.
Há metafísica bastante em não pensar em nada. (s.d.)
V
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
«Constituição íntima das coisas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
De PESSOA, Fernando. "Ficções do interlúdio: Poemas completos de A. Caeiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
30.11.08
26.11.08
Fernando Pessoa: "Pobre velha música!"
.
[90]
Pobre velha música!
Não sei por que agrado
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
De: PESSOA, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
[90]
Pobre velha música!
Não sei por que agrado
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
De: PESSOA, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
25.11.08
Fernando Pessoa: "Dizem?"
Já que me encontro em Lisboa, onde devo fazer a conferência de encerramento do Congresso Internacional Fernando Pessoa, resolvi aqui postar, até o meu regresso ao Brasil, poemas desse poeta imenso.
[193]
Dizem?
Esquecem.
Não dizem?
Disseram.
Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.
Por que
esperar?
-- Tudo é
sonhar.
De: PESSOA, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
[193]
Dizem?
Esquecem.
Não dizem?
Disseram.
Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.
Por que
esperar?
-- Tudo é
sonhar.
De: PESSOA, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
22.11.08
Fernando Pessoa / Alberto Caeiro: "Só a natureza é divina, e ela não é divina..."
.
XXVII
Só a Natureza é divina, e ela não é divina...
Se falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens
Que dá personalidade às cousas,
E impõe nome às cousas.
Mas as cousas não têm nome nem personalidade:
Existem, e o céu é grande e a terra larga,
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...
Bendito seja eu por tudo quanto sei.
Gozo tudo isso como quem sabe que há o Sol.
De: PESSOA, Fernando. "Ficçoes de interlúdio: Poemas completos de Alberto Caeiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
XXVII
Só a Natureza é divina, e ela não é divina...
Se falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens
Que dá personalidade às cousas,
E impõe nome às cousas.
Mas as cousas não têm nome nem personalidade:
Existem, e o céu é grande e a terra larga,
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...
Bendito seja eu por tudo quanto sei.
Gozo tudo isso como quem sabe que há o Sol.
De: PESSOA, Fernando. "Ficçoes de interlúdio: Poemas completos de Alberto Caeiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
20.11.08
W.H. Auden: "Funeral blues" / "Blues fúnebre" (tradução de Nelson Ascher)
Nelson Ascher traduziu "Funeral blues", de W.H. Auden, para a Folha de São Paulo, em janeiro de 1995. Essa primeira versão se encontra no seu livro Poesia alheia (Rio de Janeiro: Imago, 1998). Recentemente, ela a reviu e modificou. Publico aqui a nova, esplêndida e inédita versão, e, em seguida, o poema original:
BLUES FÚNEBRE
Detenham-se os relógios, cale o telefone,
jogue-se um osso para o cão não ladrar mais,
façam silêncio os pianos e o tambor sancione
o féretro que sai com seu cortejo atrás.
Aviões acima, circulando em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Pombas de luto ostentem crepe no pescoço
e os guardas ponham luvas negras como breu.
Ele era norte, sul, leste, oeste meus e tanto
meus dias úteis quanto o meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto.
Julguei o amor eterno: quem o faz se engana.
Apaguem as estrelas: já nenhuma presta.
Guardem a lua. Arriado, o sol não se levante.
Removam cada oceano e varram a floresta.
Pois tudo mais acabará mal de hoje em diante.
FUNERAL BLUES
Stop all the clocks, cut off the telephone,
prevent the dog from barking with a juicy bone,
silence the pianos and, with muffled drums,
bring out the coffin, let the mourners come.
Let airplanes circle moaning overhead
scribbling on the sky the message: he's dead.
Put crepe-bows round the white necks of the public doves,
let the traffic policemen wear black cotton gloves.
He was my North, my South, my East and West,
my working week, my Sunday rest,
my noon, my midnight, my talk, my song.
I thought that love would last forever; I was wrong.
The stars are not wanted now, put out every one.
Pack up the moon, dismantle the sun.
Pull away the ocean and sweep up the wood.
For nothing now can ever come to any good.
BLUES FÚNEBRE
Detenham-se os relógios, cale o telefone,
jogue-se um osso para o cão não ladrar mais,
façam silêncio os pianos e o tambor sancione
o féretro que sai com seu cortejo atrás.
Aviões acima, circulando em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Pombas de luto ostentem crepe no pescoço
e os guardas ponham luvas negras como breu.
Ele era norte, sul, leste, oeste meus e tanto
meus dias úteis quanto o meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto.
Julguei o amor eterno: quem o faz se engana.
Apaguem as estrelas: já nenhuma presta.
Guardem a lua. Arriado, o sol não se levante.
Removam cada oceano e varram a floresta.
Pois tudo mais acabará mal de hoje em diante.
FUNERAL BLUES
Stop all the clocks, cut off the telephone,
prevent the dog from barking with a juicy bone,
silence the pianos and, with muffled drums,
bring out the coffin, let the mourners come.
Let airplanes circle moaning overhead
scribbling on the sky the message: he's dead.
Put crepe-bows round the white necks of the public doves,
let the traffic policemen wear black cotton gloves.
He was my North, my South, my East and West,
my working week, my Sunday rest,
my noon, my midnight, my talk, my song.
I thought that love would last forever; I was wrong.
The stars are not wanted now, put out every one.
Pack up the moon, dismantle the sun.
Pull away the ocean and sweep up the wood.
For nothing now can ever come to any good.
19.11.08
Machado de Assis: "A Carolina"
.
A Carolina
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.
Trago-te flores – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
De: ASSIS, Machado de. "Poesias coligidas: Dispersas". In: Obra completa, vol.3. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973.
A Carolina
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.
Trago-te flores – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
De: ASSIS, Machado de. "Poesias coligidas: Dispersas". In: Obra completa, vol.3. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973.
18.11.08
Jorge Salomão: "Perfil"
.
PERFIL*
acordo para a noite
mítica e misteriosa do mundo
existe tanta coisa
em cada coisa
os cinzeiros cheios de baganas
o fogo que se acende
e se apaga
nos lábios escrito desejo
certos delirios
como luz
no meio do dia
a casa está limpa
mas parece
uma cratera de um vulcão
uma armadilha
onde foi capturada uma rã
estou como um deus
fantasiado
e nu
num carrossel a girar
num tempo infinitamente longo
as paredes
desaparecem a cada passo
alguns fenônemos
harmonias
tensões
nada se sabe
dança-se tudo
ao brilho do sol
procuro a mim mesmo
na iluminada janela
do pensar
no esconderijo
e lá a natureza ama ficar
tudo é verso
reverso em si
e essas misturas
que sempre tenho que agitar
traçando sózinho
caminhos
abrindo portas
para o desconhecido
como chama
que se move
percebendo contrários
inquieto
melhor que instalar-se no banal
* ver clip no www.youtube.com
nome perfil / Jorge Salomão
PERFIL*
acordo para a noite
mítica e misteriosa do mundo
existe tanta coisa
em cada coisa
os cinzeiros cheios de baganas
o fogo que se acende
e se apaga
nos lábios escrito desejo
certos delirios
como luz
no meio do dia
a casa está limpa
mas parece
uma cratera de um vulcão
uma armadilha
onde foi capturada uma rã
estou como um deus
fantasiado
e nu
num carrossel a girar
num tempo infinitamente longo
as paredes
desaparecem a cada passo
alguns fenônemos
harmonias
tensões
nada se sabe
dança-se tudo
ao brilho do sol
procuro a mim mesmo
na iluminada janela
do pensar
no esconderijo
e lá a natureza ama ficar
tudo é verso
reverso em si
e essas misturas
que sempre tenho que agitar
traçando sózinho
caminhos
abrindo portas
para o desconhecido
como chama
que se move
percebendo contrários
inquieto
melhor que instalar-se no banal
* ver clip no www.youtube.com
nome perfil / Jorge Salomão
16.11.08
João Cabral e o verso livre
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 15 de novembro:
João Cabral e o verso livre
Em 1953, o poeta João Cabral de Melo Neto declarou em entrevista a seu colega, Vinícius de Moraes: “Acho o verso livre uma aquisição fabulosa e que é bobagem qualquer tentativa de volta às formas preestabelecidas. Abrir mão das aquisições da poesia moderna seria para mim como banir a poesia do mundo moderno”.
Trinta e cinco anos depois, em 1988, ele afirmava a Mário César Carvalho que “uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre. No tempo em que você tinha que metrificar e rimar, você tinha que trabalhar seu texto. Desde o momento em que existe o verso livre, todo o mundo acha de descrever a dor de corno dele corno se fosse um poema. No tempo da poesia metrificada e rimada, você tinha que trabalhar e tirava o inútil”.
Como se explica tal inconsistência? Teria João Cabral mudado radicalmente de idéia sobre esse assunto? Certamente houve uma mudança. Creio, porém, que, por trás de uma mudança apenas superficial, encontra-se a profunda coerência da sua concepção de poesia.
Cabral costumava dividir os poetas em dois grupos. O primeiro é o daqueles para quem tudo o que não é espontâneo – logo, tudo o que dá trabalho, tudo o que é difícil – é falso. O segundo, no qual ele mesmo se colocava, é o daqueles para quem tudo o que é espontâneo – logo, tudo o que dispensa o trabalho, tudo o que é fácil – é falso. Para ele, o fácil e espontâneo jamais passava de eco ou repetição inconsciente de vozes alheias. Como se verá, tanto ao defender o verso livre em 1953 quanto ao atacá-lo, em 1988, ele estava tomando posição contra o fácil, espontâneo e repetitivo, e a favor do difícil, trabalhoso e único em poesia.
“O poeta”, disse Cabral uma vez em entrevista a Arnaldo Jabor, “é aquele que nunca aprende a escrever”. Poderíamos também dizer que o poeta é aquele que está sempre aprendendo a escrever. Nas palavras do famoso “O lutador”, de Drummond: “Lutar com palavras / É a luta mais vã. / Entanto lutamos / Mal rompe a manhã”. O poeta luta para dar forma a um poema, isto é, a um objeto estético memorável – ou seja, a um objeto que mereça existir em virtude de seus próprios méritos, independentemente de servir ou não servir para nada ulterior – feito de palavras.
A predileção pelo fácil e espontâneo pode manifestar-se de dois modos. Em primeiro lugar, ela pode manifestar-se como o desprezo por todo trabalho e toda técnica. A “poesia” fica assim reduzida à facilidade de uma expressão pessoal em que a língua é usada, não para dar forma a um objeto de palavras, mas para dizer alguma coisa. Assim, ela exprime, espelha ou repete a vida cotidiana. Não ocorre a luta com as palavras ou a produção de um objeto estético memorável.
Em segundo lugar, a predileção pelo fácil, espontâneo e repetitivo também se manifesta como o artesanato da escrita tradicional de versos. Através de estudo e exercício, o versejador é capaz de adquirir destreza em, entre outras coisas, escrever redondilhas ou decassílabos, rimar versos, compor em formas fixas etc. Com a prática, ele aprende, por exemplo, a improvisar sonetos adequados às mais diversas ocasiões. Para o versejador que atingiu mestria em determinadas técnicas, nada parece mais fácil ou espontâneo do que fazer um “poema”, através da repetição do que é convencionalmente “poético”. Tampouco nesse caso ocorre a luta com as palavras ou a produção de um objeto estético memorável.
No fundo, o problema de Cabral era evitar todo tipo de facilidade, e não, ao contrário do que as duas citações do início deste artigo possam ter levado a crer, opor-se ao verso metrificado ou ao verso livre. Cabral achou um modo próprio de driblar tanto a facilidade dos versos livres e sem rimas quanto a facilidade do uso convencional das técnicas tradicionais. Quando jovem, ele usava versos livres, mas de um modo que – como uma vez explicou a Carlos Carvalhosa – lhe desse tanto trabalho quanto como se fosse metrificado. Mais tarde, passou a usar métrica, mas procurando evitar os ritmos associados a ela; e, embora empregasse rimas, não as fazia perfeitas, mas toantes. Naturalmente, tais soluções foram úteis para ele, mas não são universalizáveis. Elas indicam, entretanto, que, na prática, ele não estava tão preocupado em rejeitar nem procedimentos tradicionais nem procedimentos experimentais, e que seria capaz de usar uns ou outros, na medida em que aumentassem, e não na medida em que aliviassem, a dificuldade do seu trabalho.
Frente às tendências contemporâneas a dissolver e diluir a poesia e a arte, talvez os poetas – e os artistas em geral – devam refletir sobre essas idéias de Cabral. Longe de rejeitar toda regra ou de apelar a regras que facilitem a elaboração ou a recepção da obra, será talvez mais produtivo que o artista imponha a si mesmo determinadas condições – pouco importa se por ele inventadas ou se tomadas de empréstimo à tradição – que, dificultando o seu trabalho, tomem-lhe mais tempo e exijam dele um maior esforço de pensamento, elaboração e criatividade.
João Cabral e o verso livre
Em 1953, o poeta João Cabral de Melo Neto declarou em entrevista a seu colega, Vinícius de Moraes: “Acho o verso livre uma aquisição fabulosa e que é bobagem qualquer tentativa de volta às formas preestabelecidas. Abrir mão das aquisições da poesia moderna seria para mim como banir a poesia do mundo moderno”.
Trinta e cinco anos depois, em 1988, ele afirmava a Mário César Carvalho que “uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre. No tempo em que você tinha que metrificar e rimar, você tinha que trabalhar seu texto. Desde o momento em que existe o verso livre, todo o mundo acha de descrever a dor de corno dele corno se fosse um poema. No tempo da poesia metrificada e rimada, você tinha que trabalhar e tirava o inútil”.
Como se explica tal inconsistência? Teria João Cabral mudado radicalmente de idéia sobre esse assunto? Certamente houve uma mudança. Creio, porém, que, por trás de uma mudança apenas superficial, encontra-se a profunda coerência da sua concepção de poesia.
Cabral costumava dividir os poetas em dois grupos. O primeiro é o daqueles para quem tudo o que não é espontâneo – logo, tudo o que dá trabalho, tudo o que é difícil – é falso. O segundo, no qual ele mesmo se colocava, é o daqueles para quem tudo o que é espontâneo – logo, tudo o que dispensa o trabalho, tudo o que é fácil – é falso. Para ele, o fácil e espontâneo jamais passava de eco ou repetição inconsciente de vozes alheias. Como se verá, tanto ao defender o verso livre em 1953 quanto ao atacá-lo, em 1988, ele estava tomando posição contra o fácil, espontâneo e repetitivo, e a favor do difícil, trabalhoso e único em poesia.
“O poeta”, disse Cabral uma vez em entrevista a Arnaldo Jabor, “é aquele que nunca aprende a escrever”. Poderíamos também dizer que o poeta é aquele que está sempre aprendendo a escrever. Nas palavras do famoso “O lutador”, de Drummond: “Lutar com palavras / É a luta mais vã. / Entanto lutamos / Mal rompe a manhã”. O poeta luta para dar forma a um poema, isto é, a um objeto estético memorável – ou seja, a um objeto que mereça existir em virtude de seus próprios méritos, independentemente de servir ou não servir para nada ulterior – feito de palavras.
A predileção pelo fácil e espontâneo pode manifestar-se de dois modos. Em primeiro lugar, ela pode manifestar-se como o desprezo por todo trabalho e toda técnica. A “poesia” fica assim reduzida à facilidade de uma expressão pessoal em que a língua é usada, não para dar forma a um objeto de palavras, mas para dizer alguma coisa. Assim, ela exprime, espelha ou repete a vida cotidiana. Não ocorre a luta com as palavras ou a produção de um objeto estético memorável.
Em segundo lugar, a predileção pelo fácil, espontâneo e repetitivo também se manifesta como o artesanato da escrita tradicional de versos. Através de estudo e exercício, o versejador é capaz de adquirir destreza em, entre outras coisas, escrever redondilhas ou decassílabos, rimar versos, compor em formas fixas etc. Com a prática, ele aprende, por exemplo, a improvisar sonetos adequados às mais diversas ocasiões. Para o versejador que atingiu mestria em determinadas técnicas, nada parece mais fácil ou espontâneo do que fazer um “poema”, através da repetição do que é convencionalmente “poético”. Tampouco nesse caso ocorre a luta com as palavras ou a produção de um objeto estético memorável.
No fundo, o problema de Cabral era evitar todo tipo de facilidade, e não, ao contrário do que as duas citações do início deste artigo possam ter levado a crer, opor-se ao verso metrificado ou ao verso livre. Cabral achou um modo próprio de driblar tanto a facilidade dos versos livres e sem rimas quanto a facilidade do uso convencional das técnicas tradicionais. Quando jovem, ele usava versos livres, mas de um modo que – como uma vez explicou a Carlos Carvalhosa – lhe desse tanto trabalho quanto como se fosse metrificado. Mais tarde, passou a usar métrica, mas procurando evitar os ritmos associados a ela; e, embora empregasse rimas, não as fazia perfeitas, mas toantes. Naturalmente, tais soluções foram úteis para ele, mas não são universalizáveis. Elas indicam, entretanto, que, na prática, ele não estava tão preocupado em rejeitar nem procedimentos tradicionais nem procedimentos experimentais, e que seria capaz de usar uns ou outros, na medida em que aumentassem, e não na medida em que aliviassem, a dificuldade do seu trabalho.
Frente às tendências contemporâneas a dissolver e diluir a poesia e a arte, talvez os poetas – e os artistas em geral – devam refletir sobre essas idéias de Cabral. Longe de rejeitar toda regra ou de apelar a regras que facilitem a elaboração ou a recepção da obra, será talvez mais produtivo que o artista imponha a si mesmo determinadas condições – pouco importa se por ele inventadas ou se tomadas de empréstimo à tradição – que, dificultando o seu trabalho, tomem-lhe mais tempo e exijam dele um maior esforço de pensamento, elaboração e criatividade.
14.11.08
Cassiano Ricardo: "A outra vida"
.
A outra vida
Não espero outra vida, depois desta.
Se esta é má
Por que não bastará aos deuses, já,
A pena que sofri?
Se é boa a vida, deixará de o ser,
Repetida.
RICARDO, Cassiano. O arranhacéu de vidro. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1956.
A outra vida
Não espero outra vida, depois desta.
Se esta é má
Por que não bastará aos deuses, já,
A pena que sofri?
Se é boa a vida, deixará de o ser,
Repetida.
RICARDO, Cassiano. O arranhacéu de vidro. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1956.
13.11.08
Hermann Hesse: "Über die Felder..." / "Pelos Campos..."
.
Pelos campos...
Pelos céus as nuvens passam
Pelos campos passeia o vento
Por onde vagabundeia
Perdido de ti, mãe, teu rebento.
Pelas ruas rolam as folhas
Pelas árvores passarinhos –
Num lugar pelas montanhas
Há de ficar meu lar longínquo.
Über die Felder...
Über den Himmel Wolken ziehn
Über die Felder geht der Wind,
Über die Felder wandert
Meiner Mutter verlorenes Kind.
Über die Strasse Blätter wehn,
Über den Bäumen Vögel schrein --
Irgendwo über den Bergen
Muß meine ferne Heimat sein.
HESSE, Hermann. Gesammelte Werke in zwölf Bänden, Bd. I. Frankfurt: Suhrkamp, 1970.
Pelos campos...
Pelos céus as nuvens passam
Pelos campos passeia o vento
Por onde vagabundeia
Perdido de ti, mãe, teu rebento.
Pelas ruas rolam as folhas
Pelas árvores passarinhos –
Num lugar pelas montanhas
Há de ficar meu lar longínquo.
Über die Felder...
Über den Himmel Wolken ziehn
Über die Felder geht der Wind,
Über die Felder wandert
Meiner Mutter verlorenes Kind.
Über die Strasse Blätter wehn,
Über den Bäumen Vögel schrein --
Irgendwo über den Bergen
Muß meine ferne Heimat sein.
HESSE, Hermann. Gesammelte Werke in zwölf Bänden, Bd. I. Frankfurt: Suhrkamp, 1970.
11.11.08
William Shakespeare: Soneto LXXIII. Tradução de Ivo Barroso
Soneto LXXIII
Em mim tu podes ver a quadra fria
Em que as folhas, já poucas ou nenhumas,
Pendem do ramo trêmulo onde havia
Outrora ninhos e gorjeio e plumas.
Em mim contemplas essa luz que apaga
Quando no poente o dia se faz mudo
E pouco a pouco a negra noite o traga,
Gêmea da morte, que cancela tudo.
Em mim tu sentes resplender o fogo
Que ardia sob as cinzas do passado
E num leito de morte expira logo
Do quanto que o nutriu ora esgotado.
Sabê-lo faz o teu amor mais forte
Por quem em breve há de levar a morte.
SHAKESPEARE, William. "Soneto LXXIII". In:_____. 50 sonetos. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
Sonnet LXXIII
That time of year thou mayst in me behold,
When yellow leaves, or none, or few do hang
Upon those boughs which shake against the cold,
Bare ruined choirs, where late the sweet birds sang.
In me thou seest the twilight of such day,
As after sunset fadeth in the west,
Which by and by black night doth take away,
Death's second self that seals up all in rest.
In me thou seest the glowing of such fire,
That on the ashes of his youth doth lie,
As the death-bed, whereon it must expire,
Consumed with that which it was nourished by.
This thou perceiv'st, which makes thy love more strong,
To love that well, which thou must leave ere long.
SHAKESPEARE, William. The complete works. Edited with a glossary by W.J. Craig. London: Oxford University Press, 1957.
Em mim tu podes ver a quadra fria
Em que as folhas, já poucas ou nenhumas,
Pendem do ramo trêmulo onde havia
Outrora ninhos e gorjeio e plumas.
Em mim contemplas essa luz que apaga
Quando no poente o dia se faz mudo
E pouco a pouco a negra noite o traga,
Gêmea da morte, que cancela tudo.
Em mim tu sentes resplender o fogo
Que ardia sob as cinzas do passado
E num leito de morte expira logo
Do quanto que o nutriu ora esgotado.
Sabê-lo faz o teu amor mais forte
Por quem em breve há de levar a morte.
SHAKESPEARE, William. "Soneto LXXIII". In:_____. 50 sonetos. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
Sonnet LXXIII
That time of year thou mayst in me behold,
When yellow leaves, or none, or few do hang
Upon those boughs which shake against the cold,
Bare ruined choirs, where late the sweet birds sang.
In me thou seest the twilight of such day,
As after sunset fadeth in the west,
Which by and by black night doth take away,
Death's second self that seals up all in rest.
In me thou seest the glowing of such fire,
That on the ashes of his youth doth lie,
As the death-bed, whereon it must expire,
Consumed with that which it was nourished by.
This thou perceiv'st, which makes thy love more strong,
To love that well, which thou must leave ere long.
SHAKESPEARE, William. The complete works. Edited with a glossary by W.J. Craig. London: Oxford University Press, 1957.
9.11.08
Miguel de Cervantes: D. Quixote, sobre a poesia
.
Cervantes, Don Quijote II:
A poesia, senhor fidalgo, a meu parecer, é como uma donzela terna e de pouca idade e extremamente formosa, a quem cuidam de enriquecer, polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras ciências, e ela há de se servir de todas, e todas hão de se autorizar com ela; porém tal donzela não quer ser manuseada, nem trazida pelas ruas, nem publicada pelas esquinas das praças nem pelos rincões dos palácios. Ela é feita de uma alquimia de tal virtude que quem a souber tratar transforma-la-á em ouro puríssimo de inestimável preço.
La poesía, señor hidalgo, a mi parecer, es como una doncella tierna y de poca edad, y en todo estremo hermosa, a quien tienen cuidado de enriquecer, pulir y adornar otras muchas doncellas, que son todas las otras ciencias, y ella se ha de servir de todas, y todas se han de autorizar con ella; pero esta tal doncella no quiere ser manoseada, ni traída por las calles, ni publicada por las esquinas de las plazas ni por los rincones de los palacios. Ella es hecha de una alquimia de tal virtud, que quien la sabe tratar la volverá en oro purísimo de inestimable precio.
De: CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Madrid: Real Academia Española, 2004, p.666.
Cervantes, Don Quijote II:
A poesia, senhor fidalgo, a meu parecer, é como uma donzela terna e de pouca idade e extremamente formosa, a quem cuidam de enriquecer, polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras ciências, e ela há de se servir de todas, e todas hão de se autorizar com ela; porém tal donzela não quer ser manuseada, nem trazida pelas ruas, nem publicada pelas esquinas das praças nem pelos rincões dos palácios. Ela é feita de uma alquimia de tal virtude que quem a souber tratar transforma-la-á em ouro puríssimo de inestimável preço.
La poesía, señor hidalgo, a mi parecer, es como una doncella tierna y de poca edad, y en todo estremo hermosa, a quien tienen cuidado de enriquecer, pulir y adornar otras muchas doncellas, que son todas las otras ciencias, y ella se ha de servir de todas, y todas se han de autorizar con ella; pero esta tal doncella no quiere ser manoseada, ni traída por las calles, ni publicada por las esquinas de las plazas ni por los rincones de los palacios. Ella es hecha de una alquimia de tal virtud, que quien la sabe tratar la volverá en oro purísimo de inestimable precio.
De: CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Madrid: Real Academia Española, 2004, p.666.
7.11.08
Carlos Drummond de Andrade: "O chamado"
.
O CHAMADO
Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.
Ao vê-lo curvo e desgarrado
na caótica noite urbana,
o que senti, não alegria,
era, talvez, carência humana.
E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperança que não digo)
para onde vai — a que angra serena,
a que Pasárgada, a que abrigo?
A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparências sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.
E foi-se para onde a intuição,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ninguém
pressentisse, em torno, o chamado.
De: "Lição de Coisas". In: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
O CHAMADO
Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.
Ao vê-lo curvo e desgarrado
na caótica noite urbana,
o que senti, não alegria,
era, talvez, carência humana.
E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperança que não digo)
para onde vai — a que angra serena,
a que Pasárgada, a que abrigo?
A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparências sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.
E foi-se para onde a intuição,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ninguém
pressentisse, em torno, o chamado.
De: "Lição de Coisas". In: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
5.11.08
Barack Obama: do discurso da vitória
.
Se há alguém que ainda duvida que a América seja um lugar em que todas as coisas são possíveis, que ainda se pergunta se o sonho dos nossos Fundadores está vivo em nosso tempo, que ainda questiona o poder da nossa democracia, esta noite é a resposta.
[...]
Esta é a verdadeira maravilha da América: ser capaz de mudar.
Se há alguém que ainda duvida que a América seja um lugar em que todas as coisas são possíveis, que ainda se pergunta se o sonho dos nossos Fundadores está vivo em nosso tempo, que ainda questiona o poder da nossa democracia, esta noite é a resposta.
[...]
Esta é a verdadeira maravilha da América: ser capaz de mudar.
Elizabeth Bishop: "One art" / "Uma certa arte" (tradução de Nelson Ascher)
.
One art
The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.
Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.
Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother's watch. And look! my last,
or next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.
Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.
Uma certa arte
A arte da perda é fácil de estudar:
a perda, a tantas coisas, é latente
que perdê-las nem chega a ser azar.
Perde algo a cada dia. Deixa estar:
percam-se a chave, o tempo inutilmente.
A arte da perda é fácil de abarcar.
Perde-se mais e melhor. Nome ou lugar,
destino que talvez tinhas em mente
para a viagem. Nem isto é mesmo azar.
Perdi o relógio de mamãe. E um lar
dos três que tive, o (quase) mais recente.
A arte da perda é fácil de apurar.
Duas cidades lindas. Mais: um par
de rios, uns reinos meus, um continente.
Perdi-os, mas não foi um grande azar.
Mesmo perder-te (a voz jocosa, um ar
que eu amo), isso tampouco me desmente.
A arte da perda é fácil, apesar
de parecer (Anota!) um grande azar.
BISHOP, Elizabeth. In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
One art
The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.
Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.
Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother's watch. And look! my last,
or next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.
Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.
Uma certa arte
A arte da perda é fácil de estudar:
a perda, a tantas coisas, é latente
que perdê-las nem chega a ser azar.
Perde algo a cada dia. Deixa estar:
percam-se a chave, o tempo inutilmente.
A arte da perda é fácil de abarcar.
Perde-se mais e melhor. Nome ou lugar,
destino que talvez tinhas em mente
para a viagem. Nem isto é mesmo azar.
Perdi o relógio de mamãe. E um lar
dos três que tive, o (quase) mais recente.
A arte da perda é fácil de apurar.
Duas cidades lindas. Mais: um par
de rios, uns reinos meus, um continente.
Perdi-os, mas não foi um grande azar.
Mesmo perder-te (a voz jocosa, um ar
que eu amo), isso tampouco me desmente.
A arte da perda é fácil, apesar
de parecer (Anota!) um grande azar.
BISHOP, Elizabeth. In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
3.11.08
Nietzsche: de "Ecce homo"
.
“Deus”, “imortalidade da alma”, “redenção”, “o além”, todos esses são conceitos ao quais não dediquei nenhuma atenção, com os quais não perdi nenhum tempo, nem mesmo quando criança – talvez eu jamais tenha sido bastante infantil para fazê-lo? – Não conheço o ateísmo em absoluto como resultado, e menos ainda como acontecimento: ele se dá em mim como instinto. Sou demasiadamente curioso, demasiadamente problemático, demasiadamente altaneiro para me satisfazer com uma resposta grosseira. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza contra nós, pensadores –, até, no fundo, apenas uma proibição grosseira que nos fazem: não deveis pensar!
De: NIETZSCHE, Friedrich. "Ecce homo: wie man wird, was man ist". Werke in drei Bänden. Bd.2. Herausgegeben von Karl Schlechta. München: Hanser, 1954.
“Deus”, “imortalidade da alma”, “redenção”, “o além”, todos esses são conceitos ao quais não dediquei nenhuma atenção, com os quais não perdi nenhum tempo, nem mesmo quando criança – talvez eu jamais tenha sido bastante infantil para fazê-lo? – Não conheço o ateísmo em absoluto como resultado, e menos ainda como acontecimento: ele se dá em mim como instinto. Sou demasiadamente curioso, demasiadamente problemático, demasiadamente altaneiro para me satisfazer com uma resposta grosseira. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza contra nós, pensadores –, até, no fundo, apenas uma proibição grosseira que nos fazem: não deveis pensar!
De: NIETZSCHE, Friedrich. "Ecce homo: wie man wird, was man ist". Werke in drei Bänden. Bd.2. Herausgegeben von Karl Schlechta. München: Hanser, 1954.
2.11.08
Adriano Nunes: "Soneto IV"
.
SONETO IV
O PENSAMENTO
PESA O POEMA.
POR QUE SUPÕE
SER ASSIM LEVE
COMO UMA PENA?
POR QUE SEQUER
NADA PONDERA
OU PRINCIPIA?
O PENSAMENTO
É MESMO CEGO.
POR QUE NÃO VÊ
QUE SÓ O POEMA
TUDO SUPORTA,
TUDO SUSTENTA?
SONETO IV
O PENSAMENTO
PESA O POEMA.
POR QUE SUPÕE
SER ASSIM LEVE
COMO UMA PENA?
POR QUE SEQUER
NADA PONDERA
OU PRINCIPIA?
O PENSAMENTO
É MESMO CEGO.
POR QUE NÃO VÊ
QUE SÓ O POEMA
TUDO SUPORTA,
TUDO SUSTENTA?
Sobre o "roubo da história"
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 1 de novembro:
Sobre o "Roubo da História"
Livro de Jack Goody desfaz confusões entre o Ocidente e a modernidade
NOS SÉCULOS 19 e 20, a esmagadora superioridade científica, tecnológica e econômica da Europa e dos Estados Unidos sobre o resto do mundo (com exceção, no século 20, do Japão) intrigou inúmeros cientistas sociais. O sociólogo Max Weber, por exemplo, perguntava-se: "Que encadeamento de circunstâncias levou a que precisamente no terreno do Ocidente, e somente aqui, tenham surgido fenômenos culturais que se desenvolvem numa direção -pelo menos é o que gostamos de pensar- de significado e validade universais?".
Trata-se da questão da originalidade do Ocidente. Não é apenas que o Ocidente seja considerado diferente, mas que a sua diferença, a sua singularidade, pareça se encontrar precisamente no seu caráter universal. Entre outros, Karl Marx já havia enfrentado essa questão antes de Weber e, ainda hoje, ela continua a instigar inúmeros cientistas sociais.
Em livro recente publicado este ano no Brasil, "O Roubo da História: Como os Europeus se Apropriaram das Idéias e Invenções do Oriente" (editora Contexto), o antropólogo Jack Goody procura mostrar o caráter em última análise etnocêntrico das respostas que têm sido propostas por praticamente todos esses estudiosos.
Reconhecendo que o Ocidente tem ostentado uma inegável superioridade científica, tecnológica e econômica sobre o resto do mundo, Goody chama atenção, entretanto, para o fato de que essa vantagem é relativamente recente, sendo discutível que tenha ocorrido antes do século 17 ou mesmo antes da Revolução Industrial. Assim, por exemplo, desde o início da Idade Média na Europa até o século 16 ou 17, a China esteve à frente do Ocidente, no que diz respeito à tecnologia e à economia. Basta lembrar que foi do Oriente que vieram as inovações que Francis Bacon, no século 16, considerava centrais para a sociedade moderna, isto é, a bússola, o papel, a pólvora, a prensa, a manufatura e mesmo a industrialização da seda e dos tecidos de algodão.
Ademais, hoje em dia, a ciência, a tecnologia e a economia do Japão, dos "tigres asiáticos", da China e da Índia talvez estejam perto de, novamente, retomar a hegemonia mundial. O etnocentrismo dos estudiosos ocidentais está em projetar no passado da Europa a atual superioridade ocidental nas esferas mencionadas, de modo que essa superioridade -que, considerando-se a história como um todo, não passa de conjuntural- pareça pertencer essencialmente à cultura ocidental.
Tal é o resultado, por exemplo, do esquema conceitual marxista segundo o qual, na Europa, foi a dissolução do escravagismo antigo que produziu as condições necessárias para o estabelecimento do feudalismo medieval, e a dissolução deste que produziu as condições necessárias para o surgimento do capitalismo e da modernidade.
Segundo esse esquema, onde não se encontrem tais condições, o capitalismo não surge espontaneamente. É assim que se pretende explicar por que a Ásia não teria conhecido o capitalismo, antes de ser presa do colonialismo e do imperialismo: ela teria ficado, por milênios, atolada na estagnação daquilo que Marx chamava de "modo de produção asiático". Ora, Goody argumenta convincentemente que essa estagnação mesma jamais passou de um mito.
A meu ver, o grande mérito de "O Roubo da História" é desfazer a confusão entre o Ocidente e a modernidade. Com isso, ele destrói as bases do etnocentrismo verdadeiramente inaceitável -que se encontra na base, por exemplo, da teoria do "choque de civilizações", de Samuel Huntington- que é a pretensão de que a modernidade pertença à cultura ou à "civilização" ocidental.
A modernidade não pertence a cultura nenhuma, mas surge sempre CONTRA uma cultura particular, como uma fenda, uma fissura no tecido desta. Assim, na Europa, a modernidade não surge como um desenvolvimento da cultura cristã, mas como uma crítica a esta ou a determinados componentes desta, feita por indivíduos como Copérnico, Montaigne, Bruno, Descartes etc., indivíduos que, na medida em que a criticavam, já dela se separavam, já dela se desenraizavam.
A crítica faz parte da razão que, não pertencendo a cultura particular nenhuma, está em princípio disponível a todos os seres humanos e culturas. Entendida desse modo, a modernidade não consiste numa etapa da história da Europa ou do mundo, mas numa postura crítica ante a cultura, postura que é capaz de surgir em diferentes momentos e regiões do mundo, como na Atenas de Péricles, na Índia do imperador Ashoka ou no Brasil de hoje.
Sobre o "Roubo da História"
Livro de Jack Goody desfaz confusões entre o Ocidente e a modernidade
NOS SÉCULOS 19 e 20, a esmagadora superioridade científica, tecnológica e econômica da Europa e dos Estados Unidos sobre o resto do mundo (com exceção, no século 20, do Japão) intrigou inúmeros cientistas sociais. O sociólogo Max Weber, por exemplo, perguntava-se: "Que encadeamento de circunstâncias levou a que precisamente no terreno do Ocidente, e somente aqui, tenham surgido fenômenos culturais que se desenvolvem numa direção -pelo menos é o que gostamos de pensar- de significado e validade universais?".
Trata-se da questão da originalidade do Ocidente. Não é apenas que o Ocidente seja considerado diferente, mas que a sua diferença, a sua singularidade, pareça se encontrar precisamente no seu caráter universal. Entre outros, Karl Marx já havia enfrentado essa questão antes de Weber e, ainda hoje, ela continua a instigar inúmeros cientistas sociais.
Em livro recente publicado este ano no Brasil, "O Roubo da História: Como os Europeus se Apropriaram das Idéias e Invenções do Oriente" (editora Contexto), o antropólogo Jack Goody procura mostrar o caráter em última análise etnocêntrico das respostas que têm sido propostas por praticamente todos esses estudiosos.
Reconhecendo que o Ocidente tem ostentado uma inegável superioridade científica, tecnológica e econômica sobre o resto do mundo, Goody chama atenção, entretanto, para o fato de que essa vantagem é relativamente recente, sendo discutível que tenha ocorrido antes do século 17 ou mesmo antes da Revolução Industrial. Assim, por exemplo, desde o início da Idade Média na Europa até o século 16 ou 17, a China esteve à frente do Ocidente, no que diz respeito à tecnologia e à economia. Basta lembrar que foi do Oriente que vieram as inovações que Francis Bacon, no século 16, considerava centrais para a sociedade moderna, isto é, a bússola, o papel, a pólvora, a prensa, a manufatura e mesmo a industrialização da seda e dos tecidos de algodão.
Ademais, hoje em dia, a ciência, a tecnologia e a economia do Japão, dos "tigres asiáticos", da China e da Índia talvez estejam perto de, novamente, retomar a hegemonia mundial. O etnocentrismo dos estudiosos ocidentais está em projetar no passado da Europa a atual superioridade ocidental nas esferas mencionadas, de modo que essa superioridade -que, considerando-se a história como um todo, não passa de conjuntural- pareça pertencer essencialmente à cultura ocidental.
Tal é o resultado, por exemplo, do esquema conceitual marxista segundo o qual, na Europa, foi a dissolução do escravagismo antigo que produziu as condições necessárias para o estabelecimento do feudalismo medieval, e a dissolução deste que produziu as condições necessárias para o surgimento do capitalismo e da modernidade.
Segundo esse esquema, onde não se encontrem tais condições, o capitalismo não surge espontaneamente. É assim que se pretende explicar por que a Ásia não teria conhecido o capitalismo, antes de ser presa do colonialismo e do imperialismo: ela teria ficado, por milênios, atolada na estagnação daquilo que Marx chamava de "modo de produção asiático". Ora, Goody argumenta convincentemente que essa estagnação mesma jamais passou de um mito.
A meu ver, o grande mérito de "O Roubo da História" é desfazer a confusão entre o Ocidente e a modernidade. Com isso, ele destrói as bases do etnocentrismo verdadeiramente inaceitável -que se encontra na base, por exemplo, da teoria do "choque de civilizações", de Samuel Huntington- que é a pretensão de que a modernidade pertença à cultura ou à "civilização" ocidental.
A modernidade não pertence a cultura nenhuma, mas surge sempre CONTRA uma cultura particular, como uma fenda, uma fissura no tecido desta. Assim, na Europa, a modernidade não surge como um desenvolvimento da cultura cristã, mas como uma crítica a esta ou a determinados componentes desta, feita por indivíduos como Copérnico, Montaigne, Bruno, Descartes etc., indivíduos que, na medida em que a criticavam, já dela se separavam, já dela se desenraizavam.
A crítica faz parte da razão que, não pertencendo a cultura particular nenhuma, está em princípio disponível a todos os seres humanos e culturas. Entendida desse modo, a modernidade não consiste numa etapa da história da Europa ou do mundo, mas numa postura crítica ante a cultura, postura que é capaz de surgir em diferentes momentos e regiões do mundo, como na Atenas de Péricles, na Índia do imperador Ashoka ou no Brasil de hoje.