O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 30 de maio:
O desejo do contemporâneo
O FILÓSOFO Gilles Deleuze diz que "uma boa maneira de ler, hoje em dia, seria tratar um livro assim como se escuta um disco, assim como se vê um filme ou um programa de televisão, assim como se acolhe uma canção: qualquer tratamento do livro que exija para ele um respeito, uma atenção especial, corresponde a outra época e condena definitivamente o livro".
Por mim, cada qual que leia o que quiser da maneira que lhe aprouver. Contudo, quando leio, por exemplo, as bobagens ou trivialidades que são cotidianamente escritas sobre Nietzsche por alguns dos seus fãs, tenho a impressão de que hoje praticamente todo o mundo já adotou a maneira de ler recomendada pelo autor de "Diferença e Repetição". E então tendo a achar que Heidegger é que estava certo, quando recomendava aos seus alunos que adiassem a leitura de Nietzsche para depois que estudassem Aristóteles durante uns dez ou 15 anos.
Deleuze jamais concordaria com isso, pois considerava repressiva a história da filosofia. Segundo ele, as pessoas não se sentem no direito de pensar antes de terem lido Platão, Descartes, Kant e Heidegger. Talvez. Mas eu diria antes que quem não quer pensar sempre acha uma desculpa para tal. Se, na França, é a história da filosofia, no Brasil é a filosofia contemporânea que tem esse papel. Tradicionalmente o brasileiro, tendendo a considerar-se atrasado em relação ao que se discute no Primeiro Mundo, não se dá o direito a pensar antes de estar a par do "dernier cri" europeu ou norte-americano. Ora, mal se conhece o "dernier cri" e ele já deixou de o ser, de modo que, correndo-se atrás do próximo, deixa-se para pensar por conta própria mais tarde.
Além disso, quem só deseja estar "up to date" acaba por jamais ler os clássicos. A leitura dos contemporâneos toma-lhe todo o tempo. Tal pessoa espera que os autores da moda lhe indiquem quais dos autores do passado ainda devem ser respeitados (por exemplo, Spinoza e Nietzsche) e quais devem ser desprezados (por exemplo, Descartes e Hegel). E, no mais das vezes, como aquilo que os contemporâneos escrevem sobre os autores que recomendam é considerado justamente o supra-sumo destes, torna-se supérflua a leitura dos originais.
Pensemos no significado desse desejo de ser contemporâneo. "Contemporâneo" quer dizer "do mesmo tempo" ou "do mesmo tempo que". Quando dizemos, por exemplo, "Mário e Oswald foram contemporâneos", queremos dizer: "Mário e Oswald foram do mesmo tempo"; e quando dizemos "Leonardo foi contemporâneo de Michelangelo", queremos dizer: "Leonardo foi do mesmo tempo que Michelangelo".
Quando, por outro lado, digo que uma coisa ou pessoa é contemporânea, sem explicitar de quê ou de quem, fica sempre implícito que essa coisa ou pessoa é contemporânea de mim, que estou a dizê-lo. Se digo, por exemplo, "Giorgio Agamben é um filósofo contemporâneo", quero dizer que ele é meu contemporâneo: o que poderia ser dito pelas palavras "Giorgio Agamben é um filósofo do mesmo tempo que eu". Ou seja, o que quer que seja contemporâneo, sem mais, é contemporâneo de mim (seja quem eu for). É claro que, como a contemporaneidade consiste em uma relação comutativa, não posso deixar de, reflexivamente, me reconhecer contemporâneo das coisas ou pessoas que me são contemporâneas.
Isso significa que não tem sentido que eu – seja quem eu for – me diga contemporâneo, sem mais. "Eu sou contemporâneo" significa apenas: "Eu sou do mesmo tempo que eu". Assim também, não tem sentido desejar ser contemporâneo, sem mais, pois "desejo ser contemporâneo" significa apenas: "Desejo ser do mesmo tempo que eu". Finalmente, não tem sentido desejar ser contemporâneo de alguma coisa ou pessoa contemporânea, uma vez que eu já sou, evidentemente, contemporâneo de quem me é contemporâneo.
Assim, o desejo do contemporâneo não passa de sintoma de um agudo provincianismo temporal. Quando se manifesta no campo da filosofia, talvez o melhor antídoto para ele seja exatamente a leitura cuidadosa dos clássicos.
E, de volta a Deleuze, devo dizer que, no lugar de tratar um livro como normalmente se escuta uma canção, acho mais proveitoso, de vez em quando, escutar algumas canções com o respeito e a atenção especial que o bom leitor jamais deixará de dedicar aos bons livros.
31.5.09
30.5.09
The GayClick contra a Homofobia
.
Um ótimo e engraçado clip: The GayClick contra a homofobia, feito para a música "Fuck you", de Lily Allen, em http://www.youtube.com/watch?v=XzUTpLr8A2A.
Um ótimo e engraçado clip: The GayClick contra a homofobia, feito para a música "Fuck you", de Lily Allen, em http://www.youtube.com/watch?v=XzUTpLr8A2A.
29.5.09
John R. Searle: de "Mind, language, and society"
.
Acho que algo muito mais radical que um declínio da fé religiosa ocorreu em nosso mundo. Para as pessoas cultas, o mundo se tornou desmistificado. Ou antes, para ser mais preciso, deixamos de tomar os mistérios que vemos no mundo como expressões de algo sobrenatural. Não mais consideramos os acontecimentos estranhos como exemplos da ação de Deus através da linguagem dos milagres. Os acontecimentos estranhos são apenas acontecimentos que não compreendemos. O resultado dessa desmistificação é que já estamos para lá do ateísmo, num ponto em que o assunto já não nos interessa à maneira em que interessava às prévias gerações. Para nós, se descobríssemos que Deus existe, isso seria um fato da natureza como qualquer outro. Às quatro forças básicas do universo – gravidade, eletromagnetismo, força nuclear forte e força nuclear fraca – adicionaríamos uma quinta, a força divina. Ou, mais provavelmente, veríamos as outras forças como formas da força divina. Se o mundo sobrenatural existisse, ele também seria natural.
Dois exemplos ilustram a mudança do nosso ponto de vista. Quando dei aula na universidade de Veneza, como professor visitante, eu costumava caminhar até uma encantadora igreja gótica, a Igreja da Madonna del Orto. Originalmente, haviam planejado batizá-la de igreja San Christoforo, mas, durante a construção, quando foi encontrada uma estátua da Madonna no pomar local, presumiu-se que ela tinha caído do céu. Uma estátua da Madonna caída do céu no pomar do próprio terreno da igreja era milagre suficiente para justificar a mudança do nome para Igreja da Madonna do Pomar. Eis o que interessa: se hoje uma estátua fosse achada ao lado de um canteiro de obras, ninguém diria que ela houvesse caído do céu. Mesmo se a estátua fosse achada nos jardins do Vaticano, as autoridades eclesiásticas não alegariam que caíra do céu. Pensar isso não seria possível porque, em certo sentido, sabemos demais.
Quando dei aula na Universidade de Florença, a igreja da minha paróquia, se assim puder descrevê-la, era San Miniato, localizada numa colina sobre a cidade, um dos edifícios mais impressionantes de Florença. Por que esse nome? Parece que San Miniato foi um dos primeiros mártires cristãos na história da cidade. As autoridades romanas o executaram no século III, mais ou menos em 250 d.C., na época do imperador Décio. Ele sobreviveu ao ataque dos leões na arena, mas depois lhe cortaram a cabeça. Após ser decapitado, ele se levantou, pôs a cabeça sob o braço, caminhou para fora da arena e, atravessando o rio, saiu da cidade. Então, subiu a colina ao lado sul do Arno, sempre carregando a cabeça, até chegar ao topo, onde se sentou. Nesse lugar se encontra hoje a igreja. Os guias contemporâneos têm um pouco de vergonha de contar essa história, e a maior parte sequer a conta. O que ocorre não é que a achemos falsa, mas que não a levamos a sério nem mesmo como possibilidade.
De: SEARLE, John R. Mind, language, and society. New York: Basic Books, 1998.
Acho que algo muito mais radical que um declínio da fé religiosa ocorreu em nosso mundo. Para as pessoas cultas, o mundo se tornou desmistificado. Ou antes, para ser mais preciso, deixamos de tomar os mistérios que vemos no mundo como expressões de algo sobrenatural. Não mais consideramos os acontecimentos estranhos como exemplos da ação de Deus através da linguagem dos milagres. Os acontecimentos estranhos são apenas acontecimentos que não compreendemos. O resultado dessa desmistificação é que já estamos para lá do ateísmo, num ponto em que o assunto já não nos interessa à maneira em que interessava às prévias gerações. Para nós, se descobríssemos que Deus existe, isso seria um fato da natureza como qualquer outro. Às quatro forças básicas do universo – gravidade, eletromagnetismo, força nuclear forte e força nuclear fraca – adicionaríamos uma quinta, a força divina. Ou, mais provavelmente, veríamos as outras forças como formas da força divina. Se o mundo sobrenatural existisse, ele também seria natural.
Dois exemplos ilustram a mudança do nosso ponto de vista. Quando dei aula na universidade de Veneza, como professor visitante, eu costumava caminhar até uma encantadora igreja gótica, a Igreja da Madonna del Orto. Originalmente, haviam planejado batizá-la de igreja San Christoforo, mas, durante a construção, quando foi encontrada uma estátua da Madonna no pomar local, presumiu-se que ela tinha caído do céu. Uma estátua da Madonna caída do céu no pomar do próprio terreno da igreja era milagre suficiente para justificar a mudança do nome para Igreja da Madonna do Pomar. Eis o que interessa: se hoje uma estátua fosse achada ao lado de um canteiro de obras, ninguém diria que ela houvesse caído do céu. Mesmo se a estátua fosse achada nos jardins do Vaticano, as autoridades eclesiásticas não alegariam que caíra do céu. Pensar isso não seria possível porque, em certo sentido, sabemos demais.
Quando dei aula na Universidade de Florença, a igreja da minha paróquia, se assim puder descrevê-la, era San Miniato, localizada numa colina sobre a cidade, um dos edifícios mais impressionantes de Florença. Por que esse nome? Parece que San Miniato foi um dos primeiros mártires cristãos na história da cidade. As autoridades romanas o executaram no século III, mais ou menos em 250 d.C., na época do imperador Décio. Ele sobreviveu ao ataque dos leões na arena, mas depois lhe cortaram a cabeça. Após ser decapitado, ele se levantou, pôs a cabeça sob o braço, caminhou para fora da arena e, atravessando o rio, saiu da cidade. Então, subiu a colina ao lado sul do Arno, sempre carregando a cabeça, até chegar ao topo, onde se sentou. Nesse lugar se encontra hoje a igreja. Os guias contemporâneos têm um pouco de vergonha de contar essa história, e a maior parte sequer a conta. O que ocorre não é que a achemos falsa, mas que não a levamos a sério nem mesmo como possibilidade.
De: SEARLE, John R. Mind, language, and society. New York: Basic Books, 1998.
26.5.09
Richard Rorty: "O fogo da vida"
O estudante de filosofia Marcos Carvalho Lopes me enviou o último artigo escrito pelo filósofo norte-americano Richard Rorty. Originalmente publicado na revista da Poetry Foundation, ele foi muito bem traduzido por Susana de Castro. Tomei a liberdade, entretanto, de pôr a minha tradução do poema de Swinburne no lugar da dela.
O fogo da vida
Richard Rorty
Em um ensaio chamado “Pragmatismo e romantismo” tentei recolocar o argumento da “Defesa da poesia” de Shelley. No coração do romantismo, disse, estava a afirmação de que a razão só pode seguir os caminhos que a imaginação abriu primeiro. Sem palavras, não há raciocínio. Sem imaginação, não há palavras novas. Sem palavras novas, não há progresso moral ou intelectual.
Terminei este ensaio contrastando a habilidade do poeta de nos dar uma linguagem mais rica com a tentativa do filósofo de adquirir um acesso não-linguístico ao realmente real. O sonho de Platão por tal acesso foi ele mesmo uma grande descoberta poética. Mas no tempo de Shelley, argumentei, este sonho já havia se esgotado. Nós somos hoje mais capazes de reconhecer nossa finitude -- de admitir que jamais vamos entrar em contato com algo maior que nós mesmos. Esperamos, ao invés disso, que a vida humana aqui na terra se tornará mais rica do que nos séculos passados porque a linguagem usada por nossos remotos descendentes terá mais recursos do que a nossa tinha. Nosso vocabulário estará para os deles como os dos nossos ancestrais primitivos estavam para os nossos.
Nesses ensaios, como em escritos anteriores, usei ‘poesia’ em sentido largo. Expandi o termo de Harold Bloom ‘poeta forte’ para cobrir escritores de prosa que inventaram novos jogos de linguagem para jogarmos – pessoas como Platão, Newton, Marx, Darwin e Freud tanto quanto os versistas como Milton e Blake. Esses jogos podem envolver equações matemáticas, ou argumentos indutivos, ou narrativas dramáticas, ou (no caso dos versistas) inovação da prosódica. Mas a distinção entre prosa e verso era irrelevante para meus propósitos filosóficos.
Pouco depois de ter terminado de escrever “Pragmatismo e romantismo” fui diagnosticado com um câncer inoperável no pâncreas. Alguns meses depois de ter sido informado sobre as más notícias, estava sentado tomando café com meu filho mais velho e uma prima que estava me visitando. Minha prima (que é uma pastora da igreja batista) me perguntou se eu havia encontrado meus pensamentos se virando em direção a temas religiosos, e eu disse que não. “Bem, e quanto à filosofia?”, meu filho perguntou. “Não”, respondi, nem a filosofia que havia escrito nem a que havia lido pareci ter qualquer ligação com a minha situação. Não tinha nenhum problema com o argumento de Epicuro de que é irracional sentir medo da morte, nem com a sugestão de Heidegger de que a ontoteologia origina-se na tentativa de fugir da nossa mortalidade. Mas nem ataraxia (liberdade de perturbação) nem Sein zum Tode (ser em direção à morte) me pareciam ser o ponto principal.
“Nada do que tem lido tem sido de alguma utilidade?”, insistiu meu filho. “Sim”, me falei sem pensar, “poesia”. “Quais poemas?”, perguntou. Citei duas velhas castanhas que havia recentemente escavado da memória e que estranhamente estavam me encorajando, os versos mais citados do “Jardim de Proserpine” de Swinburn.
Agradecemos brevemente
A todos os deuses que há
Por não se viver para sempre;
Por jamais os mortos se erguerem;
Por chegar, por mais que volteie,
O rio sem dúvida ao mar.
We thank with brief thanksgiving
Whatever gods may be
That no life lives for ever;
That dead men rise up never;
That even the weariest river
Winds somewhere safe to sea.
e “Em seu aniversário de setenta e cinco anos” de Landor:
Natureza amei, e, próximo à natureza, arte;
Esquentei ambas as mãos diante do fogo da vida,
Ela afunda, e estou pronto para partir.
Nature I loved, and next to Nature, Art;
I warmed both hands before the fire of life,
It sinks, and I am ready to depart.
Encontrei conforto neste meandro lento e nestas brasas gaguejantes. Suspeito que nenhum efeito comparável poderia ser provocado pela prosa. Não apenas imagens, mas também rima e ritmo foram necessários para fazer o trabalho. Em linhas como essas, todos os três conspiram para produzir um grau de compressão, e assim de impacto, que apenas o verso pode alcançar. Comparada com as emoções moldadas tramadas pelos versistas, mesmo a melhor prosa é dispersa.
Apesar de diversos pedaços de verso terem tido grande significados para mim em momentos particulares da minha vida, jamais fui capaz de escrever algo pessoal (a não ser rascunhar sonetos durante reuniões departamentais entendiantes – uma maneira de rabiscar) Nem estou em dia com o trabalho dos poetas contemporâneos. Quando leio versos, na maioria das vezes se trata dos meus favoritos da adolescência. Suspeito que minha ambivalência com relação a poesia, neste sentido restrito, seja o resultado de complicações edipianas produzidas por ter tido um poeta como pai (ver James Rorty, Children of the Sun (Macmillan, 1926).)
Como quer que tenha sido, agora gostaria que tivesse passado mais tempo da minha vida com versos. Isso não é porque tema ter perdido as verdades que são incapazes de serem a afirmadas em prosa. Não existem tais verdades; não existe nada sobre a morte que Swinburne e Landor soubessem, mas que Epicuro e Heidegger fracassaram em descobrir. Ao contrário, é porque teria vivido mais plenamente se tivesse sido capaz de recitar mais velhas castanhas – da mesma forma que também teria se tivesse tido mais amigos íntimos. Culturas com vocabulários mais ricos são mais plenamente humanas – mais distantes das bestas – do que as mais pobres; homens e mulheres individuais são mais completamente humanos quando suas memórias estão amplamente estocadas com versos.
Trad. Susana de Castro
O fogo da vida
Richard Rorty
Em um ensaio chamado “Pragmatismo e romantismo” tentei recolocar o argumento da “Defesa da poesia” de Shelley. No coração do romantismo, disse, estava a afirmação de que a razão só pode seguir os caminhos que a imaginação abriu primeiro. Sem palavras, não há raciocínio. Sem imaginação, não há palavras novas. Sem palavras novas, não há progresso moral ou intelectual.
Terminei este ensaio contrastando a habilidade do poeta de nos dar uma linguagem mais rica com a tentativa do filósofo de adquirir um acesso não-linguístico ao realmente real. O sonho de Platão por tal acesso foi ele mesmo uma grande descoberta poética. Mas no tempo de Shelley, argumentei, este sonho já havia se esgotado. Nós somos hoje mais capazes de reconhecer nossa finitude -- de admitir que jamais vamos entrar em contato com algo maior que nós mesmos. Esperamos, ao invés disso, que a vida humana aqui na terra se tornará mais rica do que nos séculos passados porque a linguagem usada por nossos remotos descendentes terá mais recursos do que a nossa tinha. Nosso vocabulário estará para os deles como os dos nossos ancestrais primitivos estavam para os nossos.
Nesses ensaios, como em escritos anteriores, usei ‘poesia’ em sentido largo. Expandi o termo de Harold Bloom ‘poeta forte’ para cobrir escritores de prosa que inventaram novos jogos de linguagem para jogarmos – pessoas como Platão, Newton, Marx, Darwin e Freud tanto quanto os versistas como Milton e Blake. Esses jogos podem envolver equações matemáticas, ou argumentos indutivos, ou narrativas dramáticas, ou (no caso dos versistas) inovação da prosódica. Mas a distinção entre prosa e verso era irrelevante para meus propósitos filosóficos.
Pouco depois de ter terminado de escrever “Pragmatismo e romantismo” fui diagnosticado com um câncer inoperável no pâncreas. Alguns meses depois de ter sido informado sobre as más notícias, estava sentado tomando café com meu filho mais velho e uma prima que estava me visitando. Minha prima (que é uma pastora da igreja batista) me perguntou se eu havia encontrado meus pensamentos se virando em direção a temas religiosos, e eu disse que não. “Bem, e quanto à filosofia?”, meu filho perguntou. “Não”, respondi, nem a filosofia que havia escrito nem a que havia lido pareci ter qualquer ligação com a minha situação. Não tinha nenhum problema com o argumento de Epicuro de que é irracional sentir medo da morte, nem com a sugestão de Heidegger de que a ontoteologia origina-se na tentativa de fugir da nossa mortalidade. Mas nem ataraxia (liberdade de perturbação) nem Sein zum Tode (ser em direção à morte) me pareciam ser o ponto principal.
“Nada do que tem lido tem sido de alguma utilidade?”, insistiu meu filho. “Sim”, me falei sem pensar, “poesia”. “Quais poemas?”, perguntou. Citei duas velhas castanhas que havia recentemente escavado da memória e que estranhamente estavam me encorajando, os versos mais citados do “Jardim de Proserpine” de Swinburn.
Agradecemos brevemente
A todos os deuses que há
Por não se viver para sempre;
Por jamais os mortos se erguerem;
Por chegar, por mais que volteie,
O rio sem dúvida ao mar.
We thank with brief thanksgiving
Whatever gods may be
That no life lives for ever;
That dead men rise up never;
That even the weariest river
Winds somewhere safe to sea.
e “Em seu aniversário de setenta e cinco anos” de Landor:
Natureza amei, e, próximo à natureza, arte;
Esquentei ambas as mãos diante do fogo da vida,
Ela afunda, e estou pronto para partir.
Nature I loved, and next to Nature, Art;
I warmed both hands before the fire of life,
It sinks, and I am ready to depart.
Encontrei conforto neste meandro lento e nestas brasas gaguejantes. Suspeito que nenhum efeito comparável poderia ser provocado pela prosa. Não apenas imagens, mas também rima e ritmo foram necessários para fazer o trabalho. Em linhas como essas, todos os três conspiram para produzir um grau de compressão, e assim de impacto, que apenas o verso pode alcançar. Comparada com as emoções moldadas tramadas pelos versistas, mesmo a melhor prosa é dispersa.
Apesar de diversos pedaços de verso terem tido grande significados para mim em momentos particulares da minha vida, jamais fui capaz de escrever algo pessoal (a não ser rascunhar sonetos durante reuniões departamentais entendiantes – uma maneira de rabiscar) Nem estou em dia com o trabalho dos poetas contemporâneos. Quando leio versos, na maioria das vezes se trata dos meus favoritos da adolescência. Suspeito que minha ambivalência com relação a poesia, neste sentido restrito, seja o resultado de complicações edipianas produzidas por ter tido um poeta como pai (ver James Rorty, Children of the Sun (Macmillan, 1926).)
Como quer que tenha sido, agora gostaria que tivesse passado mais tempo da minha vida com versos. Isso não é porque tema ter perdido as verdades que são incapazes de serem a afirmadas em prosa. Não existem tais verdades; não existe nada sobre a morte que Swinburne e Landor soubessem, mas que Epicuro e Heidegger fracassaram em descobrir. Ao contrário, é porque teria vivido mais plenamente se tivesse sido capaz de recitar mais velhas castanhas – da mesma forma que também teria se tivesse tido mais amigos íntimos. Culturas com vocabulários mais ricos são mais plenamente humanas – mais distantes das bestas – do que as mais pobres; homens e mulheres individuais são mais completamente humanos quando suas memórias estão amplamente estocadas com versos.
Trad. Susana de Castro
25.5.09
António Machado: "Al gran cero" / "Ao grão-zero"
.
Ao grão-zero
Quando o Ser que se é fez o nada
e repousou, que bem o merecia,
já teve o dia noite, e companhia
teve o homem na ausência da amada.
Fiat umbra! Brotou o pensar humano.
e o ovo universal alçou, vazio,
já sem cor, dessubstanciado e frio,
cheio de leve névoa em sua mão.
Toma o zero integral, a oca esfera
que hás de olhar, se o hás de ver, erguido.
Hoje, que está ereto o lombo de tua fera
e está o milagre do não-ser cumprido,
brinda, poeta, um canto de fronteira
à morte, ao silêncio e ao olvido.
Al gran cero
Cuando el Ser que se es hizo la nada
y reposó, que bien lo merecía,
ya tuvo el día noche, y compañía
tuvo el hombre en la ausencia de la amada.
¡Fiat umbra! Brotó el pensar humano.
Y el huevo universal alzó, vacío,
ya sin color, desustanciado y frío,
lleno de niebla ingrávida, en su mano.
Toma el cero integral, la hueca esfera
que has de mirar, si lo has de ver, erguido.
Hoy que es espalda el lomo de tu fiera,
y es el milagro del no ser cumplido,
brinda, poeta, un canto de frontera
a la muerte, al silencio y al olvido.
MACHADO, António. In: Obras: poesía y prosa. Buenos Aires: Losada, 1973.
Ao grão-zero
Quando o Ser que se é fez o nada
e repousou, que bem o merecia,
já teve o dia noite, e companhia
teve o homem na ausência da amada.
Fiat umbra! Brotou o pensar humano.
e o ovo universal alçou, vazio,
já sem cor, dessubstanciado e frio,
cheio de leve névoa em sua mão.
Toma o zero integral, a oca esfera
que hás de olhar, se o hás de ver, erguido.
Hoje, que está ereto o lombo de tua fera
e está o milagre do não-ser cumprido,
brinda, poeta, um canto de fronteira
à morte, ao silêncio e ao olvido.
Al gran cero
Cuando el Ser que se es hizo la nada
y reposó, que bien lo merecía,
ya tuvo el día noche, y compañía
tuvo el hombre en la ausencia de la amada.
¡Fiat umbra! Brotó el pensar humano.
Y el huevo universal alzó, vacío,
ya sin color, desustanciado y frío,
lleno de niebla ingrávida, en su mano.
Toma el cero integral, la hueca esfera
que has de mirar, si lo has de ver, erguido.
Hoy que es espalda el lomo de tu fiera,
y es el milagro del no ser cumplido,
brinda, poeta, un canto de frontera
a la muerte, al silencio y al olvido.
MACHADO, António. In: Obras: poesía y prosa. Buenos Aires: Losada, 1973.
23.5.09
Jorge Salomão: "Epigrama 2"
.
EPIGRAMA 2
(Inédito. Dedicado a ninguém)
das folhas, o sumo
do sexo , o gozo
do chão, fragmentos
.
EPIGRAMA 2
(Inédito. Dedicado a ninguém)
das folhas, o sumo
do sexo , o gozo
do chão, fragmentos
.
Fernando Gabeira: "Alerta para um grande equívoco"
O seguinte artigo foi publicado na Folha de São Paulo no dia 20 de maio:
Alerta para um grande equívoco
FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA
DE UM LADO , um intelectual brasileiro que já dirige o organismo e conta com a promessa de apoio de 20 países; de outro lado, um ministro da Cultura do Egito, Farouk Hosny, que prometeu queimar livros em hebraico.
Em jogo, a direção da Unesco, órgão voltado à cultura, ao diálogo e à tolerância. O governo brasileiro decidiu apoiar a candidatura do egípcio, contra todas as advertências.
O chanceler Celso Amorim argumenta que é uma decisão baseada na geopolítica, um desejo de aproximação com o bloco árabe e africano.
É razoável que o governo desconfie de alguém da oposição que procure evitar seus erros. Mas nesse caso específico, a ideia é apenas evitar descaminho em nossa política externa, comprometendo a reputação brasileira. Uma política externa deve ser pactuada e confirmada nas eleições. Esta inflexão brasileira, ora convidando ao país o presidente do Irã, que nega o Holocausto, ora apoiando um ministro egípcio que admite queimar os livros em hebraico, quebra a linha tradicional de nossa política.
Não se trata apenas do confronto entre o brasileiro e o egípcio. Trata-se do confronto entre um brasileiro, Márcio Barbosa, que reformou a Unesco, comandou três convenções internacionais e é admirado por países ricos e pobres, e um homem que é, há 20 anos, ministro da Cultura em seu país e tem oposição até entre os egípcios, que fazem campanha na internet contra sua candidatura.
O governo tem inúmeras formas de corrigir sua decisão.
Mas caso não o faça, é razoável que surja no Brasil um movimento pela candidatura de Márcio Barbosa. Se o país oficial distancia-se de sua política, o caminho é reconduzi-lo pela pressão social.
Reconheço que o tema desperta interesse limitado, mobilizando, no momento, alguns círculos culturais e a comunidade judaica. O espaço não permite um debate específico sobre o conceito de geopolítica, suas limitações e virtudes. Não há geopolítica que justifique um erro dessa dimensão. Ao invés de fortalecer a Unesco, através de um brasileiro que a engrandeceu nos últimos anos, o Brasil escolheu o caminho mais difícil que não só atinge Israel mas também os países que apoiam Márcio Barbosa. É um caminho que afastará os Estados Unidos da instituição, estimulando a tendência de não cooperar com a Unesco.
O presidente Lula foi um dos primeiros signatários de um movimento internacional, a partir da ONU, contra a intolerância. Seu governo orgulha-se de apoiar minorias. O ministro egípcio Farouk Hosny está em visita ao Brasil para um congresso internacional. Dentro das limitações, uma vez que o tema não é popular, não tenho outro caminho a não ser mostrar a ele que uma parte do Parlamento brasileiro não concorda com a posição oficial. A candidatura de um brasileiro não é melhor porque nasceu aqui: é melhor porque conhece todos os meandros da Unesco e, através de competência, conseguiu a simpatia de muitos países. E, finalmente, porque jamais admitiria a queima de livros em hebraico ou mesmo a queima de livros em qualquer outro idioma.
Alerta para um grande equívoco
FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA
DE UM LADO , um intelectual brasileiro que já dirige o organismo e conta com a promessa de apoio de 20 países; de outro lado, um ministro da Cultura do Egito, Farouk Hosny, que prometeu queimar livros em hebraico.
Em jogo, a direção da Unesco, órgão voltado à cultura, ao diálogo e à tolerância. O governo brasileiro decidiu apoiar a candidatura do egípcio, contra todas as advertências.
O chanceler Celso Amorim argumenta que é uma decisão baseada na geopolítica, um desejo de aproximação com o bloco árabe e africano.
É razoável que o governo desconfie de alguém da oposição que procure evitar seus erros. Mas nesse caso específico, a ideia é apenas evitar descaminho em nossa política externa, comprometendo a reputação brasileira. Uma política externa deve ser pactuada e confirmada nas eleições. Esta inflexão brasileira, ora convidando ao país o presidente do Irã, que nega o Holocausto, ora apoiando um ministro egípcio que admite queimar os livros em hebraico, quebra a linha tradicional de nossa política.
Não se trata apenas do confronto entre o brasileiro e o egípcio. Trata-se do confronto entre um brasileiro, Márcio Barbosa, que reformou a Unesco, comandou três convenções internacionais e é admirado por países ricos e pobres, e um homem que é, há 20 anos, ministro da Cultura em seu país e tem oposição até entre os egípcios, que fazem campanha na internet contra sua candidatura.
O governo tem inúmeras formas de corrigir sua decisão.
Mas caso não o faça, é razoável que surja no Brasil um movimento pela candidatura de Márcio Barbosa. Se o país oficial distancia-se de sua política, o caminho é reconduzi-lo pela pressão social.
Reconheço que o tema desperta interesse limitado, mobilizando, no momento, alguns círculos culturais e a comunidade judaica. O espaço não permite um debate específico sobre o conceito de geopolítica, suas limitações e virtudes. Não há geopolítica que justifique um erro dessa dimensão. Ao invés de fortalecer a Unesco, através de um brasileiro que a engrandeceu nos últimos anos, o Brasil escolheu o caminho mais difícil que não só atinge Israel mas também os países que apoiam Márcio Barbosa. É um caminho que afastará os Estados Unidos da instituição, estimulando a tendência de não cooperar com a Unesco.
O presidente Lula foi um dos primeiros signatários de um movimento internacional, a partir da ONU, contra a intolerância. Seu governo orgulha-se de apoiar minorias. O ministro egípcio Farouk Hosny está em visita ao Brasil para um congresso internacional. Dentro das limitações, uma vez que o tema não é popular, não tenho outro caminho a não ser mostrar a ele que uma parte do Parlamento brasileiro não concorda com a posição oficial. A candidatura de um brasileiro não é melhor porque nasceu aqui: é melhor porque conhece todos os meandros da Unesco e, através de competência, conseguiu a simpatia de muitos países. E, finalmente, porque jamais admitiria a queima de livros em hebraico ou mesmo a queima de livros em qualquer outro idioma.
Folha de São Paulo: "Mais uma do Itamaraty"
Concordo com o seguinte editorial da Folha de São Paulo, de 21 de maio:
Mais uma do Itamaraty
É OBSCURA e desastrada a decisão do governo brasileiro de apoiar a candidatura do ministro da Cultura do Egito, Farouk Hosny, à direção geral da Unesco. As dúvidas que cercam o episódio não se restringem ao fato de um brasileiro, Márcio Barbosa, ter surgido como potencial candidato ao cargo, ele que há oito anos ocupa a função de adjunto de Koitchiro Matsuura, atual diretor daquela organização da ONU, voltada para a ciência, a cultura e a educação.
Há vozes de peso favoráveis a Barbosa, embora o Ministério das Relações Exteriores possa julgar que as credenciais do brasileiro e seu alcance político não bastem para justificar uma candidatura. Com base em tal convicção, o Itamaraty poderia escolher um caminho mais apropriado para os interesses do país.
O problema é que nada na candidatura de Hosny preenche esse requisito. Trata-se de personagem polêmico, acusado de antissemitismo. Em entrevista à Folha, relativizou suas declarações sobre queimar livros em hebraico – mas é forte a rejeição a seu nome na comunidade judaica, o que o faz um postulante por demais controvertido.
Nos últimos tempos, o governo brasileiro tem assumido posições injustificáveis. Recusou-se a condenar o odioso regime sudanês e foi pusilânime na hora de repudiar o lastimável discurso do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, na recente Conferência contra o Racismo das Nações Unidas.
Uma hipótese para o apoio a Hosny seria obter votos para a indicação do chanceler Celso Amorim à Agência Internacional de Energia Atômica – ideia que para alguns analistas já teria perdido ímpeto. Diante de tanta incongruência, é preciso que as autoridades esclareçam, enfim, por que o Brasil deve endossar essa confusa candidatura egípcia.
Mais uma do Itamaraty
É OBSCURA e desastrada a decisão do governo brasileiro de apoiar a candidatura do ministro da Cultura do Egito, Farouk Hosny, à direção geral da Unesco. As dúvidas que cercam o episódio não se restringem ao fato de um brasileiro, Márcio Barbosa, ter surgido como potencial candidato ao cargo, ele que há oito anos ocupa a função de adjunto de Koitchiro Matsuura, atual diretor daquela organização da ONU, voltada para a ciência, a cultura e a educação.
Há vozes de peso favoráveis a Barbosa, embora o Ministério das Relações Exteriores possa julgar que as credenciais do brasileiro e seu alcance político não bastem para justificar uma candidatura. Com base em tal convicção, o Itamaraty poderia escolher um caminho mais apropriado para os interesses do país.
O problema é que nada na candidatura de Hosny preenche esse requisito. Trata-se de personagem polêmico, acusado de antissemitismo. Em entrevista à Folha, relativizou suas declarações sobre queimar livros em hebraico – mas é forte a rejeição a seu nome na comunidade judaica, o que o faz um postulante por demais controvertido.
Nos últimos tempos, o governo brasileiro tem assumido posições injustificáveis. Recusou-se a condenar o odioso regime sudanês e foi pusilânime na hora de repudiar o lastimável discurso do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, na recente Conferência contra o Racismo das Nações Unidas.
Uma hipótese para o apoio a Hosny seria obter votos para a indicação do chanceler Celso Amorim à Agência Internacional de Energia Atômica – ideia que para alguns analistas já teria perdido ímpeto. Diante de tanta incongruência, é preciso que as autoridades esclareçam, enfim, por que o Brasil deve endossar essa confusa candidatura egípcia.
21.5.09
Cesário Verde: "Heroísmos"
.
Heroísmos
Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.
Eu temo o largo mar rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.
Contudo, num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e n'água quase assente,
E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!
De: VERDE, Cesário. O livro de Cesário Verde. Edição revista por Cabral do Nascimento. Lisboa: Minerva, s.d.
Heroísmos
Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.
Eu temo o largo mar rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.
Contudo, num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e n'água quase assente,
E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!
De: VERDE, Cesário. O livro de Cesário Verde. Edição revista por Cabral do Nascimento. Lisboa: Minerva, s.d.
19.5.09
Caetano Veloso: da entrevista à revista Cult
.
Na brilhante entrevista que Caetano Veloso deu a Francisco Bosco e Eduardo Socha para a revista Cult deste mês (nº 135), tive a honra de ser por ele citado em duas respostas. Infelizmente, justamente as referências a mim foram extirpadas da revista impressa. Quem quiser ler a entrevista integral, porém, pode acessá-la no blog da Cult, no endereço http://revistacult.uol.com.br/novo/site.asp?edtCode=3D614E12-495C-4018-A889-F15078DFB1B3&nwsCode=F27D566B-61CE-4A18-9578-7096A463C87C.
Abaixo publico apenas as respostas que contêm as referências cortadas.
CULT - Um dos filósofos mais debatidos no mundo, hoje, é Slavoj Zizek, a respeito do qual você disse, em seu blog: "não penso como Zizek mesmo!". Você poderia explicar em que consiste essa divergência exclamativa?
Caetano - Talvez a exclamação se devesse ao contexto da discussão daquele momento. Zizek é pop. Ele também é um intelecto superexcitado e tem erudição em várias áreas. Ampara-se em Hegel e Lacan para louvar Matrix, filme que, para mim, é um abacaxi de caroço. Ele gosta desses esquemas que dizem que somos sempre manipulados. Quanto mais claro pensamos, mais presos estamos a ideologias que camuflam interesses. Mas eu fico com Antonio Cicero quando lembra Hanna Arendt a esse respeito. Zizek tem o charme de falar no que a esquerda em geral evita mencionar: ele prefere ter algo positivo a dizer sobre as paradas fascistas da Coréia do Norte do que fingir que não as vê. Eu li Bem vindo ao deserto do real, um livro curto, e In defense of lost causes, um grosso volume. Ele convoca Robespierre, Lênin e Mao e exalta a revolução violenta. No fim, ele elege a causa ecológica como a escolha certa da esquerda para exercer o terror.
Eu tinha lido um artigo de Nelson Ascher na Folha predizendo isso. Na altura, achei o artigo de Ascher reacionário e algo simplista. Ao ler a conclusão de In Defense of Lost Causes, achei que Ascher tinha razão. Para Zizek, toda crítica à liberdade de expressão nos países comunistas é mera tramóia liberal burguesa. Além disso, ele grila com o café descafeinado. Qual o problema? Café não é cafeína. Nesse caso, ele faz uso indevido das palavras. Bem, além desses dois livros, li artigos esparsos e vi dois documentários americanos sobre ele (lá nos States, passa no cinema e tudo: ele é uma estrela). Num, segue-se uma turnê de palestras. No outro, vê-se Zizek comentando filmes. Assisti à palestra dele na UFRJ. Ele é um cara enérgico, engraçado, sua muito e pronuncia todas as letras das palavras inglesas - com a adição de um cicio. Resulta simpático. Achei irresponsável ele dizer aquelas coisas a um bando de jovens brasileiros. Mas acho que a exclamação no meu comentário se deve a ele ter falado mal do carnaval.
Só preciso te dizer que leio sempre, mas sempre muito sem método ou mesmo critério. Por exemplo, comprei Coração das trevas no aeroporto, em dezembro, indo para Salvador. Ao chegar lá, comentei com Paulo César Sousa a qualidade da tradução de Sérgio Flaksman. Paulo então me disse que acabara de ler um romance estranhíssimo de Conrad, chamado Under western eyes - e me trouxe o exemplar. É um livro incrível, em que Conrad conta uma história que prende o leitor como Crime e Castigo e onde ele mostra que a autocracia russa, marca do Csarismo, estava presente no espírito dos revolucionários russos que se refugiavam na Suíça. E prediz o estilo autocrático que sairá de uma revolução feita por eles. O romance é de 1908, creio. Estava impressionado com isso, quando uma amiga americana me trouxe de Nova Iorque um exemplar de The Nigger of The Narcissus (ela e eu tínhamos uma discussão sobre o problema da palavra "nigger" no país dela) e Tuzé Abreu, me ouvindo falar de três livros de Conrad me trouxe Lord Jim e Linha de sombra. Passei grande parte do verão lendo Conrad, coisa que não planejei, nem sequer imaginei que fosse fazer. Paulo ainda me deu um livro chamado The Great Tradition, um estudo crítico da ficção inglesa, em que Conrad aparece ao lado de George Elliot e Henry James como os seus maiores representantes. Aí li com atenção especial a parte sobre Conrad. É assim, minhas leituras são definidas pelo acaso. Agora estou lendo The Pirate's Dilemma, um livro otimista sobre internet, pirataria e desrespeito aos direitos autorais. Então, minhas opiniões sobre cultura livresca devem ser tomadas com um grão de sal.
[...]
CULT - Se fosse preciso (você pode recusar tal necessidade), como você se definiria politicamente? De esquerda, de direita, de centro, social-democrata, liberal?
Caetano - Nessa hora eu adoraria ser americano: nos EUA "liberal" quer dizer "de esquerda". Eu estaria unido a palavras que produzem bem-estar. Aqui tenho de me contorcer e dizer que sou de uma esquerda transliberal. Digo também que sou de centro mas não estou em cima do muro: estou muito acima do muro. Mas isso tudo é fanfarronice de artista.
Eu aplico o termo "direita" a conservadores reacionários. Todo o pessoal de esquerda gosta de citar Alain dizendo que se alguém diz que não há tal divisão "direita e esquerda", esse alguém é de direita. A observação é aguda e engraçada. Mas pode servir justamente a propósitos conservadores. Volto a Antonio Cicero: há uma reação à modernidade que se organiza em áreas do que chamamos direita e em áreas do que chamamos esquerda, hoje. Concordo com ele que desqualificar os direitos individuais, os direitos humanos propriamente ditos, é uma manobra conservadora profunda - que você pode encontrar tanto em Olavo de Carvalho quanto em Slavoj Zizek. Tanto no cardeal que excomunga os médicos que fizeram o aborto da menina estuprada pelo padrasto quanto no dirigente comunista que nega o direito de ir e vir dos cidadãos do seu país. Ou o direito de crítica. Cicero não é bobo de pensar que todos os sofisticados da academia não pensam que ele simplesmente quer limpar o terreno de toda a riqueza conceitual que vem desde Heidegger e Wittgestein, passando pelos frankfurtianos, até os pós-estruturalistas, para voltar - num movimento de contravanguarda filosófica - ao racionalismo vulgar dos iluministas. Cicero sabe que enfrenta essa questão com bravura.
Para ser sincero, com meu espírito místico e meus instintos de vanguarda, não sinto as coisas como ele sente. Além de ser muito ignorante para de fato entrar no debate. Mas não dá para seguir em frente repetindo Adorno ou ecoando Deleuze sem responder as questões que Cícero põe. Ele vem de um marxismo estruturalista (Althusser) e reencontra o melhor do liberalismo inglês e do racionalismo francês porque pensou mais do que os que apenas se ilustraram ou mesmo se refinaram muito. Ou seja: para se ir adiante tem-se que superar a crítica que ele faz. Eu o encontro em meu realismo radical, em minha paixão pela lucidez e pela justiça. Somos amigos e ele também é artista (na verdade, poeta), mas se eu encontrasse O mundo desde o fim por acaso, e não conhecesse o autor, eu ficaria tomado. Eu considero minhas confusões e a limpidez do pensamento de Cicero à esquerda de todas as formas de negação da modernidade. Digam-me que uma razão unívoca não pode dar conta dos nós da superpopulação (sou louco pelo Lévy-Strauss de Tristes Trópicos - e adorei ler hoje que Euclides da Cunha profetizou com grande clarividência os problemas ecológicos que enfrentamos), dos enigmas da mecânica quântica, do mistério complexo das culturas. De acordo. Mas não usem esse espantalho para desenterrar formas já testadas e já rejeitadas. Pode ser que haja um grande retrocesso na civilização. Mas ele não terá em mim um de seus arautos.
Na brilhante entrevista que Caetano Veloso deu a Francisco Bosco e Eduardo Socha para a revista Cult deste mês (nº 135), tive a honra de ser por ele citado em duas respostas. Infelizmente, justamente as referências a mim foram extirpadas da revista impressa. Quem quiser ler a entrevista integral, porém, pode acessá-la no blog da Cult, no endereço http://revistacult.uol.com.br/novo/site.asp?edtCode=3D614E12-495C-4018-A889-F15078DFB1B3&nwsCode=F27D566B-61CE-4A18-9578-7096A463C87C.
Abaixo publico apenas as respostas que contêm as referências cortadas.
CULT - Um dos filósofos mais debatidos no mundo, hoje, é Slavoj Zizek, a respeito do qual você disse, em seu blog: "não penso como Zizek mesmo!". Você poderia explicar em que consiste essa divergência exclamativa?
Caetano - Talvez a exclamação se devesse ao contexto da discussão daquele momento. Zizek é pop. Ele também é um intelecto superexcitado e tem erudição em várias áreas. Ampara-se em Hegel e Lacan para louvar Matrix, filme que, para mim, é um abacaxi de caroço. Ele gosta desses esquemas que dizem que somos sempre manipulados. Quanto mais claro pensamos, mais presos estamos a ideologias que camuflam interesses. Mas eu fico com Antonio Cicero quando lembra Hanna Arendt a esse respeito. Zizek tem o charme de falar no que a esquerda em geral evita mencionar: ele prefere ter algo positivo a dizer sobre as paradas fascistas da Coréia do Norte do que fingir que não as vê. Eu li Bem vindo ao deserto do real, um livro curto, e In defense of lost causes, um grosso volume. Ele convoca Robespierre, Lênin e Mao e exalta a revolução violenta. No fim, ele elege a causa ecológica como a escolha certa da esquerda para exercer o terror.
Eu tinha lido um artigo de Nelson Ascher na Folha predizendo isso. Na altura, achei o artigo de Ascher reacionário e algo simplista. Ao ler a conclusão de In Defense of Lost Causes, achei que Ascher tinha razão. Para Zizek, toda crítica à liberdade de expressão nos países comunistas é mera tramóia liberal burguesa. Além disso, ele grila com o café descafeinado. Qual o problema? Café não é cafeína. Nesse caso, ele faz uso indevido das palavras. Bem, além desses dois livros, li artigos esparsos e vi dois documentários americanos sobre ele (lá nos States, passa no cinema e tudo: ele é uma estrela). Num, segue-se uma turnê de palestras. No outro, vê-se Zizek comentando filmes. Assisti à palestra dele na UFRJ. Ele é um cara enérgico, engraçado, sua muito e pronuncia todas as letras das palavras inglesas - com a adição de um cicio. Resulta simpático. Achei irresponsável ele dizer aquelas coisas a um bando de jovens brasileiros. Mas acho que a exclamação no meu comentário se deve a ele ter falado mal do carnaval.
Só preciso te dizer que leio sempre, mas sempre muito sem método ou mesmo critério. Por exemplo, comprei Coração das trevas no aeroporto, em dezembro, indo para Salvador. Ao chegar lá, comentei com Paulo César Sousa a qualidade da tradução de Sérgio Flaksman. Paulo então me disse que acabara de ler um romance estranhíssimo de Conrad, chamado Under western eyes - e me trouxe o exemplar. É um livro incrível, em que Conrad conta uma história que prende o leitor como Crime e Castigo e onde ele mostra que a autocracia russa, marca do Csarismo, estava presente no espírito dos revolucionários russos que se refugiavam na Suíça. E prediz o estilo autocrático que sairá de uma revolução feita por eles. O romance é de 1908, creio. Estava impressionado com isso, quando uma amiga americana me trouxe de Nova Iorque um exemplar de The Nigger of The Narcissus (ela e eu tínhamos uma discussão sobre o problema da palavra "nigger" no país dela) e Tuzé Abreu, me ouvindo falar de três livros de Conrad me trouxe Lord Jim e Linha de sombra. Passei grande parte do verão lendo Conrad, coisa que não planejei, nem sequer imaginei que fosse fazer. Paulo ainda me deu um livro chamado The Great Tradition, um estudo crítico da ficção inglesa, em que Conrad aparece ao lado de George Elliot e Henry James como os seus maiores representantes. Aí li com atenção especial a parte sobre Conrad. É assim, minhas leituras são definidas pelo acaso. Agora estou lendo The Pirate's Dilemma, um livro otimista sobre internet, pirataria e desrespeito aos direitos autorais. Então, minhas opiniões sobre cultura livresca devem ser tomadas com um grão de sal.
[...]
CULT - Se fosse preciso (você pode recusar tal necessidade), como você se definiria politicamente? De esquerda, de direita, de centro, social-democrata, liberal?
Caetano - Nessa hora eu adoraria ser americano: nos EUA "liberal" quer dizer "de esquerda". Eu estaria unido a palavras que produzem bem-estar. Aqui tenho de me contorcer e dizer que sou de uma esquerda transliberal. Digo também que sou de centro mas não estou em cima do muro: estou muito acima do muro. Mas isso tudo é fanfarronice de artista.
Eu aplico o termo "direita" a conservadores reacionários. Todo o pessoal de esquerda gosta de citar Alain dizendo que se alguém diz que não há tal divisão "direita e esquerda", esse alguém é de direita. A observação é aguda e engraçada. Mas pode servir justamente a propósitos conservadores. Volto a Antonio Cicero: há uma reação à modernidade que se organiza em áreas do que chamamos direita e em áreas do que chamamos esquerda, hoje. Concordo com ele que desqualificar os direitos individuais, os direitos humanos propriamente ditos, é uma manobra conservadora profunda - que você pode encontrar tanto em Olavo de Carvalho quanto em Slavoj Zizek. Tanto no cardeal que excomunga os médicos que fizeram o aborto da menina estuprada pelo padrasto quanto no dirigente comunista que nega o direito de ir e vir dos cidadãos do seu país. Ou o direito de crítica. Cicero não é bobo de pensar que todos os sofisticados da academia não pensam que ele simplesmente quer limpar o terreno de toda a riqueza conceitual que vem desde Heidegger e Wittgestein, passando pelos frankfurtianos, até os pós-estruturalistas, para voltar - num movimento de contravanguarda filosófica - ao racionalismo vulgar dos iluministas. Cicero sabe que enfrenta essa questão com bravura.
Para ser sincero, com meu espírito místico e meus instintos de vanguarda, não sinto as coisas como ele sente. Além de ser muito ignorante para de fato entrar no debate. Mas não dá para seguir em frente repetindo Adorno ou ecoando Deleuze sem responder as questões que Cícero põe. Ele vem de um marxismo estruturalista (Althusser) e reencontra o melhor do liberalismo inglês e do racionalismo francês porque pensou mais do que os que apenas se ilustraram ou mesmo se refinaram muito. Ou seja: para se ir adiante tem-se que superar a crítica que ele faz. Eu o encontro em meu realismo radical, em minha paixão pela lucidez e pela justiça. Somos amigos e ele também é artista (na verdade, poeta), mas se eu encontrasse O mundo desde o fim por acaso, e não conhecesse o autor, eu ficaria tomado. Eu considero minhas confusões e a limpidez do pensamento de Cicero à esquerda de todas as formas de negação da modernidade. Digam-me que uma razão unívoca não pode dar conta dos nós da superpopulação (sou louco pelo Lévy-Strauss de Tristes Trópicos - e adorei ler hoje que Euclides da Cunha profetizou com grande clarividência os problemas ecológicos que enfrentamos), dos enigmas da mecânica quântica, do mistério complexo das culturas. De acordo. Mas não usem esse espantalho para desenterrar formas já testadas e já rejeitadas. Pode ser que haja um grande retrocesso na civilização. Mas ele não terá em mim um de seus arautos.
18.5.09
Horácio: Ode I.11
.
Não interrogues, não é lícito saber a mim ou a ti
que fim os deuses darão, Leucônoe. Nem tentes
os cálculos babilônicos. Antes aceitar o que for,
quer muitos invernos nos conceda Júpiter, quer este último
apenas, que ora despedaça o mar Tirreno contra as pedras
vulcânicas. Sábia, decanta os vinhos, e para um breve espaço de tempo
poda a esperança longa. Enquanto conversamos terá fugido despeitada
a hora: colhe o dia, minimamente crédula no porvir.
Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, vina liques, et spatio brevi
spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.
Não interrogues, não é lícito saber a mim ou a ti
que fim os deuses darão, Leucônoe. Nem tentes
os cálculos babilônicos. Antes aceitar o que for,
quer muitos invernos nos conceda Júpiter, quer este último
apenas, que ora despedaça o mar Tirreno contra as pedras
vulcânicas. Sábia, decanta os vinhos, e para um breve espaço de tempo
poda a esperança longa. Enquanto conversamos terá fugido despeitada
a hora: colhe o dia, minimamente crédula no porvir.
Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, vina liques, et spatio brevi
spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.
17.5.09
Os perigos da espontaneidade
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 16 de maio.
Os perigos da espontaneidade
TANTO O poeta francês Paul Valéry quanto o nosso João Cabral de Melo Neto, que costumava citar o primeiro, desconfiavam de que tudo o que lhes chegasse espontaneamente, à maneira de inspiração, era eco de alguma coisa que houvessem lido, ouvido ou percebido de alguma maneira. Por isso, só confiavam no que resultasse de um trabalho rigoroso, que eliminasse tudo o que fosse alheio.
Concordo com isso. Na verdade, acho que há, sem dúvida, no próprio João Cabral, algo que não vem do trabalho e que poderia ser chamado de "inspiração". Entretanto, parece-me que ela ocorre principalmente durante o próprio trabalho, que, pondo o poeta ante problemas imprevisíveis, exige dele uma extraordinária abertura e receptividade para o aproveitamento criativo daquilo que o acaso, o inconsciente, o inesperado, enfim, oferecem. Como diz Heráclito, "aquele que não espera o inesperado não o encontra".
De todo modo, há poucos dias uma experiência me confirmou o fato de que muito do que nos vem espontaneamente não passa de eco. Ao escrever um verbete intitulado "Verso" para a revista "Serrote", falei, em determinado momento, do recurso poético chamado "enjambement" ou "cavalgamento" (a palavra francesa é tão mais usada entre nós do que a portuguesa que acabo de notar que meu corretor ortográfico marca esta como errada, e não aquela). Trata-se, como bem o define o "Aurélio", do "processo poético de pôr no verso seguinte uma ou mais palavras que completem o sentido do verso anterior". O exemplo aureliano são os belos versos de Camões:
Debaixo dos pés duros dos ardentes
Cavalos treme a terra, os vales soam.
Os poetas modernos usam mais o enjambement do que os clássicos. De fato, com o verso livre, a importância expressiva do enjambement aumentou. Querendo dar um exemplo disso, lembrei logo de alguns versos de um livro que iluminou minha adolescência, "A Rosa do Povo", de Carlos Drummond de Andrade, mestre absoluto do enjambement. Do poema "Consideração do Poema", por exemplo, lembrei dos seguintes:
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakóvski.
O final do verso exige uma pausa na apreensão do poema pelo leitor. O primeiro verso parece conter um pensamento completo. Entretanto, o enjambement faz com que a sentença, não coincidindo com o verso, termine no verso seguinte: "chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakóvski".
Nesse poema, Drummond pretende estar sem-cerimoniosamente a pedir, aos poetas que admira, elementos com os quais compor seus próprios poemas. A Neruda ele pede a gravata. Ocorre que a gravata, fazendo um laço em torno do pescoço de quem a usa, é um item formal e convencional do vestuário masculino. Assim, metaforicamente, a gravata seria uma forma convencional que tornaria o poema um tanto preso, mas "composto", no sentido de socialmente aceitável. Uma forma fixa às vezes não passa disso. Contudo, a palavra "chamejante", do verso seguinte, muda tudo. Uma gravata chamejante já é o oposto de uma convenção: trata-se da convenção em chamas, e lembra a gravata amarela, usada provocativamente pelo poeta revolucionário Maiakóvski, cujo nome é a última palavra do verso.
Esse exemplo era bom, mas uma inspiração súbita, como uma lufada de ar, trouxe-me à mente outro, ainda melhor. Refiro aos versos de "A Flor e a Náusea" que dizem:
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Aqui, evidentemente, enquanto o primeiro verso diz algo que parece motivo de felicidade, o segundo nos faz cair na realidade, transfigurando o sentido do primeiro verso para uma espécie de sonho passageiro. Esse efeito poético do enjambement não poderia ser obtido em prosa.
Incluí esse exemplo no verbete e me dei por satisfeito. Tinha sido um grande achado. Pois bem, ontem, tentando pôr em ordem os papéis que imprimo diariamente, seja de textos meus, seja de outros, tomei um susto quando me deparei com uma página de um artigo que eu havia recebido por e-mail no ano passado, em que exatamente esses dois versos eram citados como exemplo de enjambement.
Trata-se do ensaio "Do Começo ao Fim do Poema", do poeta Alberto Pucheu. Na época, eu não tinha tido tempo de o ler de cabo a rabo, de modo que o guardara para depois. Mas aquilo era coincidência demais. Com certeza eu tinha passado os olhos por aquele exemplo de enjambement e ele me ficara na cabeça. E mais uma vez me dei conta de como Cabral e Valéry tinham razão de desconfiar de tudo o que chega espontaneamente.
Os perigos da espontaneidade
TANTO O poeta francês Paul Valéry quanto o nosso João Cabral de Melo Neto, que costumava citar o primeiro, desconfiavam de que tudo o que lhes chegasse espontaneamente, à maneira de inspiração, era eco de alguma coisa que houvessem lido, ouvido ou percebido de alguma maneira. Por isso, só confiavam no que resultasse de um trabalho rigoroso, que eliminasse tudo o que fosse alheio.
Concordo com isso. Na verdade, acho que há, sem dúvida, no próprio João Cabral, algo que não vem do trabalho e que poderia ser chamado de "inspiração". Entretanto, parece-me que ela ocorre principalmente durante o próprio trabalho, que, pondo o poeta ante problemas imprevisíveis, exige dele uma extraordinária abertura e receptividade para o aproveitamento criativo daquilo que o acaso, o inconsciente, o inesperado, enfim, oferecem. Como diz Heráclito, "aquele que não espera o inesperado não o encontra".
De todo modo, há poucos dias uma experiência me confirmou o fato de que muito do que nos vem espontaneamente não passa de eco. Ao escrever um verbete intitulado "Verso" para a revista "Serrote", falei, em determinado momento, do recurso poético chamado "enjambement" ou "cavalgamento" (a palavra francesa é tão mais usada entre nós do que a portuguesa que acabo de notar que meu corretor ortográfico marca esta como errada, e não aquela). Trata-se, como bem o define o "Aurélio", do "processo poético de pôr no verso seguinte uma ou mais palavras que completem o sentido do verso anterior". O exemplo aureliano são os belos versos de Camões:
Debaixo dos pés duros dos ardentes
Cavalos treme a terra, os vales soam.
Os poetas modernos usam mais o enjambement do que os clássicos. De fato, com o verso livre, a importância expressiva do enjambement aumentou. Querendo dar um exemplo disso, lembrei logo de alguns versos de um livro que iluminou minha adolescência, "A Rosa do Povo", de Carlos Drummond de Andrade, mestre absoluto do enjambement. Do poema "Consideração do Poema", por exemplo, lembrei dos seguintes:
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakóvski.
O final do verso exige uma pausa na apreensão do poema pelo leitor. O primeiro verso parece conter um pensamento completo. Entretanto, o enjambement faz com que a sentença, não coincidindo com o verso, termine no verso seguinte: "chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakóvski".
Nesse poema, Drummond pretende estar sem-cerimoniosamente a pedir, aos poetas que admira, elementos com os quais compor seus próprios poemas. A Neruda ele pede a gravata. Ocorre que a gravata, fazendo um laço em torno do pescoço de quem a usa, é um item formal e convencional do vestuário masculino. Assim, metaforicamente, a gravata seria uma forma convencional que tornaria o poema um tanto preso, mas "composto", no sentido de socialmente aceitável. Uma forma fixa às vezes não passa disso. Contudo, a palavra "chamejante", do verso seguinte, muda tudo. Uma gravata chamejante já é o oposto de uma convenção: trata-se da convenção em chamas, e lembra a gravata amarela, usada provocativamente pelo poeta revolucionário Maiakóvski, cujo nome é a última palavra do verso.
Esse exemplo era bom, mas uma inspiração súbita, como uma lufada de ar, trouxe-me à mente outro, ainda melhor. Refiro aos versos de "A Flor e a Náusea" que dizem:
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Aqui, evidentemente, enquanto o primeiro verso diz algo que parece motivo de felicidade, o segundo nos faz cair na realidade, transfigurando o sentido do primeiro verso para uma espécie de sonho passageiro. Esse efeito poético do enjambement não poderia ser obtido em prosa.
Incluí esse exemplo no verbete e me dei por satisfeito. Tinha sido um grande achado. Pois bem, ontem, tentando pôr em ordem os papéis que imprimo diariamente, seja de textos meus, seja de outros, tomei um susto quando me deparei com uma página de um artigo que eu havia recebido por e-mail no ano passado, em que exatamente esses dois versos eram citados como exemplo de enjambement.
Trata-se do ensaio "Do Começo ao Fim do Poema", do poeta Alberto Pucheu. Na época, eu não tinha tido tempo de o ler de cabo a rabo, de modo que o guardara para depois. Mas aquilo era coincidência demais. Com certeza eu tinha passado os olhos por aquele exemplo de enjambement e ele me ficara na cabeça. E mais uma vez me dei conta de como Cabral e Valéry tinham razão de desconfiar de tudo o que chega espontaneamente.
15.5.09
Carlos Drummond de Andrade: "Elegia"
.
Elegia
Ganhei (perdi) meu dia.
E baixa a coisa fria
também chamada noite, e o frio ao frio
em bruma se entrelaçam, num suspiro.
E me pergunto e me respiro
na fuga deste dia que era mil
para mim que esperava,
os grandes sóis violentos, me sentia
tão rico deste dia
e lá se foi secreto, ao serro frio.
Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera
bem antes sua vaga pedraria?
Mas quando me perdi, se estou perdido
antes de haver nascido
e me nasci votado à perda
de frutos que não tenho nem colhia?
Gastei meu dia. Nele me perdi.
De tantas perdas uma clara via
por certo se abriria
de mim a mim, estela fria.
As arvores lá fora se meditam.
O inverno é quente em mim, que o estou berçando,
e em mim vai derretendo
este torrão de sal que está chorando.
Ah, chega de lamento e versos ditos
ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça,
ao ouvido do muro,
ao liso ouvido gotejante
de uma piscina que não sabe o tempo, e fia
seu tapete de água, distraída.
E vou me recolher
ao cofre de fantasmas, que a notícia
de perdidos lá não chegue nem açule
os olhos policiais do amor-vigia.
Não me procurem que me perdi eu mesmo
como os homens se matam, e as enguias
à loca se recolhem, na água fria.
Dia,
espelho de projeto não vivido,
e contudo viver era tão flamas
na promessa dos deuses; e é tão ríspido
em meio aos oratórios já vazios
em que a alma barroca tenta confortar-se
mas só vislumbra o frio noutro frio.
Meu Deus, essência estranha
ao vaso que me sinto, ou forma vã,
pois que, eu essência, não habito
vossa arquitetura imerecida;
meu Deus e meu conflito,
nem vos dou conta de mim nem desafio
as garras inefáveis: eis que assisto
a meu desmonte palmo a palmo e não me aflijo
de me tornar planície em que já pisam
servos e bois e militares em serviço
da sombra, e uma criança
que o tempo novo me anuncia e nega.
Terra a que me inclino sob o frio
de minha testa que se alonga,
e sinto mais presente quando aspiro
em ti o fumo antigo dos parentes,
minha terra, me tens; e teu cativo
passeias brandamente
como ao que vai morrer se estende a vista
de espaços luminosos, intocáveis:
em mim o que resiste são teus poros.
Corto o frio da folha. Sou teu frio.
E sou meu próprio frio que me fecho
longe do amor desabitado e líquido,
amor em que me amaram, me feriram
sete vezes por dia em sete dias
de sete vidas de ouro,
amor, fonte de eterno frio,
minha pena deserta, ao fim de março,
amor, quem contaria?
E já não sei se é jogo, ou se poesia.
De: ANDRADE, Carlos Drummond de. "Fazendeiro do ar". Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
Elegia
Ganhei (perdi) meu dia.
E baixa a coisa fria
também chamada noite, e o frio ao frio
em bruma se entrelaçam, num suspiro.
E me pergunto e me respiro
na fuga deste dia que era mil
para mim que esperava,
os grandes sóis violentos, me sentia
tão rico deste dia
e lá se foi secreto, ao serro frio.
Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera
bem antes sua vaga pedraria?
Mas quando me perdi, se estou perdido
antes de haver nascido
e me nasci votado à perda
de frutos que não tenho nem colhia?
Gastei meu dia. Nele me perdi.
De tantas perdas uma clara via
por certo se abriria
de mim a mim, estela fria.
As arvores lá fora se meditam.
O inverno é quente em mim, que o estou berçando,
e em mim vai derretendo
este torrão de sal que está chorando.
Ah, chega de lamento e versos ditos
ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça,
ao ouvido do muro,
ao liso ouvido gotejante
de uma piscina que não sabe o tempo, e fia
seu tapete de água, distraída.
E vou me recolher
ao cofre de fantasmas, que a notícia
de perdidos lá não chegue nem açule
os olhos policiais do amor-vigia.
Não me procurem que me perdi eu mesmo
como os homens se matam, e as enguias
à loca se recolhem, na água fria.
Dia,
espelho de projeto não vivido,
e contudo viver era tão flamas
na promessa dos deuses; e é tão ríspido
em meio aos oratórios já vazios
em que a alma barroca tenta confortar-se
mas só vislumbra o frio noutro frio.
Meu Deus, essência estranha
ao vaso que me sinto, ou forma vã,
pois que, eu essência, não habito
vossa arquitetura imerecida;
meu Deus e meu conflito,
nem vos dou conta de mim nem desafio
as garras inefáveis: eis que assisto
a meu desmonte palmo a palmo e não me aflijo
de me tornar planície em que já pisam
servos e bois e militares em serviço
da sombra, e uma criança
que o tempo novo me anuncia e nega.
Terra a que me inclino sob o frio
de minha testa que se alonga,
e sinto mais presente quando aspiro
em ti o fumo antigo dos parentes,
minha terra, me tens; e teu cativo
passeias brandamente
como ao que vai morrer se estende a vista
de espaços luminosos, intocáveis:
em mim o que resiste são teus poros.
Corto o frio da folha. Sou teu frio.
E sou meu próprio frio que me fecho
longe do amor desabitado e líquido,
amor em que me amaram, me feriram
sete vezes por dia em sete dias
de sete vidas de ouro,
amor, fonte de eterno frio,
minha pena deserta, ao fim de março,
amor, quem contaria?
E já não sei se é jogo, ou se poesia.
De: ANDRADE, Carlos Drummond de. "Fazendeiro do ar". Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
13.5.09
Joaquim Cardozo: "Canção elegíaca"
.
Canção elegíaca
Quando os teus olhos fecharem
Para o esplendor deste mundo,
Num chão de cinza e fadigas
Hei de ficar de joelhos;
Quando os teus olhos fecharem
Hão de murchar as espigas,
Hão de cegar os espelhos.
Quando os teus olhos fecharem
E as tuas mãos repousarem
No peito frio e deserto,
Hão de morrer as cantigas;
Irá ficar desde e sempre
Entre ilusões inimigas,
Meu coração descoberto.
Ondas do mar - traiçoeiras -
A mim virão, de tão mansas,
Lamber os dedos da mão;
Serenas e comovidas
As águas regressarão
Ao seio das cordilheiras;
Quando os teus olhos fecharem
Hão de sofrer ternamente
Todas as coisas vencidas,
Profundas e prisioneiras;
Hão de cansar as distâncias,
Hão de fugir as bandeiras.
Sopro da vida sem margens,
Fase de impulsos extremos,
O teu hálito irá indo,
Longe e além reproduzindo
Como um vento que passasse
Em paisagens que não vemos;
Nas paisagens dos pintores
Comovendo os girassóis
Perturbando os crisantemos.
O teu ventre será terra
Erma, dormente e tranquila
De savana e de paul;
Tua nudez será fonte,
Cingida de aurora verde,
A cantar saudade pura
De abril, de sonho, de azul,
Fechados no anoitecer.
CARDOZO, Joaquim. Signo estrelado. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1960.
Canção elegíaca
Quando os teus olhos fecharem
Para o esplendor deste mundo,
Num chão de cinza e fadigas
Hei de ficar de joelhos;
Quando os teus olhos fecharem
Hão de murchar as espigas,
Hão de cegar os espelhos.
Quando os teus olhos fecharem
E as tuas mãos repousarem
No peito frio e deserto,
Hão de morrer as cantigas;
Irá ficar desde e sempre
Entre ilusões inimigas,
Meu coração descoberto.
Ondas do mar - traiçoeiras -
A mim virão, de tão mansas,
Lamber os dedos da mão;
Serenas e comovidas
As águas regressarão
Ao seio das cordilheiras;
Quando os teus olhos fecharem
Hão de sofrer ternamente
Todas as coisas vencidas,
Profundas e prisioneiras;
Hão de cansar as distâncias,
Hão de fugir as bandeiras.
Sopro da vida sem margens,
Fase de impulsos extremos,
O teu hálito irá indo,
Longe e além reproduzindo
Como um vento que passasse
Em paisagens que não vemos;
Nas paisagens dos pintores
Comovendo os girassóis
Perturbando os crisantemos.
O teu ventre será terra
Erma, dormente e tranquila
De savana e de paul;
Tua nudez será fonte,
Cingida de aurora verde,
A cantar saudade pura
De abril, de sonho, de azul,
Fechados no anoitecer.
CARDOZO, Joaquim. Signo estrelado. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1960.
12.5.09
Alexander Pope, Matthew Prior ou Samuel Coleridge: "Sir, I admit your general rule" / "Tem razão o senhor quando nota"
.
Tem razão o senhor quando nota
que todo poeta é idiota,
mas quem o conhece completa:
nem todo idiota é poeta.
Outra versão:
Tem razão o senhor, que constata
que todo poeta é pateta;
mas quem o conhece arremata:
nem todo pateta é poeta.
Sir, I admit your general rule
that every poet is a fool:
but you yourself may serve to show it
that every fool is not a poet.
Epigrama atribuído ora a Alexander Pope, ora a Matthew Prior, ora a Samuel Coledrige.
Tem razão o senhor quando nota
que todo poeta é idiota,
mas quem o conhece completa:
nem todo idiota é poeta.
Outra versão:
Tem razão o senhor, que constata
que todo poeta é pateta;
mas quem o conhece arremata:
nem todo pateta é poeta.
Sir, I admit your general rule
that every poet is a fool:
but you yourself may serve to show it
that every fool is not a poet.
Epigrama atribuído ora a Alexander Pope, ora a Matthew Prior, ora a Samuel Coledrige.
9.5.09
Alberto Pucheu: "Poema ungulado, nº 2"
.
POEMA UNGULADO, No 2
Nenhuma gordura empanturra o corpo
do rinoceronte, varando suas cercas.
Nenhum couro escorrega em torno
da carne. Nenhuma dúvida quanto
a seu peso, quanto à coragem
ou a sua tranqüilidade. A armadura
talhada nos músculos, os chifres,
o rabo espanando qualquer súplica.
Olhos para ver. Boca para comer.
Patas para pisar. Orelhas para ouvir.
O corpo... na medida exata do corpo.
E o meu, tão distante, perdido pela multidão, pelos cantos das palavras alojadas, angaria faltas e excessos por onde anda: um guindaste se apropria de meu sexo, o combustível escasso para mais alguns quilômetros, o chifre crescendo pelo nariz. Quando o queixo começa a se empinar, guincho o que nunca escutei: a voz anginosa do rinoceronte.
In: PUCHEU, Alberto. "Ecometria do silêncio". A fronteira desguarnecida (poesia reunida 1993-2007). Rio de Janeiro: Azougue, 2007.
POEMA UNGULADO, No 2
Nenhuma gordura empanturra o corpo
do rinoceronte, varando suas cercas.
Nenhum couro escorrega em torno
da carne. Nenhuma dúvida quanto
a seu peso, quanto à coragem
ou a sua tranqüilidade. A armadura
talhada nos músculos, os chifres,
o rabo espanando qualquer súplica.
Olhos para ver. Boca para comer.
Patas para pisar. Orelhas para ouvir.
O corpo... na medida exata do corpo.
E o meu, tão distante, perdido pela multidão, pelos cantos das palavras alojadas, angaria faltas e excessos por onde anda: um guindaste se apropria de meu sexo, o combustível escasso para mais alguns quilômetros, o chifre crescendo pelo nariz. Quando o queixo começa a se empinar, guincho o que nunca escutei: a voz anginosa do rinoceronte.
In: PUCHEU, Alberto. "Ecometria do silêncio". A fronteira desguarnecida (poesia reunida 1993-2007). Rio de Janeiro: Azougue, 2007.
7.5.09
René Char: "Le poète..." / "O poeta..."
.
O poeta não diz a verdade, ele a vive; e ao vivê-la, torna-se mentiroso. Paradoxo das Musas: justeza do poema".
Le poète ne dit pas la vérité, il la vit; et la vivant, il devient mensonger. Paradoxe des Muses: justesse du poème.
De: CHAR, René. "Recherche de la base et du sommet. iv. À une sérénité crispée (1952)". Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1983.
O poeta não diz a verdade, ele a vive; e ao vivê-la, torna-se mentiroso. Paradoxo das Musas: justeza do poema".
Le poète ne dit pas la vérité, il la vit; et la vivant, il devient mensonger. Paradoxe des Muses: justesse du poème.
De: CHAR, René. "Recherche de la base et du sommet. iv. À une sérénité crispée (1952)". Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1983.
5.5.09
Yves Bonnefoy: "L'imperfection est la cime" / "A imperfeição é o cimo"
.
A imperfeição é o ápice
Ocorria ser preciso destruir e destruir e destruir
Ocorria só haver salvação a esse preço
Arruinar a face nua a surgir do mármore,
Martelar toda forma toda beleza.
Amar a perfeição por ser o limiar,
Mas negá-la assim que conhecida, esquecê-la morta,
A imperfeição é o ápice.
L’imperfection est la cime
Il y avait qu'il fallait détruire et détruire et détruire,
Il y avait que le salut n'est qu'à ce prix.
Ruiner la face nue qui monte dans le marbre,
Marteler toute forme toute beauté.
Aimer la perfection parce qu'elle est le seuil,
Mais la nier sitôt connue, l'oublier morte,
L'imperfection est la cime.
De: BONNEFOY, Yves. "Hier regnant désert". Du mouvement et de l'immobilité de Douve suivi de Hier régnant désert. Paris: Gallimard, 1970.
A imperfeição é o ápice
Ocorria ser preciso destruir e destruir e destruir
Ocorria só haver salvação a esse preço
Arruinar a face nua a surgir do mármore,
Martelar toda forma toda beleza.
Amar a perfeição por ser o limiar,
Mas negá-la assim que conhecida, esquecê-la morta,
A imperfeição é o ápice.
L’imperfection est la cime
Il y avait qu'il fallait détruire et détruire et détruire,
Il y avait que le salut n'est qu'à ce prix.
Ruiner la face nue qui monte dans le marbre,
Marteler toute forme toute beauté.
Aimer la perfection parce qu'elle est le seuil,
Mais la nier sitôt connue, l'oublier morte,
L'imperfection est la cime.
De: BONNEFOY, Yves. "Hier regnant désert". Du mouvement et de l'immobilité de Douve suivi de Hier régnant désert. Paris: Gallimard, 1970.
3.5.09
Foucault e o fundacionismo
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 2 de maio:
Foucault e o fundacionismo
O RELATIVISMO e o antifundacionismo filosóficos, tão comuns em nossos dias, são frequentemente apresentados não somente como resultados de uma pretensa falência da racionalidade moderna, mas como reações libertárias ao domínio, tido como totalitário, da razão absolutista e fundacionista. Mas pode ocorrer que o relativista, tentando escapar do fundacionismo, acabe por se enredar no fundamentalismo. Um episódio da vida intelectual de Michel Foucault ilustra o que acabo de dizer.
A partir dos cursos que deu sobre a hermenêutica do sujeito, em 1981, Foucault se dedicou a investigar o que chama de "cuidado de si". Trata-se de uma postura filosófica que ele encontra na antiguidade entre, por exemplo, os filósofos estoicos e epicúrios. Para ela, a verdade não é dada ao sujeito como simples ato de conhecimento. Para conseguir acesso à verdade, o sujeito precisa se transformar – se converter –, por meio de um longo trabalho de ascese. A verdade alcançada com esse esforço retorna ao sujeito como uma iluminação que lhe proporciona a beatitude e a tranquilidade da alma. A essa relação com a verdade Foucault chama de "espiritualidade".
Segundo ele, a espiritualidade foi quase esquecida no mundo moderno. "Entrou-se na idade moderna", diz Foucault, "no dia em que se admitiu que o que dá acesso à verdade, as condições segundo as quais o sujeito pode ter acesso à verdade são o conhecimento e somente o conhecimento".
Sendo assim, a modernidade filosófica consiste na perda da espiritualidade. Ora, tanto a palavra "espiritualidade" mesma quanto o modo em que seu sentido é determinado por Foucault – como um processo que inclui ascese, conversão, transfiguração, iluminação, beatificação pela descoberta da verdade – remete-nos à religião.
Não há como não lembrar que três anos antes desses cursos, em 1978, Foucault defendia a Revolução Iraniana, liderada pelo aiatolá Khomeini, afirmando que ela representava a tentativa de "abrir na política uma dimensão espiritual". Trata-se de uma coisa, comenta ele, "de cuja possibilidade nós [os modernos] nos esquecemos desde a Renascença e as grandes crises do cristianismo: uma espiritualidade política". A Revolução Iraniana estava, segundo ele, "atravessada pelo sopro de uma religião que fala menos do além que da transfiguração deste mundo aqui".
Nesse ponto ele tem razão. Como, na mesma época, observou Maxime Rodinson, importante especialista no Islã:
"Mesmo um fundamentalismo islâmico mínimo exigiria, segundo o Alcorão, que as mãos de ladrões fossem cortadas e que a partilha da mulher na herança seja cortada pela metade. Se houver um retorno à tradição, como os religiosos querem, então será necessário chicotear aquele que beber vinho e chicotear ou lapidar a adúltera. Nada será mais perigoso que a acusação venerável: meu adversário é um inimigo de Deus".
Como é possível que Foucault tenha ignorado essa realidade, sem falar na realidade da opressão das mulheres, da censura à imprensa, da prisão de dissidentes, da execução de apóstatas e homossexuais etc., se ele declarava que seu papel intelectual era "mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam"?
Parece-me que ele conseguia minimizar esses desrespeitos aos direitos humanos no Irã por já ter relativizado de antemão a própria verdade. Simplesmente, como ele dizia, os iranianos "não têm o mesmo regime de verdade que nós". E ele observava que o nosso regime de verdade, aliás, "é bem particular, mesmo embora se tenha tornado quase universal".
A suposição de que há diferentes "regimes de verdade" irredutíveis uns aos outros e de que o nosso regime de verdade, sendo apenas um entre outros, não tem privilégio nenhum quanto aos demais conduz a impasses teóricos jamais adequadamente enfrentados por Foucault.
Por exemplo, se não temos o direito de julgar as verdades dos iranianos porque eles têm um diferente regime de verdade, então não temos sequer o direito de afirmar que eles têm um diferente regime de verdade: principalmente se levarmos em conta que, a partir do seu próprio regime espiritual de verdade -segundo o qual o Islã é a verdade absoluta-, os iranianos jamais reconheceriam a "verdade" de que o nosso regime de verdade seja diferente do deles: ou mesmo de que existam diferentes regimes de verdade.
A verdade é que não são casuais esses tropeços práticos e teóricos de Foucault. Eles radicam no relativismo e antifundacionismo de todo o seu pensamento.
Foucault e o fundacionismo
O RELATIVISMO e o antifundacionismo filosóficos, tão comuns em nossos dias, são frequentemente apresentados não somente como resultados de uma pretensa falência da racionalidade moderna, mas como reações libertárias ao domínio, tido como totalitário, da razão absolutista e fundacionista. Mas pode ocorrer que o relativista, tentando escapar do fundacionismo, acabe por se enredar no fundamentalismo. Um episódio da vida intelectual de Michel Foucault ilustra o que acabo de dizer.
A partir dos cursos que deu sobre a hermenêutica do sujeito, em 1981, Foucault se dedicou a investigar o que chama de "cuidado de si". Trata-se de uma postura filosófica que ele encontra na antiguidade entre, por exemplo, os filósofos estoicos e epicúrios. Para ela, a verdade não é dada ao sujeito como simples ato de conhecimento. Para conseguir acesso à verdade, o sujeito precisa se transformar – se converter –, por meio de um longo trabalho de ascese. A verdade alcançada com esse esforço retorna ao sujeito como uma iluminação que lhe proporciona a beatitude e a tranquilidade da alma. A essa relação com a verdade Foucault chama de "espiritualidade".
Segundo ele, a espiritualidade foi quase esquecida no mundo moderno. "Entrou-se na idade moderna", diz Foucault, "no dia em que se admitiu que o que dá acesso à verdade, as condições segundo as quais o sujeito pode ter acesso à verdade são o conhecimento e somente o conhecimento".
Sendo assim, a modernidade filosófica consiste na perda da espiritualidade. Ora, tanto a palavra "espiritualidade" mesma quanto o modo em que seu sentido é determinado por Foucault – como um processo que inclui ascese, conversão, transfiguração, iluminação, beatificação pela descoberta da verdade – remete-nos à religião.
Não há como não lembrar que três anos antes desses cursos, em 1978, Foucault defendia a Revolução Iraniana, liderada pelo aiatolá Khomeini, afirmando que ela representava a tentativa de "abrir na política uma dimensão espiritual". Trata-se de uma coisa, comenta ele, "de cuja possibilidade nós [os modernos] nos esquecemos desde a Renascença e as grandes crises do cristianismo: uma espiritualidade política". A Revolução Iraniana estava, segundo ele, "atravessada pelo sopro de uma religião que fala menos do além que da transfiguração deste mundo aqui".
Nesse ponto ele tem razão. Como, na mesma época, observou Maxime Rodinson, importante especialista no Islã:
"Mesmo um fundamentalismo islâmico mínimo exigiria, segundo o Alcorão, que as mãos de ladrões fossem cortadas e que a partilha da mulher na herança seja cortada pela metade. Se houver um retorno à tradição, como os religiosos querem, então será necessário chicotear aquele que beber vinho e chicotear ou lapidar a adúltera. Nada será mais perigoso que a acusação venerável: meu adversário é um inimigo de Deus".
Como é possível que Foucault tenha ignorado essa realidade, sem falar na realidade da opressão das mulheres, da censura à imprensa, da prisão de dissidentes, da execução de apóstatas e homossexuais etc., se ele declarava que seu papel intelectual era "mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam"?
Parece-me que ele conseguia minimizar esses desrespeitos aos direitos humanos no Irã por já ter relativizado de antemão a própria verdade. Simplesmente, como ele dizia, os iranianos "não têm o mesmo regime de verdade que nós". E ele observava que o nosso regime de verdade, aliás, "é bem particular, mesmo embora se tenha tornado quase universal".
A suposição de que há diferentes "regimes de verdade" irredutíveis uns aos outros e de que o nosso regime de verdade, sendo apenas um entre outros, não tem privilégio nenhum quanto aos demais conduz a impasses teóricos jamais adequadamente enfrentados por Foucault.
Por exemplo, se não temos o direito de julgar as verdades dos iranianos porque eles têm um diferente regime de verdade, então não temos sequer o direito de afirmar que eles têm um diferente regime de verdade: principalmente se levarmos em conta que, a partir do seu próprio regime espiritual de verdade -segundo o qual o Islã é a verdade absoluta-, os iranianos jamais reconheceriam a "verdade" de que o nosso regime de verdade seja diferente do deles: ou mesmo de que existam diferentes regimes de verdade.
A verdade é que não são casuais esses tropeços práticos e teóricos de Foucault. Eles radicam no relativismo e antifundacionismo de todo o seu pensamento.
1.5.09
Alice Ruiz: "mosquito morto"
.
mosquito morto
sobre poemas
asas e penas
De: RUIZ, Alice. Desorientais. São Paulo: Iluminuras, 1996.
mosquito morto
sobre poemas
asas e penas
De: RUIZ, Alice. Desorientais. São Paulo: Iluminuras, 1996.