mim


Eu perco as chaves de casa

Eu perco o freio

Estou em milhares de cacos, 

Eu estou ao meio

Onde será que você está 

Agora?





CALCANHOTO,  Adriana. "Metade". In: REIS-SÁ, Jorge (org.). Creio que foi o sorriso . Uma antologia. A Casa dos Ceifeiros, 2020.

26.9.20

Jorge de Sousa Braga: "Poema de amor"

 



Poema de amor


Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno

e quase ia morrendo com o receio de que ele não

te coubesse no dedo.




BRAGA, Jorge de Sousa. "Poema de amor". In: PEDROSA, Inês (org.). Poemas de amor. Antologia de poesia portuguesa. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005.


22.9.20

Constantinos Caváfis: "Εν τη οδώ" / "Na rua": trad. por Ísis Borges da Fonseca

 


Na rua


Seu simpático rosto, um pouco pálido;

seus olhos castanhos, como que fatigados;

vinte e cinco anos, contudo tem mais a aparência de vinte;

com algo de artístico em seu modo de trajar

– certa cor da gravata, certa forma do colarinho – 

anda a esmo pela rua

como que hipnotizado ainda pela volúpia ilícita,

pela volúpia sobremaneira ilícita que desfrutou.








Εν τη οδώ


Το συμπαθητικό του πρόσωπο, κομμάτι ωχρό·

τα καστανά του μάτια, σαν κομένα·

είκοσι πέντ' ετών, πλην μοιάζει μάλλον είκοσι·

με κάτι καλλιτεχνικό στο ντύσιμό του

- τίποτε χρώμα της κραβάτας, σχήμα του κολλάρου -

ασκόπως περπατεί μες στην οδό,

ακόμη σαν υπνωτισμένος απ' την άνομη ηδονή,

από την πολύ άνομη ηδονή που απέκτησε.







CAVÁFIS, Constantinos. "Εν τη οδώ" / "Na rua". In:_____. Poemas de K. Kaváfis. Org. e trad. por Ísis Bórges da Fonseca. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

20.9.20

Rodrigo Garcia Lopes: "Breve história da solidão"

 



Breve história da solidão



No escuro de uma caverna, 

nas paredes de Pompeia, 


na superfície de um papiro, 

na solidão de uma tela, 


num grafite imprevisto 

ou na imensidão sidérea, 


esses escritos, frágeis rabiscos, 

querem dizer apenas isto: 


existo.







LOPES, Rodrigo Garcia. "Breve história da solidão". In:_____. O enigma das ondas. São Paulo: Iluminuras. Edição do Kindle, 2020.

18.9.20

Michelangelo Buonarroti: " I’ mi son caro assai più ch’i’ non soglio" / "Eu me aprecio bem mais do que costumo": trad. por Nilson Moulin




Eu me aprecio bem mais do que costumo


  Eu me aprecio bem mais do que costumo;

contigo no coração,valho mais que eu mesmo,

como pedra que depois de talhada,

vale mais que pedra bruta.

  Ou como folha de papel, escrita ou pintada,

é mais apreciada que um pano qualquer,

assim me tornei, desde que alvo me fiz

marcado por tua face, e não me queixo.

  Seguro com tal marca, vou a qualquer lugar,

como quem se carrega de armas ou sortilégios,

que todo perigo afugenta.

  Protegido contra água e contra fogo,

com teu emblema, ilumino qualquer cego e com

minha saliva curo todo veneno.




I’ mi son caro assai più ch’i’ non soglio;


 I’ mi son caro assai più ch’i’ non soglio;

poi ch’i’ t’ebbi nel cor più di me vaglio,

come pietra c’aggiuntovi l’intaglio

è di più pregio che ’l suo primo scoglio.

  O come scritta o pinta carta o foglio

più si riguarda d’ogni straccio o taglio,

tal di me fo, da po’ ch’i’ fu’ berzaglio

segnato dal tuo viso, e non mi doglio.

  Sicur con tale stampa in ogni loco

vo, come quel c’ha incanti o arme seco,

c’ogni periglio gli fan venir meno.

  I’ vaglio contr’a l’acqua e contr’al foco,

col segno tuo rallumino ogni cieco,

e col mie sputo sano ogni veleno.




BUONARROTI, Michelangelo.  "I’ mi son caro assai più ch’i’ non soglio" / "Eu me aprecio bem mais do que costumo". In:_____. Poemas. Org. por Andrea Lombardi; traduções por Nilson Moulin. Rio de Janeiro: Imago, 1994.











13.9.20

Francisco Bosco: "Garamond"

 



Garamond


Primeiro na tela da mente: 

seus deletes sem tecla,


filme cabeça, legendas

boiando sobre nada.


Depois no papel pautado, 

à caneta Bic azul, com letra


imperfeita, suja de mão, 

e intrincadas rasuras.


Daí passar a limpo, mero 

artesão, olhos de régua, a mão


contra a mão, o alheamento 

no rumor da página.


Por fim imprimir, com tipo 

Garamond, em cuja distância


típica dos habitantes dos livros, 

lavamos as mãos.





BOSCO, Francisco. "Garamond". In:_____. Da amizade. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.

11.9.20

Frandis Carco: "Beurceuse" / "Cantiga de ninar": trad. de Guilherme de Almeida

 



Cantiga de ninar


Este lento estremecimento

É a chuva lânguida entre as folhas...

Ela sofre para que a acolhas

Num silencioso encantamento.


Lutam a chuva e o vento em fuga. 

Tu te exaltas, e eu... eu queria 

Morrer numa cantiga fria

De água dócil que o vento enxuga.


É a chuva que soluça, ou é 

O vento que chora, eu te juro... 

Morro de um mal gostoso e obscuro 

E tu não sabes bem o que é...






Berceuse


Ce lent et cher frémissement,

C’est la pluie douce dans les feuilles,

Elle s’afflige et tu l’accueilles

Dans un muet enchantement.



Le vent s’embrouille avec la pluie.

Tu t’exaltes, moi je voudrais

Mourir dans ce murmure frais

D’eau molle que le vent essuie !



C’est la pluie qui sanglote, c’est

Le vent qui pleure, je t’assure.

Je meurs d’une exquise blessure

Et tu ne sais pas ce que c’est…





CARCO, Francis. "Berceuse" / "Cantiga de ninar". In: ALMEIDA, Guilherme de. Poetas de França. Trad. de Guilherme de Almeida. São Paulo: Babel, s.d.

9.9.20

Giuseppe Ungaretti: "Casa mia" / "Minha casa": trad. de Geraldo Holanda Cavalcanti




Minha casa


Surpresa
depois de tanto
deste amor

Pensava tê-lo dispersado
pelo mundo




Casa mia


Sorpresa
dopo tanto
d'un amore.

Credevo di averlo sparpagliato
per il mondo.




UNGARETTI, Giuseppe. "Casa mia" / "Minha casa". In:_____. Poemas. Edição bilingue. Seleção, tradução e notas por Geraldo Holanda Cavalcanti. São Paulo: EdUSP, 2017. 

6.9.20

Paul Éluard: "Un vivant parle pour les morts" / "Um que está vivo fala para os mortos": trad. por Maria Gabriel Llansol




Um que está vivo fala para os mortos


Doce futuro, esse olho zarolho sou eu,

Esse ventre aberto e esses nervos em franja

Sou eu, presa dos vermes e dos corvos,

Filho do nada como se é filho de rei.


Em breve vou perder minha aparência:

Eu estou na terra em vez de estar sobre ela,

O meu coração desperdiçado voa com a poeira,

Só tenho sentido por total inexistência.






Un vivant parle pour les morts


Doux avenir cet oeil crevé c'est moi

Ce ventre ouvert et ces nerfs en lambeaux

C'est moi sujet des vers et des corbeaux

Fils du néant comme est fils de roi



J'aurai bientôt perdu mon apparence

Je suis en terre au lieu d'être sur terre

Mon coeur gâché vole avec la poussière

Je n'ai de sens que par complète absence






ÉLUARD, Paul. "Un vivant parle pour les morts" / "Um que está vivo fala para os mortos". In:_____. ÚLtimos poemas de amor. Trad. por Maria Gasbriela Llansol. Lisboa: Relógio D'Água, 2002.

3.9.20

José Almino: "A um passante"





A um passante


Passa por mim fulano, a sombra do que foi.
Fora amigo de meu pai e essa imagem,
logo morta,
é tão inútil como a Rua da Matriz,
assim, desassombrada e vazia,
longe de meu afeto e de minha memória.
E, no entanto, esse traço, esse momento,
sopros de um registro involuntário,
perseguem-me por um instante;
não, até agora nessas mal traçadas linhas,
onde a banalidade das coisas se impõe
inconclusa.





ALMINO, José. "A um passante". In:_____. Encouraçado e cosido dentro da pele. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2019.

1.9.20

Adriano Nunes: "O tempo"

Agradeço a Adriano Nunes por me ter dedicado o seguinte, belo poema:



O tempo

           para Antonio Cicero   


O tempo mora
Dentro do centro
Da intuição
Ou dos objetos
Que em si só são?

O tempo jorra
De todo íntimo?
Vinga objetivo
Lá fora, então?
Existe ou não?

Ou será só
Mero fenômeno,
Representado
Qual pura forma?
Ilusão lógica?

Conceito não?
Ou condição
Doutros fenômenos
Do mundo dado?
Saberão sábios?

Quem mesmo certo
Está? Que importa
Discutir isso?
Melhor, é fato,
Ter, sempre à mão,

Alados versos
Para compor
Uma canção
De amor, pois tão
Presto é o tempo!





NUNES, Adriano. "O tempo"

30.8.20

Manuel Bandeira: "O cacto"




O cacto


Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bonde, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a
                                                      [cidade de iluminação e energia:

– Era belo, áspero, intratável.






BANDEIRA, Manuel. "O cacto". In:______. 50 poemas escolhidos pelo autor. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

28.8.20

Guillaume Apollinaire: "Inscription qui se trouve sur le tombeau d'Apollinaire" / "Inscrição que se encontra sobre o seu túmulo"




Inscrição que se encontra
sobre o seu túmulo


Eu finalmente me afastei
De tudo o que há de natural
Posso morrer mas não pecar
E o que ninguém jamais tocou
Não só toquei como apalpei
Já perscrutei o que ninguém
Nunca sequer imaginou
E sopesei vezes sem conta
Até a vida imponderável
Se vou morrer, morro sorrindo






Incription qui se trouve
sur le tombeau d’Apollinaire


Je me suis enfin détaché
De toutes choses naturelles
Je peux enfin mourir mais non pêcher
Et ce qu’on n’a jamais touché
Je l’ai touché je l’ai palpé
Et j’ai scruté tout ce que nul
Ne peut en rien imaginer
Et j’ai soupesé maintes fois
Même la vie impondérable
Je peux mourir en souriant





APOLLINAIRE, Guillaume. "Inscription qui se trouve sur le tombeau d'Apollinaire" / "Inscrição que se encontra sobre seu túmulo". In: ASCHER, Nelson (trad. e org.). Poesia alheia; 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1998.

26.8.20

Alberto da Costa e Silva: "Soneto a Vermeer"




Soneto a Vermeer


De luto, a minha avó costura à máquina,
e gira um cata-vento em plena sala.
Vejo seu rosto, sombra que a janela
corrompe contra um pátio amarelado

de sol e de mosaicos. Sobre a mesa,
a tesoura, um esquadro, alguns retalhos
e a imóvel solidão. A minha avó,
com seus olhos azuis, o tempo acalma.

A minha avó é jovem, mansa e apenas
a limpidez de tudo. Sonho vê-la
no seu vestido negro, a gola branca,
contra o corpo de cão, negro, da máquina:

a roda, de perfil, parece imóvel
e a vida não se exila na beleza.




COSTA E SILVA, Alberto da. "Soneto a Vermeer". In:_____. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.


23.8.20

Antonio Carlos Secchin: "Uma prosa súbita"




Uma prosa súbita

Se não for para arder,
   ser rosa no inverno de que serve?
     Eugénio de Andrade


Uma prosa súbita
para a rosa de neve:
às vezes é só um verso
onde a voz de Andrade ferve.
E perdura, apesar do inverno
armado na paisagem:
o que há pouco era flor
virou arte,
rosa em riste na beira do abismo
contra
o silêncio azul da tarde.




SECCHIN, Antonio Carlos. "Uma prosa súbita". In: REIS-SÁ, Jorge. Creio que foi o sorriso. Uma antologia. Porto: A casa dos ceifeiros, 2020.

21.8.20

Ramon Nunes Mello: "amor genuíno"




amor genuíno



perdoe
a rima
prefiro o amor
a paixão não tem
humor





MELLO, Ramon Nunes. "amor genuíno". In:_____. Há um mar no fundo de cada sonho. Rio de Janeiro: Verso Brasil Editora, 2016.

17.8.20

Rogério Batalha: "Bom mesmo"




Bom mesmo


bom mesmo é vagabundear ruas
ouvir o balbuciar das gentes
fitar uma flor perdida no baldio.

(até que o mar e sua franja de espuma
molhe seus pés cansados
e a dor tombe diante do inesperado salto).

bom mesmo é vagabundear astros
perfumar-se nos antros dos enamorados.

depois ir ao encontro das moscas
bater um papo com seus brejos
perder o norte e o sul
pescar do céu seu mel azul.

então, por na vasilha do dia
o à toa e o em vão das horas.




BATALHA, Rogério. "Bom mesmo". In:_____. Azul. Rio de Janeiro: Texto Território, 2016.


15.8.20

Caváfis: "Η αρχή των" / "Seu começo"




Seu começo

A satisfação de seu prazer ilícito
efetuou-se. Levantaram-se do leito,
e vestem-se às pressas, sem falar.
Saem em separado, furtivamente, da casa; e como
caminham um tanto apreensivos na rua, parecem
suspeitar que alguma coisa neles trai
em que espécie de leito há pouco se deitaram.

Mas como ganhou a vida do artista!
Amanhã, depois de amanhã ou após anos, serão escritos
os vigorosos versos cujo começo aqui ocorreu.





Η αρχή των

Η εκπλήρωσις της έκνομής των ηδονής
έγινεν. Απ’ το στρώμα σηκωθήκαν,
και βιαστικά ντύνονται χωρίς να μιλούν.
Βγαίνουνε χωριστά, κρυφά απ’ το σπίτι· και καθώς
βαδίζουνε κάπως ανήσυχα στον δρόμο, μοιάζει
σαν να υποψιάζονται που κάτι επάνω των προδίδει
σε τί είδους κλίνην έπεσαν προ ολίγου.

Πλην του τεχνίτου πώς εκέρδισε η ζωή.
Αύριο, μεθαύριο, ή με τα χρόνια θα γραφούν
οι στίχ’ οι δυνατοί που εδώ ήταν η αρχή των.




CAVÁFIS, Constantinos. "Η αρχή των" / "Seu começo". In:_____. Poemas de K. Kaváfis. Trad. de Isis Borges Belchior da Fonseca. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

13.8.20

Moraes Moreira: "Cantoras do meu Brasil"




Cantoras do meu Brasil


Só peço que me aguardem
Quero o feitiço de Carmem

Na escuridão quem me salva
É a luz da estrela Dalva

Juro que já me senti
A irreverente Aracy

Sabendo o que é ser humilde
Choro que nem Ademilde

Às vezes ouço na minha
Vozes de Linda e Dircinha

Já tive muitos amores
Me pego sendo Dolores

Falar que sou, nem precisa
Romântica feito Maysa

Minha paixão se declara
Clara, Clara, Clara e Clara

Antes durante e após
Da geração espontânea
Na cena contemporânea
Posso soltar minha voz

Fazendo aqui meu perfil
Com ferramentas modernas
Homenageio as eternas
Cantoras do meu Brasil





MORAES MOREIRA. "Cantoras do meu Brasil". In:_____. Poeta não tem idade. Rio de Janeiro: Numa, 2016.

Contra o PL 3968, que quer prejudicar os compositores


"Mais uma vez, os direitos de compositores, intérpretes e músicos estão sendo ameaçados.
O direito autoral é a justa remuneração de milhares de profissionais da música.

Projetos de lei nunca deveriam ser discutidos às pressas, em meio a uma pandemia mundial. Todas as partes precisam ser ouvidas.
O Projeto de Lei 3968 é de 1997. Por que agora seria urgente? Isso não faz sentido."

 
“Diga não ao PL 3968”

Milton Nascimento


ARTIGO: A FALTA DE DIÁLOGO
Projeto na Câmara quer cortar remuneração de artistas sem ouvi-los

Por Gilberto Gil, do Rio
Originalmente publicado no Jornal Folha de São Paulo, no dia 12/08/2020
 
A falta de diálogo vem interditando a participação e o debate na sociedade brasileira. E vou buscar como exemplo um fato que envolve, neste momento, a música brasileira, um dos traços mais marcantes da nossa cultura. O cenário é o Congresso Nacional.
Em meio à maior angustia vivida pela saúde pública mundial e suas consequências econômicas e sociais, alguns políticos decidiram investir contra os direitos autorais que garantem a sobrevivência de compositores, músicos e cantores. Estamos falando de uma iniciativa recente, no Congresso, de um projeto que, se aprovado, impactará diretamente 400 mil pessoas e suas famílias.
Por meio das MPs 907 e 948, tentaram, recentemente, permitir que o setor hoteleiro deixasse de pagar os direitos autorais pela execução pública das obras musicais em quartos de hotéis. Ao setor hoteleiro, uniram-se vários outros setores, todos com o mesmo objetivo: não pagar pelo uso de obras musicais.
Não conseguiram, mas não desistiram. Em sessão remota prevista para breve, a Câmara poderá aprovar, sem ouvir os titulares de direitos autorais, um requerimento de urgência ao projeto de lei 3.968 de 1997, ao qual estão apensados mais de 50 outros projetos, todos buscando a isenção do pagamento da remuneração que autores, músicos e intérpretes têm o direito de receber pelo uso de suas obras musicais.
A questão aqui colocada é que a Constituição, a Lei Federal de Direitos Autorais e normas internacionais de proteção à propriedade intelectual garantem aos autores o domínio sobre suas obras e o devido pagamento pela execução pública de suas criações.
Em 2013, a sociedade abriu uma ampla discussão, que resultou em diversas mudanças na Lei de Direito Autoral.

"Se o Congresso agora entende que esta lei deve ser revista, nós, artistas e entidades que nos representam, estamos dispostos a discutir o assunto. Queremos e devemos ser convocados para essa discussão.

Não concordamos —é importante que se diga— nem com o momento nem com a forma com que essa revisão está sendo proposta, pressupondo, de boa-fé, que a intenção do Congresso é, de fato, avançar nessa questão.
É um contrassenso que essa questão seja levada ao Congresso, de afogadilho, sem o contraditório e o confronto de opiniões, sem que todos os segmentos envolvidos se sentem à mesa.
Perguntamos: para onde foi o diálogo? A democracia pressupõe a participação de todos na definição dos processos políticos. Ouvir todas as partes interessadas nas questões que lhes dizem respeito é a norma do jogo democrático.
É descabido e desumano que isso ocorra em meio a um momento inédito de pandemia, quando milhões de brasileiros sofrem com incertezas em relação à sua saúde, convivem indefesos e impotentes com a morte diária de pessoas vitimadas por uma doença ainda não totalmente conhecida e enxergam um futuro econômico incerto.
Além de descabido e desumano, é traiçoeiro sacar de um projeto de 1997, anterior a uma lei que foi votada e aprovado em 2013. Todo esse movimento em falso para beneficiar interesses econômicos em detrimento da sobrevivência de milhares de trabalhadores. Sim, artista é trabalhador. Não podemos esquecer desse aspecto fundamental na discussão que precisa ser feita.
A indústria da música é uma parte importante da economia criativa do Brasil, e no meio da crise buscou se reinventar. Munidos de uma tecnologia da comunicação cada vez mais sem fronteiras, os artistas apostaram nas lives para chegar ao seu público. E tem sido assim nesses tempos em que não podemos nos abraçar, encontrar as pessoas que amamos nem nos divertir com segurança.
Portanto, a música está na contramão das medidas que tentam tolher a capacidade criativa dos artistas, impondo-lhes num momento tão difícil maiores restrições econômicas. Temos esperanças de que nenhuma medida nesse sentido —uma afronta ao Estado democrático de Direito— será aprovada sem que os artistas sejam chamados ao palco de debates para expor sua opinião na defesa dos seus direitos.
Evitar o debate, além de não democrático, pode soar como intolerância, palavra tão utilizada ultimamente no que tange às relações humanas e políticas e que deve estar longe, também, das questões que envolvam a cultura —essa dimensão simbólica que nos caracteriza e nos liberta, tão preciosa na construção de nossas identidades como povo e nação.