.
L'avenir
Soulevons la paille
regardons la neige
écrivons des lettres
attendons des ordres
Fumons la pipe
en songeant à l'amour
les gabions sont là
regardons la rose
La fontaine n'a pas tari
pas plus que l'or de la paille ne s'est terni
regardons l'abeille
et ne songeons pas à l'avenir
Regardons nos mains
qui sont la neige
la rose et l'abeille
ainsi que l'avenir
O futuro
Levantar a palha
contemplar a neve
escrever as cartas
aguardar as ordens
Fumar o cachimbo
sonhar com o amor
eis aí os cestões
contemplar a rosa
A fonte não secou
e o ouro da palha não desbotou
olhar a abelha
e nem pensar no futuro
Olhar nossas mãos
que são a neve
a rosa e a abelha
além do futuro
De: APOLINAIRE, Guillaume. "L'avenir". In: Calligrammes. Paris: Gallimard, 1925.
30.9.08
27.9.08
Gastão Cruz: Barco
.
Barco
Vou hoje começar a recordar-te
embora a luz entrando sob o arco
escasso da realidade possa dar-te
a ilusão ainda de que o barco
simplesmente balouça mas não parte
Já partiu afinal do porto parco
onde vieste perceber a arte
de nada ser; no mesmo barco marco
lugar como num ventre: igual escala
é a perda da vida que ganhá-la
De: CRUZ, Gastão. Repercussão. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004
Barco
Vou hoje começar a recordar-te
embora a luz entrando sob o arco
escasso da realidade possa dar-te
a ilusão ainda de que o barco
simplesmente balouça mas não parte
Já partiu afinal do porto parco
onde vieste perceber a arte
de nada ser; no mesmo barco marco
lugar como num ventre: igual escala
é a perda da vida que ganhá-la
De: CRUZ, Gastão. Repercussão. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004
22.9.08
Ian Hamilton: "Epitaph" / tradução de Nuno Vidal
.
Epitaph
The scent of old roses and tobacco
Takes me back.
It's almost twenty years
Since I last saw you
And our half-hearted love affair goes on.
You left me this:
A hand, half-open, motionless
On a green counterpane.
Enough to build
A few melancholy poems on.
If I had touched you then
One of us might have survived.
Epitáfio
O aroma de rosas velhas e tabaco
Faz-me regressar.
Há quase vinte anos
Que não nos vemos
E a nossa desapegada paixão continua.
Foi isto que me deixaste:
A mão, entreaberta, imóvel
Sobre uma colcha verde.
O bastante para erguer
Alguns poemas melancólicos.
Se então eu te houvesse tocado
Um de nós podia ter sobrevivido.
De: HAMILTON, Ian. Cinquenta poemas. Edição biligue. Trad. Nuno Vidal. Lisboa: Cotovia, 1995.
Epitaph
The scent of old roses and tobacco
Takes me back.
It's almost twenty years
Since I last saw you
And our half-hearted love affair goes on.
You left me this:
A hand, half-open, motionless
On a green counterpane.
Enough to build
A few melancholy poems on.
If I had touched you then
One of us might have survived.
Epitáfio
O aroma de rosas velhas e tabaco
Faz-me regressar.
Há quase vinte anos
Que não nos vemos
E a nossa desapegada paixão continua.
Foi isto que me deixaste:
A mão, entreaberta, imóvel
Sobre uma colcha verde.
O bastante para erguer
Alguns poemas melancólicos.
Se então eu te houvesse tocado
Um de nós podia ter sobrevivido.
De: HAMILTON, Ian. Cinquenta poemas. Edição biligue. Trad. Nuno Vidal. Lisboa: Cotovia, 1995.
19.9.08
Entrevista à revista Azougue
No ensaio “Poesia e paisagens urbanas”, você argumenta que as vanguardas acabaram, não porque falharam, mas justamente porque tiveram êxito no seu papel de expandir os horizontes da arte. Qual é a relação entre este papel histórico e a potência ou contundência particular que diversas de suas obras nos legaram? Estarão superadas em virtude de seus momentos históricos? De que maneira permanecem?
Não há uma resposta genérica a essa pergunta. É preciso considerar cada obra de arte individualmente. O importante é reconhecer que a importância histórica de uma obra não coincide necessariamente com o seu valor estético. Fontaine, de Duchamp, tem uma enorme importância conceitual e histórica, mas o seu valor estético é praticamente nulo, como, aliás, o próprio Duchamp reconhecia. Por outro lado, Les demoiselles d’Avignon, de Picasso, tem, além da sua importância histórica, um grande valor estético. A prova de que há uma diferença é que não é preciso ver Fontaine para saber tudo o que importa sobre essa obra, mas, a menos que se veja Les demoiselles d’Avignon, é impossível saber tudo o que realmente importa sobre esse quadro.
O modernismo fundamentou-se na especificidade dos gêneros artísticos. Como você vê o desguarnecimento das fronteiras entre as artes que caracteriza o momento “pós-moderno”?
Tanto a busca da essência de cada arte quanto a rejeição dessa essência fazem parte da modernidade. Elas são os dois lados de uma mesma moeda, dois diferentes caminhos abertos pela compreensão moderna de que as formas que nos foram legadas pela tradição são arbitrárias, convencionais, contingentes. É verdade que a própria busca da essência acaba também resultando na sua rejeição, isto é, na convicção de que a arte não tem uma essência descritível, mas esse processo se passa no interior da mesma modernidade. Assim, o movimento Dada, que data da Primeira Guerra, já funde todas as artes. Não há “pós-modernidade”. Esta noção é espúria. O que vivemos hoje é a modernidade plenamente auto-consciente. Uma vez, num ensaio sobre Hélio Oiticica, eu a chamei de supermoderna. Haroldo de Campos, ao ler esse ensaio, me disse gostar muito desse conceito, mas observou que preferia a palavra “supramoderno” a “supermoderno”. Eu prefiro esta última, pelas suas ressonâncias pop-nietzscheanas.
No caso brasileiro, você diria que a antropofagia de Oswald de Andrade está circunscrita a seu momento histórico? Quais rupturas e continuidades estabelece com as experiências contemporâneas?
Os manifestos de Oswald só têm valor histórico, mas a obra poética dele e a noção de antropofagia, não. Contra o nacionalismo e o regionalismo defensivos, tudo o que é mais forte no Brasil – Machado de Assis, Joaquim Nabuco, o Modernismo, Manuel Bandeira, o samba, Drummond, a bossa-nova, João Cabral, o Concretismo, o Néo-
concretismo, o Tropicalismo e mesmo, contra todas as aparências, o próprio Guimarães Rosa – foram agressiva e seletivamente cosmopolitas, isto é, antropofágicos.
Grosso modo, podemos identificar duas frentes principais nas vanguardas: a objetiva (alinhada com as promessas civilizatórias da revolução industrial e da razão) e a subjetivas (a exploração do inconsciente, do sagrado e dos desregramentos via uma postura crítica com relação à modernidade). No Brasil, e em momentos distintos, a primeira frente parece influenciar aquelas vertentes que se integraram ao projeto de modernização do país e seguem um programa estético racionalista; a segunda, por sua vez, caracteriza os movimentos artísticos definidos como marginais, subjetivistas e, muitas vezes, acusados de diletantismo. Como avalia as passagens destas frentes oriundas do modernismo europeu para a cultura brasileira?
Para dizer a verdade, acho que, com exceção da teoria (mas não tanto da prática) de João Cabral e dos manifestos e teorias da fase heróica dos concretistas, praticamente não há poetas que se alinhem com as promessas civilizatórias da revolução industrial e da razão, ou que tenham um programa estético racionalista. Não vejo elogio nenhum do racionalismo na poesia de Bandeira, Drummond, Cecília Meireles ou Ferreira Gullar, por exemplo. Por outro lado, o surrealismo (que explora o inconsciente,o sagrado, os desregramentos etc.) não conseguiu ter, no Brasil, a expressão que teve na França, na Espanha ou em Portugal, por exemplo. Quanto à poesia marginal, parece-me ser outra coisa. Não é possível identificá-la com o surrealismo. Pelo menos quantitativamente, ela é muito forte. Mas acho que eu faria outro recorte da poesia brasileira. Para mim, há os poetas que tomam a poesia como a construção de uma obra de arte – entre os quais eu colocaria não só Cabral e os concretistas, mas esses cujos nomes citei – e os poetas que tomam a poesia como expressão vital, entre os quais eu colocaria os marginais. Interessam-me muito mais os primeiros.
Em Finalidades sem fim, você considera as inovações das vanguardas européias (o desenraizamento, o cosmopolitismo) como desdobramentos da conquista da escrita pela cultura ocidental herdeira da Grécia. Ao mesmo tempo, certas vanguardas abriram caminho ao não-ocidental e fizeram disso um dos focos de crítica à modernidade letrada: instauraram a via cosmopolita, entre outras coisas, justamente por incluírem as contribuições da alteridade. Não acha então que, ao fazerem assim, as vanguardas mostraram que pensamentos cosmopolitas e desenraizados, ao contrário do que sustentam nossos pressupostos imperiais, podem ser encontrados também por outras partes que não nos centros estendidos da cultura européia modernista?
Permitam-me explicar melhor o que penso. A razão – que é, em primeiro lugar, a capacidade de criticar – e a modernidade não são produtos do Ocidente, nem pertencem a ele ou a qualquer cultura particular. Não poderia haver etnocentrismo ou “pressuposto imperial” mais descarado do que a pretensão de que a razão e a modernidade pertencessem exclusivamente ao Ocidente. Ao contrário: no Ocidente, a modernidade surge como uma fenda, como uma crítica, exercida pela razão, à própria cultura ocidental. Quando Montaigne, em nome da razão, critica a França, a Europa, a Cristandade etc., comparando-as desfavoravelmente a outras culturas, inclusive à dos índios brasileiros, ele está, enquanto indivíduo portador da razão, a se separar da França, da Europa, da Cristandade etc.: ele está, a partir da razão, a relativizar a cultura ocidental, que é a cultura em que foi criado. Nesse momento, ele está sendo moderno, e está sendo um dos introdutores da modernidade na Europa. A modernidade não surge, portanto, como um desenvolvimento da própria cultura ocidental, mas como uma crítica a esta, feita por indivíduos que, em certa medida, já dela se separaram, já dela se desenraizaram, e que, ao criticá-la, fazem uso da razão, que não pertence a cultura nenhuma e está disponível a todos os seres humanos, de todas as culturas. Pois bem, a escrita alfabética, por ser, em princípio, acessível a todas as pessoas, foi um mais fortes fatores que favoreceram o desenvolvimento da crítica em geral e, com ela, o desenraizamento, no Ocidente. Essa é sem dúvida essa uma das principais causas pelas quais historicamente foi no Ocidente que a modernidade se manifestou com mais força. Isso não quer dizer que ela não se tenha manifestado também em outras partes do mundo, como já mostrou, por exemplo, Amartya Sen, falando da Índia. Quanto à “crítica à modernidade letrada”, de que você fala, observo que qualquer crítica concebível é necessariamente uma manifestação da própria modernidade letrada: a modernidade letrada só pode ser criticada pela própria modernidade letrada.
Com sua “Fontaine” e seus ready-mades, Marcel Duchamp inaugura uma vertente para a arte que ganha força com o movimento da arte conceitual nos anos 1960 e continua a dominar a assim chamada “arte contemporânea”. Essa vertente artística conceitual não se fundamenta na estética, ao contrário, procura superá-la. Ao ler seu Finalidades sem fim, entendo que para você não existe arte sem estética. Das duas uma: ou a “arte contemporânea” não é arte, ou sua concepção de arte está superada...
Em primeiro lugar, há outras possibilidades que vocês não estão levando em conta. Uma delas é que eu entenda por “estética” algo diferente do que alguns desses “artistas contemporâneos” entendem. E isso, de fato, ocorre. A descoberta de Kant de que a apreciação estética é independente de todo interesse foi normalmente interpretada como se significasse que a apreciação estética fosse puramente formal, desprezando qualquer conteúdo ou significado. Se fosse assim, também eu acharia que Kant estava errado nesse ponto. Schiller, porém, que, a meu ver, melhor entendeu – ou desenvolveu – esse aspecto do pensamento de Kant, afirmava, ao contrário, que apreciar esteticamente uma coisa significa permitir que ela se relacione com a totalidade das nossas diversas potências, sem ser um objeto determinado para nenhuma delas em particular. Devemos entender que, enquanto obra de arte, um objeto não tem nenhuma função utilitária (seja fisiológica, seja política ou seja comercial), nem nenhuma função prática ou cognitiva: que enquanto obra de arte ele não serve para nada. É sem nenhum fim ulterior que uma obra de arte mobiliza de maneiras surpreendentes as nossas faculdades, a nossa razão, a nossa inteligência, a nossa sensibilidade, a nossa sensualidade, a nossa sensitividade, as nossas emoções, o nosso humor etc. e faz com que todas essas faculdades interajam, e que interajam de maneiras também surpreendentes, nem utilitárias, nem práticas, nem cognitivas. Se a “arte contemporânea” de que vocês estão falando não é capaz de fazer isso, então, realmente, não é arte. Observo, porém, que, para mim, “arte contemporânea” é tudo o que se faz contemporaneamente. Uma obra de Luciano Figueiredo, uma canção de Caetano Veloso e um poema de Eucanaã Ferraz, por exemplo, são arte contemporânea e fazem isso. Observo que há também quem negue que a arte tenha a ver com a estética porque ache que a arte não tem que ser bela. Isso, porém, é uma tolice, pois “belo” é uma noção transcendental e não descritiva. Quando chamamos alguma coisa de “bela”, isso quer dizer apenas que a aprovamos, do ponto de vista estético: e podemos aprová-la embora outras pessoas a desaprovem, isto é, a chamem de “feia”. Por exemplo, o quadro, que já citei, Les demoiselles d’Avignon foi em parte inspirado por máscaras africanas, que, na época, eram tidas como feias. Hoje as achamos belas. Esse próprio quadro era tido por feio por quase todo o mundo, quando foi pintado. Hoje, quase todo o mundo o acha belo. Assim, se aprovo uma obra de “arte contemporânea”, vou chamá-la de “bela”; se a chamo de “feia”, estou simplesmente manifestando minha desaprovação.
Um dos conceitos que você apresenta em Finalidades sem fim é o de “modernidade plena” – aliás o fim das vanguardas seria um sintoma da realização da modernidade, sua “plenitude”. O conceito de “modernidade plena” parece inferir uma espécie de superioridade da cultura ocidental sobre as outras. O cosmopolitismo faz um par, portanto, com o autoritarismo iluminista. Sua constante defesa da open society não implica também em desconsiderar toda uma vertente da filosofia que, ao menos desde Nietzsche, reflete de modo crítico sobre as mazelas da modernidade? Como vê esta tensão?
Como já observei ao responder à pergunta 5, a modernidade não é um produto do Ocidente. É um acidente que ela se tenha manifestado com mais força e antes na Europa do que noutras regiões. Dado que a modernidade constitui uma fissura na cultura em que surge, ela manifesta antes a fraqueza do que a força desta. Quanto ao “autoritarismo iluminista”, trata-se de um mito. Autoritárias são as religiões e as culturas pré-modernas, não o iluminismo que é, ao contrário, um movimento de crítica a toda autoridade. É curioso que o pensamento realmente autoritário, como, por exemplo, o católico, tenha conseguido pôr a pecha de autoritário justamente no iluminismo. Penso que o Marxismo foi cúmplice dessa inversão, ao qualificar – ou melhor, desqualificar – a democracia e o individualismo como “burgueses”. Um dos resultados dessa confusão toda é o absurdo – bem contemporâneo – de considerar Nietzsche como um pensador anti-autoritário. Para realmente conhecer o pensamento de Nietzsche, os nietzscheanos de hoje deviam deixar Deleuze, Klossowski e seus epígonos de lado, e ler o próprio Nietzsche. Eles saberiam então que o autor de Assim falou Zaratustra condena a modernidade, não porque esta seja autoritária, mas por não o ser suficientemente; e que defende autoridade, hierarquia e tradição até o ponto de idolatrar o sistema de castas. Deixem-me escolher duas, entre centenas de citações que poderiam provar o que digo. No § 39 de Crepúsculo dos ídolos, intitulado “Crítica da modernidade”, Nietzsche diz: “Para que haja instituições, é preciso haver uma espécie de vontade, de instinto, de imperativo, antiliberal até a malvadeza: a vontade de tradição, de autoridade, de responsabilidade por séculos adiante, de solidariedade entre cadeias de gerações, para a frente e para trás in infinitum. [...] O Ocidente inteiro não tem mais os instintos de que nascem as instituições, de que nasce o futuro: talvez nada contrarie tanto o seu ‘espírito moderno’”. E no § 57 de O Anticristo, diz: “Quem eu mais odeio, dessa gentalha de hoje em dia?” E responde: “a gentalha socialista, os apóstolos da chandala, que corroem o instinto, o prazer, o sentimento de satisfação do trabalhador com sua existenciazinha – que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança... A injustiça jamais se encontra na desigualdade de direitos, mas na aspiração a direitos iguais...”
Em O homem sem conteúdo, Agamben diz que o homem contemporâneo está perigosamente amortecido pelo juízo crítico da arte e prega uma superação da estética. Em suas palavras, “Perhaps nothing is more urgent – if we really want to engage the problem of art in our time – than a destruction of aesthetics that would, by clearing away what is usually taken for granted, allow us to bring into question the very meaning of aesthetics as the science of the work of art.” Como você analisa o trabalho e proposições de Agamben sobre arte e estética? Quais são as opções para além da matriz kantiana?
Se não me engano, esse livro é um dos primeiros de Agamben. Parece escrito por um discípulo de Heidegger que, como seu mestre, tem ojeriza à modernidade. O horror à estética é o horror à autonomia da arte, que é uma das grandes conquistas da modernidade. E o que ele oferece no lugar da autonomia da arte? Absolutamente nada além de nostalgia pela época da heteronomia da arte. Agamben parece não ter compreendido Kant quando diz que este pensa que, para julgarmos uma obra de arte, devemos ter um conceito do que o objeto deveria ser, pois “o fundamento da obra de arte é algo diferente de nós, isto é, o princípio formal-criativo do artista”. O que Agamben não percebe é que, nesse contexto, Kant entende por obra de arte a obra da técnica. Para Kant, há uma diferença entre as obras de arte ordinárias (que são obras da técnica) e as obras das belas-artes, que, são antes produtos do gênio – logo, da natureza – do que da arte, de modo que devem ser apreciadas como se fossem produtos da natureza: “devemos”, diz Kant, “estar conscientes de que se trata de arte [técnica], e não de natureza; porém a finalidade na forma do mesmo deve parecer tão livre de todo constrangimento de regras arbitrárias como se fosse um produto da pura natureza”. Sobre Kant, deve-se dizer que ele foi, sem dúvida, o maior filósofo da modernidade, de modo que, goste-se dele ou não, ele é inevitável. Mas, naturalmente, Kant também foi humano, de modo que tem que ser complementado em alguns pontos, corrigido em outros, e superado em terceiros. Tento, na medida das minhas escassas possibilidades, fazer todas essas coisas, quando faço filosofia. O que não dá é para enterrar a Crítica do juízo antes da hora, como Agamben pretende fazer.
No Brasil de hoje, talvez no mundo, parece haver um duplo fenômeno de proliferação dos poetas e de diminuição da circulação da poesia (por exemplo, no debate público e no mercado). Uma das possíveis explicações para isso é a resistência que a poesia tem de se tornar um produto mercantil, ou seja, de ser tornar objeto da cultura de massas. Ao mesmo tempo, numa sociedade de consumo e laica, parece não haver mais uma função social para o poeta, substituído por outros personagens. A poesia, compreendida como a arte de criar poemas, se tornou anacrônica?
Parece-me que a poesia escrita sempre será – pelo menos em tempo previsível – coisa para poucas pessoas. É que ela exige muito do seu leitor. Para ser plenamente apreciado, cada poema deve ser lido lentamente, em voz baixa ou alta, ou ainda “aural”, como diz o poeta Jacques Roubaud. Alguns de seus trechos, ou ele inteiro, devem ser relidos, às vezes mais de uma vez. Há muitas coisas a serem descobertas num poema, e tudo nele é sugestivo: os sentidos, as alusões, a sonoridade, o ritmo, as relações paronomásicas, as aliterações, as rimas, os assíndetos, as associações icônicas etc. Todos os componentes de um poema escrito podem (e devem) ser levados em conta. Muitos deles são interrelacionados. Tudo isso deve ser comparado a outros poemas que o leitor conheça. E, de preferência, o leitor deve ser familiarizado com os poemas canônicos. Como eu disse na resposta a outra pergunta, o leitor deve convocar e deixar que interajam uns com os outros, até onde não puder mais, todos os recursos de que dispõe: razão, intelecto, experiência, cultura, emoção, sensibilidade, sensualidade, intuição, senso de humor etc. Sem isso tudo, a leitura do poema não compensa: é uma chatice. Um quadro pode ser olhado en passant; um romance, lido à maneira “dinâmica”; uma música, ouvida distraidamente; um filme, uma peça de teatro, um ballet, idem. Um poema, não. Nada mais entediante do que a leitura desatenta de um poema. Quanto melhor ele for, mais faculdades nossas, e em mais alto grau, são por ele solicitadas e atualizadas. É por isso que muita gente tem preguiça de ler um poema, e muita gente jamais o faz. Os que o fazem, porém, sabem que é precisamente a exigência do poema – a atualização e a interação das nossas faculdades – que constitui a recompensa (incomparável) que ele oferece ao seu leitor. Mas os bons poemas são raridades. A função do poeta é fazer essas raridades. Felizmente elas são anacrônicas, porque nos fazem experimentar uma temporalidade inteiramente diferente da temporalidade utilitária em que passamos a maior parte das nossas vidas.
In: Azougue: edição especial 2006-2008. Organização Sergio Cohn, Pedro Cesarino e Renato Rezende. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.
Não há uma resposta genérica a essa pergunta. É preciso considerar cada obra de arte individualmente. O importante é reconhecer que a importância histórica de uma obra não coincide necessariamente com o seu valor estético. Fontaine, de Duchamp, tem uma enorme importância conceitual e histórica, mas o seu valor estético é praticamente nulo, como, aliás, o próprio Duchamp reconhecia. Por outro lado, Les demoiselles d’Avignon, de Picasso, tem, além da sua importância histórica, um grande valor estético. A prova de que há uma diferença é que não é preciso ver Fontaine para saber tudo o que importa sobre essa obra, mas, a menos que se veja Les demoiselles d’Avignon, é impossível saber tudo o que realmente importa sobre esse quadro.
O modernismo fundamentou-se na especificidade dos gêneros artísticos. Como você vê o desguarnecimento das fronteiras entre as artes que caracteriza o momento “pós-moderno”?
Tanto a busca da essência de cada arte quanto a rejeição dessa essência fazem parte da modernidade. Elas são os dois lados de uma mesma moeda, dois diferentes caminhos abertos pela compreensão moderna de que as formas que nos foram legadas pela tradição são arbitrárias, convencionais, contingentes. É verdade que a própria busca da essência acaba também resultando na sua rejeição, isto é, na convicção de que a arte não tem uma essência descritível, mas esse processo se passa no interior da mesma modernidade. Assim, o movimento Dada, que data da Primeira Guerra, já funde todas as artes. Não há “pós-modernidade”. Esta noção é espúria. O que vivemos hoje é a modernidade plenamente auto-consciente. Uma vez, num ensaio sobre Hélio Oiticica, eu a chamei de supermoderna. Haroldo de Campos, ao ler esse ensaio, me disse gostar muito desse conceito, mas observou que preferia a palavra “supramoderno” a “supermoderno”. Eu prefiro esta última, pelas suas ressonâncias pop-nietzscheanas.
No caso brasileiro, você diria que a antropofagia de Oswald de Andrade está circunscrita a seu momento histórico? Quais rupturas e continuidades estabelece com as experiências contemporâneas?
Os manifestos de Oswald só têm valor histórico, mas a obra poética dele e a noção de antropofagia, não. Contra o nacionalismo e o regionalismo defensivos, tudo o que é mais forte no Brasil – Machado de Assis, Joaquim Nabuco, o Modernismo, Manuel Bandeira, o samba, Drummond, a bossa-nova, João Cabral, o Concretismo, o Néo-
concretismo, o Tropicalismo e mesmo, contra todas as aparências, o próprio Guimarães Rosa – foram agressiva e seletivamente cosmopolitas, isto é, antropofágicos.
Grosso modo, podemos identificar duas frentes principais nas vanguardas: a objetiva (alinhada com as promessas civilizatórias da revolução industrial e da razão) e a subjetivas (a exploração do inconsciente, do sagrado e dos desregramentos via uma postura crítica com relação à modernidade). No Brasil, e em momentos distintos, a primeira frente parece influenciar aquelas vertentes que se integraram ao projeto de modernização do país e seguem um programa estético racionalista; a segunda, por sua vez, caracteriza os movimentos artísticos definidos como marginais, subjetivistas e, muitas vezes, acusados de diletantismo. Como avalia as passagens destas frentes oriundas do modernismo europeu para a cultura brasileira?
Para dizer a verdade, acho que, com exceção da teoria (mas não tanto da prática) de João Cabral e dos manifestos e teorias da fase heróica dos concretistas, praticamente não há poetas que se alinhem com as promessas civilizatórias da revolução industrial e da razão, ou que tenham um programa estético racionalista. Não vejo elogio nenhum do racionalismo na poesia de Bandeira, Drummond, Cecília Meireles ou Ferreira Gullar, por exemplo. Por outro lado, o surrealismo (que explora o inconsciente,o sagrado, os desregramentos etc.) não conseguiu ter, no Brasil, a expressão que teve na França, na Espanha ou em Portugal, por exemplo. Quanto à poesia marginal, parece-me ser outra coisa. Não é possível identificá-la com o surrealismo. Pelo menos quantitativamente, ela é muito forte. Mas acho que eu faria outro recorte da poesia brasileira. Para mim, há os poetas que tomam a poesia como a construção de uma obra de arte – entre os quais eu colocaria não só Cabral e os concretistas, mas esses cujos nomes citei – e os poetas que tomam a poesia como expressão vital, entre os quais eu colocaria os marginais. Interessam-me muito mais os primeiros.
Em Finalidades sem fim, você considera as inovações das vanguardas européias (o desenraizamento, o cosmopolitismo) como desdobramentos da conquista da escrita pela cultura ocidental herdeira da Grécia. Ao mesmo tempo, certas vanguardas abriram caminho ao não-ocidental e fizeram disso um dos focos de crítica à modernidade letrada: instauraram a via cosmopolita, entre outras coisas, justamente por incluírem as contribuições da alteridade. Não acha então que, ao fazerem assim, as vanguardas mostraram que pensamentos cosmopolitas e desenraizados, ao contrário do que sustentam nossos pressupostos imperiais, podem ser encontrados também por outras partes que não nos centros estendidos da cultura européia modernista?
Permitam-me explicar melhor o que penso. A razão – que é, em primeiro lugar, a capacidade de criticar – e a modernidade não são produtos do Ocidente, nem pertencem a ele ou a qualquer cultura particular. Não poderia haver etnocentrismo ou “pressuposto imperial” mais descarado do que a pretensão de que a razão e a modernidade pertencessem exclusivamente ao Ocidente. Ao contrário: no Ocidente, a modernidade surge como uma fenda, como uma crítica, exercida pela razão, à própria cultura ocidental. Quando Montaigne, em nome da razão, critica a França, a Europa, a Cristandade etc., comparando-as desfavoravelmente a outras culturas, inclusive à dos índios brasileiros, ele está, enquanto indivíduo portador da razão, a se separar da França, da Europa, da Cristandade etc.: ele está, a partir da razão, a relativizar a cultura ocidental, que é a cultura em que foi criado. Nesse momento, ele está sendo moderno, e está sendo um dos introdutores da modernidade na Europa. A modernidade não surge, portanto, como um desenvolvimento da própria cultura ocidental, mas como uma crítica a esta, feita por indivíduos que, em certa medida, já dela se separaram, já dela se desenraizaram, e que, ao criticá-la, fazem uso da razão, que não pertence a cultura nenhuma e está disponível a todos os seres humanos, de todas as culturas. Pois bem, a escrita alfabética, por ser, em princípio, acessível a todas as pessoas, foi um mais fortes fatores que favoreceram o desenvolvimento da crítica em geral e, com ela, o desenraizamento, no Ocidente. Essa é sem dúvida essa uma das principais causas pelas quais historicamente foi no Ocidente que a modernidade se manifestou com mais força. Isso não quer dizer que ela não se tenha manifestado também em outras partes do mundo, como já mostrou, por exemplo, Amartya Sen, falando da Índia. Quanto à “crítica à modernidade letrada”, de que você fala, observo que qualquer crítica concebível é necessariamente uma manifestação da própria modernidade letrada: a modernidade letrada só pode ser criticada pela própria modernidade letrada.
Com sua “Fontaine” e seus ready-mades, Marcel Duchamp inaugura uma vertente para a arte que ganha força com o movimento da arte conceitual nos anos 1960 e continua a dominar a assim chamada “arte contemporânea”. Essa vertente artística conceitual não se fundamenta na estética, ao contrário, procura superá-la. Ao ler seu Finalidades sem fim, entendo que para você não existe arte sem estética. Das duas uma: ou a “arte contemporânea” não é arte, ou sua concepção de arte está superada...
Em primeiro lugar, há outras possibilidades que vocês não estão levando em conta. Uma delas é que eu entenda por “estética” algo diferente do que alguns desses “artistas contemporâneos” entendem. E isso, de fato, ocorre. A descoberta de Kant de que a apreciação estética é independente de todo interesse foi normalmente interpretada como se significasse que a apreciação estética fosse puramente formal, desprezando qualquer conteúdo ou significado. Se fosse assim, também eu acharia que Kant estava errado nesse ponto. Schiller, porém, que, a meu ver, melhor entendeu – ou desenvolveu – esse aspecto do pensamento de Kant, afirmava, ao contrário, que apreciar esteticamente uma coisa significa permitir que ela se relacione com a totalidade das nossas diversas potências, sem ser um objeto determinado para nenhuma delas em particular. Devemos entender que, enquanto obra de arte, um objeto não tem nenhuma função utilitária (seja fisiológica, seja política ou seja comercial), nem nenhuma função prática ou cognitiva: que enquanto obra de arte ele não serve para nada. É sem nenhum fim ulterior que uma obra de arte mobiliza de maneiras surpreendentes as nossas faculdades, a nossa razão, a nossa inteligência, a nossa sensibilidade, a nossa sensualidade, a nossa sensitividade, as nossas emoções, o nosso humor etc. e faz com que todas essas faculdades interajam, e que interajam de maneiras também surpreendentes, nem utilitárias, nem práticas, nem cognitivas. Se a “arte contemporânea” de que vocês estão falando não é capaz de fazer isso, então, realmente, não é arte. Observo, porém, que, para mim, “arte contemporânea” é tudo o que se faz contemporaneamente. Uma obra de Luciano Figueiredo, uma canção de Caetano Veloso e um poema de Eucanaã Ferraz, por exemplo, são arte contemporânea e fazem isso. Observo que há também quem negue que a arte tenha a ver com a estética porque ache que a arte não tem que ser bela. Isso, porém, é uma tolice, pois “belo” é uma noção transcendental e não descritiva. Quando chamamos alguma coisa de “bela”, isso quer dizer apenas que a aprovamos, do ponto de vista estético: e podemos aprová-la embora outras pessoas a desaprovem, isto é, a chamem de “feia”. Por exemplo, o quadro, que já citei, Les demoiselles d’Avignon foi em parte inspirado por máscaras africanas, que, na época, eram tidas como feias. Hoje as achamos belas. Esse próprio quadro era tido por feio por quase todo o mundo, quando foi pintado. Hoje, quase todo o mundo o acha belo. Assim, se aprovo uma obra de “arte contemporânea”, vou chamá-la de “bela”; se a chamo de “feia”, estou simplesmente manifestando minha desaprovação.
Um dos conceitos que você apresenta em Finalidades sem fim é o de “modernidade plena” – aliás o fim das vanguardas seria um sintoma da realização da modernidade, sua “plenitude”. O conceito de “modernidade plena” parece inferir uma espécie de superioridade da cultura ocidental sobre as outras. O cosmopolitismo faz um par, portanto, com o autoritarismo iluminista. Sua constante defesa da open society não implica também em desconsiderar toda uma vertente da filosofia que, ao menos desde Nietzsche, reflete de modo crítico sobre as mazelas da modernidade? Como vê esta tensão?
Como já observei ao responder à pergunta 5, a modernidade não é um produto do Ocidente. É um acidente que ela se tenha manifestado com mais força e antes na Europa do que noutras regiões. Dado que a modernidade constitui uma fissura na cultura em que surge, ela manifesta antes a fraqueza do que a força desta. Quanto ao “autoritarismo iluminista”, trata-se de um mito. Autoritárias são as religiões e as culturas pré-modernas, não o iluminismo que é, ao contrário, um movimento de crítica a toda autoridade. É curioso que o pensamento realmente autoritário, como, por exemplo, o católico, tenha conseguido pôr a pecha de autoritário justamente no iluminismo. Penso que o Marxismo foi cúmplice dessa inversão, ao qualificar – ou melhor, desqualificar – a democracia e o individualismo como “burgueses”. Um dos resultados dessa confusão toda é o absurdo – bem contemporâneo – de considerar Nietzsche como um pensador anti-autoritário. Para realmente conhecer o pensamento de Nietzsche, os nietzscheanos de hoje deviam deixar Deleuze, Klossowski e seus epígonos de lado, e ler o próprio Nietzsche. Eles saberiam então que o autor de Assim falou Zaratustra condena a modernidade, não porque esta seja autoritária, mas por não o ser suficientemente; e que defende autoridade, hierarquia e tradição até o ponto de idolatrar o sistema de castas. Deixem-me escolher duas, entre centenas de citações que poderiam provar o que digo. No § 39 de Crepúsculo dos ídolos, intitulado “Crítica da modernidade”, Nietzsche diz: “Para que haja instituições, é preciso haver uma espécie de vontade, de instinto, de imperativo, antiliberal até a malvadeza: a vontade de tradição, de autoridade, de responsabilidade por séculos adiante, de solidariedade entre cadeias de gerações, para a frente e para trás in infinitum. [...] O Ocidente inteiro não tem mais os instintos de que nascem as instituições, de que nasce o futuro: talvez nada contrarie tanto o seu ‘espírito moderno’”. E no § 57 de O Anticristo, diz: “Quem eu mais odeio, dessa gentalha de hoje em dia?” E responde: “a gentalha socialista, os apóstolos da chandala, que corroem o instinto, o prazer, o sentimento de satisfação do trabalhador com sua existenciazinha – que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança... A injustiça jamais se encontra na desigualdade de direitos, mas na aspiração a direitos iguais...”
Em O homem sem conteúdo, Agamben diz que o homem contemporâneo está perigosamente amortecido pelo juízo crítico da arte e prega uma superação da estética. Em suas palavras, “Perhaps nothing is more urgent – if we really want to engage the problem of art in our time – than a destruction of aesthetics that would, by clearing away what is usually taken for granted, allow us to bring into question the very meaning of aesthetics as the science of the work of art.” Como você analisa o trabalho e proposições de Agamben sobre arte e estética? Quais são as opções para além da matriz kantiana?
Se não me engano, esse livro é um dos primeiros de Agamben. Parece escrito por um discípulo de Heidegger que, como seu mestre, tem ojeriza à modernidade. O horror à estética é o horror à autonomia da arte, que é uma das grandes conquistas da modernidade. E o que ele oferece no lugar da autonomia da arte? Absolutamente nada além de nostalgia pela época da heteronomia da arte. Agamben parece não ter compreendido Kant quando diz que este pensa que, para julgarmos uma obra de arte, devemos ter um conceito do que o objeto deveria ser, pois “o fundamento da obra de arte é algo diferente de nós, isto é, o princípio formal-criativo do artista”. O que Agamben não percebe é que, nesse contexto, Kant entende por obra de arte a obra da técnica. Para Kant, há uma diferença entre as obras de arte ordinárias (que são obras da técnica) e as obras das belas-artes, que, são antes produtos do gênio – logo, da natureza – do que da arte, de modo que devem ser apreciadas como se fossem produtos da natureza: “devemos”, diz Kant, “estar conscientes de que se trata de arte [técnica], e não de natureza; porém a finalidade na forma do mesmo deve parecer tão livre de todo constrangimento de regras arbitrárias como se fosse um produto da pura natureza”. Sobre Kant, deve-se dizer que ele foi, sem dúvida, o maior filósofo da modernidade, de modo que, goste-se dele ou não, ele é inevitável. Mas, naturalmente, Kant também foi humano, de modo que tem que ser complementado em alguns pontos, corrigido em outros, e superado em terceiros. Tento, na medida das minhas escassas possibilidades, fazer todas essas coisas, quando faço filosofia. O que não dá é para enterrar a Crítica do juízo antes da hora, como Agamben pretende fazer.
No Brasil de hoje, talvez no mundo, parece haver um duplo fenômeno de proliferação dos poetas e de diminuição da circulação da poesia (por exemplo, no debate público e no mercado). Uma das possíveis explicações para isso é a resistência que a poesia tem de se tornar um produto mercantil, ou seja, de ser tornar objeto da cultura de massas. Ao mesmo tempo, numa sociedade de consumo e laica, parece não haver mais uma função social para o poeta, substituído por outros personagens. A poesia, compreendida como a arte de criar poemas, se tornou anacrônica?
Parece-me que a poesia escrita sempre será – pelo menos em tempo previsível – coisa para poucas pessoas. É que ela exige muito do seu leitor. Para ser plenamente apreciado, cada poema deve ser lido lentamente, em voz baixa ou alta, ou ainda “aural”, como diz o poeta Jacques Roubaud. Alguns de seus trechos, ou ele inteiro, devem ser relidos, às vezes mais de uma vez. Há muitas coisas a serem descobertas num poema, e tudo nele é sugestivo: os sentidos, as alusões, a sonoridade, o ritmo, as relações paronomásicas, as aliterações, as rimas, os assíndetos, as associações icônicas etc. Todos os componentes de um poema escrito podem (e devem) ser levados em conta. Muitos deles são interrelacionados. Tudo isso deve ser comparado a outros poemas que o leitor conheça. E, de preferência, o leitor deve ser familiarizado com os poemas canônicos. Como eu disse na resposta a outra pergunta, o leitor deve convocar e deixar que interajam uns com os outros, até onde não puder mais, todos os recursos de que dispõe: razão, intelecto, experiência, cultura, emoção, sensibilidade, sensualidade, intuição, senso de humor etc. Sem isso tudo, a leitura do poema não compensa: é uma chatice. Um quadro pode ser olhado en passant; um romance, lido à maneira “dinâmica”; uma música, ouvida distraidamente; um filme, uma peça de teatro, um ballet, idem. Um poema, não. Nada mais entediante do que a leitura desatenta de um poema. Quanto melhor ele for, mais faculdades nossas, e em mais alto grau, são por ele solicitadas e atualizadas. É por isso que muita gente tem preguiça de ler um poema, e muita gente jamais o faz. Os que o fazem, porém, sabem que é precisamente a exigência do poema – a atualização e a interação das nossas faculdades – que constitui a recompensa (incomparável) que ele oferece ao seu leitor. Mas os bons poemas são raridades. A função do poeta é fazer essas raridades. Felizmente elas são anacrônicas, porque nos fazem experimentar uma temporalidade inteiramente diferente da temporalidade utilitária em que passamos a maior parte das nossas vidas.
In: Azougue: edição especial 2006-2008. Organização Sergio Cohn, Pedro Cesarino e Renato Rezende. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.
Sobre a popularidade de Lula
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada" da Folha de São Paulo sábado, 20 de setembro de 2008:
Sobre a popularidade de Lula
LULA MERECE merece os altos índices de aprovação que tem obtido. E o mais notável é que os merece enquanto frustra as expectativas tanto dos conservadores antipetistas quanto dos radicais de dentro e de fora do PT.
Os conservadores temiam, antes do primeiro mandato de Lula, a volta da inflação galopante, a declaração de moratória, os distúrbios sociais, o colapso das instituições, o caos. Os radicais basicamente torciam por tudo isso, sendo que, no lugar do caos, esperavam uma ampla mobilização popular que culminasse com a substituição da democracia representativa por uma "democracia direta" (leia-se: "ditadura populista"), tendo em vista a realização de "transformações estruturais", isto é, de uma revolução meio cubana, meio pacífica.
Nada disso aconteceu. Contra as expectativas tanto dos conservadores quanto dos radicais, o governo de Lula tem basicamente se mantido dentro dos marcos do Estado de direito.
Hoje os conservadores – que entretanto, no Brasil, jamais morreram de amores pela democracia – temem a implantação de uma ditadura populista. Infelizmente, certos atos promovidos ou apoiados por alguns dos radicais do PT – tais como o mensalão, certas tentativas de intimidar a imprensa, a campanha pelo terceiro turno, a campanha pela "democracia direta", a prática de agências de segurança ilegalmente espionarem até membros do Judiciário e do Legislativo, a lenidade para com os atos ilegais do MST etc.– não nos permitem descartar como simplesmente ridículos tais temores.
Já os radicais se mantêm fiéis a dois dogmas. O primeiro é o de que não será possível realizarem-se as "transformações estruturais" de que, segundo eles, o Brasil precisa, sem a substituição da democracia representativa por uma "democracia direta". O segundo é o de que essas "transformações estruturais" se fazem necessárias porque, a menos que as realize, o Brasil jamais será capaz de resolver ao menos quatro graves problemas: (1) a dependência em relação às metrópoles capitalistas e às flutuações financeiras internacionais; (2) a estagnação ou a regressão econômica; (3) a submissão de grande parte da população brasileira à miséria absoluta; e (4) a manutenção ou o aumento da disparidade de renda entre os brasileiros mais pobres e os mais ricos.
Dado que ainda vivemos numa democracia representativa e não numa "democracia direta", é claro que, de acordo com o primeiro dogma, não se puderam realizar as tais "transformações estruturais". Segue-se, de acordo com o segundo, que nenhum dos quatro graves problemas mencionados pôde ser resolvido.
O fato, porém, é que, na gestão de Lula, cuja política econômica, sabiamente, dá continuidade à do governo -afinal de contas de esquerda- que o antecedeu, a inflação foi controlada e o peso da dívida externa na economia sofreu uma diminuição considerável. Concomitantemente, desmentindo os economistas-ideólogos que supunham serem incompatíveis o controle da inflação e o crescimento econômico, a economia voltou a crescer a taxas respeitáveis, foram gerados milhões de empregos formais e o salário mínimo aumentou em termos reais. E, embora não se possa esperar que país nenhum escape ileso da atual crise financeira, a verdade
é que, se ela houvesse ocorrido há alguns anos, estaríamos em situação bem pior.
Mas, a meu ver, o mais importante feito de Lula foi ter conseguido a diminuição significativa de duas infâmias que pareciam indissociáveis do nosso país: a altíssima disparidade de renda entre os mais pobres e os mais ricos, por um lado, e a miséria absoluta de grande contingente da população, por outro. O progresso na luta contra esses dois horrores foi obtido não só pelo aumento do salário mínimo e a geração de empregos formais, mas também por meio da implementação efetiva de programas sociais como, em primeiro lugar, o Bolsa Família.
Em suma, contra as previsões dos radicais, o Brasil hoje (1) tende a se tornar menos dependente das metrópoles e das intempéries financeiras, (2) cresce economicamente, (3) vê diminuir a população sujeita à miséria absoluta e (4) vê diminuir a disparidade de renda entre os mais pobres e os mais ricos.
Ou seja, mesmo dentro dos marcos do Estado de direito e da democracia representativa, as coisas estão bem mais sujeitas à transformação do que rezam os dogmas. Mas é inútil esperar que os radicais, abrindo mão dos seus dogmas, abram os olhos para a realidade: esta já os deixou para trás há muito tempo.
Sobre a popularidade de Lula
LULA MERECE merece os altos índices de aprovação que tem obtido. E o mais notável é que os merece enquanto frustra as expectativas tanto dos conservadores antipetistas quanto dos radicais de dentro e de fora do PT.
Os conservadores temiam, antes do primeiro mandato de Lula, a volta da inflação galopante, a declaração de moratória, os distúrbios sociais, o colapso das instituições, o caos. Os radicais basicamente torciam por tudo isso, sendo que, no lugar do caos, esperavam uma ampla mobilização popular que culminasse com a substituição da democracia representativa por uma "democracia direta" (leia-se: "ditadura populista"), tendo em vista a realização de "transformações estruturais", isto é, de uma revolução meio cubana, meio pacífica.
Nada disso aconteceu. Contra as expectativas tanto dos conservadores quanto dos radicais, o governo de Lula tem basicamente se mantido dentro dos marcos do Estado de direito.
Hoje os conservadores – que entretanto, no Brasil, jamais morreram de amores pela democracia – temem a implantação de uma ditadura populista. Infelizmente, certos atos promovidos ou apoiados por alguns dos radicais do PT – tais como o mensalão, certas tentativas de intimidar a imprensa, a campanha pelo terceiro turno, a campanha pela "democracia direta", a prática de agências de segurança ilegalmente espionarem até membros do Judiciário e do Legislativo, a lenidade para com os atos ilegais do MST etc.– não nos permitem descartar como simplesmente ridículos tais temores.
Já os radicais se mantêm fiéis a dois dogmas. O primeiro é o de que não será possível realizarem-se as "transformações estruturais" de que, segundo eles, o Brasil precisa, sem a substituição da democracia representativa por uma "democracia direta". O segundo é o de que essas "transformações estruturais" se fazem necessárias porque, a menos que as realize, o Brasil jamais será capaz de resolver ao menos quatro graves problemas: (1) a dependência em relação às metrópoles capitalistas e às flutuações financeiras internacionais; (2) a estagnação ou a regressão econômica; (3) a submissão de grande parte da população brasileira à miséria absoluta; e (4) a manutenção ou o aumento da disparidade de renda entre os brasileiros mais pobres e os mais ricos.
Dado que ainda vivemos numa democracia representativa e não numa "democracia direta", é claro que, de acordo com o primeiro dogma, não se puderam realizar as tais "transformações estruturais". Segue-se, de acordo com o segundo, que nenhum dos quatro graves problemas mencionados pôde ser resolvido.
O fato, porém, é que, na gestão de Lula, cuja política econômica, sabiamente, dá continuidade à do governo -afinal de contas de esquerda- que o antecedeu, a inflação foi controlada e o peso da dívida externa na economia sofreu uma diminuição considerável. Concomitantemente, desmentindo os economistas-ideólogos que supunham serem incompatíveis o controle da inflação e o crescimento econômico, a economia voltou a crescer a taxas respeitáveis, foram gerados milhões de empregos formais e o salário mínimo aumentou em termos reais. E, embora não se possa esperar que país nenhum escape ileso da atual crise financeira, a verdade
é que, se ela houvesse ocorrido há alguns anos, estaríamos em situação bem pior.
Mas, a meu ver, o mais importante feito de Lula foi ter conseguido a diminuição significativa de duas infâmias que pareciam indissociáveis do nosso país: a altíssima disparidade de renda entre os mais pobres e os mais ricos, por um lado, e a miséria absoluta de grande contingente da população, por outro. O progresso na luta contra esses dois horrores foi obtido não só pelo aumento do salário mínimo e a geração de empregos formais, mas também por meio da implementação efetiva de programas sociais como, em primeiro lugar, o Bolsa Família.
Em suma, contra as previsões dos radicais, o Brasil hoje (1) tende a se tornar menos dependente das metrópoles e das intempéries financeiras, (2) cresce economicamente, (3) vê diminuir a população sujeita à miséria absoluta e (4) vê diminuir a disparidade de renda entre os mais pobres e os mais ricos.
Ou seja, mesmo dentro dos marcos do Estado de direito e da democracia representativa, as coisas estão bem mais sujeitas à transformação do que rezam os dogmas. Mas é inútil esperar que os radicais, abrindo mão dos seus dogmas, abram os olhos para a realidade: esta já os deixou para trás há muito tempo.
17.9.08
Ferreira Gullar: "A galinha"
De: GULLAR, Ferreira. "A luta corporal". In: Toda poesia (1950-1980). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
15.9.08
Jorge Salomão: "pseudo blues"
.
pseudo blues
dentro de cada um
tem mais mistérios do que pensa o outro
uma louca paixão avassala
a alma o mais que pode
o certo é incerto,
o incerto é uma estrada reta
de vez em quando acerto
depois tropeço no meio da linha
tem essa mágica
o dia nasce todo dia
resta uma dúvida
o sol só vem de vez em quando
o certo é incerto,
o incerto é uma estrada reta
de vez em quando acerto
depois tropeço no meio da linha
De: SALOMÃO, Jorge. Mosaical. Rio de Janeiro: Gryphus, 1994.
O poema "pseudo blues" foi musicado por Nico Rezende.
pseudo blues
dentro de cada um
tem mais mistérios do que pensa o outro
uma louca paixão avassala
a alma o mais que pode
o certo é incerto,
o incerto é uma estrada reta
de vez em quando acerto
depois tropeço no meio da linha
tem essa mágica
o dia nasce todo dia
resta uma dúvida
o sol só vem de vez em quando
o certo é incerto,
o incerto é uma estrada reta
de vez em quando acerto
depois tropeço no meio da linha
De: SALOMÃO, Jorge. Mosaical. Rio de Janeiro: Gryphus, 1994.
O poema "pseudo blues" foi musicado por Nico Rezende.
14.9.08
Javier Cercas: trecho de "Todo eran campos"
A mí me parece que el peor vicio de los filósofos –o simplemente de eso que algunos llaman intelectuales– consiste en empeñarse en ser interesantes. Yo debo de estar muy anticuado, porque sigo pensando que la filosofía no sirve para disentir del discurso dominante, sino sólo para decir la verdad, y la verdad no siempre es interesante. Decir que todos los hombres buscan la felicidad es aburrido y poco original, porque los filósofos llevan diciéndolo por lo menos desde Aristóteles, pero tiene la ventaja de ser cierto; reivindicar la infelicidad, la enfermedad y la vejez, como hace ahora el filósofo alemán Boris Groys para disentir del discurso dominante de la apoteosis juvenil –no por la alegría de que esas tres tristes cosas formen parte de la vida–, es desde luego original, pero tiene la desventaja de ser una tontería incapaz de sobrevivir al contraste de la experiencia personal: como todo el mundo, cuando yo tenía 18 años era un príncipe sin miedo; como todo el mundo, ahora que tengo 46 no soy más que un mendigo que, como decía el filósofo Cioran, apenas está aprendiendo a convertir sus terrores en sarcasmos.
De: CERCAS, Javier. "Todo eran campos". El País Semanal. Madrid, 7/9/2008.
De: CERCAS, Javier. "Todo eran campos". El País Semanal. Madrid, 7/9/2008.
13.9.08
Ungaretti: "San Martino del Carso" / Tradução de Sérgio Wax
San Martino del Carso
Valloncello dell'Albero Isolato il 27 agosto 1916
Di queste case
non è rimasto
che qualche
brandello di muro
Di tanti
che mi corrispondevano
non è rimasto
neppure tanto
Ma nel cuore
nessuna croce manca
È il mio cuore
il paese più straziato
SAN MARTINO DEL CARSO
Valloneello dell'Albero Isolato, 27 de agosto 1916
Destas casas
sobraram apenas
alguns
farrapos de muro
De tantos
que me correspondiam
não sobrou
nem este pouco
Mas no coração
nenhuma cruz falta
É o meu coração
a aldeia mais dilacerada
De: UNGARETTI, Giuseppe. "O porto sepulto". In: A alegria / L'allegria. Edição bilíngüe. Trad. de Sérgio Wax. Belém: Cejup, 1992.
Valloncello dell'Albero Isolato il 27 agosto 1916
Di queste case
non è rimasto
che qualche
brandello di muro
Di tanti
che mi corrispondevano
non è rimasto
neppure tanto
Ma nel cuore
nessuna croce manca
È il mio cuore
il paese più straziato
SAN MARTINO DEL CARSO
Valloneello dell'Albero Isolato, 27 de agosto 1916
Destas casas
sobraram apenas
alguns
farrapos de muro
De tantos
que me correspondiam
não sobrou
nem este pouco
Mas no coração
nenhuma cruz falta
É o meu coração
a aldeia mais dilacerada
De: UNGARETTI, Giuseppe. "O porto sepulto". In: A alegria / L'allegria. Edição bilíngüe. Trad. de Sérgio Wax. Belém: Cejup, 1992.
10.9.08
Cioran no blog do Mariano
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No seu blog, Mariano dedicou a mim a postagem de um trecho do admirável Breviário de decomposição, de Cioran. Fico grato pela homenagem, que me comove, mas sobretudo recomendo aos leitores deste blog que leiam o belíssimo texto de Cioran, no seguinte endereço: http://peneiradorato.blogspot.com/2008/09/brevirio-de-decomposio-cioran.html.
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No seu blog, Mariano dedicou a mim a postagem de um trecho do admirável Breviário de decomposição, de Cioran. Fico grato pela homenagem, que me comove, mas sobretudo recomendo aos leitores deste blog que leiam o belíssimo texto de Cioran, no seguinte endereço: http://peneiradorato.blogspot.com/2008/09/brevirio-de-decomposio-cioran.html.
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8.9.08
Sophia de Mello Breyner Andresen: "A conquista de Cacela"
.
A conquista de Cacela
As praças-fortes foram conquistadas
Por seu poder e foram sitiadas
As cidades do mar pela riqueza
Porém Cacela
Foi desejada só pela beleza
De: ANDRESEN, Sophia de Mello Bryner. "Livro sexto". In: Obra poética, v.2. Lisboa: Editorial Caminho, 1991.
A conquista de Cacela
As praças-fortes foram conquistadas
Por seu poder e foram sitiadas
As cidades do mar pela riqueza
Porém Cacela
Foi desejada só pela beleza
De: ANDRESEN, Sophia de Mello Bryner. "Livro sexto". In: Obra poética, v.2. Lisboa: Editorial Caminho, 1991.
7.9.08
A evolução e a natureza
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna na "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 6 de setembro:
A evolução e a natureza
NORMALMENTE SUPÕE-SE que o grande escândalo causado pela teoria da evolução seja devido à descoberta de que o ser humano descende de alguma espécie de macacos. De fato, isso foi sem dúvida um escândalo espetacular, uma enorme "ferida narcísica", como dizia Freud, infligida ao homem que aprendera ter sido criado à imagem de Deus.
Mas a teoria da evolução provocou também outros escândalos.
Quero falar de um que, embora menos espetacular, não é menos importante. Trata-se da relativização das espécies naturais. Desde Aristóteles, supunha-se que, criadas ou não, as espécies naturais fossem imutáveis.
A espécie à qual um ente qualquer pertencia era considerada a sua natureza. Ora, a natureza de uma coisa se confundia com seu fim, que era seu bem e sua perfeição próprias. Descobria-se essa natureza a partir do estudo dos espécimes que se encontravam, como dizia Aristóteles, num estado natural, em oposição aos espécimes "degenerados".
Como se pensava saber que um espécime se encontrava no estado natural? Pela observação da sua normalidade, isto é, do fato de que sua constituição física e seu comportamento não desviavam da constituição e do comportamento da maior parte dos indivíduos da mesma espécie. O anormal, ao contrário, era considerado degenerado. Desse modo, a normalidade se tornava normativa. O degenerado era aquele que se constituía ou se comportava contra a sua natureza: "contra naturam".
Pois bem, observando a natureza humana e a natureza da sociedade humana, Aristóteles concluiu que o natural era que a alma governasse o corpo, a inteligência, os apetites, o homem, os animais, o macho, a fêmea, e o senhor, o escravo. Para ele, essas relações eram naturais, e qualquer supressão ou inversão delas se daria contra a natureza. Do mesmo modo, o velho Platão, na sua última obra, pressupunha que a finalidade do erotismo, no indivíduo natural/normal, era a reprodução; logo, considerava contra a natureza toda relação homossexual. Esta última concepção se consolidou na Idade Média e é até hoje doutrina da Igreja Católica, para a qual toda relação homossexual infringe uma "lei natural".
Tal "lei" não passa, evidentemente, de um equívoco, pois as leis da natureza, que são descritivas, isto é, que dizem o que realmente acontece, não devem ser confundidas com as leis humanas, que são prescritivas, isto é, dizem o que deve (ou não deve) ser feito. A lei da gravidade, por exemplo, não diz que todos os corpos que têm massa devem se atrair de determinado modo e sim que se atraem desse modo. Se for descoberto que determinados corpos têm massa e, no entanto, não se atraem do modo previsto, não serão esses corpos que estarão errados, mas a lei da gravidade. Assim também, se uma "lei natural" diz que os indivíduos do mesmo sexo não sentem atração erótica uns pelos outros, basta abrir os olhos para ver que essa "lei" está errada, ou melhor, não é lei, não existe.
A teoria da evolução mostrou que a própria natureza não é algo fixo de uma vez por todas, mas se encontra em transformação. As espécies biológicas mesmas não têm "naturezas" eternas, mas estão em incessante evolução. Isso significa que não se pode considerar como natural exclusivamente a constituição física ou o comportamento "normal", isto é, tradicional. Uma espécie nova surge exatamente a partir das mutações – da "degeneração" – de uma espécie antiga. O indivíduo que, por ser portador de uma mutação está sujeito a ser considerado uma monstruosidade, talvez seja o limiar de uma nova espécie.
O ser humano é o produto de tais mutações, e sua maior novidade consiste em que não apenas a espécie humana, mas cada espécime humano é infinitamente capaz de mudar a si próprio, capaz de experimentar o que nunca antes se experimentou, capaz de criar o que nunca antes existiu. Toda invenção, toda arte, toda técnica, toda cultura pode ser considerada como o resultado da transformação – poderíamos dizer, da perversão – da natureza pelo homem. O primeiro antropóide a se erguer e usar as patas dianteiras como mãos – abrindo caminho para a aventura humana – estava pervertendo a função "natural" desses membros.
Não é lícito, portanto, invocar a "natureza" para justificar – ou para condenar – tais ou quais comportamentos, atos ou instituições. Quem o faz inevitavelmente incorre no provincianismo de "naturalizar" comportamentos, atos ou instituições contingentes e históricos, tais como a dominação do homem sobre a mulher, a escravidão ou a condenação da homossexualidade.
A evolução e a natureza
NORMALMENTE SUPÕE-SE que o grande escândalo causado pela teoria da evolução seja devido à descoberta de que o ser humano descende de alguma espécie de macacos. De fato, isso foi sem dúvida um escândalo espetacular, uma enorme "ferida narcísica", como dizia Freud, infligida ao homem que aprendera ter sido criado à imagem de Deus.
Mas a teoria da evolução provocou também outros escândalos.
Quero falar de um que, embora menos espetacular, não é menos importante. Trata-se da relativização das espécies naturais. Desde Aristóteles, supunha-se que, criadas ou não, as espécies naturais fossem imutáveis.
A espécie à qual um ente qualquer pertencia era considerada a sua natureza. Ora, a natureza de uma coisa se confundia com seu fim, que era seu bem e sua perfeição próprias. Descobria-se essa natureza a partir do estudo dos espécimes que se encontravam, como dizia Aristóteles, num estado natural, em oposição aos espécimes "degenerados".
Como se pensava saber que um espécime se encontrava no estado natural? Pela observação da sua normalidade, isto é, do fato de que sua constituição física e seu comportamento não desviavam da constituição e do comportamento da maior parte dos indivíduos da mesma espécie. O anormal, ao contrário, era considerado degenerado. Desse modo, a normalidade se tornava normativa. O degenerado era aquele que se constituía ou se comportava contra a sua natureza: "contra naturam".
Pois bem, observando a natureza humana e a natureza da sociedade humana, Aristóteles concluiu que o natural era que a alma governasse o corpo, a inteligência, os apetites, o homem, os animais, o macho, a fêmea, e o senhor, o escravo. Para ele, essas relações eram naturais, e qualquer supressão ou inversão delas se daria contra a natureza. Do mesmo modo, o velho Platão, na sua última obra, pressupunha que a finalidade do erotismo, no indivíduo natural/normal, era a reprodução; logo, considerava contra a natureza toda relação homossexual. Esta última concepção se consolidou na Idade Média e é até hoje doutrina da Igreja Católica, para a qual toda relação homossexual infringe uma "lei natural".
Tal "lei" não passa, evidentemente, de um equívoco, pois as leis da natureza, que são descritivas, isto é, que dizem o que realmente acontece, não devem ser confundidas com as leis humanas, que são prescritivas, isto é, dizem o que deve (ou não deve) ser feito. A lei da gravidade, por exemplo, não diz que todos os corpos que têm massa devem se atrair de determinado modo e sim que se atraem desse modo. Se for descoberto que determinados corpos têm massa e, no entanto, não se atraem do modo previsto, não serão esses corpos que estarão errados, mas a lei da gravidade. Assim também, se uma "lei natural" diz que os indivíduos do mesmo sexo não sentem atração erótica uns pelos outros, basta abrir os olhos para ver que essa "lei" está errada, ou melhor, não é lei, não existe.
A teoria da evolução mostrou que a própria natureza não é algo fixo de uma vez por todas, mas se encontra em transformação. As espécies biológicas mesmas não têm "naturezas" eternas, mas estão em incessante evolução. Isso significa que não se pode considerar como natural exclusivamente a constituição física ou o comportamento "normal", isto é, tradicional. Uma espécie nova surge exatamente a partir das mutações – da "degeneração" – de uma espécie antiga. O indivíduo que, por ser portador de uma mutação está sujeito a ser considerado uma monstruosidade, talvez seja o limiar de uma nova espécie.
O ser humano é o produto de tais mutações, e sua maior novidade consiste em que não apenas a espécie humana, mas cada espécime humano é infinitamente capaz de mudar a si próprio, capaz de experimentar o que nunca antes se experimentou, capaz de criar o que nunca antes existiu. Toda invenção, toda arte, toda técnica, toda cultura pode ser considerada como o resultado da transformação – poderíamos dizer, da perversão – da natureza pelo homem. O primeiro antropóide a se erguer e usar as patas dianteiras como mãos – abrindo caminho para a aventura humana – estava pervertendo a função "natural" desses membros.
Não é lícito, portanto, invocar a "natureza" para justificar – ou para condenar – tais ou quais comportamentos, atos ou instituições. Quem o faz inevitavelmente incorre no provincianismo de "naturalizar" comportamentos, atos ou instituições contingentes e históricos, tais como a dominação do homem sobre a mulher, a escravidão ou a condenação da homossexualidade.
Sobre os poemas enviados a este blog
Em comentário ao poema "Um fio do seu cabelo", do Arnaldo Antunes, Adriano Nunes escreveu: "SE FOSSE POSSÍVEL E SE VOCÊ QUISER, GOSTARÍAMOS TODOS DO BLOG, COM CERTEZA, QUE VOCÊ CRITICASSE, EXPUSESSE UM COMENTÁRIO SOBRE AS POESIAS QUE NÓS, OS BLOGUEIROS, ENVIAMOS PARA VOCÊ". Como sinto que isso é um sentimento não apenas dele, resolvi postar aqui a minha resposta:
Querido Adriano,
Obrigado pela distinção que me confere, supondo que pudesse ser de alguma valia a opinião que eu expressasse sobre os poemas que você e outros freqüentadores deste blog me enviam.
Francamente, eu gostaria de poder fazer o que você pede, mas, infelizmente, não é viável. Gosto de vários dos poemas que me enviam (inclusive seus); não gosto tanto de vários outros; mas não acho certo publicar uma opinião leviana, baseada apenas numa primeira impressão. De que vale uma primeira impressão, em matéria de poesia? Deixe-me dar um exemplo. Na década de setenta, quando eu morava na Inglaterra, ouvi elogios a um poeta inglês chamado Philip Larkin. Comprei um livro seu. Como me tinha sido recomendado por alguém cuja opinião eu prezava muito, li-o mais de uma vez. Ainda hoje o tenho, com alguns poemas marcados. Lembro-me porém de ter achado Larkin um poeta menor. Não entendi como podiam elogiá-lo tanto. Pareceu-me mesquinho, insípido, provinciano. Logo me esqueci dele. Décadas depois, no mês passado, deparei-me com uma citação de um poema de Larkin. Fiquei arrepiado. Era um grande poema. Procurei meu antigo volume. Vi que o que tinha nas mãos era um exemplar de uma obra prima. Por que se deu essa mudança em meu gosto? Mistério.
Assim, a menos que me tenha debruçado um bom tempo sobre a obra (e não apenas sobre um ou alguns poemas) de um poeta, não me sinto com o direito de desencorajá-lo, caso não aprecie o(s) texto(s) que ele enviou. Eu posso simplesmente não o(s) ter entendido por não ter sentido afinidade com o projeto poético dele: e isso, possivelmente, por uma falha minha, e não dele.
Por outro lado, lembro as palavras de Eliot: “nenhum poeta honesto jamais pode ter certeza do valor permanente do que escreveu: ele pode ter perdido tempo e atrapalhado a própria vida por nada”. Com que direito eu, sem fundamento suficiente, encorajaria alguém a talvez atrapalhar a própria vida por nada?
O ideal seria, portanto, que eu tivesse tempo para me dedicar, como gostaria, a ler escrupulosamente as obras de todos os poetas com os quais, através deste blog, tenho contato e, em seguida, escrevesse responsavelmente sobre elas. Infelizmente não tenho esse tempo: mal tenho tempo para ler coisas que me são essenciais ou para escrever uma fração das coisas que desejo.
Entretanto, ainda que eu tivesse tempo e fizesse tudo isso, não creio que o meu parecer representasse nada de realmente importante para poeta algum. A VERDADE É QUE NINGUÉM PODE OBTER DE OUTRA PESSOA UMA CONFIRMAÇÃO SEGURA DO VALOR DAQUILO QUE ESCREVE. É-SE POETA A DESPEITO DESSE FATO, OU NÃO SE É POETA.
Bandeira confessou uma vez que ficava “sempre embaraçado para dar qualquer conselho” e que dizia ao jovem poeta que continuasse a fazer os seus versos “sem se preocupar com a opinião de ninguém, inclusive a minha”. Sem a menor pretensão de me comparar com Bandeira, é exatamente isso o que eu gostaria de dizer.
Abraço,
Antonio Cicero
Querido Adriano,
Obrigado pela distinção que me confere, supondo que pudesse ser de alguma valia a opinião que eu expressasse sobre os poemas que você e outros freqüentadores deste blog me enviam.
Francamente, eu gostaria de poder fazer o que você pede, mas, infelizmente, não é viável. Gosto de vários dos poemas que me enviam (inclusive seus); não gosto tanto de vários outros; mas não acho certo publicar uma opinião leviana, baseada apenas numa primeira impressão. De que vale uma primeira impressão, em matéria de poesia? Deixe-me dar um exemplo. Na década de setenta, quando eu morava na Inglaterra, ouvi elogios a um poeta inglês chamado Philip Larkin. Comprei um livro seu. Como me tinha sido recomendado por alguém cuja opinião eu prezava muito, li-o mais de uma vez. Ainda hoje o tenho, com alguns poemas marcados. Lembro-me porém de ter achado Larkin um poeta menor. Não entendi como podiam elogiá-lo tanto. Pareceu-me mesquinho, insípido, provinciano. Logo me esqueci dele. Décadas depois, no mês passado, deparei-me com uma citação de um poema de Larkin. Fiquei arrepiado. Era um grande poema. Procurei meu antigo volume. Vi que o que tinha nas mãos era um exemplar de uma obra prima. Por que se deu essa mudança em meu gosto? Mistério.
Assim, a menos que me tenha debruçado um bom tempo sobre a obra (e não apenas sobre um ou alguns poemas) de um poeta, não me sinto com o direito de desencorajá-lo, caso não aprecie o(s) texto(s) que ele enviou. Eu posso simplesmente não o(s) ter entendido por não ter sentido afinidade com o projeto poético dele: e isso, possivelmente, por uma falha minha, e não dele.
Por outro lado, lembro as palavras de Eliot: “nenhum poeta honesto jamais pode ter certeza do valor permanente do que escreveu: ele pode ter perdido tempo e atrapalhado a própria vida por nada”. Com que direito eu, sem fundamento suficiente, encorajaria alguém a talvez atrapalhar a própria vida por nada?
O ideal seria, portanto, que eu tivesse tempo para me dedicar, como gostaria, a ler escrupulosamente as obras de todos os poetas com os quais, através deste blog, tenho contato e, em seguida, escrevesse responsavelmente sobre elas. Infelizmente não tenho esse tempo: mal tenho tempo para ler coisas que me são essenciais ou para escrever uma fração das coisas que desejo.
Entretanto, ainda que eu tivesse tempo e fizesse tudo isso, não creio que o meu parecer representasse nada de realmente importante para poeta algum. A VERDADE É QUE NINGUÉM PODE OBTER DE OUTRA PESSOA UMA CONFIRMAÇÃO SEGURA DO VALOR DAQUILO QUE ESCREVE. É-SE POETA A DESPEITO DESSE FATO, OU NÃO SE É POETA.
Bandeira confessou uma vez que ficava “sempre embaraçado para dar qualquer conselho” e que dizia ao jovem poeta que continuasse a fazer os seus versos “sem se preocupar com a opinião de ninguém, inclusive a minha”. Sem a menor pretensão de me comparar com Bandeira, é exatamente isso o que eu gostaria de dizer.
Abraço,
Antonio Cicero
5.9.08
Arnaldo Antunes: "Um fio do seu cabelo"
De: ANTUNES, Arnaldo. "Nada de DNA". In: Como é que chama o nome disso. Antologia. São Paulo: Publifolha, 2006.
3.9.08
Hudson Carvalho: O fim da política
.
O fim da política
*Hudson Carvalho
Vivemos dias confusos. Dias de excesso de imoralidades e da falta de valores. Por um lado, abundantes manifestações de carência moral e de ética nas instâncias pública e privada. Por outro, guardiões postiços e autênticos da moralidade bradando para restabelecê-la; às vezes ao arrepio das leis.
Os descaminhos pululam em todos os lugares. É na esfera pública, porém, que eles mais cintilam. A impressão generalizada é de que os nossos homens públicos só aprontam, quase sem exceção. Pelo menos, é o que nos reporta a grande imprensa diária. São escândalos e mais escândalos, dia após dia, em uma seqüência funesta que, pelo volume, mais nos entorpece do que nos indigna. E se a mídia exagera, não significa que ela esteja tratando de um universo alheio ao verdadeiro.
Na contra-ofensiva, instituições e pessoas denunciando e lutando contra o descalabro. Nem todas de boa fé, ressalta-se. Há aí também, no meio dos genuinamente bem-intencionados, uma matula de aproveitadores midiáticos, de éticos de ocasião, de justiceiros sem lei, de moralistas profissionais, de ingênuos manipuláveis. Todos - os bons e os maus - amparados por uma grande mídia majoritariamente de espírito udenista.
Na política é onde esse embate está mais latente. Sem a prevalência de princípios e ideologias, o ambiente político virou uma terra arrasada moralmente, onde imperam as safadezas e o desinteresse público. Como subproduto, surge a judicialização da política em uma tentativa do Poder Judiciário de higienizar ordem tão degradada. Soma-se a isso a cruzada midiática, balizada pelo açodamento natural dos que dependem das concorrências mercantis.
O certo é de que, do jeito que a coisa anda, esse confronto mais do que produzindo bons resultados para a moralização da política está nos conduzindo para o fim da política, conforme já anotaram vários estudiosos.
Ninguém nega que o espaço político tornou-se, comumente, um lugar de perdição, corrupção e vícios. E se a própria classe política não cuida do seu ambiente, o Judiciário e a imprensa tentam remediá-lo. Por sua vez, quando esses poderes atuam, eles o fazem na maioria das vezes para amputar o espaço da política, e não para cristalizar direitos. Por trás de uma retórica de valores morais, mesmo que não seja essa a intenção, há, na prática, uma ameaça as conquistas da democracia formal e das liberdades individuais.
E é isso que vivemos nesses dias confusos. Onde anda a política com “P” maiúsculo? Não está nos partidos. Não está nos governos. Não está nas casas legislativas. Não está na sociedade. Na mídia, só a encontramos encardida.
A política tem sido vítima dela mesmo e das gentes e circunstâncias do nosso tempo. Desvirtuou-se e paga um preço por descaminho. Não há mais a política das idéias, das convicções. Só há a política dos interesses, sem causa pública. Por isso, provoca reações também radicalizadas por parte dos oponentes, como segmentos da sociedade, do Judiciário e da imprensa, que muitas vezes atuam inspirados pela máxima de que os fins justificam os meios e rasgam as formalidades que se interpõem.
Tudo isso seria relativo, se na fronteira desse confronto não constasse, mesmo que veladamente, um prenúncio de desgraça: o fim da política pode ser também o fim dos direitos, das liberdades individuais e da democracia.
*Jornalista.
O fim da política
*Hudson Carvalho
Vivemos dias confusos. Dias de excesso de imoralidades e da falta de valores. Por um lado, abundantes manifestações de carência moral e de ética nas instâncias pública e privada. Por outro, guardiões postiços e autênticos da moralidade bradando para restabelecê-la; às vezes ao arrepio das leis.
Os descaminhos pululam em todos os lugares. É na esfera pública, porém, que eles mais cintilam. A impressão generalizada é de que os nossos homens públicos só aprontam, quase sem exceção. Pelo menos, é o que nos reporta a grande imprensa diária. São escândalos e mais escândalos, dia após dia, em uma seqüência funesta que, pelo volume, mais nos entorpece do que nos indigna. E se a mídia exagera, não significa que ela esteja tratando de um universo alheio ao verdadeiro.
Na contra-ofensiva, instituições e pessoas denunciando e lutando contra o descalabro. Nem todas de boa fé, ressalta-se. Há aí também, no meio dos genuinamente bem-intencionados, uma matula de aproveitadores midiáticos, de éticos de ocasião, de justiceiros sem lei, de moralistas profissionais, de ingênuos manipuláveis. Todos - os bons e os maus - amparados por uma grande mídia majoritariamente de espírito udenista.
Na política é onde esse embate está mais latente. Sem a prevalência de princípios e ideologias, o ambiente político virou uma terra arrasada moralmente, onde imperam as safadezas e o desinteresse público. Como subproduto, surge a judicialização da política em uma tentativa do Poder Judiciário de higienizar ordem tão degradada. Soma-se a isso a cruzada midiática, balizada pelo açodamento natural dos que dependem das concorrências mercantis.
O certo é de que, do jeito que a coisa anda, esse confronto mais do que produzindo bons resultados para a moralização da política está nos conduzindo para o fim da política, conforme já anotaram vários estudiosos.
Ninguém nega que o espaço político tornou-se, comumente, um lugar de perdição, corrupção e vícios. E se a própria classe política não cuida do seu ambiente, o Judiciário e a imprensa tentam remediá-lo. Por sua vez, quando esses poderes atuam, eles o fazem na maioria das vezes para amputar o espaço da política, e não para cristalizar direitos. Por trás de uma retórica de valores morais, mesmo que não seja essa a intenção, há, na prática, uma ameaça as conquistas da democracia formal e das liberdades individuais.
E é isso que vivemos nesses dias confusos. Onde anda a política com “P” maiúsculo? Não está nos partidos. Não está nos governos. Não está nas casas legislativas. Não está na sociedade. Na mídia, só a encontramos encardida.
A política tem sido vítima dela mesmo e das gentes e circunstâncias do nosso tempo. Desvirtuou-se e paga um preço por descaminho. Não há mais a política das idéias, das convicções. Só há a política dos interesses, sem causa pública. Por isso, provoca reações também radicalizadas por parte dos oponentes, como segmentos da sociedade, do Judiciário e da imprensa, que muitas vezes atuam inspirados pela máxima de que os fins justificam os meios e rasgam as formalidades que se interpõem.
Tudo isso seria relativo, se na fronteira desse confronto não constasse, mesmo que veladamente, um prenúncio de desgraça: o fim da política pode ser também o fim dos direitos, das liberdades individuais e da democracia.
*Jornalista.
2.9.08
Sartre: sobre o poeta
Os poetas são homens que se recusam a utilizar a linguagem. Ora, como é na linguagem, concebida como uma certa espécie de instrumento, e através dela, que se opera a busca da verdade, não se deve imaginar que eles tencionem discernir ou expor a verdade. Tampouco pretendem nomear o mundo e, na realidade, não nomeiam absolutamente nada, pois a nomeação implica um perpétuo sacrifício do nome ao objeto nomeado ou, para falar como Hegel, nela o nome se revela o não-essencial, ante a coisa que é essencial. Eles não falam; tampouco se calam: é outra coisa. Já se disse que eles queriam destruir o verbo por acoplamentos monstruosos, mas é falso; pois seria necessário então que eles já estivessem lançados no meio da linguagem utilitária e que buscassem dela retirar as palavras por pequenos grupos singulares, como por exemplo “cavalo” e “manteiga”, escrevendo “cavalo de manteiga”. Além do fato de que semelhante empreitada exigiria um tempo infinito, não é concebível que se possa permanecer no plano ao mesmo tempo do projeto utilitário, considerando as palavras como utensílios, e meditar retirar-lhes sua utensilibilidade. Na verdade, o poeta se retirou de uma só vez da linguagem-instrumento; escolheu, de uma vez por todas, a atitude poética que consdera as palavras como coisas e não como signos. Pois a ambigüidade do signo implica que se possa à vontade atravessá-lo como um vidro e perseguir através dele a coisa significada, ou lançar o olhar para a sua realidade e considerá-la como objeto. O homem que fala está além das palavras, perto do objeto; o poeta está aquém. Para o primeiro, elas são domésticas; para o segundo, elas permanecem no estado selvagem. Para aquele, são convenções úteis, ferramentas que se gastam pouco a pouco e que se jogam fora, quando não servem mais; para o segundo, são coisas naturais que crescem naturalmente na terra como a erva e as árvores.
De: SARTRE, Jean-Paul. "Qu'est-ce qu'écrire?". In: Qu'est-ce que la littérature?. Paris: Gallimard, 1948.
De: SARTRE, Jean-Paul. "Qu'est-ce qu'écrire?". In: Qu'est-ce que la littérature?. Paris: Gallimard, 1948.