30.3.12
Paulo Henriques Britto: "Fábula"
Fábula
Um pensamento pensado
até a total exaustão
termina por germinar
no mesmo exato lugar
sua exata negação.
Enquanto isso, uma ideia
trauteada numa flauta
faz uma cidade erguer-se --
é claro, sem alicerces,
mas ninguém dá pela falta.
BRITTO, Paulo Henriques. Formas do nada. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
28.3.12
Rubem Fonseca: "Todo autor é louco"
Vale a pena assistir à brilhante performance do Rubem Fonseca nas Correntes d'Escritas 2012, em Póvoa de Varzim, em Portugal, ao afirmar que "Todo autor é louco":
26.3.12
Cacá Diegues: "A cultura é a alma de um povo"
O seguinte artigo de Cacá Diegues foi publicado no jornal O Globo em 24 de março:
A cultura é a alma de um povo
Vira e mexe, a ministra Ana de Hollanda é atacada pelos jornais, através de artigos e manifestos, como uma Geni da cultura. Esta semana, texto subscrito por professores universitários, no jornal "O Estado de S. Paulo", e entrevista do ex-ministro Juca Ferreira, na "Folha de S.Paulo", pareciam petardos sincronizados, como numa campanha bélica bem tramada.
Não sou especialista em administração pública. Mas conhecendo a ministra e acompanhando de longe sua ação à frente do ministério, me estarreço com a violência praticada contra ela. Chego a pensar que não estamos acostumados à política exercida com discrição e serenidade, gostamos da tradição dos berros e dos murros na mesa, confundimos delicadeza com fragilidade.
São tão tortuosos e pouco sólidos os rumos desses desaforos, tão clara sua voracidade política, que seria mais simples se os agressores declarassem logo: "É que não vamos com a cara dela."
Juca Ferreira, o ministro do projeto autoritário da Ancinav, não esconde contra o que se bate: "Num estado com pouco controle social como o Brasil, você diz e faz o que quiser", declara em tom de lamentação, sobre algo que devia nos orgulhar. Antes dele, os professores liderados por Marilena Chauí listam várias expressões acadêmicas que gostariam de ouvir vindas do MinC e exigem dele uma participação criativa que não lhe cabe ousar ter. O velho e místico sebastianismo brasileiro ainda pensa que é o estado que produz e deve produzir cultura.
Ora, para os que já se esqueceram dele, lembro trechinho do belo discurso de posse da presidente Dilma Rousseff: "A cultura é a alma de um povo, essência de sua identidade. Vamos investir em cultura, ampliando a produção e o consumo em todas as regiões de nossos bens culturais." E então fui me informar do que anda fazendo o MinC de Ana de Hollanda para atender a esse programa anunciado pela presidente. Aqui transmito algumas respostas ouvidas por mim.
Em 2011, o MinC não só conseguiu dar conta de um enorme passivo de compromissos que ficaram a descoberto em 2010, como alcançou uma execução recorde de 98,98% dos limites autorizados para empenho. Isso significou R$1,069 bilhão em investimentos diretos, o maior número já alcançado pelo Ministério no que se refere ao efetivamente investido.
Ao contrário do que se tem dito, o orçamento do MinC, na gestão da presidente Dilma, é maior e mais realista do que o de gestões anteriores. O total de investimentos é de R$1,24 bilhão. Somando-se a isso os R$400 milhões a serem incorporados através do Fundo Setorial do Audiovisual, chega-se a R$1,64 bilhão, um recorde sem precedentes na pasta. E não se computa aqui o investimento indireto através das leis de incentivo, como a Rouanet.
E para onde têm ido esses recursos?
Os Pontos de Cultura encontravam-se sem pagamento desde o mês de março de 2010. Na atual gestão, o MinC já pagou cerca de R$100 milhões. O crescimento do orçamento do Programa Cultura Viva tem permitido a criação de novos Pontos de Cultura, o revolucionário projeto inaugurado por Gilberto Gil. Em 2010 o investimento nos Pontos de Cultura era de R$50 milhões. Em 2011, o primeiro ano da gestão atual, foram empenhados R$62 milhões e em 2012 esse valor saltou para R$114 milhões.
Em fevereiro deste ano, a ministra aprovou, junto à presidência, uma lista de programas prioritários que já estão em execução: o Brasil Criativo, que visa a ampliar as possibilidades de emprego e renda, a partir do potencial criativo; o Mais Cultura & Mais Educação, em parceria com o Ministério da Educação, para investir em cultura nas escolas; o PAC das Cidades Históricas, atuando em 125 cidades que possuem sítios históricos ou bens tombados; o de Praças dos Esportes e da Cultura, na periferia de 345 cidades, para construção de parques esportivos, bibliotecas, salas de espetáculo, cineclubes.
O ministério está investindo no processo de implantação do Sistema Nacional de Cultura, que pulou de 337 municípios e um estado integrados até 2010, para 782 municípios e 17 estados hoje. Na área do audiovisual, a aprovação recente da lei 12.485 vai permitir a presença do produto nacional independente nas televisões por assinatura e o crescimento dos recursos do Fundo Setorial. Um instrumento de remissão do cinema brasileiro.
Além disso, o MinC, com o apoio da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Cultura, se empenha na aprovação, pelo Congresso, de leis como as do Vale Cultura, do Procultura e sobretudo da revisão dos Direitos Autorais. Sou internauta e sei que não é mais possível nem desejável recolher esses direitos como se fazia no passado. Mas também não estou disposto a entregar o que sai de minha cabeça ao Creative Commons, um projeto de marketing de empresa esperta.
Foi isso o que me contaram e eu ouvi do MinC. Se alguém não concorda, que apure e se manifeste. Não precisa trucidar quem está do outro lado.
*************
Chico Anysio foi e será sempre o Rei da Comédia, como Pelé é do futebol e Roberto Carlos da canção popular. Aqui, o clichê é exato e irresistível: o mundo vai ficar mais triste sem ele.
A cultura é a alma de um povo
Vira e mexe, a ministra Ana de Hollanda é atacada pelos jornais, através de artigos e manifestos, como uma Geni da cultura. Esta semana, texto subscrito por professores universitários, no jornal "O Estado de S. Paulo", e entrevista do ex-ministro Juca Ferreira, na "Folha de S.Paulo", pareciam petardos sincronizados, como numa campanha bélica bem tramada.
Não sou especialista em administração pública. Mas conhecendo a ministra e acompanhando de longe sua ação à frente do ministério, me estarreço com a violência praticada contra ela. Chego a pensar que não estamos acostumados à política exercida com discrição e serenidade, gostamos da tradição dos berros e dos murros na mesa, confundimos delicadeza com fragilidade.
São tão tortuosos e pouco sólidos os rumos desses desaforos, tão clara sua voracidade política, que seria mais simples se os agressores declarassem logo: "É que não vamos com a cara dela."
Juca Ferreira, o ministro do projeto autoritário da Ancinav, não esconde contra o que se bate: "Num estado com pouco controle social como o Brasil, você diz e faz o que quiser", declara em tom de lamentação, sobre algo que devia nos orgulhar. Antes dele, os professores liderados por Marilena Chauí listam várias expressões acadêmicas que gostariam de ouvir vindas do MinC e exigem dele uma participação criativa que não lhe cabe ousar ter. O velho e místico sebastianismo brasileiro ainda pensa que é o estado que produz e deve produzir cultura.
Ora, para os que já se esqueceram dele, lembro trechinho do belo discurso de posse da presidente Dilma Rousseff: "A cultura é a alma de um povo, essência de sua identidade. Vamos investir em cultura, ampliando a produção e o consumo em todas as regiões de nossos bens culturais." E então fui me informar do que anda fazendo o MinC de Ana de Hollanda para atender a esse programa anunciado pela presidente. Aqui transmito algumas respostas ouvidas por mim.
Em 2011, o MinC não só conseguiu dar conta de um enorme passivo de compromissos que ficaram a descoberto em 2010, como alcançou uma execução recorde de 98,98% dos limites autorizados para empenho. Isso significou R$1,069 bilhão em investimentos diretos, o maior número já alcançado pelo Ministério no que se refere ao efetivamente investido.
Ao contrário do que se tem dito, o orçamento do MinC, na gestão da presidente Dilma, é maior e mais realista do que o de gestões anteriores. O total de investimentos é de R$1,24 bilhão. Somando-se a isso os R$400 milhões a serem incorporados através do Fundo Setorial do Audiovisual, chega-se a R$1,64 bilhão, um recorde sem precedentes na pasta. E não se computa aqui o investimento indireto através das leis de incentivo, como a Rouanet.
E para onde têm ido esses recursos?
Os Pontos de Cultura encontravam-se sem pagamento desde o mês de março de 2010. Na atual gestão, o MinC já pagou cerca de R$100 milhões. O crescimento do orçamento do Programa Cultura Viva tem permitido a criação de novos Pontos de Cultura, o revolucionário projeto inaugurado por Gilberto Gil. Em 2010 o investimento nos Pontos de Cultura era de R$50 milhões. Em 2011, o primeiro ano da gestão atual, foram empenhados R$62 milhões e em 2012 esse valor saltou para R$114 milhões.
Em fevereiro deste ano, a ministra aprovou, junto à presidência, uma lista de programas prioritários que já estão em execução: o Brasil Criativo, que visa a ampliar as possibilidades de emprego e renda, a partir do potencial criativo; o Mais Cultura & Mais Educação, em parceria com o Ministério da Educação, para investir em cultura nas escolas; o PAC das Cidades Históricas, atuando em 125 cidades que possuem sítios históricos ou bens tombados; o de Praças dos Esportes e da Cultura, na periferia de 345 cidades, para construção de parques esportivos, bibliotecas, salas de espetáculo, cineclubes.
O ministério está investindo no processo de implantação do Sistema Nacional de Cultura, que pulou de 337 municípios e um estado integrados até 2010, para 782 municípios e 17 estados hoje. Na área do audiovisual, a aprovação recente da lei 12.485 vai permitir a presença do produto nacional independente nas televisões por assinatura e o crescimento dos recursos do Fundo Setorial. Um instrumento de remissão do cinema brasileiro.
Além disso, o MinC, com o apoio da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Cultura, se empenha na aprovação, pelo Congresso, de leis como as do Vale Cultura, do Procultura e sobretudo da revisão dos Direitos Autorais. Sou internauta e sei que não é mais possível nem desejável recolher esses direitos como se fazia no passado. Mas também não estou disposto a entregar o que sai de minha cabeça ao Creative Commons, um projeto de marketing de empresa esperta.
Foi isso o que me contaram e eu ouvi do MinC. Se alguém não concorda, que apure e se manifeste. Não precisa trucidar quem está do outro lado.
*************
Chico Anysio foi e será sempre o Rei da Comédia, como Pelé é do futebol e Roberto Carlos da canção popular. Aqui, o clichê é exato e irresistível: o mundo vai ficar mais triste sem ele.
24.3.12
Glauco Mattoso: "Advertência cautelosa"
Advertência cautelosa [4146]
Só conto o que é veridico, e cuidado
convem tomar com tudo que é verdade,
pois pode succeder que desagrade
ao sceptico leitor o que é contado.
Tambem é natural não ser do agrado
de algum leitor mendaz o que lhe invade
a alcova, a conjugal privacidade,
o circulo domestico, o passado.
Mas, como bom poeta, não me calo:
escuto, memorizo e em verso passo,
ainda que pisando alguem no callo.
Portanto, é bem possivel que, no espaço
dum unico soneto, si eu contal-o,
o causo escripto valha um calhamaço.
MATTOSO, Glauco. Contos lyricos de Glauco Mattoso. São Paulo: Lumme Editor, 2012.
Ivan Santos: "Ministra na marca do pênalti"
A seguinte nota foi publicada no dia 24 de março, na coluna de Ivan Santos, no Correio de Uberlândia:
Ministra na marca do pênalti
Ana de Hollanda, ministra da Cultura do Brasil, está na marca do pênalti para ser chutada. Parece até um corpo estranho no centro do poder político em Brasília. Para certa mídia interessada, é ela incompetente. Por que carga tão pesada contra a ministra? Primeiro, ela não é filiada ao PT nem a nenhum partido da Base. Será por isto que há tantas forças ocultas interessadas na demissão dela? Quem tiver conhecimento para ler hieróglifos e souber interpretar parábolas, pode entender por que tantas cabeças coroadas estão preocupadas com a ministra da Cultura. Recentemente, um terço da influente Comissão de Cultura do Senado, composta por 27 senadores, aprovou um convite à ministra para ouvi-la sobre temas de “máximo interesse social”. Antes, é bom saber que há no Congresso mais de 200 parlamentares donos de emissoras de rádio ou de televisão. Donos diretamente, donos por meio de parentes ou de laranjas. As emissoras dos políticos devem ao ECAD – entidade que arrecada direitos autorais – mais de R$ 1 bilhão. Devem, não pagam e não dão explicação. O ECAD nunca teve coragem de cobrar as dívidas dos “senhores da República”. Agora, com apoio da ministra da Cultura, o ECAD passou a cobrar os direitos autorais e ameaça levar as emissoras dos poderosos à Justiça. Então a ministra é incompetente! Deu pra entender por que alguns intelectuais a serviço de donos de emissoras pedem a cabeça de Ana de Hollanda?
22.3.12
Antoine Emaz: trecho de "Boue" XI / "Lama" XI: tradução de Júlio Castañon Guimarães
acaba que cada um
ao menor problema
se muda de si mesmo
para um pouco mais longe
todos os dias
para um pouco mais longe
no máximo a gente se acompanha
forçando o sorriso
reste que chacun
au moindre mal
transbahute de soi
un peu plus loin
tous les jours
un peu plus loin
au mieux on s'accompagne
en forçant le sourire
EMAZ, Antoine. "Boue/Lama" XI. In: Lama, pele. Tradução e posfácio de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.
21.3.12
Alexandre Vidal Porto: "O Brasil não é regido pela Bíblia"
O seguinte artigo de Alexandre Vidal Porto foi publicado em 18 de março do corrente no jornal O Globo:
O Brasil não é regido pela Bíblia
A Constituição determina que o Brasil é um Estado laico e assegura liberdade religiosa para todos os cidadãos. As autoridades devem dar garantias ao culto de qualquer religião, sem, no entanto, agir em nome de nenhuma. Em uma democracia, esses princípios são importantes porque preservam o pluralismo da sociedade e protegem o pleno exercício dos direitos individuais.
Trata-se de uma conquista da civilização ocidental que se encontra ameaçada no Brasil. Hoje, fé e política parecem manter uma relação espúria, na qual princípios religiosos contaminam de forma indevida o processo legislativo nacional. Absurdamente, começa-se a achar natural que projetos de lei submetidos à Câmara dos Deputados, ainda que consonantes com os princípios da Constituição e dirigidos ao todo da população — religiosa ou não —, tenham de passar pelo crivo doutrinário das igrejas e fiquem reféns de sua sanção.
Retira-se, assim, de parcela considerável do povo brasileiro, a possibilidade de regular seus direitos constitucionais fora de preceitos bíblicos que não abraçou. Ao mesmo tempo, as lideranças religiosas assumem ares de superioridade moral e alavancam seus interesses políticos baseados em uma ideologia teocrática de exclusão, que desqualifica quem não partilha de sua fé.
Ninguém é melhor ou mais ético porque tem religião. Cada um tem o direito de escolher os princípios morais que nortearão sua vida de acordo com a sua consciência. Essa prerrogativa fundamenta os direitos individuais. Foi conquistada a duras penas, em reação, justamente, ao monopólio ideológico e religioso que, diversas vezes na história, impôs-se com resultados terríveis para a humanidade.
Ao longo dos séculos, muitas atrocidades foram cometidas em nome da Bíblia e de outros textos religiosos. Não fosse a garantia da pluralidade democrática, o mesmo deputado que vocifera contra cultos de matriz africana ou direitos reprodutivos das mulheres, poderia ter sido queimado na fogueira da Inquisição católica ou morto por apedrejamento como infiel.
O Brasil é um país diverso. E quer continuar a sê-lo. Nele, não deve haver espaço para a intolerância O Congresso não legisla apenas para quem tem religião. Tem de proteger a todos. Tentar impor uma ideologia religiosa por meio da ação legislativa desfigura nossa democracia. Os religiosos têm o direito de observar seus princípios, mas não podem impingilos ao resto da população. O Brasil não é regido pela Bíblia. Que os religiosos cultuem o que quiserem, mas que respeitem quem não pensa e não quer viver como eles.
É importante que as autoridades do governo tentem colocar em perspectiva a ação política de grupos religiosos no Brasil. O Estado brasileiro é laico e deve comportar-se como tal. Em mais de uma instância, minorias sociais têm visto seus direitos individuais virarem moeda de troca. Tolerar a intolerância pode render votos, mas não é uma forma justa de governar.
Alexandre Vidal Porto é advogado
20.3.12
Bertolt Brecht: "Der Radwechsel" / "A troca da roda": trad. Markus J. Weininger e Rosvitha Friesen Blume
Der Radwechsel
Ich sitze am Straßenrand
Der Fahrer wechselt das Rad.
Ich bin nicht gern, wo ich herkomme.
Ich bin nicht gern, wo ich hinfahre.
Warum sehe ich den Radwechsel
Mit Ungeduld?
A troca da roda
Estou sentado no barranco da estrada.
O condutor trocando a roda.
Não gosto do lugar de onde vim.
Não gosto do lugar para onde vou.
Por que eu vejo a troca da roda
Com impaciência?
BRECHT, Bertolt. "Der Radwechsel". trad. de Markus J. Weininger e Rosvitha Friesen Blume. In: BLUME, Rosvitha Friesen; WEININGER, Markus J. (orgs.). Seis décadas de poesia alemã. Do pós-guerra ao início do século XXI. Antologia bilingue. Florianópolis: Editora UFSC, 2012.
19.3.12
Fernando Brant: "Os direitos autorais são uma conquista da civilização"
Agradeço ao escritor Pedro Maciel por me ter enviado o seguinte artigo de Fernando Brant, publicado originalmente no jornal Estado de Minas, em março de 2012:
Os direitos autorais são uma conquista da civilização
Os poetas escrevem versos e os enviam aos leitores como carta de náufrago. Não têm esperança de serem muito lidos, mas almejam pelo menos a atenção dos colegas de profissão. Se o acaso, após várias edições minúsculas bancadas por suas pequenas economias, os levam a alguma espécie de reconhecimento público, é como se o mundo se debruçasse diante de seu talento. Poetas escrevem para poetas, o que nos leva a concluir que os que o lêem também o são ou, no mínimo, comungam da mesma sensibilidade. O leitor de poesia fornece o combustível para que eles prossigam.
A poesia, por mais que digam o contrário os práticos do mercado, tem um poder avassalador. Inocula a alma das pessoas e se transmite por gerações. Criada sem nenhuma ambição econômica, ela acaba por criar uma força tão forte como o dinheiro. Ela ri dos poderosos e expõe o ridículo dos ditadores, pois todos eles têm tempo de validade. A poesia não.
Nos tempos de Homero, Virgílio ou Camões, séculos e até milênios antes do capitalismo, a recompensa pelas obras criadas por eles era, no máximo, a glória contemporânea ou futura. O mesmo se pode dizer das artes da pintura e da escultura. Até que os mecenas financiassem o trabalho desses gênios.
Aí vieram o iluminismo, a idade das luzes, a revolução francesa e os direitos humanos.
A valorização do cidadão, senhor do Estado, a quem somente delegava poderes, a conquista da democracia, do governo para todos, da igualdade, da fraternidade e da liberdade. Nos versos de Cecília Meireles, “liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.”
Depois de 14 de julho de 1789, os cidadãos escritores, poetas e artistas se levantaram na defesa de seus direitos de autores. No restaurante “Les Ambassateurs”, textos escritos por eles eram encenados e eles não recebiam nada. Tudo ali era pago: os vinhos e champagnes, as requintadas refeições.
Numa certa noite, toda a Paris cultural se dirigiu àquela casa de pasto e espetáculo.Todos comeram e beberam do melhor. Na hora da conta, disseram que não pagariam nada, da mesma forma que suas obras não eram remuneradas. Chamou-se a polícia, instaurou-se a polêmica e daí resultou a criação da primeira sociedade de autores teatrais. Depois dela, centenas foram fundadas em todos os países, no ocidente e no oriente, em defesa dos criadores e de suas obras.
Disse acima que o leitor de poesia também é poeta, pois participa com sua sensibilidade da criação que o autor lhe oferece. O mesmo vale para quem escuta e canta canções, assiste a filmes, contempla as belezas plásticas e lê romances.
Mas essa parceria inexiste quando, em nome da existência de novos meios de comunicação, pessoas e empresas renegam o que é conquista da civilização e burlam o direito dos autores que dizem amar. Não amam.
18.3.12
Noemi Jaffe: "Aniversário"
aniversário
se você tenta, se você enfrenta, se você inventa, se você é briguenta, se você come menta, se você arrebenta, se você se contenta, se você é ciumenta, se você aumenta, se você condimenta, se você cumprimenta, se você se aposenta, se você é desatenta, se você arregimenta, se você cimenta, se você é cinzenta, azarenta, atenta, cruenta, barulhenta, avarenta, nojenta, fedorenta, molambenta, fraudulenta, truculenta e sonolenta, enfim e por tudo, se você quarenta e nove, você cinquenta.
17.3.12
Alberto Pucheu: "O dia em que Gottfried Benn pegou onda"
O poema "O dia em que Gottfried Benn pegou onda" é recitado pelo seu autor, o poeta Alberto Pucheu, no seguinte vídeo, de Danielle Fonseca, intitulado "É preciso aprender a ficar submerso":
16.3.12
João Cabral de Melo Neto: "Catar feijão"
Catar feijão
Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.
MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
14.3.12
J.G. Hamann: de "Aesthetica in nuce"
A poesia é a língua materna da humanidade; assim como a jardinagem é mais antiga que a agricultura, a pintura que a escrita, o canto que a declamação, a parábola que a dedução, a troca que o comércio.
HAMANN, J.G. Sokratische Denkwürdigkeiten. Aesthetica in nuce. Stuttgart: Reclam, 1998.
11.3.12
W.S. Merwin: "Yesterday" / "Ontem": trad. Antonio Cicero
Yesterday
My friend says I was not a good son
you understand
I say yes I understand
he says I did not go
to see my parents very often you know
and I say yes I know
even when I was living in the same city he says
maybe I would go there once
a month or maybe even less
I say oh yes
he says the last time I went to see my father
I say the last time I saw my father
he says the last time I saw my father
he was asking me about my life
how I was making out and he
went into the next room
to get something to give me
oh I say
feeling again the cold
of my father's hand the last time
he says and my father turned
in the doorway and saw me
look at my wristwatch and he
said you know I would like you to stay
and talk with me
oh yes I say
but if you are busy he said
I don't want you to feel that you
have to
just because I'm here
I say nothing
he says my father
said maybe
you have important work you are doing
or maybe you should be seeing
somebody I don't want to keep you
I look out the window
my friend is older than I am
he says and I told my father it was so
and I got up and left him then
you know
though there was nowhere I had to go
and nothing I had to do
Ontem
Meu amigo diz que não fui um bom filho
entende
digo sim entendo
ele diz que eu não ia
ver meus pais assiduamente sabe
e digo sim eu sei
mesmo quando eu vivia na mesma cidade ele diz
eu ia lá quem sabe uma vez
por mês quem sabe até menos
digo ah é
ele diz que da última vez que fui ver meu pai
digo a última vez que vi meu pai
ele diz que da última vez que vi meu pai
ele me perguntou sobre minha vida
como eu estava me saindo e ele
foi até o quarto
pegar alguma coisa para me dar
ah eu digo
sentindo de novo o frio
da mão de meu pai da última vez
ele diz e meu pai se virou
na soleira e me viu
olhar para o meu relógio e ele
disse sabe eu gostaria que você ficasse
e conversasse comigo
ah sim eu digo
mas se você estiver ocupado ele disse
não quero que ache que
tem que ficar
só porque eu estou aqui
eu nada digo
ele diz meu pai
disse vai ver
que você tem trabalho importante a fazer
ou então tem que encontrar
alguém não quero prender você
eu olho pela janela
meu amigo é mais velho que eu
ele diz e eu disse a meu pai que tinha
e me levantei e o deixei então
sabe
embora não tivesse que ir a lugar nenhum
nem coisa nenhuma a fazer
MERWIN, W.S. "Yesterday". Disp. no site Poets org, na URL
http://www.poets.org/viewmedia.php/prmMID/15741. Acessado em 11/03/2011.
My friend says I was not a good son
you understand
I say yes I understand
he says I did not go
to see my parents very often you know
and I say yes I know
even when I was living in the same city he says
maybe I would go there once
a month or maybe even less
I say oh yes
he says the last time I went to see my father
I say the last time I saw my father
he says the last time I saw my father
he was asking me about my life
how I was making out and he
went into the next room
to get something to give me
oh I say
feeling again the cold
of my father's hand the last time
he says and my father turned
in the doorway and saw me
look at my wristwatch and he
said you know I would like you to stay
and talk with me
oh yes I say
but if you are busy he said
I don't want you to feel that you
have to
just because I'm here
I say nothing
he says my father
said maybe
you have important work you are doing
or maybe you should be seeing
somebody I don't want to keep you
I look out the window
my friend is older than I am
he says and I told my father it was so
and I got up and left him then
you know
though there was nowhere I had to go
and nothing I had to do
Ontem
Meu amigo diz que não fui um bom filho
entende
digo sim entendo
ele diz que eu não ia
ver meus pais assiduamente sabe
e digo sim eu sei
mesmo quando eu vivia na mesma cidade ele diz
eu ia lá quem sabe uma vez
por mês quem sabe até menos
digo ah é
ele diz que da última vez que fui ver meu pai
digo a última vez que vi meu pai
ele diz que da última vez que vi meu pai
ele me perguntou sobre minha vida
como eu estava me saindo e ele
foi até o quarto
pegar alguma coisa para me dar
ah eu digo
sentindo de novo o frio
da mão de meu pai da última vez
ele diz e meu pai se virou
na soleira e me viu
olhar para o meu relógio e ele
disse sabe eu gostaria que você ficasse
e conversasse comigo
ah sim eu digo
mas se você estiver ocupado ele disse
não quero que ache que
tem que ficar
só porque eu estou aqui
eu nada digo
ele diz meu pai
disse vai ver
que você tem trabalho importante a fazer
ou então tem que encontrar
alguém não quero prender você
eu olho pela janela
meu amigo é mais velho que eu
ele diz e eu disse a meu pai que tinha
e me levantei e o deixei então
sabe
embora não tivesse que ir a lugar nenhum
nem coisa nenhuma a fazer
MERWIN, W.S. "Yesterday". Disp. no site Poets org, na URL
http://www.poets.org/viewmedia.php/prmMID/15741. Acessado em 11/03/2011.
7.3.12
Gastão Cruz: "Memória"
Memória
A voz rouca da noite exprime a nossa
memória poderia dizer a
nossa história mas evito
o que possa
anular o sentido
do que procuro manter vivo
CRUZ, Gastão. Observação do verão. Lisboa: Assírio & Alvim, 2011.
4.3.12
Johann Wolfgang von Goethe: De "Wilhelm Meisters Wanderjahre"
Os autores mais originais dos últimos tempos são originais, não por produzirem algo novo, mas apenas porque são capazes de dizer as coisas que dizem como se elas nunca antes houvessem sido ditas.
Die originalsten Autoren der neusten Zeit sind es nicht deswegen, weil sie etwas Neues hervorbringen, sondern allein weil sie fähig sind, dergleichen Dinge zu sagen, als wenn sie vorher niemals wären gesagt gewesen.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Wilhelm Meisters Wanderjahre. In:_____. Werke. Berlin: Direcmedia, 1998.
1.3.12
Bernardim Ribeiro: "Entre mim mesmo e mim"
Vilancete
Entre mim mesmo e mim
não sei que se alevantou,
que tão meu imigo sou.
Uns tempos, com grande engano,
vivi eu mesmo comigo,
agora no mor perigo
se me descobre o mor dano.
Caro custa um desengano
e pois me este não matou
quão caro que me custou.
De mim me sou feito alheio,
entre o cuidado e cuidado
está um mal derramado
que por mal grande me veio.
Nova dor, novo receio
foi este que me tomou:
assim me tem, assim estou.
RIBEIRO, Bernardim. "Entre mim mesmo e mim". In: SILVEIRA, Francisco Maciel (org.). Poesia clássica São Paulo: Global, 1988.