No dia 12 do corrente dei a seguinte entrevista para o Adriano Nunes, que a publicou no seu belo blog (Quefaçocomoquenãofaço):
ADRIANO NUNES: Como se deu seu interesse pela Poesia?
ANTONIO CICERO: Quando garoto, no ginásio, ao ler I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, na antologia escolar. Depois, quando fui com minha família morar nos Estados Unidos, ao ler, no “high school”, os poetas românticos ingleses, Walt Whitman e Emily Dickinson.
ADRIANO NUNES: Em que período da sua vida você sentiu/descobriu que era poeta? Esta descoberta não perturbou o seu "eu" filosófico já que a Filosofia é uma das suas paixões?
ANTONIO CICERO: Por essa época eu comecei a escrever textos que considerava poemas. Mas a poesia não é uma profissão. Ninguém vive de poesia, de modo que, quando eu pensava no que queria ser quando me tornasse adulto, jamais me passava pela cabeça ser poeta. Entretanto, eu escrevia esses textos que considerava poemas, de modo que talvez, se pensasse no assunto, me considerasse poeta: mas eu não pensava no assunto. Ser poeta era, nesse sentido, uma coisa que fazia parte de mim, como ter cabelos pretos. Mas demorou muito para que eu me definisse como poeta. Na verdade, isso só ocorreu depois que diferentes pessoas começaram a pensar em mim como poeta.
Muito cedo li Tolstoi, Dostoievski, Thomas Mann, Machado de Assis etc., de modo que o que eu queria mesmo ser era um romancista, ou melhor, ser um grande romancista, pois era muito ambicioso. Depois, quando comecei a ler filosofia, pensei em ser um filósofo, embora jamais – nem mesmo hoje, nem mesmo depois que algumas outras passaram a me chamar de “filósofo” – ousei me dizer tal. É que basta que uma pessoa escreva poemas – mesmo que não sejam bons – para que, de certo modo, eu ache certo chamá-la de poeta, mas não basta que uma pessoa escreva livros de filosofia ou dê aula de filosofia para que eu a considere um filósofo. Só considero filósofo aquele cujo pensamento conceitual seja capaz de me obrigar a aguçar ou a tornar mais profundo ou mais preciso ou mais sutil o meu próprio pensamento conceitual. Assim, para mim, “filósofo” é um título honorífico, que só pode ser atribuído por outros filósofos.
ADRIANO NUNES: Atualmente, a Poesia ou a Filosofia lhe dá mais alegria?
ANTONIO CICERO: A poesia, que é aberta ao princípio do prazer. A filosofia, por outro lado, obedece ao princípio do desempenho.
ADRIANO NUNES: Ter blog, escrever canções, fazer poemas, filosofar... como você utiliza o seu tempo no dia-a-dia para conciliar suas atividades artísticas?
ANTONIO CICERO: No momento, está muito complicada essa conciliação. Ando muito sem tempo, o que está me angustiando.
ADRIANO NUNES: Quais poetas diretamente e indiretamente influenciaram suas obras?
ANTONIO CICERO: Não é fácil saber o que foi que realmente nos influenciou. Tudo aquilo de que realmente gostei me influenciou. Entre os poetas de que mais gosto estão Homero, Horácio, Baudelaire, Goethe, Hölderlin, Rilke, Yeats, T.S. Eliot, Pessoa, Drummond.
ADRIANO NUNES: Vêem-se claramente em seus poemas temas mitológicos. Você consegue transpor tais temas para o cotidiano e o leitor se identifica com as imagens ali projetadas. Seria influência mesmo dos clássicos gregos ou fascínio pela Mitologia?
ANTONIO CICERO: O que chamamos de “mitologia” são histórias contadas nas obras dos grandes poetas gregos: Homero, Hesíodo, Píndaro, Sófocles etc. Essas obras, como todas as obras canônicas, fazem parte importante do patrimônio cultural dos poetas – e dos leitores de poesia – modernos. Elas fazem parte do vocabulário da nossa imaginação. Eu as uso mais ou menos como uso as palavras da língua. Elas são minhas, fazem parte do meu ser.
ADRIANO NUNES: Quando se discute Vanguarda no Brasil, o seu nome é frequentemente citado. O seu livro Finalidades Sem Fim trata deste assunto com clareza e requinte. Não há mais Vanguarda? Não é possível mais haver movimentos vanguardistas?
ANTONIO CICERO: A vanguarda é o que vai à frente, para mostrar o caminho para todos os demais. Só se pode falar do caminho quando se trata de um só caminho para todos. Ora, o único caminho que todos devem seguir é o de compreender que não há um só, que não há um único caminho, que há uma infinidade de caminhos possíveis: que cada um tem o direito de seguir o seu próprio caminho. Querendo ou não querendo, foi esse o caminho que a vanguarda apontou. Depois disso não há mais necessidade de vanguarda. Não é mais necessário mostrar que há uma infinidade de caminhos, porque isso já foi feito; e se, ao contrário, alguém quiser voltar a um único caminho, ou um único conjunto de caminhos, essa pessoa estará, na verdade, voltando atrás, e não sendo vanguardista. A pretensão de ser vanguardista hoje é, portanto, algo reacionário. É claro que todo tipo de experimentação é e sempre será possível, mas seria errado chamá-la de “vanguarda”.
ADRIANO NUNES: Na apresentação do seu livro de poemas A Cidade e o Livros, José Miguel Wisnik diz:"Um livro espantosamente belo, e ainda capaz - homoeróticas - das mais límpidas declarações de amor que temos visto." Há preconceito na Poesia? Por que "ainda capaz" soa como se não fosse possível?
ANTONIO CICERO: Não considero preconceituosa a declaração do Wisnik. Eu a parafrasearia do seguinte modo: “um livro que, além de espantosamente belo, é capaz das mais límpidas declarações de amor – por acaso homoeróticas – que temos visto”.
ADRIANO NUNES: Você sempre procura alertar para que todo poema seja bem trabalhado. O que é ser bem trabalhado?
ANTONIO CICERO: Um poema é bem trabalhado quando o poeta não confia apenas na sua primeira intuição e não se contenta rapidamente com a primeira manifestação dele, mas dá chance a que essa primeira manifestação se desenvolva maximamente, empregando ao mais alto grau todas as faculdades de que ele (o poeta) for dotado.
ADRIANO NUNES: Em muitas antologias poéticas contemporâneas, o seu poema Guardar está presente e muitos críticos/poetas/artistas consideram esse poema um dos mais belos da Poesia Brasileira. Como se deu o processo de criação desse poema?
ANTONIO CICERO: Não sei explicar. Ele parece ter-se desdobrado por conta própria.
ADRIANO NUNES: Você esperava vencer o Prêmio Nestlé de Literatura?
ANTONIO CICERO: Não esperava, mas é claro que queria ganhá-lo.
ADRIANO NUNES: As letras de suas canções tratam de variados assuntos, mais e intensamente de amor e paixão e ao mesmo tempo de amores em que o amante/amado encontram-se como se afastados do amor e da felicidade, numa luta de egos e de fugas/entregas/medos...como se tivessem que aprender a amar. Por quê?
ANTONIO CICERO: É outra coisa que não sei explicar. Elas vêm assim.
ADRIANO NUNES: O seu blog Acontecimentos é muito visitado. Como consegue manter atualizadas suas postagens e ainda responder aos comentários dos leitores? É gratificante essa troca de informações pela Internet?
ANTONIO CICERO: Ponho no blog as coisas de que gosto muito. Sempre fui muito organizado nas minhas leituras. Desde estudante universitário, tomo notas, acompanhadas de observações minhas, de quase tudo o que leio. Mas, no blog, não tenho tido tempo de fazer tantos comentários quanto antigamente. De todo modo, quando o faço, não só os leitores me ensinam muitas coisas mas, quando tento lhes explicar o que penso, explico-o também para mim mesmo.
ADRIANO NUNES: Quais poetas em atividade você pode citar como bons, que estão produzindo poemas belos, que estão em busca de Poesia de Qualidade, se é que tal termo possa ser aplicado.
ANTONIO CICERO: Acho que tal termo pode ser aplicado. Há vários poetas bons em atividade. É sempre ruim citar porque a gente não pode citar todo o mundo e sempre esquece de alguém que não podia ter deixado de citar. Além dos já clássicos Ferreira Gullar, Augusto de Campos e Décio Pignatari, que continuam produzindo, há, por exemplo, em ordem alfabética, Arnaldo Antunes, Eucanaã Ferraz, Nelson Ascher e Paulo Henrique Brito. Dos novíssimos, Omar Salomão é muito bom.
ADRIANO NUNES: O que faz um poema ser considerado belo?
ANTONIO CICERO: Não há regra geral para isso. Isso não quer dizer que valha tudo. É que são muitos os elementos que entram em jogo na apreciação de um poema. Entretanto, a verdade é que, com o tempo, embora qualquer um, de qualquer origem, possa se manifestar, e embora muitíssimos efetivamente se manifestem, tende a haver consenso em torno de determinadas obras.
ADRIANO NUNES: Os poetas virtuais estão aí publicando poemas em blog/sites, já que há certa dificuldade/custo com editoras para que um livro seja publicado. O que seria preciso para que as Editoras publicassem mais livros de poemas? Nas livrarias, o espaço reservado para a área "POESIA" é sempre menor em comparação com outras áreas. Poesia não dá dinheiro?
ANTONIO CICERO: Não, poesia não dá dinheiro. Leminski dizia que isso é uma das grandes vantagens da poesia sobre as outras artes, pois significa que ninguém faz poesia por dinheiro. Observo que isso não é de hoje. Sempre foi assim, desde que surgiu a poesia escrita. E antigamente era pior, pois não havia Internet. Além disso, é muito mais barato publicar um livro hoje do que há poucos anos atrás.
ADRIANO NUNES: Quais seus próximos projetos literários?
ANTONIO CICERO: Um livro de poemas.
ADRIANO NUNES: Que há de "novo" e bom no gigantesco mundo das Artes?
ANTONIO CICERO: O reconhecimento internacional da importância das artes plásticas brasileiras. O caminho foi aberto pelas exposições de Hélio Oiticica na Europa e nos Estados Unidos. No momento, Cildo Meireles está tendo uma grande exposição na Tate Modern, em Londres.
ADRIANO NUNES: Há algum poeta nesse mundo virtual de blog/sites que você considera como bom e promissor?
ANTONIO CICERO: Sim: você, por exemplo.
ADRIANO NUNES: Qual o poder e o peso de um poema?
ANTONIO CICERO: A leitura cuidadosa de um grande poema é capaz de fazer o leitor dizer a si próprio, como Rilke, ao contemplar o torso arcaico de Apolo: “Tens que mudar tua vida”.
30.1.09
28.1.09
César Vallejo: "Piedra negra sobre una piedra blanca" / "Pedra negra sobre uma pedra branca". Tradução de José Bento
.
Pedra negra sobre uma pedra branca
Morrerei em Paris com aguaceiros,
num dia do qual já tenho a lembrança.
Morrerei em Paris – daqui não saio –
numa quinta-feira, como hoje, de outono.
Quinta-feira será, pois hoje, quinta-feira,
em que estes versos proso, dei os úmeros
à pouca sorte, e nunca como hoje
voltei, com todo o meu caminho, a ver-me só.
Morreu César Vallejo, espancavam-no
todos sem que lhes fizesse nada;
davam-lhe forte com um pau e forte
com uma corda também; são testemunhos
as quintas-feiras e os ossos úmeros,
a solidão, os caminhos, a chuva...
Piedra negra sobre una piedra blanca
Me moriré en París con aguacero,
un día del cual tengo ya el recuerdo.
Me moriré en París —y no me corro—
tal vez un jueves, como es hoy, de otoño.
Jueves será, porque hoy, jueves, que proso
estos versos, los húmeros me he puesto
a la mala y, jamás como hoy, me he vuelto,
con todo mi camino, a verme solo.
César Vallejo ha muerto, le pegaban
todos sin que él les haga nada;
le daban duro con un palo y duro
también con una soga; son testigos
los días jueves y los huesos húmeros,
la soledad, la lluvia, los caminos...
De:
VALLEJO, César. “Poemas póstumos I”. In: Obra poética. Org. p. Américo Ferrari. Madrid; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: AllcaXX, 1996;
e:
VALLEJO, César. Antologia poética. Tradução de José Bento. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
Pedra negra sobre uma pedra branca
Morrerei em Paris com aguaceiros,
num dia do qual já tenho a lembrança.
Morrerei em Paris – daqui não saio –
numa quinta-feira, como hoje, de outono.
Quinta-feira será, pois hoje, quinta-feira,
em que estes versos proso, dei os úmeros
à pouca sorte, e nunca como hoje
voltei, com todo o meu caminho, a ver-me só.
Morreu César Vallejo, espancavam-no
todos sem que lhes fizesse nada;
davam-lhe forte com um pau e forte
com uma corda também; são testemunhos
as quintas-feiras e os ossos úmeros,
a solidão, os caminhos, a chuva...
Piedra negra sobre una piedra blanca
Me moriré en París con aguacero,
un día del cual tengo ya el recuerdo.
Me moriré en París —y no me corro—
tal vez un jueves, como es hoy, de otoño.
Jueves será, porque hoy, jueves, que proso
estos versos, los húmeros me he puesto
a la mala y, jamás como hoy, me he vuelto,
con todo mi camino, a verme solo.
César Vallejo ha muerto, le pegaban
todos sin que él les haga nada;
le daban duro con un palo y duro
también con una soga; son testigos
los días jueves y los huesos húmeros,
la soledad, la lluvia, los caminos...
De:
VALLEJO, César. “Poemas póstumos I”. In: Obra poética. Org. p. Américo Ferrari. Madrid; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: AllcaXX, 1996;
e:
VALLEJO, César. Antologia poética. Tradução de José Bento. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
26.1.09
Dorothy Parker: "From a letter from Lesbia" / "De uma carta de Lésbia": tradução de Nelson Ascher
Sábado, Aetano enviou um comentário para este blog contendo um trecho de um poema de Dorothy Parker, traduzido por Nelson Ascher. Abaixo publico o poema inteiro, que pretende ser um fragmento de uma carta em que Lesbia, amante do poeta Catulo, maliciosamente comenta a Ode III, que ele lhe dedicara. Pode-se ler essa ode na postagem anterior, também com tradução de Nelson Ascher.
De uma carta de Lésbia
... Catulo está, portanto, fora da cidade,
Graças aos deuses! E eis, querida, o meu conselho:
Escolhe, para amante, quem quer que te agrade,
Salvo um poeta, pois ninguém é tão pentelho.
Tanto lhe faz se há briga ou beijo — são somente,
Com sua flauta sempre em mãos, um bom motivo
Para cantar sobre o que louve ou que lamente.
Meu tipo mesmo está mais para o executivo.
Chamei aquilo sobre a morte do pardal
(Que versos lúgubres, maçantes, comezinhos!)
De doce, até fiz que chorava e coisa e tal
Para o imbecil. — Só que eu odeio passarinhos...
FROM A LETTER FROM LESBIA
... So, praise the gods, Catullus is away!
And let me tend you this advice, my dear:
Take any lover that you will, or may,
Except a poet. All of them are queer.
It's just the same. — a quarrel or a kiss
Is but a tune to play upon his pipe.
He's always hymning that or wailing this;
Myself, I much prefer the business type.
That thing he wrote, the time the sparrow died —
(Oh, most unpleasant — gloomy, tedious words!)
I called it sweet, and made believe I cried;
The stupid fool! I've always hated birds...
De: PARKER, Dorothy. "From a letter from Lesbia". In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
De uma carta de Lésbia
... Catulo está, portanto, fora da cidade,
Graças aos deuses! E eis, querida, o meu conselho:
Escolhe, para amante, quem quer que te agrade,
Salvo um poeta, pois ninguém é tão pentelho.
Tanto lhe faz se há briga ou beijo — são somente,
Com sua flauta sempre em mãos, um bom motivo
Para cantar sobre o que louve ou que lamente.
Meu tipo mesmo está mais para o executivo.
Chamei aquilo sobre a morte do pardal
(Que versos lúgubres, maçantes, comezinhos!)
De doce, até fiz que chorava e coisa e tal
Para o imbecil. — Só que eu odeio passarinhos...
FROM A LETTER FROM LESBIA
... So, praise the gods, Catullus is away!
And let me tend you this advice, my dear:
Take any lover that you will, or may,
Except a poet. All of them are queer.
It's just the same. — a quarrel or a kiss
Is but a tune to play upon his pipe.
He's always hymning that or wailing this;
Myself, I much prefer the business type.
That thing he wrote, the time the sparrow died —
(Oh, most unpleasant — gloomy, tedious words!)
I called it sweet, and made believe I cried;
The stupid fool! I've always hated birds...
De: PARKER, Dorothy. "From a letter from Lesbia". In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
Catulo: Ode 3 / Tradução: Nelson Ascher
.
ODE, 3
Chorai, Vênus, Cupidos e homens, quantos
venerem a beleza, oh vós, chorai
a morte do pardal da minha amada,
pardal que era o prazer da minha amada
e que ela amava mais que aos próprios olhos,
porque era doce, conhecia a dona
como conhece a mãe uma menina
e não saía nunca do seu colo,
onde, pulando sem parar de um lado
ao outro, só piava para ela.
E agora ele se foi na tenebrosa
jornada da qual — dizem — ninguém volta.
Maldita sejas, por tragares tudo
que é belo, tu, maldita treva do Orco
que me privaste de um pardal tão belo!
0h, maldição! Coitado do pardal!
Por tua causa, a amada está com olhos
inchados e vermelhos de chorar.
Carmen III
Lugete, o Veneres Cupidinesque,
et quantumst hominum venustiorum!
passer mortuus est meae puellae,
passer, deliciae meae puellae,
quem plus illa oculis suis amabat:
nam mellitus erat suamque norat
ipsam tam bene quam puella matrem,
nec sese a gremio illius movebat,
sed circumsiliens modo huc modo illuc
ad solam dominam usque pipiabat.
qui nunc it per iter tenebricosum
illuc, unde negant redire quemquam.
at vobis male sit, malae tenebrae
Orci, quae omnia bella devoratis:
tam bellum mihi passerem abstulistis.
o factum male, quod, miselle passer,
tua nunc opera meae puellae
flendo turgiduli rubent ocelli!
De: CATULO. Ode 3. In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998
ODE, 3
Chorai, Vênus, Cupidos e homens, quantos
venerem a beleza, oh vós, chorai
a morte do pardal da minha amada,
pardal que era o prazer da minha amada
e que ela amava mais que aos próprios olhos,
porque era doce, conhecia a dona
como conhece a mãe uma menina
e não saía nunca do seu colo,
onde, pulando sem parar de um lado
ao outro, só piava para ela.
E agora ele se foi na tenebrosa
jornada da qual — dizem — ninguém volta.
Maldita sejas, por tragares tudo
que é belo, tu, maldita treva do Orco
que me privaste de um pardal tão belo!
0h, maldição! Coitado do pardal!
Por tua causa, a amada está com olhos
inchados e vermelhos de chorar.
Carmen III
Lugete, o Veneres Cupidinesque,
et quantumst hominum venustiorum!
passer mortuus est meae puellae,
passer, deliciae meae puellae,
quem plus illa oculis suis amabat:
nam mellitus erat suamque norat
ipsam tam bene quam puella matrem,
nec sese a gremio illius movebat,
sed circumsiliens modo huc modo illuc
ad solam dominam usque pipiabat.
qui nunc it per iter tenebricosum
illuc, unde negant redire quemquam.
at vobis male sit, malae tenebrae
Orci, quae omnia bella devoratis:
tam bellum mihi passerem abstulistis.
o factum male, quod, miselle passer,
tua nunc opera meae puellae
flendo turgiduli rubent ocelli!
De: CATULO. Ode 3. In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998
25.1.09
O fenômeno Barack Obama
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 24 de janeiro de 2009.
O fenômeno Barack Obama
NEM OS representantes da direita cínica nem os da esquerda dogmática conseguem esconder seu rancor contra a alegria com que tanta gente saudou a posse de Barack Obama. Tanto uns quanto os outros debocham da "ingenuidade" dos que pensam que, com o novo presidente, alguma coisa possa melhorar nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte do mundo. Segundo eles, nada pode mudar senão para pior.
Acontece que as pessoas que conheço e que ficaram admiradas e alegres com a eleição e a posse de Obama estão longe de ser tão ingênuas quanto eles supõem. Elas não acreditam em milagres ou messias ou "grandes timoneiros"; são conscientes de que o presidente dos Estados Unidos não pode fazer tudo o que quer; percebem que Obama ainda não se provou como administrador; sabem que vivemos um momento de crise econômica mundial sem precedentes; entendem a gravidade das guerras no Oriente Médio e no Afeganistão; compreendem que vivemos um momento instável de imprevisíveis transformações nas correlações internacionais de forças econômicas, políticas e militares etc. etc.
Apesar disso, os que celebram a posse de Obama -entre os quais me incluo- acreditam que já há bastante razão para fazê-lo. Em primeiro lugar, é extraordinário que um homem negro, filho de imigrante, com um nome de origem árabe, tenha sido eleito presidente dos Estados Unidos. Em segundo lugar, é maravilhoso que tal homem deva sua eleição, em grande parte, à superioridade do seu brilho, do seu carisma, das suas ideias. Em terceiro lugar, é esplêndido que, ao eleger Obama, os eleitores americanos tenham claramente repudiado o governo mais vil de que se tem memória nos Estados Unidos, que foi o da extrema direita do Partido Republicano, na figura lamentável de George W. Bush. Em resposta aos que afirmam que nada poderá mudar no novo governo, pode-se dizer que esses três fatos já representam uma imensa mudança.
Mas há mais. Curiosamente, sob influência de comentaristas das grandes redes de televisão norte-americanas, muitos afirmam que Obama nada disse de novo no seu discurso de posse. Isso é uma falsidade. De modo educado, porém firme, ele deixou bem claras as suas diferenças em relação ao antecessor. Entre outras coisas, falou de restaurar ao devido lugar a ciência (que foi vilipendiada, como se sabe, pelo apoio ideológico e material dado por Bush à charlatanice do "design inteligente"); declarou ser falsa a oposição entre os princípios e a segurança (quando Bush, em nome desta, sacrificou aqueles); ressaltou a necessidade de abandonar dois dogmas: o primeiro, quanto ao tamanho do Estado (que o governo Bush pretendeu tornar mínimo no que diz respeito à segurança social, mas não no que diz respeito às forças de repressão e guerra); e o segundo, quanto ao papel do mercado (que o governo Bush quis maximizar por meio, entre outras coisas, de uma desregulamentação cujas consequências se manifestam na atual crise econômica); observou, contra o fanatismo religioso (que Bush sempre cortejou), que o povo dos EUA não se compõe apenas de crentes, mas também de incréus; e afirmou, contra os conservadores, que "o mundo mudou e nós devemos mudar com ele".
As ideias de que o mundo mudou – que o próprio Obama não só afirma mas encarna – e de que devemos mudar com ele são, no fundo, as que mais irritam tanto os direitistas cínicos quanto os esquerdistas dogmáticos. Outra ideia que lhes é inaceitável -e que constitui o próprio teor do discurso de posse- é a de que a sociedade aberta é melhor do que a fechada.
Quanto à direita, ninguém ignora que ela se define exatamente em oposição às ideias de mudança para melhor e de sociedade aberta. Já para a esquerda dogmática, a situação é um pouquinho mais complexa. O que ela é incapaz de admitir é que possa haver qualquer melhora real no mundo antes da superação do capitalismo, isto é, antes da "Revolução". Sendo assim, dado que qualquer mudança real no mundo existente – principalmente nos Estados Unidos, que são o ápice do capitalismo – desmentiria suas teses, não lhe resta senão crer que toda mudança e todo projeto de mudança que se apresente como tal seja um mero engodo. Assim lhe parece ser também a sociedade aberta, que ela descarta como "democracia burguesa".
A meu ver, o que não consegue mudar, o que é esclerosado, são ideologias como essas. As coisas reais mudam o tempo todo, ora para pior, ora para melhor e, embora não possamos saber o que acontecerá daqui para frente, a verdade é que, no momento em que escrevo, o fenômeno Obama já representa uma mudança real para melhor.
O fenômeno Barack Obama
NEM OS representantes da direita cínica nem os da esquerda dogmática conseguem esconder seu rancor contra a alegria com que tanta gente saudou a posse de Barack Obama. Tanto uns quanto os outros debocham da "ingenuidade" dos que pensam que, com o novo presidente, alguma coisa possa melhorar nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte do mundo. Segundo eles, nada pode mudar senão para pior.
Acontece que as pessoas que conheço e que ficaram admiradas e alegres com a eleição e a posse de Obama estão longe de ser tão ingênuas quanto eles supõem. Elas não acreditam em milagres ou messias ou "grandes timoneiros"; são conscientes de que o presidente dos Estados Unidos não pode fazer tudo o que quer; percebem que Obama ainda não se provou como administrador; sabem que vivemos um momento de crise econômica mundial sem precedentes; entendem a gravidade das guerras no Oriente Médio e no Afeganistão; compreendem que vivemos um momento instável de imprevisíveis transformações nas correlações internacionais de forças econômicas, políticas e militares etc. etc.
Apesar disso, os que celebram a posse de Obama -entre os quais me incluo- acreditam que já há bastante razão para fazê-lo. Em primeiro lugar, é extraordinário que um homem negro, filho de imigrante, com um nome de origem árabe, tenha sido eleito presidente dos Estados Unidos. Em segundo lugar, é maravilhoso que tal homem deva sua eleição, em grande parte, à superioridade do seu brilho, do seu carisma, das suas ideias. Em terceiro lugar, é esplêndido que, ao eleger Obama, os eleitores americanos tenham claramente repudiado o governo mais vil de que se tem memória nos Estados Unidos, que foi o da extrema direita do Partido Republicano, na figura lamentável de George W. Bush. Em resposta aos que afirmam que nada poderá mudar no novo governo, pode-se dizer que esses três fatos já representam uma imensa mudança.
Mas há mais. Curiosamente, sob influência de comentaristas das grandes redes de televisão norte-americanas, muitos afirmam que Obama nada disse de novo no seu discurso de posse. Isso é uma falsidade. De modo educado, porém firme, ele deixou bem claras as suas diferenças em relação ao antecessor. Entre outras coisas, falou de restaurar ao devido lugar a ciência (que foi vilipendiada, como se sabe, pelo apoio ideológico e material dado por Bush à charlatanice do "design inteligente"); declarou ser falsa a oposição entre os princípios e a segurança (quando Bush, em nome desta, sacrificou aqueles); ressaltou a necessidade de abandonar dois dogmas: o primeiro, quanto ao tamanho do Estado (que o governo Bush pretendeu tornar mínimo no que diz respeito à segurança social, mas não no que diz respeito às forças de repressão e guerra); e o segundo, quanto ao papel do mercado (que o governo Bush quis maximizar por meio, entre outras coisas, de uma desregulamentação cujas consequências se manifestam na atual crise econômica); observou, contra o fanatismo religioso (que Bush sempre cortejou), que o povo dos EUA não se compõe apenas de crentes, mas também de incréus; e afirmou, contra os conservadores, que "o mundo mudou e nós devemos mudar com ele".
As ideias de que o mundo mudou – que o próprio Obama não só afirma mas encarna – e de que devemos mudar com ele são, no fundo, as que mais irritam tanto os direitistas cínicos quanto os esquerdistas dogmáticos. Outra ideia que lhes é inaceitável -e que constitui o próprio teor do discurso de posse- é a de que a sociedade aberta é melhor do que a fechada.
Quanto à direita, ninguém ignora que ela se define exatamente em oposição às ideias de mudança para melhor e de sociedade aberta. Já para a esquerda dogmática, a situação é um pouquinho mais complexa. O que ela é incapaz de admitir é que possa haver qualquer melhora real no mundo antes da superação do capitalismo, isto é, antes da "Revolução". Sendo assim, dado que qualquer mudança real no mundo existente – principalmente nos Estados Unidos, que são o ápice do capitalismo – desmentiria suas teses, não lhe resta senão crer que toda mudança e todo projeto de mudança que se apresente como tal seja um mero engodo. Assim lhe parece ser também a sociedade aberta, que ela descarta como "democracia burguesa".
A meu ver, o que não consegue mudar, o que é esclerosado, são ideologias como essas. As coisas reais mudam o tempo todo, ora para pior, ora para melhor e, embora não possamos saber o que acontecerá daqui para frente, a verdade é que, no momento em que escrevo, o fenômeno Obama já representa uma mudança real para melhor.
23.1.09
Yves Bonnefoy "L'imperfection est la cime" / "A imperfeição é o cimo"
.
A imperfeição é o cimo
Ocorria que era preciso destruir e destruir e destruir,
Ocorria que só há salvação a esse preço.
Arruinar a face nua que se alça no mármore,
Martelar toda forma, toda beleza.
Amar a perfeição porque ela é o limiar,
Mas negá-la assim que conhecida, esquecê-la morta,
A imperfeição é o cimo.
L’imperfection est la cime
Il y avait qu'il fallait détruire et détruire et détruire,
Il y avait que le salut n'est qu'à ce prix.
Ruiner la face nue qui monte dans le marbre,
Marteler toute forme de beauté.
Aimer la perfection parce qu'elle est le seuil,
Mais la nier sitôt connue, l'oublier morte,
L'imperfection est la cime.
De: BONNEFOY, Yves. "Hier régnant désert". In: Du mouvement et de l'immobilité de Douve. Paris: Gallimard, 1970.
A imperfeição é o cimo
Ocorria que era preciso destruir e destruir e destruir,
Ocorria que só há salvação a esse preço.
Arruinar a face nua que se alça no mármore,
Martelar toda forma, toda beleza.
Amar a perfeição porque ela é o limiar,
Mas negá-la assim que conhecida, esquecê-la morta,
A imperfeição é o cimo.
L’imperfection est la cime
Il y avait qu'il fallait détruire et détruire et détruire,
Il y avait que le salut n'est qu'à ce prix.
Ruiner la face nue qui monte dans le marbre,
Marteler toute forme de beauté.
Aimer la perfection parce qu'elle est le seuil,
Mais la nier sitôt connue, l'oublier morte,
L'imperfection est la cime.
De: BONNEFOY, Yves. "Hier régnant désert". In: Du mouvement et de l'immobilité de Douve. Paris: Gallimard, 1970.
21.1.09
Olivier Cadiot: "les roses" / "as rosas", trad. por Mário Laranjeira
.
as rosas
serão vermelhas
na escuridão?
pode-se pensar nas
rosas vermelhas
na escuridão
les roses
sont-elles rouges
dans l’obscurité?
on peut penser aux
roses rouges
dans l’obscurité
De: CADIOT, Olivier. In: Poetas de França hoje (1945-1995). Seleção, tradução e organização de Mário LARANJEIRA. São Paulo: Edusp, 1996.
as rosas
serão vermelhas
na escuridão?
pode-se pensar nas
rosas vermelhas
na escuridão
les roses
sont-elles rouges
dans l’obscurité?
on peut penser aux
roses rouges
dans l’obscurité
De: CADIOT, Olivier. In: Poetas de França hoje (1945-1995). Seleção, tradução e organização de Mário LARANJEIRA. São Paulo: Edusp, 1996.
20.1.09
Voltaire: sobre o fanatismo
.
Entende-se hoje por fanatismo uma loucura religiosa, sombria e cruel. É uma doença do espírito que se pega como a varíola. Os livros a comunicam bem menos que as assembleias e os discursos. Raramente alguém se excita ao ler, pois então pode ter o senso ponderado. Mas quando um homem ardente e de uma imaginação forte fala a imaginações fracas, seus olhos estão em fogo e esse fogo se comunica: seus tons, seus gestos abalam todos os nervos dos auditores. Ele grita: Deus te olha, sacrifica o que é apenas humano: combate os combates do senhor [lê-se na Bíblia: proeliare bella Domini (I. Reg. XVIII, 17)]: e vai-se combater.
O fanatismo está para a superstição como o delírio para a febre, como a fúria para a cólera.
Aquele que tem êxtases e visões, e que toma os sonhos por realidades, e suas imaginações por profecias é um fanático noviço que dá grandes esperanças: poderá em breve matar pelo amor de Deus.
De: VOLTAIRE. "Fanatisme". In: Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui même. Paris: Éditions complexe, 1994.
Entende-se hoje por fanatismo uma loucura religiosa, sombria e cruel. É uma doença do espírito que se pega como a varíola. Os livros a comunicam bem menos que as assembleias e os discursos. Raramente alguém se excita ao ler, pois então pode ter o senso ponderado. Mas quando um homem ardente e de uma imaginação forte fala a imaginações fracas, seus olhos estão em fogo e esse fogo se comunica: seus tons, seus gestos abalam todos os nervos dos auditores. Ele grita: Deus te olha, sacrifica o que é apenas humano: combate os combates do senhor [lê-se na Bíblia: proeliare bella Domini (I. Reg. XVIII, 17)]: e vai-se combater.
O fanatismo está para a superstição como o delírio para a febre, como a fúria para a cólera.
Aquele que tem êxtases e visões, e que toma os sonhos por realidades, e suas imaginações por profecias é um fanático noviço que dá grandes esperanças: poderá em breve matar pelo amor de Deus.
De: VOLTAIRE. "Fanatisme". In: Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui même. Paris: Éditions complexe, 1994.
18.1.09
Jorge Salomão: "à moda de BANDEIRA"
.
À moda de BANDEIRA
p/ Bob Siqueira
a rua
o casario
a ladeira
o espelho dágua
a baia de Guanabara
Poema inédito de Jorge Salomão: Janeiro de 2009
À moda de BANDEIRA
p/ Bob Siqueira
a rua
o casario
a ladeira
o espelho dágua
a baia de Guanabara
Poema inédito de Jorge Salomão: Janeiro de 2009
16.1.09
Weydson Barros Leal: "A ponte da Boa Vista, Recife"
.
A ponte da Boa Vista, Recife
Esta ponte não se curva
ante o império do rio:
seus braços de ferro
se erguem como trilhos
na partida de um trem subindo aos céus.
De longe,
a ausência do arco
une um lado a outro lado —
trança de espelhos
que no espaço se inscreve.
Grade que guarda o passeio —
gaiola aberta
peneirando a paisagem —
da Rua Nova à Imperatriz,
a menor distancia é a sua passagem.
Ponte das gentes, dos carros,
da visão de imensas flores:
gare de um céu que nos invade.
De: LEAL, Weydson Barros. "A ponte da Boa Vista, Recife" In: Poesia Sempre, nº 28, ano 15 /2008.
A ponte da Boa Vista, Recife
Esta ponte não se curva
ante o império do rio:
seus braços de ferro
se erguem como trilhos
na partida de um trem subindo aos céus.
De longe,
a ausência do arco
une um lado a outro lado —
trança de espelhos
que no espaço se inscreve.
Grade que guarda o passeio —
gaiola aberta
peneirando a paisagem —
da Rua Nova à Imperatriz,
a menor distancia é a sua passagem.
Ponte das gentes, dos carros,
da visão de imensas flores:
gare de um céu que nos invade.
De: LEAL, Weydson Barros. "A ponte da Boa Vista, Recife" In: Poesia Sempre, nº 28, ano 15 /2008.
15.1.09
William Carlos Williams: "the red wheel barrow" / "o carrinho de mão vermelho"
.
XXII
tanta coisa depende
de
um carrinho de mão
vermelho
vidrado pela água da
chuva
perto das galinhas
brancas.
XXII
so much depends
upon
a red wheel
barrow
glazed with rain
water
beside the white
chickens
De: WILLIAMS, William Carlos. "Spring and all". In: LITZ, A. Walton e MACGOWAN, Christopher (orgs.) The collected poems of William Carlos Williams. New York: New Directions, 1986.
XXII
tanta coisa depende
de
um carrinho de mão
vermelho
vidrado pela água da
chuva
perto das galinhas
brancas.
XXII
so much depends
upon
a red wheel
barrow
glazed with rain
water
beside the white
chickens
De: WILLIAMS, William Carlos. "Spring and all". In: LITZ, A. Walton e MACGOWAN, Christopher (orgs.) The collected poems of William Carlos Williams. New York: New Directions, 1986.
13.1.09
Alex Varella: "Escrevia com lápis e borracha"
.
Escrevia com lápis e borracha
Em folhas
Do caderno de caligrafia.
Com tijolo, telha e carvão
Abrindo sulco na terra,
No chão,
No muro e na calçada.
Com canivete na mão, no tronco das árvores.
Até que um dia descobri
Que a mesma folha em que escrevia
Era e vinha
Das plantas e das árvores.
Foi desde então que resolvi
(e inda hoje quero assim)
Que só devo escrever mesmo em folhas verdadeiras,
As originais.
De: VARELLA, Alex. Em Ítaca.Ilha de Santa Catarina: Noa Noa, 1983.
Escrevia com lápis e borracha
Em folhas
Do caderno de caligrafia.
Com tijolo, telha e carvão
Abrindo sulco na terra,
No chão,
No muro e na calçada.
Com canivete na mão, no tronco das árvores.
Até que um dia descobri
Que a mesma folha em que escrevia
Era e vinha
Das plantas e das árvores.
Foi desde então que resolvi
(e inda hoje quero assim)
Que só devo escrever mesmo em folhas verdadeiras,
As originais.
De: VARELLA, Alex. Em Ítaca.Ilha de Santa Catarina: Noa Noa, 1983.
11.1.09
O poeta João Brossa no Brasil
O seguinte artigo – que consiste numa adaptação do relato que fiz para o Diário Catarinense da vinda do poeta Joan Brossa ao Brasil – foi publicado na minha coluna da Folha de São Paulo sábado, 10 de janeiro de 2009.
O poeta Joan Brossa no Brasil
EM DEZEMBRO de 1992, ao ser apresentado a Helena Severo, que no mês seguinte assumiria a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, sugeri-lhe que, em vez de promover apenas shows internacionais de rock, a prefeitura apoiasse também ciclos internacionais de palestras sobre filosofia, arte, literatura etc.
Tendo gostado da ideia, ela me pediu que desenvolvesse um projeto nesse sentido, coisa que foi logo noticiada pela imprensa. Pouco tempo depois, recebi um telefonema de Ana Lúcia Magalhães Pinto, que dirigia a programação cultural do Banco Nacional, dizendo que havia lido a matéria nos jornais e que o Banco Nacional estava disposto a financiar essa iniciativa.
Convidei o poeta Waly Salomão para trabalhar comigo. Na época, João Cabral era amplamente considerado o maior poeta vivo do Brasil. Como Waly e eu o admirávamos imensamente, pensamos logo em incluí-lo no primeiro ciclo.
O nome de João nos lembrou o do seu velho amigo, Joan Brossa, com cuja obra havíamos nos familiarizado pouco tempo antes. Sabíamos que Cabral, quando cônsul em Barcelona, no final da década de 40 e no começo da de 50, havia influenciado um importante grupo de jovens artistas e poetas de Barcelona, inclusive Brossa. Lembramo-nos também de outro "João", o grande poeta americano John Ashbery. Como nos parecia que o mais difícil de tudo seria conseguir a participação do nosso Cabral, que a essa altura andava bastante recluso, começamos pelos outros. Enviamos cartas para Brossa e Ashbery, que concordaram em nos receber, e fomos pessoalmente persuadi-los a vir ao Brasil.
Quando chegamos, na hora marcada, ao edifício em que Brossa morava, em Barcelona, tocamos a campainha várias vezes, inutilmente. Ninguém respondeu ao interfone nem veio abrir a porta. Não havia porteiro. Ligamos de um telefone público para o seu apartamento, mas quem atendeu foi uma secretária eletrônica. Dissemos que estávamos ali, à porta, e nada. Desconfiamos que podia haver algum engano no endereço e indagamos por Brossa aos garçons de um bar, na esquina. Jamais tinham ouvido falar dele. Disseram-nos que por ali havia, de fato, vivido um poeta, alguns anos atrás, mas que já morrera. Sentimos-nos mergulhados em pleno surrealismo catalão. Pela última vez, ligamos para o número de Brossa e falamos com a secretária eletrônica. Usando toda a sua capacidade dramática, Waly apelou para o sentimentalismo: havíamos atravessado o oceano Atlântico, dois pobres poetas, só para encontrar o grande Joan Brossa. Que desolação voltar para casa sem ao menos trocar duas palavras com o nosso ídolo!
Já estávamos realmente a ir embora, quando percebemos, à porta do edifício dele, uma senhora. Sem jamais a ter visto antes, Waly correu a abraçá-la, e ela abriu os braços para acolhê-lo. Lembrei-me de uma cena do filme soviético "Quando Voam as Cegonhas". Essa senhora era a esposa de Brossa. Este estava arrependido de ter consentido em nos receber. Ela, porém, não tendo resistido ao rompante sentimental de Waly, decidira que, querendo ou não, seu marido nos receberia.
Quando lá chegamos, Brossa foi cordial, mas firme: não havia questão de vir ao Brasil, pois se sentia descentrado até quando ia de trem a Valencia (a meia hora de Barcelona). De todo modo, continuamos a conversar. Falamos dos poemas visuais dele, falamos de João Cabral, que ele adorava, falamos do mundo em geral. Em duas horas, ficamos amigos, despedimo-nos e fomos embora, conformados. Que fazer? Procurar outro poeta.
Mal chegamos ao hotel e tocava o telefone: Brossa já estava de malas prontas para vir ao Brasil conosco. Felicíssimos, explicamos a ele que o encontro não era naquela semana, mas dali a três meses.
Depois de Brossa, foi relativamente fácil conseguir Ashbery e Cabral. A noite dos três poetas no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio foi extraordinária. Todos eles disseram coisas surpreendentes e memoráveis. Mas vou descrever apenas a última coisa da noite, que foi a performance poética de Brossa.
Ele havia trazido um tinteiro e uma pena de avestruz. Molhou a pena no tinteiro e saiu do palco, ostensivamente, para escrever alguma coisa. Voltou, molhou novamente a pena e saiu. Fez isso mais uma vez, e trouxe dos bastidores um envelope fechado. Escolheu uma moça bonita na plateia -por acaso era a Renata Sorrah-, entregou-lhe o envelope e lhe pediu que o abrisse dali a três minutos. Os três minutos pareceram três horas. Ao abrir a carta, viu-se que nela estava escrito: FIM.
O poeta Joan Brossa no Brasil
EM DEZEMBRO de 1992, ao ser apresentado a Helena Severo, que no mês seguinte assumiria a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, sugeri-lhe que, em vez de promover apenas shows internacionais de rock, a prefeitura apoiasse também ciclos internacionais de palestras sobre filosofia, arte, literatura etc.
Tendo gostado da ideia, ela me pediu que desenvolvesse um projeto nesse sentido, coisa que foi logo noticiada pela imprensa. Pouco tempo depois, recebi um telefonema de Ana Lúcia Magalhães Pinto, que dirigia a programação cultural do Banco Nacional, dizendo que havia lido a matéria nos jornais e que o Banco Nacional estava disposto a financiar essa iniciativa.
Convidei o poeta Waly Salomão para trabalhar comigo. Na época, João Cabral era amplamente considerado o maior poeta vivo do Brasil. Como Waly e eu o admirávamos imensamente, pensamos logo em incluí-lo no primeiro ciclo.
O nome de João nos lembrou o do seu velho amigo, Joan Brossa, com cuja obra havíamos nos familiarizado pouco tempo antes. Sabíamos que Cabral, quando cônsul em Barcelona, no final da década de 40 e no começo da de 50, havia influenciado um importante grupo de jovens artistas e poetas de Barcelona, inclusive Brossa. Lembramo-nos também de outro "João", o grande poeta americano John Ashbery. Como nos parecia que o mais difícil de tudo seria conseguir a participação do nosso Cabral, que a essa altura andava bastante recluso, começamos pelos outros. Enviamos cartas para Brossa e Ashbery, que concordaram em nos receber, e fomos pessoalmente persuadi-los a vir ao Brasil.
Quando chegamos, na hora marcada, ao edifício em que Brossa morava, em Barcelona, tocamos a campainha várias vezes, inutilmente. Ninguém respondeu ao interfone nem veio abrir a porta. Não havia porteiro. Ligamos de um telefone público para o seu apartamento, mas quem atendeu foi uma secretária eletrônica. Dissemos que estávamos ali, à porta, e nada. Desconfiamos que podia haver algum engano no endereço e indagamos por Brossa aos garçons de um bar, na esquina. Jamais tinham ouvido falar dele. Disseram-nos que por ali havia, de fato, vivido um poeta, alguns anos atrás, mas que já morrera. Sentimos-nos mergulhados em pleno surrealismo catalão. Pela última vez, ligamos para o número de Brossa e falamos com a secretária eletrônica. Usando toda a sua capacidade dramática, Waly apelou para o sentimentalismo: havíamos atravessado o oceano Atlântico, dois pobres poetas, só para encontrar o grande Joan Brossa. Que desolação voltar para casa sem ao menos trocar duas palavras com o nosso ídolo!
Já estávamos realmente a ir embora, quando percebemos, à porta do edifício dele, uma senhora. Sem jamais a ter visto antes, Waly correu a abraçá-la, e ela abriu os braços para acolhê-lo. Lembrei-me de uma cena do filme soviético "Quando Voam as Cegonhas". Essa senhora era a esposa de Brossa. Este estava arrependido de ter consentido em nos receber. Ela, porém, não tendo resistido ao rompante sentimental de Waly, decidira que, querendo ou não, seu marido nos receberia.
Quando lá chegamos, Brossa foi cordial, mas firme: não havia questão de vir ao Brasil, pois se sentia descentrado até quando ia de trem a Valencia (a meia hora de Barcelona). De todo modo, continuamos a conversar. Falamos dos poemas visuais dele, falamos de João Cabral, que ele adorava, falamos do mundo em geral. Em duas horas, ficamos amigos, despedimo-nos e fomos embora, conformados. Que fazer? Procurar outro poeta.
Mal chegamos ao hotel e tocava o telefone: Brossa já estava de malas prontas para vir ao Brasil conosco. Felicíssimos, explicamos a ele que o encontro não era naquela semana, mas dali a três meses.
Depois de Brossa, foi relativamente fácil conseguir Ashbery e Cabral. A noite dos três poetas no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio foi extraordinária. Todos eles disseram coisas surpreendentes e memoráveis. Mas vou descrever apenas a última coisa da noite, que foi a performance poética de Brossa.
Ele havia trazido um tinteiro e uma pena de avestruz. Molhou a pena no tinteiro e saiu do palco, ostensivamente, para escrever alguma coisa. Voltou, molhou novamente a pena e saiu. Fez isso mais uma vez, e trouxe dos bastidores um envelope fechado. Escolheu uma moça bonita na plateia -por acaso era a Renata Sorrah-, entregou-lhe o envelope e lhe pediu que o abrisse dali a três minutos. Os três minutos pareceram três horas. Ao abrir a carta, viu-se que nela estava escrito: FIM.
10.1.09
Adolfo Montejo Navas: § 10 de "Inscripciones"
.
10.
La noche es una radiografia del dia.
De: MONTEJO NAVAS, Adolfo. Inscripciones. Madrid: Coda / Coleccion privada, 1999.
10.
La noche es una radiografia del dia.
De: MONTEJO NAVAS, Adolfo. Inscripciones. Madrid: Coda / Coleccion privada, 1999.
9.1.09
Cruz e Sousa: "Vida obscura"
.
VIDA OBSCURA
Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres,
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.
Atravessaste no silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.
Ninguém te viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.
Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!
De: CRUZ E SOUSA, João da. In: ANDRADE MURICY (Org.). Panorama do movimento simbolista brasileiro. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973.
VIDA OBSCURA
Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres,
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.
Atravessaste no silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.
Ninguém te viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.
Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!
De: CRUZ E SOUSA, João da. In: ANDRADE MURICY (Org.). Panorama do movimento simbolista brasileiro. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973.
6.1.09
Vicente de Carvalho: "Velho Tema I"
.
Velho Tema
I
Só a leve esperança em toda a vida
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.
O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.
Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
De: CARVALHO, Vincente de. In: BANDEIRA, Manuel (org.). Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e da Saúde, 1938.
Velho Tema
I
Só a leve esperança em toda a vida
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.
O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.
Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
De: CARVALHO, Vincente de. In: BANDEIRA, Manuel (org.). Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e da Saúde, 1938.
4.1.09
Eugénio de Andrade: "O sorriso"
.
O sorriso
Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.
De: ANDRADE, Eugénio de. Poemas de Eugénio de Andrade. Seleção, estudo e notas de Arnaldo Saraiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
O sorriso
Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.
De: ANDRADE, Eugénio de. Poemas de Eugénio de Andrade. Seleção, estudo e notas de Arnaldo Saraiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
3.1.09
Miguel de Unamuno: "Leer, leer, leer"
.
Leer, leer, leer
Leer, leer, leer, vivir la vida
que otros soñaron.
Leer, leer, leer, el alma olvida
las cosas que pasaron.
Se quedan las que quedan, las ficciones,
las flores de la pluma,
las olas, las humanas creaciones,
el poso de la espuma.
Leer, leer, leer; ¿seré lectura
mañana también yo?
¿Seré mi creador, mi criatura,
seré lo que pasó?
De: UNAMUNO, Miguel de. Antología poética. México: Porrua, 1958.
Leer, leer, leer
Leer, leer, leer, vivir la vida
que otros soñaron.
Leer, leer, leer, el alma olvida
las cosas que pasaron.
Se quedan las que quedan, las ficciones,
las flores de la pluma,
las olas, las humanas creaciones,
el poso de la espuma.
Leer, leer, leer; ¿seré lectura
mañana también yo?
¿Seré mi creador, mi criatura,
seré lo que pasó?
De: UNAMUNO, Miguel de. Antología poética. México: Porrua, 1958.
2.1.09
"Leblon"
Ontem postei um poema do meu livro Guardar. Hoje, um ainda inédito em livro:
Leblon
O menino olha para o mar:
lá no fundo ele se funde ao céu;
mas atrás há um muro e aquém do olhar
pulsam sangue e morro e mata e breu.
.
Leblon
O menino olha para o mar:
lá no fundo ele se funde ao céu;
mas atrás há um muro e aquém do olhar
pulsam sangue e morro e mata e breu.
.
1.1.09
"Noite"
Por sugestão do Arthur Nogueira, ponho aqui mais um poema meu:
Noite
Vêm lá do canal
reverberações
do ladrar de um cão.
Uma dessas noites
tudo vai embora:
Leve-nos,
ladrão.
Abre-se o sinal
pra ninguém passar.
É melhor ser vão
tudo o que pontua
nossa escuridão.
De: CICERO, Antonio. GUARDAR. Rio de Janeiro: Record, 1996 / Vila Nova do Famalicão: Quase, 2002.
Noite
Vêm lá do canal
reverberações
do ladrar de um cão.
Uma dessas noites
tudo vai embora:
Leve-nos,
ladrão.
Abre-se o sinal
pra ninguém passar.
É melhor ser vão
tudo o que pontua
nossa escuridão.
De: CICERO, Antonio. GUARDAR. Rio de Janeiro: Record, 1996 / Vila Nova do Famalicão: Quase, 2002.