31.8.09
Nelson Ascher: "Mallarmé"
Mallarmé
Porquanto ao jogo adestre
a língua que selvagem
condensa-se em linguagem
o ensimesmado mestre
perscruta além das extre-
midades na voragem
de estrelas que interagem
uma inscrição rupestre
gravada desde o início
na abóbada suprema
que lhe descerra o indício
de um verbo que se queima
feito minério físsil
na origem do poema.
Nelson Ascher escreveu esse poema para os 150 anos de nascimento de Mallarmé (1992). Ele foi publicado no livro O sonho da razão (Rio de Janeiro: Editora 24, 1993) e recentemente retrabalhado pelo autor.
29.8.09
Armando Freitas Filho: "Fuso"
Fuso
Tento acertar meu relógio
pelo seu, parado, há tanto
com o suor do pulso, seco
a pulseira de couro partida
que ainda guarda algum sal.
Pai, a certeza de sua hora
me falta, e mesmo tendo
andado, não consegui chegar
a tempo, de pegar seu passo
emparelhar-me — servir
de companhia para sempre —
e passar à descendência
os firmes compromissos
pois me perdi pelo caminho.
FREITAS FILHO, Armando. Lar,. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Blog do Adriano Nunes
Ouçam Adriano Nunes recitar o poema de sua autoria "Antonio Cicero", no seu blog, quefaçocomoquenãofaço.
28.8.09
Evando Nascimento: "pensamento (feições)"
pensamento
(feições)
e fazer a coisa
e pensar a coisa
e pensar é fazer a coisa
e a coisa se faz pensando
e fazendo a coisa se pensa
e pensando a coisa se faz
e pensar a coisa é fazer
e fazer pensar é a coisa
e pensar fazer é quase
a mesma coisa.
(03.III.05)
NASCIMENTO, Evando. Retrato desnatural. (diários - 2004 a 2007). Rio de Janeiro: Record, 2008.
26.8.09
24.8.09
Novalis: de "Hymnen an die Nacht" / "Hinos à noite"
Mais celestes que essas estrelas cintilantes parecem-nos os olhos infinitos que a noite abriu em nós.
Himmlischer, als jene blitzenden Sterne, dünken uns die unendlichen Augen, die die Nacht in uns geöffnet.
NOVALIS. "Hymnen an die Nacht". Werke. München: Beck, 1981.
22.8.09
Juan Antonio González Iglesias: "Acepto que belleza" / "Aceito que a beleza"
Acepto que belleza
Acepto que belleza es la fulguración
natural de las cosas naturales.
Me digo que tus dientes mostrados en sonrisa
son eso. Que tus ojos me dan tanta dulzura
porque cumplen remotas instrucciones genéticas.
Que tu cuerpo de hombre con mi cuerpo de hombre
construyen un lugar necesario en el mundo.
Que nada extraordinario hay en dos que se aman.
Pero, cuando te abrazo una noche tras otra
y me encuentro tu pulso a oscuras en cualquiera
de los puntos que laten en tu cuerpo dormido,
cruza por mi cerebro la palabra milagro.
Aceito que a beleza
Aceito que a beleza é a fulguração
natural das coisas naturais.
Digo-me que teus dentes, revelados no sorriso
são isso. Que teus olhos me dão tanta doçura
porque cumprem remotas instruções genéticas.
Que teu corpo de homem com meu corpo de homem
constroem um lugar necessário no mundo.
Que nada extraordinário há em dois que se amem.
Mas quando te abraço uma noite após a outra,
e encontro teu pulso às escuras em qualquer
dos pontos que latem no teu corpo adormecido,
cruza por meu cérebro a palavra milagre.
GONZÁLEZ IGLESIAS, Juan Antonio. Un ángulo me basta. Madrid: Visor Libros, 2002.
21.8.09
Hudson Carvalho: "A candidatura de Marina Silva"
O seguinte artigo do Hudson Carvalho foi publicado no dia 19 de agosto no Jornal do Brasil. Trata-se de uma reflexão muito bem pensada e equilibrada sobre a possível candidatura de Marina Silva à presidência do Brasil.
A candidatura de Marina Silva
Depois de 30 anos de filiação, a senadora Marina Silva anunciou sua saída do PT. Embora ainda não o tenha feito, filiar-se-á ao PV, para se candidatar à presidência da República em 2010. A nova matrícula partidária e a condição de postulante ao Palácio do Planalto revestem-se, momentaneamente, de zelo ritualístico, para tentar agregar grandeza a um gesto que pode ser facilmente visto como algo menor, como uma simples acomodação de um ambicioso projeto pessoal. E, na cartilha politicamente correta, não fica bem gente como Marina Silva, mulher de biografia e de qualidades notáveis, ter projetos pessoais; isso é coisa de convencionais políticos oportunistas. Pois bem, Marina Silva deixa o PT e, agora, busca dar sentido social e ecológico ao seu movimento. Por sua vez, para abrigar Marina Silva, o PV se propõe a se despoluir e a se refundar, através de um programa ecologicamente incrementado. Ou seja, ambos se movimentam para dar justificativa pública e conforto ao outro. Não fazem nada de condenável; assim é a vida.
Especula-se que Marina Silva agitará a pasmaceira que se esboçava para a sucessão presidencial, com o cenário se resumindo às candidaturas petista e tucana. Pode ser, embora não haja nada, por ora, que sustente essa hipótese, além de uma torcida efusiva por parte de diminutos setores específicos. Nas pesquisas dos institutos mais sérios, não há registro de que o seu nome possa vir a empolgar. Isso não chega a ser nenhuma tragédia. Primeiro porque as pesquisas, a essa distância do pleito, retratam mais grau de conhecimento do que intenção de votos. Segundo porque o decisivo é o próprio processo eleitoral, e não esses fotogramas preliminares. Uma eventual candidatura Marina Silva, portanto, poderá crescer ou não, dependendo das circunstâncias.
Na ótica atual, contudo, as expectativas eleitorais para ela não são das mais auspiciosas. O PV é um partido pequeno, com pouco tempo de televisão e sem expressiva capilaridade nacional. Além disso, há um elenco prévio de sólidas postulações - José Serra ou Aécio Neves, Dilma Rouseff, Ciro Gomes e Heloísa Helena. Mesmo que um ou dois deles não estejam efetivamente no pleito, romper a polarização tucano-petista não será fácil. Se os tucanos tiverem a habilidade de montarem a hoje descosturada chapa José Serra e Aécio Neves (leia-se São Paulo e Minas Gerais, os dois maiores colégios eleitorais) e se os petistas conseguirem transformar a agenda eleitoral em um plebiscito sobre o presidente Lula, menos espaço disporão as demais alternativas.
Por sua vez, a bandeira ecológica pode vir a ter as suas limitações eleitorais, mesmo que a temática tenha aumentado de importância universalmente. No fim do milênio passado, esse era um estandarte moldado às novas esquerdas. Hoje, até em função do crescimento de sua importância, a ecologia, até por puro oportunismo, foi adotada por quase todas as forças políticas contemporâneas, inclusive algumas de direita. Por ser tema de quase todos, com maior ou menor ênfase, não tem o potencial de distinção que já teve. Mais do que os outros, Marina Silva é visceralmente ligada ao assunto. Mas, será este o tema prevalente da sucessão presidencial? Pouco provável. E, se Marina Silva se tornar competitiva, o seu xiitismo nessa questão não poderá também acarretar custos eleitorais, se ele for exposto, pelos adversários, como um elemento de atravancamento do desenvolvimento e da criação de empregos? No momento, mais do que na sua agenda as chances de Marina Silva estão depositadas na ojeriza que segmentos substantivos da população nutrem pelos políticos tradicionais.
Por fim, a pretensão de Marina Silva é vista inicialmente como prejudicial a Dilma Rouseff. Até certo ponto, pode ser, sobretudo por retirar da ministra o apelo de gênero e por ter mais charme eleitoral.
A senadora tem brilho político próprio. A ministra não; sua força eleitoral é derivativa do presidente Lula. Já há quem ache que a candidatura Marina Silva trará mais desconforto à postulação tucana, sob o argumento de que o eleitorado ?qualificado? dos grandes centros urbanos - como o da Zona Sul do Rio, por exemplo -, que é sensível aos encantos da senadora, não tencionaria mesmo a votar na ministra. Essas questões só serão dirimidas no curso eleitoral. É certo que, se a candidatura Marina Silva estimular outras ambições na base de sustentação do governo Lula, como a de Ciro Gomes, por exemplo, a situação da ministra ficará realmente complicada. Em compensação, a presença da senadora, se bem sucedida, poderá ensejar um segundo turno que não haveria em caso de um mano a mano tucano versus petista.
Em suma, do ponto de vista eleitoral, apesar de suas virtudes e de seus positivos simbolismos, a candidatura Marina Silva terá, inicialmente, muitos obstáculos para chegar a abalar as gigantescas máquinas eleitorais do quadro presente; a não ser que se constitua em um fenômeno, coisa em que os seus adeptos crêem e que a realidade política brasileira refuga.
A candidatura de Marina Silva
Depois de 30 anos de filiação, a senadora Marina Silva anunciou sua saída do PT. Embora ainda não o tenha feito, filiar-se-á ao PV, para se candidatar à presidência da República em 2010. A nova matrícula partidária e a condição de postulante ao Palácio do Planalto revestem-se, momentaneamente, de zelo ritualístico, para tentar agregar grandeza a um gesto que pode ser facilmente visto como algo menor, como uma simples acomodação de um ambicioso projeto pessoal. E, na cartilha politicamente correta, não fica bem gente como Marina Silva, mulher de biografia e de qualidades notáveis, ter projetos pessoais; isso é coisa de convencionais políticos oportunistas. Pois bem, Marina Silva deixa o PT e, agora, busca dar sentido social e ecológico ao seu movimento. Por sua vez, para abrigar Marina Silva, o PV se propõe a se despoluir e a se refundar, através de um programa ecologicamente incrementado. Ou seja, ambos se movimentam para dar justificativa pública e conforto ao outro. Não fazem nada de condenável; assim é a vida.
Especula-se que Marina Silva agitará a pasmaceira que se esboçava para a sucessão presidencial, com o cenário se resumindo às candidaturas petista e tucana. Pode ser, embora não haja nada, por ora, que sustente essa hipótese, além de uma torcida efusiva por parte de diminutos setores específicos. Nas pesquisas dos institutos mais sérios, não há registro de que o seu nome possa vir a empolgar. Isso não chega a ser nenhuma tragédia. Primeiro porque as pesquisas, a essa distância do pleito, retratam mais grau de conhecimento do que intenção de votos. Segundo porque o decisivo é o próprio processo eleitoral, e não esses fotogramas preliminares. Uma eventual candidatura Marina Silva, portanto, poderá crescer ou não, dependendo das circunstâncias.
Na ótica atual, contudo, as expectativas eleitorais para ela não são das mais auspiciosas. O PV é um partido pequeno, com pouco tempo de televisão e sem expressiva capilaridade nacional. Além disso, há um elenco prévio de sólidas postulações - José Serra ou Aécio Neves, Dilma Rouseff, Ciro Gomes e Heloísa Helena. Mesmo que um ou dois deles não estejam efetivamente no pleito, romper a polarização tucano-petista não será fácil. Se os tucanos tiverem a habilidade de montarem a hoje descosturada chapa José Serra e Aécio Neves (leia-se São Paulo e Minas Gerais, os dois maiores colégios eleitorais) e se os petistas conseguirem transformar a agenda eleitoral em um plebiscito sobre o presidente Lula, menos espaço disporão as demais alternativas.
Por sua vez, a bandeira ecológica pode vir a ter as suas limitações eleitorais, mesmo que a temática tenha aumentado de importância universalmente. No fim do milênio passado, esse era um estandarte moldado às novas esquerdas. Hoje, até em função do crescimento de sua importância, a ecologia, até por puro oportunismo, foi adotada por quase todas as forças políticas contemporâneas, inclusive algumas de direita. Por ser tema de quase todos, com maior ou menor ênfase, não tem o potencial de distinção que já teve. Mais do que os outros, Marina Silva é visceralmente ligada ao assunto. Mas, será este o tema prevalente da sucessão presidencial? Pouco provável. E, se Marina Silva se tornar competitiva, o seu xiitismo nessa questão não poderá também acarretar custos eleitorais, se ele for exposto, pelos adversários, como um elemento de atravancamento do desenvolvimento e da criação de empregos? No momento, mais do que na sua agenda as chances de Marina Silva estão depositadas na ojeriza que segmentos substantivos da população nutrem pelos políticos tradicionais.
Por fim, a pretensão de Marina Silva é vista inicialmente como prejudicial a Dilma Rouseff. Até certo ponto, pode ser, sobretudo por retirar da ministra o apelo de gênero e por ter mais charme eleitoral.
A senadora tem brilho político próprio. A ministra não; sua força eleitoral é derivativa do presidente Lula. Já há quem ache que a candidatura Marina Silva trará mais desconforto à postulação tucana, sob o argumento de que o eleitorado ?qualificado? dos grandes centros urbanos - como o da Zona Sul do Rio, por exemplo -, que é sensível aos encantos da senadora, não tencionaria mesmo a votar na ministra. Essas questões só serão dirimidas no curso eleitoral. É certo que, se a candidatura Marina Silva estimular outras ambições na base de sustentação do governo Lula, como a de Ciro Gomes, por exemplo, a situação da ministra ficará realmente complicada. Em compensação, a presença da senadora, se bem sucedida, poderá ensejar um segundo turno que não haveria em caso de um mano a mano tucano versus petista.
Em suma, do ponto de vista eleitoral, apesar de suas virtudes e de seus positivos simbolismos, a candidatura Marina Silva terá, inicialmente, muitos obstáculos para chegar a abalar as gigantescas máquinas eleitorais do quadro presente; a não ser que se constitua em um fenômeno, coisa em que os seus adeptos crêem e que a realidade política brasileira refuga.
19.8.09
O país das maravilhas
O PAÍS DAS MARAVILHAS
Não se entra no país das maravilhas
pois ele fica do lado de fora,
não do lado de dentro. Se há saídas
que dão nele, estão certamente à orla
iridescente do meu pensamento,
jamais no centro vago do meu eu.
E se me entrego às imagens do espelho
ou da água, tendo no fundo o céu,
não pensem que me apaixonei por mim.
Não: bom é ver-se no espaço diáfano
do mundo, coisa entre coisas que há
no lume do espelho, fora de si:
peixe entre peixes, pássaro entre pássaros,
um dia passo inteiro para lá.
CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.
18.8.09
João Bandeira: "parece mínimo"
parece mínimo
compará-la à orquídea
importa a mim
a beleza compartida
BANDEIRA, João. Rente. São Paulo: Ateliê Editorial, 1997.
14.8.09
Ferreira Gullar: "Galo galo"
Galo Galo
O galo
no saguão quieto.
Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.
De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.
Mede os passos. Pára.
Inclina a cabeça coroada
dentro do silêncio:
— que faço entre coisas ?
— de que me defendo ?
                                          Anda
No saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.
Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e o duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura ?
Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora ?
Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório ?
Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa
Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito.
Vê-se: o canto é inútil.
O galo permanece — apesar
de todo o seu porte marcial —
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira!
Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
                não seria tão rouco
e sangrento
                     Grito, fruto obscuro
e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.
GULLAR, Ferreira. Toda poesia (1950-1980). Civilização Brasileira, 1980.
12.8.09
Carlos Drummond de Andrade: "Fraga e sombra"
O poema "Fraga e sombra", de Drummond, lido em voz alta por mim:
Fraga e sombra
A sombra azul da tarde nos confrange.
Baixa, severa, a luz crepuscular.
Um sino toca, e não saber quem tange
é como se este som nascesse do ar.
Música breve, noite longa. O alfanje
que sono e sonho ceifa devagar
mal se desenha, fino, ante a falange
das nuvens esquecidas de passar.
Os dois apenas, entre céu e terra,
sentimos o espetáculo do mundo,
feito de mar ausente e abstrata serra.
E calcamos em nós, sob o profundo
instinto de existir, outra mais pura
vontade de anular a criatura.
11.8.09
Alex Varella: "Negra grega" e "Barcelona"
Ouça o poeta Alex Varella recitando seus poemas "Negra grega" e "Barcelona", que republico abaixo:
NEGRA GREGA
Negra negra
Grega grega
de palavras & mercancias
no Porto das Palavras
de Alexandria
beleza é o ser visível
ser é visível
negra grega
da África Clássica
próprio da beleza é o aparecer
BARCELONA
(para Alex Pessoa)
Barcelona é uma arte
Ora mar Ora cidade
Perdi meu último heterônimo em Barcelona
(Alex Pessoa)
Onde tudo tem dois nomes,
mundo heteronômico
Barcelona é uma arte
Ora mar
Ora cidade
VARELLA, Alex. Alexandrias. In blog "A cidade sou eu".
NEGRA GREGA
Negra negra
Grega grega
de palavras & mercancias
no Porto das Palavras
de Alexandria
beleza é o ser visível
ser é visível
negra grega
da África Clássica
próprio da beleza é o aparecer
BARCELONA
(para Alex Pessoa)
Barcelona é uma arte
Ora mar Ora cidade
Perdi meu último heterônimo em Barcelona
(Alex Pessoa)
Onde tudo tem dois nomes,
mundo heteronômico
Barcelona é uma arte
Ora mar
Ora cidade
VARELLA, Alex. Alexandrias. In blog "A cidade sou eu".
10.8.09
Blog "Sorriso de Medusa"
Na semana passada, dei o curso “Que é a poesia?” no B_arco, em São Paulo. Foi muito bom para mim. Hoje, recebi um e-mail da minha querida amiga Noemi Jaffe, dizendo que eu ia ter uma surpresa boa, se visitasse o blog www.sorrisodemedusa.wordpress.com. De fato, foi uma surpresa maravilhosa. Trata-se do belo blog da professora e escritora Luciana Miranda Pennah, que fez o curso que dei no B_arco. E o comentário dela sobre o curso – para o qual, enquanto aluna, ela contribuiu com interessantes observações e questões – me deixou tão feliz que não posso deixar de querer que todo o mundo o leia.
9.8.09
Domingos Carvalho da Silva: "Poema terciário"
Poema terciário
          a João Cabral de Melo Neto
Cavalos já foram pombos
de asas de nuvem. Um rio
banhava o rosto da aurora.
Cavalos já foram pombos
na madrugada do outrora.
Onde há florestas havia
golfos oblongos por onde
tranqüilos peixes corriam.
Uma lua alvissareira
passava a noite. E deixava
reticências de cometa
vagalumeando na relva
das margens, até à aurora
da Idade de Ouro do outrora,
quando cavalos alados
tinham estrelas nas crinas
alvas como asas de pombo.
O Verbo não existia.
Deus era incriado ainda.
Só as esponjas dormitavam
trespassadas por espadas
de água metálica, impoluta.
E as gaivotas planejavam
etapas estratosféricas
próximo as praias ibéricas.
E as montanhas desabavam
em estertores terciários,
em agonias de estrondo,
nas manhãs de sol atlântico,
quando cortavam as nuvens
– alvos garbosos eqüinos –
esquadrões marciais de pombos.
Teu cabelo era ainda musgo.
Teus olhos o corpo frio
de uma ostra semiviva.
E tua alma sempre-viva
Sobrenadava o oceano
qual uma estrela perdida.
Teu coração era concha
fechada e sem pulsação.
E teu gesto – que é teu riso –
era urn mineral estático
ainda não escavado
pelo mar duro e fleumático.
Cavalos já foram pombos.
E a prata que anda na garra
dos felinos, reluzia
em vibrações uterinas
no ventre da terra fria,
quando o dia era só aurora
e Deus sequer existia,
na madrugada do outrora.
CARVALHO DA SILVA, Domingos. "Poema terciário". In: BANDEIRA, Manuel (org). "Antologia". In: Apresentação da poesia brasileira. São Paulo: Cosacnaify, 2009.
Domingos Carvalho e Silva: "Poema terciário"
Poema terciário
Cavalos já foram pombos
de asas de nuvem. Um rio
banhava o rosto da aurora.
Cavalos já foram pombos
na madrugada do outrora.
Onde há florestas havia
golfos oblongos por onde
tranqüilos peixes corriam.
Uma lua alvissareira
passava a noite. E deixava
reticências de cometa
vagalumeando na relva
das margens, até à aurora
da Idade de Ouro do outrora,
quando cavalos alados
tinham estrelas nas crinas
alvas como asas de pombo.
O Verbo não existia.
Deus era incriado ainda.
Só as esponjas dormitavam
trespassadas por espadas
de água metálica, impoluta.
E as gaivotas planejavam
etapas estratosféricas
próximo às praias ibéricas.
E as montanhas desabavam
em estertores terciários,
em agonias de estrondo,
nas manhãs de sol atlântico,
quando cortavam as nuvens
– alvos garbosos eqüinos –
esquadrões marciais de pombos.
Teu cabelo era ainda musgo.
Teus olhos o corpo frio
de uma ostra semiviva.
E tua alma sempre-viva
Sobrenadava o oceano
qual uma estrela perdida.
Teu coração era concha
fechada e sem pulsação.
E teu gesto – que é teu riso –
era urn mineral estático
ainda não escavado
pelo mar duro e fleumático.
Cavalos já foram pombos.
E a prata que anda na garra
dos felinos, reluzia
em vibrações uterinas
no ventre da terra fria,
quando o dia era só aurora
e Deus sequer existia,
na madrugada do outrora.
8.8.09
7.8.09
Carlos Pena Filho: "A solidão e sua porta"
A solidão e sua porta
Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).
Quando pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha
a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida
com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.
PENA FILHO, Carlos. Livro geral. Olinda: Gráfica Vitória, 1977.
6.8.09
Blog Prosa em Poema
.
Quem gosta de poesia vai adorar o blog Prosa em Poema http://prosaempoema.wordpress.com/, do meu grande amigo Paulo Roberto Sabino Júnior, o Paulinho. Há já algum tempo, Paulinho periodicamente brinda seus amigos com belas seleções dos poemas que mais admira. Agora, finalmente, ele os torna disponíveis a quem quer que acesse o seu blog. Recomendo-o enfaticamente.
Como ele mesmo diz:
"'Prosa em poema' é o título que cabe à minha proposta: a de clarificar por que as linhas escolhidas me tocam, me sensibilizam. os meus textos desnudam a razão de ser daquilo tudo na minha existência. portanto, é uma espécie de diálogo, de prosa, que travo com as linhas, com os textos e poemas postados; é a prosa que enxergo nos versos, o diálogo que desenvolvo com eles".
Quem gosta de poesia vai adorar o blog Prosa em Poema http://prosaempoema.wordpress.com/, do meu grande amigo Paulo Roberto Sabino Júnior, o Paulinho. Há já algum tempo, Paulinho periodicamente brinda seus amigos com belas seleções dos poemas que mais admira. Agora, finalmente, ele os torna disponíveis a quem quer que acesse o seu blog. Recomendo-o enfaticamente.
Como ele mesmo diz:
"'Prosa em poema' é o título que cabe à minha proposta: a de clarificar por que as linhas escolhidas me tocam, me sensibilizam. os meus textos desnudam a razão de ser daquilo tudo na minha existência. portanto, é uma espécie de diálogo, de prosa, que travo com as linhas, com os textos e poemas postados; é a prosa que enxergo nos versos, o diálogo que desenvolvo com eles".
5.8.09
Eugénio de Andrade: "Sempre a água"
.
Sempre a água
Sempre a água me cantou nas telhas.
Habito onde as suas bicas,
as suas bocas jorram.
As palavras que no cântaro
a noite recolhe e bebe
com agrado
sabem a terra por serem minhas.
Não sou daqui e não vos devo
nada, ninguém
poderá negar a evidência
de ser chama ou água,
fluir em lugar de ser pedra.
Perdoai-me a transparência.
ANDRADE, Eugénio de. O Sal da Língua Precedido de Trinta Poemas. Lisboa: Bibliotex, 2001.
Sempre a água
Sempre a água me cantou nas telhas.
Habito onde as suas bicas,
as suas bocas jorram.
As palavras que no cântaro
a noite recolhe e bebe
com agrado
sabem a terra por serem minhas.
Não sou daqui e não vos devo
nada, ninguém
poderá negar a evidência
de ser chama ou água,
fluir em lugar de ser pedra.
Perdoai-me a transparência.
ANDRADE, Eugénio de. O Sal da Língua Precedido de Trinta Poemas. Lisboa: Bibliotex, 2001.
3.8.09
"Inverno": tradução para o russo de Oleg Almeida
.
O poeta Oleg Almeida, autor do belo livro Memórias dum hiperbóreo, traduziu para o russo o poema "Inverno", que originalmente fiz como letra para uma melodia de Adriana Calcanhotto. Eis a tradução, para aqueles que conhecem a língua de Puchkin, e, em seguida, o original:
ЗИМА
(Сузане Мораис)
В тот день, когда я слишком счастлив был,
в твоих глазах
вдруг отразился самолёт – взлетел, исчез;
и с этих пор –
брожу ли вдоль канала взад-вперёд,
пишу ли длинное, без адреса, письмо –
зимой в Леблоне настоящий лёд.
Есть кое-что, чего не смог понять...
Где потерял ручного льва: на нём
в тот самый день ещё скакал верхом?
Я позабыл,
что одинокого судьбе не жаль,
что пьяным кораблём, в морскую даль
заброшенным, угоден ей
сейчас.
Но сам не знаю что
пытается напомнить мне подчас,
как небеса однажды встретились с землёй
для нас двоих,
немного раньше, чем закат погас.
INVERNO
(a Susana Morais)
No dia em que fui mais feliz
eu vi um avião
se espelhar no seu olhar até sumir
de lá pra cá não sei
caminho ao longo do canal
faço longas cartas pra ninguém
e o inverno no Leblon é quase glacial.
Há algo que jamais se esclareceu:
onde foi exatamente que larguei
naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei?
Lá mesmo esqueci
que o destino
sempre me quis só
no deserto sem saudades, sem remorsos, só
sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
só quer me lembrar
que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar.
O poeta Oleg Almeida, autor do belo livro Memórias dum hiperbóreo, traduziu para o russo o poema "Inverno", que originalmente fiz como letra para uma melodia de Adriana Calcanhotto. Eis a tradução, para aqueles que conhecem a língua de Puchkin, e, em seguida, o original:
ЗИМА
(Сузане Мораис)
В тот день, когда я слишком счастлив был,
в твоих глазах
вдруг отразился самолёт – взлетел, исчез;
и с этих пор –
брожу ли вдоль канала взад-вперёд,
пишу ли длинное, без адреса, письмо –
зимой в Леблоне настоящий лёд.
Есть кое-что, чего не смог понять...
Где потерял ручного льва: на нём
в тот самый день ещё скакал верхом?
Я позабыл,
что одинокого судьбе не жаль,
что пьяным кораблём, в морскую даль
заброшенным, угоден ей
сейчас.
Но сам не знаю что
пытается напомнить мне подчас,
как небеса однажды встретились с землёй
для нас двоих,
немного раньше, чем закат погас.
INVERNO
(a Susana Morais)
No dia em que fui mais feliz
eu vi um avião
se espelhar no seu olhar até sumir
de lá pra cá não sei
caminho ao longo do canal
faço longas cartas pra ninguém
e o inverno no Leblon é quase glacial.
Há algo que jamais se esclareceu:
onde foi exatamente que larguei
naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei?
Lá mesmo esqueci
que o destino
sempre me quis só
no deserto sem saudades, sem remorsos, só
sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
só quer me lembrar
que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar.
2.8.09
Miguel Souza Tavares: "O Mediterrâneo"
O seguinte – belíssimo -- texto, do escritor português Miguel Souza Tavares, foi-me enviado por meu querido primo, Epifânio de Carvalho:
O MEDITERRÂNEO
Miguel Souza Tavares
Não gosto de catedrais, do peso das pedras, da dimensão excessiva das naves, da mitologia de um Deus em cujo nome foram construídas e que aqui convoca e esmaga os seus crentes. Não gosto da profusão de altares de castiçais de talha dourada, de sacrários e cânticos e painéis. Não gosto da arquitetura que não é à escala humana, nem nos meios utilizados nem nos fins que representa.
Prefiro a extensão plana das mesquitas, o seu jogo de colunas e sombras, o despojamento geométrico dos seus azulejos. Prefiro mil vezes a herança do mundo árabe morto em Granada do que os símbolos da Reconquista cristã que o sepultou.
Mil vezes a leveza do mundo mediterrânico do que o sufoco das catedrais e castelos do Sacro Império Romano-Germânico. Mil vezes os templos gregos, entre resina e mar e a quietude das oliveiras, do que os castelos de Inglaterra e as florestas de bétulas do Norte. Mil vezes as kasbahs de Marrocos do que os castelos feudais da Europa, mil vezes Granada do que Versalhes.
E antes um Olimpo de Deuses de cada coisa do que um Deus único, antes o Al Andaluz do que os Reis Católicos, antes Roma do que o Papado, antes a luz e a democracia gregas do que a escuridão medieval.
Falo da nossa herança, o Mediterrâneo – a mais extraordinária civilização humana, a civilização da luz, da arte, da arquitetura, da democracia, do direito, da navegação e da descoberta, do mar e do deserto, das ilhas e dos golfos, das vinhas, dos olivais e dos pinhais, das estátuas profanas, das colunas e dos azulejos, dos pátios, dos terraços e das varandas, da cal, do branco e do azul. É a civilização do Egito, de Creta, de Atenas, de Roma, de Volubilis, de Tânger. Das cidades portuárias, de Alexandria a Lisboa e das Ilhas Gregas, da Sicília, de Malta, de Chipre, da Sardenha. São três mil anos a contemplar as estrelas do céu, a ouvir o som da água nas fontes e a tentar decifrar o mistério da morte.
Antes que a idéia de Deus esmagasse os homens, antes doa autos de fé, das perseguições religiosas da Inquisição e do fundamentalismo islâmico, o Mediterrâneo inventou a arte de viver. Os homens viviam livres dos castigos de Deus e das ameaças dos Profetas: na barca da morte até à outra vida, como acreditavam os egípcios. E os deuses eram, em vida dos homens, apenas a celebração de cada coisa: a caça, a pesca, o vinho, a agricultura, o amor. Os deuses encarnavam a festa e a alegria da vida e não o terror da morte.
Antes da queda de Granada, antes das fogueiras da Inquisição, antes dos massacres da Argélia, o Mediterrâneo ergueu uma civilização fundada na celebração da vida, na beleza de todas as coisas e na tolerância dos que sabem que, seja qual for o Deus que reclame a nossa vida morta, o resto é nosso e pertence-nos – por uma única, breve e intensa passagem. É a isso que chamamos liberdade – a grande herança do mundo do Mediterrâneo.
TAVARES, Miguel Souza. In Não te deixarei morrer, David Crockett. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
O MEDITERRÂNEO
Miguel Souza Tavares
Não gosto de catedrais, do peso das pedras, da dimensão excessiva das naves, da mitologia de um Deus em cujo nome foram construídas e que aqui convoca e esmaga os seus crentes. Não gosto da profusão de altares de castiçais de talha dourada, de sacrários e cânticos e painéis. Não gosto da arquitetura que não é à escala humana, nem nos meios utilizados nem nos fins que representa.
Prefiro a extensão plana das mesquitas, o seu jogo de colunas e sombras, o despojamento geométrico dos seus azulejos. Prefiro mil vezes a herança do mundo árabe morto em Granada do que os símbolos da Reconquista cristã que o sepultou.
Mil vezes a leveza do mundo mediterrânico do que o sufoco das catedrais e castelos do Sacro Império Romano-Germânico. Mil vezes os templos gregos, entre resina e mar e a quietude das oliveiras, do que os castelos de Inglaterra e as florestas de bétulas do Norte. Mil vezes as kasbahs de Marrocos do que os castelos feudais da Europa, mil vezes Granada do que Versalhes.
E antes um Olimpo de Deuses de cada coisa do que um Deus único, antes o Al Andaluz do que os Reis Católicos, antes Roma do que o Papado, antes a luz e a democracia gregas do que a escuridão medieval.
Falo da nossa herança, o Mediterrâneo – a mais extraordinária civilização humana, a civilização da luz, da arte, da arquitetura, da democracia, do direito, da navegação e da descoberta, do mar e do deserto, das ilhas e dos golfos, das vinhas, dos olivais e dos pinhais, das estátuas profanas, das colunas e dos azulejos, dos pátios, dos terraços e das varandas, da cal, do branco e do azul. É a civilização do Egito, de Creta, de Atenas, de Roma, de Volubilis, de Tânger. Das cidades portuárias, de Alexandria a Lisboa e das Ilhas Gregas, da Sicília, de Malta, de Chipre, da Sardenha. São três mil anos a contemplar as estrelas do céu, a ouvir o som da água nas fontes e a tentar decifrar o mistério da morte.
Antes que a idéia de Deus esmagasse os homens, antes doa autos de fé, das perseguições religiosas da Inquisição e do fundamentalismo islâmico, o Mediterrâneo inventou a arte de viver. Os homens viviam livres dos castigos de Deus e das ameaças dos Profetas: na barca da morte até à outra vida, como acreditavam os egípcios. E os deuses eram, em vida dos homens, apenas a celebração de cada coisa: a caça, a pesca, o vinho, a agricultura, o amor. Os deuses encarnavam a festa e a alegria da vida e não o terror da morte.
Antes da queda de Granada, antes das fogueiras da Inquisição, antes dos massacres da Argélia, o Mediterrâneo ergueu uma civilização fundada na celebração da vida, na beleza de todas as coisas e na tolerância dos que sabem que, seja qual for o Deus que reclame a nossa vida morta, o resto é nosso e pertence-nos – por uma única, breve e intensa passagem. É a isso que chamamos liberdade – a grande herança do mundo do Mediterrâneo.
TAVARES, Miguel Souza. In Não te deixarei morrer, David Crockett. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.