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Na brilhante entrevista que Caetano Veloso deu a Francisco Bosco e Eduardo Socha para a revista Cult deste mês (nº 135), tive a honra de ser por ele citado em duas respostas. Infelizmente, justamente as referências a mim foram extirpadas da revista impressa. Quem quiser ler a entrevista integral, porém, pode acessá-la no blog da Cult, no endereço http://revistacult.uol.com.br/novo/site.asp?edtCode=3D614E12-495C-4018-A889-F15078DFB1B3&nwsCode=F27D566B-61CE-4A18-9578-7096A463C87C.
Abaixo publico apenas as respostas que contêm as referências cortadas.
CULT - Um dos filósofos mais debatidos no mundo, hoje, é Slavoj Zizek, a respeito do qual você disse, em seu blog: "não penso como Zizek mesmo!". Você poderia explicar em que consiste essa divergência exclamativa?
Caetano - Talvez a exclamação se devesse ao contexto da discussão daquele momento. Zizek é pop. Ele também é um intelecto superexcitado e tem erudição em várias áreas. Ampara-se em Hegel e Lacan para louvar Matrix, filme que, para mim, é um abacaxi de caroço. Ele gosta desses esquemas que dizem que somos sempre manipulados. Quanto mais claro pensamos, mais presos estamos a ideologias que camuflam interesses. Mas eu fico com Antonio Cicero quando lembra Hanna Arendt a esse respeito. Zizek tem o charme de falar no que a esquerda em geral evita mencionar: ele prefere ter algo positivo a dizer sobre as paradas fascistas da Coréia do Norte do que fingir que não as vê. Eu li Bem vindo ao deserto do real, um livro curto, e In defense of lost causes, um grosso volume. Ele convoca Robespierre, Lênin e Mao e exalta a revolução violenta. No fim, ele elege a causa ecológica como a escolha certa da esquerda para exercer o terror.
Eu tinha lido um artigo de Nelson Ascher na Folha predizendo isso. Na altura, achei o artigo de Ascher reacionário e algo simplista. Ao ler a conclusão de In Defense of Lost Causes, achei que Ascher tinha razão. Para Zizek, toda crítica à liberdade de expressão nos países comunistas é mera tramóia liberal burguesa. Além disso, ele grila com o café descafeinado. Qual o problema? Café não é cafeína. Nesse caso, ele faz uso indevido das palavras. Bem, além desses dois livros, li artigos esparsos e vi dois documentários americanos sobre ele (lá nos States, passa no cinema e tudo: ele é uma estrela). Num, segue-se uma turnê de palestras. No outro, vê-se Zizek comentando filmes. Assisti à palestra dele na UFRJ. Ele é um cara enérgico, engraçado, sua muito e pronuncia todas as letras das palavras inglesas - com a adição de um cicio. Resulta simpático. Achei irresponsável ele dizer aquelas coisas a um bando de jovens brasileiros. Mas acho que a exclamação no meu comentário se deve a ele ter falado mal do carnaval.
Só preciso te dizer que leio sempre, mas sempre muito sem método ou mesmo critério. Por exemplo, comprei Coração das trevas no aeroporto, em dezembro, indo para Salvador. Ao chegar lá, comentei com Paulo César Sousa a qualidade da tradução de Sérgio Flaksman. Paulo então me disse que acabara de ler um romance estranhíssimo de Conrad, chamado Under western eyes - e me trouxe o exemplar. É um livro incrível, em que Conrad conta uma história que prende o leitor como Crime e Castigo e onde ele mostra que a autocracia russa, marca do Csarismo, estava presente no espírito dos revolucionários russos que se refugiavam na Suíça. E prediz o estilo autocrático que sairá de uma revolução feita por eles. O romance é de 1908, creio. Estava impressionado com isso, quando uma amiga americana me trouxe de Nova Iorque um exemplar de The Nigger of The Narcissus (ela e eu tínhamos uma discussão sobre o problema da palavra "nigger" no país dela) e Tuzé Abreu, me ouvindo falar de três livros de Conrad me trouxe Lord Jim e Linha de sombra. Passei grande parte do verão lendo Conrad, coisa que não planejei, nem sequer imaginei que fosse fazer. Paulo ainda me deu um livro chamado The Great Tradition, um estudo crítico da ficção inglesa, em que Conrad aparece ao lado de George Elliot e Henry James como os seus maiores representantes. Aí li com atenção especial a parte sobre Conrad. É assim, minhas leituras são definidas pelo acaso. Agora estou lendo The Pirate's Dilemma, um livro otimista sobre internet, pirataria e desrespeito aos direitos autorais. Então, minhas opiniões sobre cultura livresca devem ser tomadas com um grão de sal.
[...]
CULT - Se fosse preciso (você pode recusar tal necessidade), como você se definiria politicamente? De esquerda, de direita, de centro, social-democrata, liberal?
Caetano - Nessa hora eu adoraria ser americano: nos EUA "liberal" quer dizer "de esquerda". Eu estaria unido a palavras que produzem bem-estar. Aqui tenho de me contorcer e dizer que sou de uma esquerda transliberal. Digo também que sou de centro mas não estou em cima do muro: estou muito acima do muro. Mas isso tudo é fanfarronice de artista.
Eu aplico o termo "direita" a conservadores reacionários. Todo o pessoal de esquerda gosta de citar Alain dizendo que se alguém diz que não há tal divisão "direita e esquerda", esse alguém é de direita. A observação é aguda e engraçada. Mas pode servir justamente a propósitos conservadores. Volto a Antonio Cicero: há uma reação à modernidade que se organiza em áreas do que chamamos direita e em áreas do que chamamos esquerda, hoje. Concordo com ele que desqualificar os direitos individuais, os direitos humanos propriamente ditos, é uma manobra conservadora profunda - que você pode encontrar tanto em Olavo de Carvalho quanto em Slavoj Zizek. Tanto no cardeal que excomunga os médicos que fizeram o aborto da menina estuprada pelo padrasto quanto no dirigente comunista que nega o direito de ir e vir dos cidadãos do seu país. Ou o direito de crítica. Cicero não é bobo de pensar que todos os sofisticados da academia não pensam que ele simplesmente quer limpar o terreno de toda a riqueza conceitual que vem desde Heidegger e Wittgestein, passando pelos frankfurtianos, até os pós-estruturalistas, para voltar - num movimento de contravanguarda filosófica - ao racionalismo vulgar dos iluministas. Cicero sabe que enfrenta essa questão com bravura.
Para ser sincero, com meu espírito místico e meus instintos de vanguarda, não sinto as coisas como ele sente. Além de ser muito ignorante para de fato entrar no debate. Mas não dá para seguir em frente repetindo Adorno ou ecoando Deleuze sem responder as questões que Cícero põe. Ele vem de um marxismo estruturalista (Althusser) e reencontra o melhor do liberalismo inglês e do racionalismo francês porque pensou mais do que os que apenas se ilustraram ou mesmo se refinaram muito. Ou seja: para se ir adiante tem-se que superar a crítica que ele faz. Eu o encontro em meu realismo radical, em minha paixão pela lucidez e pela justiça. Somos amigos e ele também é artista (na verdade, poeta), mas se eu encontrasse O mundo desde o fim por acaso, e não conhecesse o autor, eu ficaria tomado. Eu considero minhas confusões e a limpidez do pensamento de Cicero à esquerda de todas as formas de negação da modernidade. Digam-me que uma razão unívoca não pode dar conta dos nós da superpopulação (sou louco pelo Lévy-Strauss de Tristes Trópicos - e adorei ler hoje que Euclides da Cunha profetizou com grande clarividência os problemas ecológicos que enfrentamos), dos enigmas da mecânica quântica, do mistério complexo das culturas. De acordo. Mas não usem esse espantalho para desenterrar formas já testadas e já rejeitadas. Pode ser que haja um grande retrocesso na civilização. Mas ele não terá em mim um de seus arautos.
Antonio,
ResponderExcluirCitações devidas e merecidas! Parabéns!
***DONA MARIA***
Mudança em casa.
Metamorfose
Feita de pó,
De mofo, fotos
Antigas, gastas
Vassouras, pás,
Panos, sabão,
Poemas, sonhos,
Papéis, lixo
Cotidiano.
Com que vontade
Disso me livro?
Com que verdade
Disso preciso?
Vasta limpeza
Nunca adianta.
Rearrumar
Todo meu mundo
De que me vale?
Toda mobília,
Todos os versos,
Restos da vida,
Pura bagunça.
Onde pôr tudo?
Ela bem sabe
Onde me deixo.
Ela se guarda
Da minha queixa.
Pobre Maria!
Às nove horas
Em ponto, pronta
Para a batalha
Contra meu ser,
Armários, roupas,
Pratos, talheres,
Alta pressão
E diabetes,
Dores, artroses.
Com que sorriso
Vou cativá-la?
Com que preguiça
Desafiá-la?
Grande Maria!
Às doze e meia
Já de saída,
Com uma pílula
Na Língua, séria,
Agradecendo-me
Por mais um dia
Dentro de mim,
Dentro do cérebro,
Da Poesia.
Beijos,
Cecile.
Caro Antonio Cícero,
ResponderExcluirO Caetano realmente gosta de você. E eu gosto do Caetano.
Mas me sinto um tremendo idiota. Não entendi absolutamente nada da essência do que ele quis dizer com a resposta à segunda pergunta.
Você poderia fazer um post para nós, explicando? Muito obrigado.
Do teu fã indicado pelo Pax, André Monsores.
Caro André,
ResponderExcluirAcho que o que importa nesse texto não é que Caetano goste de mim. O que ele está a dizer é que concorda com algumas das minhas ideias e posições políticas. Aliás, ele mesmo o diz: "Somos amigos e ele também é artista (na verdade, poeta), mas se eu encontrasse O mundo desde o fim [isto é, o livro que escrevi] por acaso, e não conhecesse o autor, eu ficaria tomado".
Quais são essas ideias? Acho que ele mesmo explica muito bem:
"Há uma reação à modernidade que se organiza em áreas do que chamamos direita e em áreas do que chamamos esquerda, hoje. Concordo com ele que desqualificar os direitos individuais, os direitos humanos propriamente ditos, é uma manobra conservadora profunda - que você pode encontrar tanto em Olavo de Carvalho quanto em Slavoj Zizek. Tanto no cardeal que excomunga os médicos que fizeram o aborto da menina estuprada pelo padrasto quanto no dirigente comunista que nega o direito de ir e vir dos cidadãos do seu país".
Abraço
Realmente ao te ler sinto me tomado. C.
ResponderExcluirCaríssimo,
ResponderExcluiro Caetano te citava com frequência no blog dele, e pelos mesmos bons motivos explicados nessa entrevista. Você deve ter acompanhado.
Eu achei muito pertinente ele dizer que não podemos seguir adiante sem enfrentar as questões que você coloca. Me identifiquei muito com isso, você deve imaginar porque.
Abraços, Héber
"Eu considero minhas confusões e a limpidez do pensamento de Cicero à esquerda de todas as formas de negação da modernidade."
ResponderExcluirCícero, acho que o trecho acima do Caetano põe o dedo na ferida.
É esse o "ponto" que me parece crucial nesse debate. É que ela - a modernidade - voltou-se tanto para seus próprios pressupostos que é impossível superá-la. Nela cabe a lucidez e cabe o incontornável...
Ela está à esquerda dela mesma.
abraço!
lindão,
ResponderExcluirvocê MERECE todas as constatações feitas pelo caetano.
gostei de uma coincidência: é que o caetano diz, sobre você:
"Eu o encontro em meu realismo radical, em minha paixão pela lucidez e pela justiça."
eu, sempre que me refiro a você, você bem sabe disto, levanto, como uma grande caracterírtica sua, a total lucidez que encontro nos seus textos. "lucidez" é uma palavra na qual seu pensamento cabe direitinho, sabia? pois é, rapaz (rs)...
que bom.
conto com você na trilha, meu porto de luz. e é tão bacana pensar que é assim...
beijo grande!
Obrigado, Paulinho,
ResponderExcluirUm beijo grande também.
Pensador,
ResponderExcluirque grande recurso podermos ler o que não nos deixam ler ao apertar um simples link através da internet. eu realmente louvo a liberdade (com os prós que já sabemos e os contras que conhecemos) e fico feliz por poder ter acesso a uma entrevista (imperdível) de forma integral.
obrigada por partilhar.
Caetano Veloso é talvez a maior referência que eu tenha de cultura e intelecto, faz parte de toda a minha história e contribuiu de forma definitiva em minha maneira de olhar/ver.
e você é o pensador que tem me guiado na vereda escura do que é realmente importante perceber no turbilhão do pensamento,
tenho lido bastante você. tenho aprendido e apreendido.
então, Caetano citá-lo é pra mim um gesto natural de comunhão,
eu admiro e compartilho humildemente inclusive das palavras que ele reservou a você.
merecido reconhecimento.
nunca vir até aqui é viagem perdida!
parabéns pela plenitude,
grande abraço!
Boa noite!! Cícero,
ResponderExcluirgostei muito do comentário do Caetano. Como professor em Universidade Federal, formado em cinema e jornalismo, sempre me implica a subserviência ao modismo intelectual. Nos anos 70, eram os estruturalistas; nos anos 80, os frankfurtianos e, agora, os estudos culturais. E, no momento, o Zizek. Não é possível formular um pensamento brasileiro? Não é possivel pelo menos não ficar deslumbrados e agendados por tantas modas intelectuais? Gosto muito do seu pensamento e fica pensando no ridículo da academia brasileira em não conseguir (ou não querer) formular suas próprias questões teóricas.
Em primeiro lugar meus parabéns. Mais que merecido.
ResponderExcluirEm segundo, concordo com o Caetano que concorda com você. Tão simples quanto isso.
Abraços.
Cicero,
ResponderExcluirFico encantado em ver o seu grande amigo admitir que o pensamento dele político tem porto seguro no seu. Isso é maravilhoso e sublime - mais que humildade! É sabedoria! Salve Antonio Cicero! Salve Caetano Veloso!
Fiz esse poema para Caetano:
"SÃO PAULO"
trânsito estático (garoa) trânsito Marginal
))))))))))))))))))) (garoa)(((((((((((((((((((((((
))))))))))))))))))) (garoa)(((((((((((((((((((((((
trânsito estético(garoa) trânsito Tietê
((((((((((((((((((( (garoa))))))))))))))))))))))))
((((((((((((((((((( (garoa))))))))))))))))))))))))
trânsito estúpido(garoa) trânsito terminal
))))))))))))))))))))(garoa)((((((((((((((((((((((
))))))))))))))))))))(garoa)((((((((((((((((((((((
trânsito estimado(garoa) trânsito matinê
(((((((((((((((((((( (garoa)))))))))))))))))))))))
(((((((((((((((((((( (garoa)))))))))))))))))))))))
((a)((((((((((g)))))))))(o)((((((((r))))))))))(a))
((((((((((((((((((((em transe)))))))))))))))))))
((((((((((((((((((((galeras
((((((((((((((((((((gatilhos
((((((((((((((((((((grafias
((((((((((((((((((((gravuras
))))))))))))))))))))))))))))))))))))))))metáfora:
metrópole(((((((((((((((((((((((((((((((((((((((
Abraço forte!
Adriano Nunes.
Cicero,
ResponderExcluirO meu poema concreto foi baseado nessa frase de Caetano, na referida entrevista: "Desejo é passar mais tempo em São Paulo e, mesmo sem isso, escrever músicas em que coisas e climas da cidade apareçam."
Assim entenderão porque o fiz!
Abraço forte!
Adriano nunes.
Antonio Cícero, parabéns. Essa foi a chamada necessária para prestar atenção em você. Por que não o fiz antes é estranho, muito estranho. O seu nome, afinal, é conhecido e respeitado.
ResponderExcluirMas que bom, tenho agora muito o que ler e pensar. Vou compensar o tempo perdido, estou bastante animada para te conhecer intelectualmente. Estou bastante animada.
Clara
caetano ama lamber palavras, mastiga-las !
ResponderExcluireu tava la no "obra" quando ele falou em zizek...alias eu vivia trepada la...ele falava em vc tbm, antonio cicero, varias vezes...
Cara, o importante é ter espaço para discutir essas idéias e que essas discussões resultem, de alguma forma, em algo produtivo.
ResponderExcluirÉ fundamental ter pensadores como você e Caetano defendendo seus pontos de vista, dando a outros material para exercitar o poder de questionamento.
Parabéns poeta, pelo seu trabalho.
Obrigado, Betina!
ResponderExcluirGrande abraço
Avante, Cícero! Tenho um grande apreço por Vc e por Marina.
ResponderExcluirGostaria de lhe enviar uma revista aqui da Bahia, onde chamo a atenção sobre o seu livro "O Mundo Desde O Fim", que gosto demais. Qual o endereço destinatário?
A entrevista de Caetano é excelente.E o seu blog é super-odara.
Muita luz!
Edson
(MEU EMAIL É edson_p_filho@hotmail.com)
Se Slavoy fala "do café descafeinizado", está pretendendo mostrar que é '
ResponderExcluirproibido proibir'.quer mostrar como é monótona a vida do prazer,sme a
liberdade que é em si transgressora essencialmente. Transgressora não
pretende dizer 'criminosa'.Transgressora é transcendência lógica,melhor, é
a busca da lógica que jaz no ser, e não na idéia.Aqui não é prazer:há
jouir.Que traz 'crainde et tremblement'Caetano está muito descuidado no
uso da palavra do desenvolvimento.Medina.
Medina,
ResponderExcluirParece-me estranhamente neo-moralista a tese de que o prazer seria monótono a menos que representasse “a busca da lógica que jaz no ser, e não na ideia”. Nem vejo por que o café com cafeína seria uma manifestação dessa busca ou traria “crainte et tremblement”. Aliás, receio que você é que esteja “muito descuidado no uso da palavra do desenvolvimento”, já que a palavra “crainde” não existe nem em português nem em francês.
Eu nem sabia que Caetano leu Zizek. Acho uma perda de tempo...anyway, bela entrevista.
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