7.9.08

A evolução e a natureza

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna na "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 6 de setembro:


A evolução e a natureza

NORMALMENTE SUPÕE-SE que o grande escândalo causado pela teoria da evolução seja devido à descoberta de que o ser humano descende de alguma espécie de macacos. De fato, isso foi sem dúvida um escândalo espetacular, uma enorme "ferida narcísica", como dizia Freud, infligida ao homem que aprendera ter sido criado à imagem de Deus.

Mas a teoria da evolução provocou também outros escândalos.

Quero falar de um que, embora menos espetacular, não é menos importante. Trata-se da relativização das espécies naturais. Desde Aristóteles, supunha-se que, criadas ou não, as espécies naturais fossem imutáveis.

A espécie à qual um ente qualquer pertencia era considerada a sua natureza. Ora, a natureza de uma coisa se confundia com seu fim, que era seu bem e sua perfeição próprias. Descobria-se essa natureza a partir do estudo dos espécimes que se encontravam, como dizia Aristóteles, num estado natural, em oposição aos espécimes "degenerados".

Como se pensava saber que um espécime se encontrava no estado natural? Pela observação da sua normalidade, isto é, do fato de que sua constituição física e seu comportamento não desviavam da constituição e do comportamento da maior parte dos indivíduos da mesma espécie. O anormal, ao contrário, era considerado degenerado. Desse modo, a normalidade se tornava normativa. O degenerado era aquele que se constituía ou se comportava contra a sua natureza: "contra naturam".

Pois bem, observando a natureza humana e a natureza da sociedade humana, Aristóteles concluiu que o natural era que a alma governasse o corpo, a inteligência, os apetites, o homem, os animais, o macho, a fêmea, e o senhor, o escravo. Para ele, essas relações eram naturais, e qualquer supressão ou inversão delas se daria contra a natureza. Do mesmo modo, o velho Platão, na sua última obra, pressupunha que a finalidade do erotismo, no indivíduo natural/normal, era a reprodução; logo, considerava contra a natureza toda relação homossexual. Esta última concepção se consolidou na Idade Média e é até hoje doutrina da Igreja Católica, para a qual toda relação homossexual infringe uma "lei natural".

Tal "lei" não passa, evidentemente, de um equívoco, pois as leis da natureza, que são descritivas, isto é, que dizem o que realmente acontece, não devem ser confundidas com as leis humanas, que são prescritivas, isto é, dizem o que deve (ou não deve) ser feito. A lei da gravidade, por exemplo, não diz que todos os corpos que têm massa devem se atrair de determinado modo e sim que se atraem desse modo. Se for descoberto que determinados corpos têm massa e, no entanto, não se atraem do modo previsto, não serão esses corpos que estarão errados, mas a lei da gravidade. Assim também, se uma "lei natural" diz que os indivíduos do mesmo sexo não sentem atração erótica uns pelos outros, basta abrir os olhos para ver que essa "lei" está errada, ou melhor, não é lei, não existe.

A teoria da evolução mostrou que a própria natureza não é algo fixo de uma vez por todas, mas se encontra em transformação. As espécies biológicas mesmas não têm "naturezas" eternas, mas estão em incessante evolução. Isso significa que não se pode considerar como natural exclusivamente a constituição física ou o comportamento "normal", isto é, tradicional. Uma espécie nova surge exatamente a partir das mutações – da "degeneração" – de uma espécie antiga. O indivíduo que, por ser portador de uma mutação está sujeito a ser considerado uma monstruosidade, talvez seja o limiar de uma nova espécie.

O ser humano é o produto de tais mutações, e sua maior novidade consiste em que não apenas a espécie humana, mas cada espécime humano é infinitamente capaz de mudar a si próprio, capaz de experimentar o que nunca antes se experimentou, capaz de criar o que nunca antes existiu. Toda invenção, toda arte, toda técnica, toda cultura pode ser considerada como o resultado da transformação – poderíamos dizer, da perversão – da natureza pelo homem. O primeiro antropóide a se erguer e usar as patas dianteiras como mãos – abrindo caminho para a aventura humana – estava pervertendo a função "natural" desses membros.

Não é lícito, portanto, invocar a "natureza" para justificar – ou para condenar – tais ou quais comportamentos, atos ou instituições. Quem o faz inevitavelmente incorre no provincianismo de "naturalizar" comportamentos, atos ou instituições contingentes e históricos, tais como a dominação do homem sobre a mulher, a escravidão ou a condenação da homossexualidade.

12 comentários:

  1. Extremamente didáctico. Só quem pensa bem pode escrever tão claro!
    :)

    ResponderExcluir
  2. CÍCERO,


    A Medicina me abriu muitos horizontes e um deles foi a clareza de aceitar o termo MUTAÇÃO para não só aspectos ligados a genes, DNA, moléculas, átomos, mas para relativizar essas "certezas e verdades absolutas" impostas por pessoas que não aceitam e não raciocinam sobre a diversidade das mudanças que tanto a matéria, viva ou não, a alma, os conceitos, as teorias, os dogmas, as opiniões, etc e tal..., podem desvencilhar-se da natureza como fenômeno natural, às vezes sem explicação: Lavoisier já tinha dito " TUDO SE TRANSFORMA!".
    O pensamento se transforma, a arte se transforma, a ciência se transforma... O que não é mutável não é digno de ser visto como mais-valia. A igreja católica, tão detentora de conhecimento e fortuna durante a idade média, sequer aprendeu que os preservativos impedem que uma família venha a gerar descendentes os quais podem ficar à míngua por falta de condições financeiras, que doenças podem ser evitadas,enfim, nada mudou: isso nos remete à não confiabilidade dos argumentos e da própria instituição!
    Lembramos ainda que os "natiloucos" e os portadores de síndromes congênitas eram vistos como castigos divinos, como aberrações... Que demônios não devem ter sido Calvino e Lutero?
    O que não conseguimos resolver dentro da gente se expressa em repúdio no e ao próximo, em preconceito mesquinho e torpe.
    Indubitavelmente, a Seleção Natural e a Teoria da Evolução de Darwin pôs um fim a alguns contrapontos vergonhosos e hipócritas existentes: vir ou não de macacos destrói plenamente o narcisismo católico, como se nada mais lhe restasse,pois se a origem era "a macacada" e corróia o ego,que restarão então desses obsoletos já que no começo viemos de moléculas,átomos e que o primeiro ser vivo que surgiu na Terra foi uma bactéria? Ora éramos até invisíveis aos olhos!
    Quantos não foram condenados à fogueira porque sabiam que a Terra não era quadrada? Quantas pessoas ainda hoje não são "queimadas" pela sociedade por suas escolhas?.
    Somos a expressão singela de uma combinação de adenosina,timina,guanina,citosina, base nitrogenada e fosfato e nos diferenciamos uns dos outros apenas por pensamentos e sentimentos... ou na crença de que há ou não Deus?
    Parodiando Shakespeare em Hamlet: "há algo de podre no reino dos conceitos e pensamentos!"

    Um abraço mutável e com finalidades sem fim!!!


    Adriano nunes.

    ResponderExcluir
  3. ...e viva o singelo encontro das pontas do polegar e do indicador.

    ResponderExcluir
  4. pensador,

    bravo!

    um artigo definitivo!

    por mim, estaria no livro de ciências do meu filho!

    quem sabe um dia?... quem sabe?

    bem, estar o artigo em um grande jornal já é um consolo, uma esperança!

    grande abraço!

    ResponderExcluir
  5. O curioso, admitindo minha pequena contribuição filosófica, é que o próprio Platão nos dá a divisão do mundo das essências e do mundo das aparências, nos presenteia com a Alegoria (ou Mito) das Cavernas, ao mesmo tempo que condena desejos naturais classificando-os como contrários a Natureza.

    E a igreja se apropria de forma vantajosa ($) dessa argumentação dialética e forja uma sociedade imutável em algumas questões que perduram milênios.

    Evoluimos um bocado, mas um outro bocado permanece estagnado.

    Excelente post. Parabéns.

    ResponderExcluir
  6. “O indivíduo que, por ser portador de uma mutação está sujeito a ser considerado uma monstruosidade, talvez seja o limiar de uma nova espécie.”

    Mutatis mutandis, Antonio Cícero, “a pergunta idiota é o primeiro vislumbre de algum desenvolvimento totalmente novo”, conforme escreve Alfred Whitehead, citado no muito criativo “Breviário de idéias replicantes” do Eduardo Giannetti, ao qual cheguei a partir de um post aqui no seu Blog.

    Ainda transitando nesta área, outro trecho do seu lúcido artigo que me interessou muito é o seguinte:

    “Toda invenção, toda arte, toda técnica, toda cultura pode ser considerada como o resultado da transformação – poderíamos dizer, da perversão – da natureza pelo homem. O primeiro antropóide a se erguer e usar as patas dianteiras como mãos – abrindo caminho para a aventura humana – estava pervertendo a função "natural" desses membros.”

    Finalmente, suas muito razoáveis considerações a respeito de “leis da natureza” e a relação delas com evolução me fizeram lembrar o que se segue:

    Entre as vítimas da faceta alienante da exploração do espaço sideral na expectativa da localização de vida inteligente destaca-se o grupo que não leva em consideração o fato de que, por maior que seja a possibilidade, a natureza não se sente obrigada a cumprir a lei da probabilidade. – Espectador de um eclipse total do Sol, que levou milhares de parisienses assustados a refugiar-se em suas adegas subterrâneas em 1654, conforme descrição de Jacques Attali, seu biógrafo, Pascal formulou uma esclarecedora observação sobre o emprego tendencioso de princípios da probabilidade em outra situação: “Dizem que os eclipses pressagiam males porque os males são comuns. De tal modo que, ocorrendo males amiúde, eles adivinhem amiúde, ao passo que, se afirmassem que pressagiam coisas boas, mentiriam amiúde. Só atribuem a felicidade a raríssimos encontros celestes. Assim, não deixam de adivinhar tão amiúde”.

    ResponderExcluir
  7. 'tá que o pariu, cicero (rs), que tiro certeiro!

    formosura de texto! delícia de se ler!

    beijo enorme, minha belezura!
    parabéns por tudo!

    ResponderExcluir
  8. Prezado A. Cícero,
    A autoridade que os padres têm para falar sobre sexo é a mesma de um faquir teria sobre um livro de temperos e receitas.
    Um abraço,
    João Renato.

    ResponderExcluir
  9. Ótimo texto! Vida é movimento, é transformação constante, é renovação infinda... Quanto ao velho argumento de que homossexualismo seria "anti-natural", o que dizer do sexo praticado por exemplares de diversas espécies, com outros do mesmo gênero, por puro prazer e sem fins reprodutivos?... Quem observa o que de fato "acontece", percebe que muitas "leis" ou normas apenas tentam enquadrar ou rotular os comportamentos "naturais", que são múltiplos, móveis, variados...

    ResponderExcluir
  10. Vi o filme um dia desses... fiquei impressionada e maravilhada. Muito bom. E também concordo inteiramente com o artigo.

    ResponderExcluir
  11. Não concordo. Essa visão da natureza parece-me muito estreita. Afinal, o que são 'species'? Será que é correto associar indivíduos/populações com espécies? O conceito de espécie adotado pelos naturalistas é empírico ou trans-empírico? Se no contexto da teoria da evolução o conceito de espécie é puramente abstrato, então, que sentido tem a afirmação de que as espécies “mudam”!? O helenos entendiam esse conceito de forma bastante diferente dos naturalistas. Para eles, ‘species’ ou 'atomon eidos' (espécies naturais) são as formas ou arquétipos imutáveis da natureza, designa tudo aquilo que pode surgir, estando manifesto ou não num determinado local ou ambiente. O fixismo não diz que as espécies são imutáveis no sentido temporal, isto é, num sentido literal, como se sempre estivessem presentes, mas sim, que a natureza não cria novidades. A extinção dos dinossauros, por exemplo, não fez com que essa espécie literalmente sumisse do universo, mas pelo contrário, ainda existem na “memória” da natureza, são eternas. Nesse sentido, as espécies continuam sendo absolutamente imutáveis sim senhor.

    ResponderExcluir