O seguinte – belíssimo -- texto, do escritor português Miguel Souza Tavares, foi-me enviado por meu querido primo, Epifânio de Carvalho:
O MEDITERRÂNEO
Miguel Souza Tavares
Não gosto de catedrais, do peso das pedras, da dimensão excessiva das naves, da mitologia de um Deus em cujo nome foram construídas e que aqui convoca e esmaga os seus crentes. Não gosto da profusão de altares de castiçais de talha dourada, de sacrários e cânticos e painéis. Não gosto da arquitetura que não é à escala humana, nem nos meios utilizados nem nos fins que representa.
Prefiro a extensão plana das mesquitas, o seu jogo de colunas e sombras, o despojamento geométrico dos seus azulejos. Prefiro mil vezes a herança do mundo árabe morto em Granada do que os símbolos da Reconquista cristã que o sepultou.
Mil vezes a leveza do mundo mediterrânico do que o sufoco das catedrais e castelos do Sacro Império Romano-Germânico. Mil vezes os templos gregos, entre resina e mar e a quietude das oliveiras, do que os castelos de Inglaterra e as florestas de bétulas do Norte. Mil vezes as kasbahs de Marrocos do que os castelos feudais da Europa, mil vezes Granada do que Versalhes.
E antes um Olimpo de Deuses de cada coisa do que um Deus único, antes o Al Andaluz do que os Reis Católicos, antes Roma do que o Papado, antes a luz e a democracia gregas do que a escuridão medieval.
Falo da nossa herança, o Mediterrâneo – a mais extraordinária civilização humana, a civilização da luz, da arte, da arquitetura, da democracia, do direito, da navegação e da descoberta, do mar e do deserto, das ilhas e dos golfos, das vinhas, dos olivais e dos pinhais, das estátuas profanas, das colunas e dos azulejos, dos pátios, dos terraços e das varandas, da cal, do branco e do azul. É a civilização do Egito, de Creta, de Atenas, de Roma, de Volubilis, de Tânger. Das cidades portuárias, de Alexandria a Lisboa e das Ilhas Gregas, da Sicília, de Malta, de Chipre, da Sardenha. São três mil anos a contemplar as estrelas do céu, a ouvir o som da água nas fontes e a tentar decifrar o mistério da morte.
Antes que a idéia de Deus esmagasse os homens, antes doa autos de fé, das perseguições religiosas da Inquisição e do fundamentalismo islâmico, o Mediterrâneo inventou a arte de viver. Os homens viviam livres dos castigos de Deus e das ameaças dos Profetas: na barca da morte até à outra vida, como acreditavam os egípcios. E os deuses eram, em vida dos homens, apenas a celebração de cada coisa: a caça, a pesca, o vinho, a agricultura, o amor. Os deuses encarnavam a festa e a alegria da vida e não o terror da morte.
Antes da queda de Granada, antes das fogueiras da Inquisição, antes dos massacres da Argélia, o Mediterrâneo ergueu uma civilização fundada na celebração da vida, na beleza de todas as coisas e na tolerância dos que sabem que, seja qual for o Deus que reclame a nossa vida morta, o resto é nosso e pertence-nos – por uma única, breve e intensa passagem. É a isso que chamamos liberdade – a grande herança do mundo do Mediterrâneo.
TAVARES, Miguel Souza. In Não te deixarei morrer, David Crockett. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
Cicero,
ResponderExcluirBelíssimo mesmo! Encantador! Sincero!
Abração!
Adriano Nunes.
Cicero,
ResponderExcluirolha, que surpresa linda, linda!
(é que confesso que ultimamente perdi um bocado a esperança que tinha dele.)
abraço e obrigado por proporcionares o reencontro,
F.
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ResponderExcluirCaro Antonio Cícero,
ResponderExcluirExcelentes o texto e a sua mundividência.
(Leio sempre com prazer os textos e as crónicas deste jornalista e escritor português, mesmo que não concorde, por vezes, com os seus pontos de vista: mas são textos acutilantes e escritos com uma rara sensibilidade e aguda inteligência).
Domingos da Mota
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirCicero,
ResponderExcluirE um poema concreto:
ADRIANO NUNES: "A R T E"
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Abração,
Adriano Nunes.
Clara beleza do palácio mouro
ResponderExcluirSob a luz do sol oblíquo.
Na Ipanema de ameno outono
O fogo do amor agora persigo.
[]´s
Bonito, Adriano!
ResponderExcluirCaro Antônio Cícero,
ResponderExcluirVou postá-lo em meu blog.
Segue um breve poema:
POLITEÍSMO
Costumam rir dos meus Deuses
Antes que o Céu
se encumbisse do sumiço das estrelas,
o menino desenhou um Sol para cada País.
Cícero,
ResponderExcluireste texto me propõe duas questões ou uma e mesma questão: não haverá idealização nas supostas luzes cultivadas pelos helenos bem como um preconceito nas "trevas do medievo"? sei lá, vejo tanta luz nessas eras sufocadas pelos contadores da história...
abração
Cândido Rolim
Maravilhoso!
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