Assisti à estréia do excelente "Hamlet" dirigido por Aderbal Freire-Filho e protagonizado pelo Wagner Moura, que mereceu, em 24 do corrente, na "Ilustrada", da Folha de São Paulo, a seguinte crítica de Sérgio Salvia Coelho, que se encontra disponível no seu blog, "Na Moita" (http://namoita.zip.net/):
WAGNER MOURA FAZ O HAMLET DA SUA GERAÇÃO
Wagner Moura lançou-se na empreitada iniciática de “fazer seu Hamlet” anunciando a intenção que fosse apenas mais uma montagem. Falhou: é o Hamlet emblemático da sua geração. Espelho inesgotável, mas que reflete apenas o que se põe na sua frente, a obra prima de Shakespeare, síntese do Teatro, já teve o rosto compenetrado de Sérgio Cardoso, do Teatro do Estudante, que assumia a responsabilidade de construir o moderno teatro brasileiro; e no extremo oposto, um Marcelo Drummond se estraçalhando em uma entrega camicase ao caos dos anos 90, na montagem do Teatro Oficina.
Moura, Hamlet do milênio, tem pela frente um país que se reergue praticamente de ruínas, mas tendo aprendido importantes lições. Vestindo o personagem como uma armadura, consciente da batalha, Moura precisa primeiro exorcizar o fantasma da grandiloqüência com o humor adolescente que tanto o marcou. Não é pela melancolia, mas pelo deboche exasperado que ele rejeita a podridão de seu reino, e ganha a platéia nos trocadilhos e na marcação frenética. Mas há método nessa loucura: quando é preciso, triunfa pela simplicidade, e inesquecíveis monólogos marcam sua entrada definitiva no mundo adulto.
Com uma preciosa tradução dividida entre ele, Bárbara Harrington e o diretor Aderbal Freire-Filho, se faz compreender sem perder o frescor nem a beleza sonora. O “ser ou não ser” tem seu peso devido, ou seja, um devaneio entre parênteses, quando o mais importante está em suas considerações sobre o próprio teatro, e aí a bandeira de Shakespeare se desfralda com o vigoroso vento da sede por um teatro livre dos truques retóricos da autocontemplação.
Para isso, é preciso um diretor que ponha seu currículo inteiro em cena, como faz Freire-Filho. Não pode ser menos, com “Hamlet”: tudo o que o diretor já fez soa como uma preparação para o que se vê aqui. No cenário, retoma com Fernando Mello da Costa a experiência do “Púcaro Búlcaro”: coxias abertas, abarrotadas, com atores atentos, em contraste com o palco nu. Há o vídeo em cena, que esfriava “O Que Diz Molero”, e que agora acompanha passo a passo o texto, desdobrando suas leituras com grande impacto visual. Há sobretudo a soberania total do ator, que dispõe de todos os recursos do “romance em cena”, que lhe põe na mão instantaneamente tudo o que ele precisa.
Em uma das muitas metalinguagens, o pai de Hamlet, rei destronado por um canastrão, é uma entidade coletiva, feita por todo o elenco de apoio que se reveza na armadura: a verdadeira majestade é da trupe, não do indivíduo. Mas cada peça desse quebra-cabeças é precisamente ajustada.
Tonico Pereira, com sua bonomia que remeteria mais a Polônio, faz um Rei Cláudio extremamente simpático, e por isso perigoso: humano na sua fraqueza, Pereira atinge a maturidade como ator encontrando a tragédia no centro do cômico.
Georgiana Góes é uma Ofélia adolescente que se estraçalha na dor, por sambas e frevos que parecem improvisados na hora (façanha do autor da trilha, o hermano Rodrigo Amarante) para culminar no assombro do grito de Munch. Fábio Lago faz um Laertes transfigurado pelo ódio, que recobra a integridade no final; enquanto que Gillray Coutinho aproveita tudo o que Polônio pode lhe oferecer, na sua técnica espantosa, frenesi de tiques e pirotecnia verbal. Marcelo Flores e Cláudio Mendes, par de clowns meticulosos, sabem também honrar seus solos, enquanto coveiros e atores. Carla Ribas tem grande dignidade como Gertrudes, mas fica um pouco deslocada quando o desvario triunfa. Caio Junqueira (um Horácio carismático) e Felipe Kouri (que tira o máximo dos menores personagens) completam um elenco no qual ninguém faz sombra a ninguém, e é a história que prevalece.
A luz de Maneco Quinderé é sutil e precisa, enquanto que o figurino de Marcelo Pies sabe conciliar despojamento e requinte. Este Hamlet é indispensável e antológico justamente por sua essencialidade. Não busca ser original, mas eficiente, e faz um apelo emocionante e contagiante pela própria grandeza do Teatro. É para deixar qualquer um que tenha cedido à idéia da morte do teatro com vergonha. Na ratoeira de Hamlet, o que fica preso é o coração da platéia, com os olhos abertos para se ver refletido nesse espelho infinito. (quatro estrelas)
30.6.08
29.6.08
A noção de humanidade
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 27 de junho:
A noção de humanidade
"NÃO HÁ homem no mundo", afirma Joseph de Maistre, em 1797. "Vi em minha vida", continua, "franceses, italianos, russos. Sei até, graças a Montesquieu, que se pode ser persa; mas quanto ao homem, declaro nunca tê-lo encontrado; se ele existe, ignoro". A boutade de Maistre, inimigo declarado da Revolução Francesa e do Iluminismo, atinge, entre outras coisas, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. É naturalmente irônica a menção a Montesquieu, cujo livro "Cartas Persas" havia sido uma das primeiras manifestações da Ilustração.
Na verdade, o epigrama de Maistre não deve ser levado a sério, pois, assim como ele diz que não há homens no mundo, mas apenas franceses, italianos, russos etc., alguém poderia sustentar que não há italianos, mas apenas piemonteses, lombardos, toscanos etc.; ao que um terceiro poderia replicar que não há toscanos, mas apenas florentinos, sienenses, pisanos etc.; e assim por diante, até chegar a um indivíduo. E o indivíduo? Esse será todas essas coisas e muitas outras, inclusive homem (no sentido de "ser humano"), animal, ser vivo, ser.
Maistre morreu muito antes da publicação, em 1899, dos cadernos de Montesquieu. Pois bem, estranhamente, num desses cadernos, o autor de "O Espírito das Leis" parece postumamente responder à sentença de Maistre, ao afirmar: "Sou necessariamente homem, e só sou francês por acaso". Em termos escolásticos, ele poderia ter dito: sou essencialmente homem, e acidentalmente francês.
Mas não poderia sua humanidade ser fruto do acaso? Não poderia ele ter dito, por exemplo: "Sou necessariamente animal, e só sou homem por acaso"? Não. O único animal que Montesquieu poderia ser é o homem (no sentido de "ser humano"), pois, de todos os animais, só o homem é capaz de pensar e dizer tais coisas.
Aos modernos, a maneira de pensar de Montesquieu é normal. É normal, por exemplo, que um brasileiro pense que, por acaso, é brasileiro, mas que poderia ter sido chinês ou nigeriano, ou americano, ou espanhol... E raramente nos damos conta de que os seres humanos só há pouco tempo aprenderam a ver as coisas desse modo. É claro que nesse ponto, como em tantos outros, alguns gregos já eram modernos. Diógenes, o Cínico, por exemplo, se dizia "kosmou polités", de onde "cosmopolita", que quer dizer "cidadão do mundo", expressão adotada pelos filósofos estóicos. Mas eles eram relativamente poucos.
Lévi-Strauss ensina que "a noção de humanidade, englobando, sem distinção de raça ou de civilização, todas as formas da espécie humana, é de aparição muito tardia e de expansão limitada. Lá mesmo onde ela parece ter atingido seu mais alto desenvolvimento, não é de modo algum certo -a história recente o prova- que ela esteja a salvo de equívocos e regressões. Mas para vastas frações da espécie humana e durante dezenas de milhares de anos, essa noção parece estar totalmente ausente. A humanidade cessa às fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, às vezes até do vilarejo".
Para termos uma idéia de como Lévi-Strauss tem razão ao falar da "aparição tardia" desse modo moderno de pensar, basta lembrar que os 250 anos que nos separam de Montesquieu estão para os 50 mil anos do Homo sapiens como os últimos sete minutos de um dia de 24 horas.
Hoje é um truísmo dizer que vivemos num mundo cada vez menor, mais economicamente interdependente e mais tecnologicamente interconectado do que jamais antes. Ao mesmo tempo, nunca foi tão desenvolvida e disseminada a consciência do caráter acidental, para o ser humano, não só da sua nacionalidade, mas da sua língua, cultu- ra, religião, etnia. Em tal mundo, seria de se esperar que as fronteiras políticas se tornassem cada vez mais porosas.
Entretanto, não é necessariamente isso que se observa, nem mesmo nas regiões do mundo onde a modernidade é mais desenvolvida e disseminada. De novo, Lévi-Strauss tem razão, ao dizer que a concepção moderna de humanidade não está a salvo de equívocos e regressões. Esta última palavra, aliás, mostra que, no fundo, ele considera essa concepção superior às pré-modernas. E como não o faria, se ela constitui uma das condições de possibilidade da própria antropologia que ele representa? De todo modo, aqueles que pensam assim e prezam a liberdade de pensamento e ação que só se tornou possível no mundo moderno devem ficar alertas. Se alguém duvidar disso, que leia, por exemplo, a regressiva legislação sobre imigração recentemente aprovada pelo Parlamento Europeu.
A noção de humanidade
"NÃO HÁ homem no mundo", afirma Joseph de Maistre, em 1797. "Vi em minha vida", continua, "franceses, italianos, russos. Sei até, graças a Montesquieu, que se pode ser persa; mas quanto ao homem, declaro nunca tê-lo encontrado; se ele existe, ignoro". A boutade de Maistre, inimigo declarado da Revolução Francesa e do Iluminismo, atinge, entre outras coisas, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. É naturalmente irônica a menção a Montesquieu, cujo livro "Cartas Persas" havia sido uma das primeiras manifestações da Ilustração.
Na verdade, o epigrama de Maistre não deve ser levado a sério, pois, assim como ele diz que não há homens no mundo, mas apenas franceses, italianos, russos etc., alguém poderia sustentar que não há italianos, mas apenas piemonteses, lombardos, toscanos etc.; ao que um terceiro poderia replicar que não há toscanos, mas apenas florentinos, sienenses, pisanos etc.; e assim por diante, até chegar a um indivíduo. E o indivíduo? Esse será todas essas coisas e muitas outras, inclusive homem (no sentido de "ser humano"), animal, ser vivo, ser.
Maistre morreu muito antes da publicação, em 1899, dos cadernos de Montesquieu. Pois bem, estranhamente, num desses cadernos, o autor de "O Espírito das Leis" parece postumamente responder à sentença de Maistre, ao afirmar: "Sou necessariamente homem, e só sou francês por acaso". Em termos escolásticos, ele poderia ter dito: sou essencialmente homem, e acidentalmente francês.
Mas não poderia sua humanidade ser fruto do acaso? Não poderia ele ter dito, por exemplo: "Sou necessariamente animal, e só sou homem por acaso"? Não. O único animal que Montesquieu poderia ser é o homem (no sentido de "ser humano"), pois, de todos os animais, só o homem é capaz de pensar e dizer tais coisas.
Aos modernos, a maneira de pensar de Montesquieu é normal. É normal, por exemplo, que um brasileiro pense que, por acaso, é brasileiro, mas que poderia ter sido chinês ou nigeriano, ou americano, ou espanhol... E raramente nos damos conta de que os seres humanos só há pouco tempo aprenderam a ver as coisas desse modo. É claro que nesse ponto, como em tantos outros, alguns gregos já eram modernos. Diógenes, o Cínico, por exemplo, se dizia "kosmou polités", de onde "cosmopolita", que quer dizer "cidadão do mundo", expressão adotada pelos filósofos estóicos. Mas eles eram relativamente poucos.
Lévi-Strauss ensina que "a noção de humanidade, englobando, sem distinção de raça ou de civilização, todas as formas da espécie humana, é de aparição muito tardia e de expansão limitada. Lá mesmo onde ela parece ter atingido seu mais alto desenvolvimento, não é de modo algum certo -a história recente o prova- que ela esteja a salvo de equívocos e regressões. Mas para vastas frações da espécie humana e durante dezenas de milhares de anos, essa noção parece estar totalmente ausente. A humanidade cessa às fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, às vezes até do vilarejo".
Para termos uma idéia de como Lévi-Strauss tem razão ao falar da "aparição tardia" desse modo moderno de pensar, basta lembrar que os 250 anos que nos separam de Montesquieu estão para os 50 mil anos do Homo sapiens como os últimos sete minutos de um dia de 24 horas.
Hoje é um truísmo dizer que vivemos num mundo cada vez menor, mais economicamente interdependente e mais tecnologicamente interconectado do que jamais antes. Ao mesmo tempo, nunca foi tão desenvolvida e disseminada a consciência do caráter acidental, para o ser humano, não só da sua nacionalidade, mas da sua língua, cultu- ra, religião, etnia. Em tal mundo, seria de se esperar que as fronteiras políticas se tornassem cada vez mais porosas.
Entretanto, não é necessariamente isso que se observa, nem mesmo nas regiões do mundo onde a modernidade é mais desenvolvida e disseminada. De novo, Lévi-Strauss tem razão, ao dizer que a concepção moderna de humanidade não está a salvo de equívocos e regressões. Esta última palavra, aliás, mostra que, no fundo, ele considera essa concepção superior às pré-modernas. E como não o faria, se ela constitui uma das condições de possibilidade da própria antropologia que ele representa? De todo modo, aqueles que pensam assim e prezam a liberdade de pensamento e ação que só se tornou possível no mundo moderno devem ficar alertas. Se alguém duvidar disso, que leia, por exemplo, a regressiva legislação sobre imigração recentemente aprovada pelo Parlamento Europeu.
27.6.08
Montesquieu: anotações diversas
Selecionei e traduzi alguns dos pensamentos que Montesquieu não pôs em suas obras. "São idéias que não aprofundei", diz, "e que guardo para sobre elas pensar quando surgir a ocasião".
Quase nunca tenho tristeza, e menos ainda tédio.
O estudo tem sido para mim o remédio soberano contra os desgostos da vida, e jamais tive tristeza de que uma hora de leitura não me tenha livrado.
Acordo de manhã com uma alegria secreta; vejo a luz com uma espécie de arrebatamento. Todo o resto do dia fico contente.
Passo a noite sem acordar e, à noite, quando vou para a cama, uma espécie de entorpecimento me impede de fazer reflexões.
Quando viajei pelos países estrangeiros, liguei-me a eles como ao meu próprio: tomei parte da sorte deles, e gostaria que estivessem num estado florescente.
Nunca me irritei de passar por distraído: isso me permitiu arriscar-me a cometer muitas negligências que me teriam encabulado.
Quanto à maior parte das pessoas, prefiro aprová-las a escutá-las.
Jamais vi correrem lágrimas sem me enternecer.
Perdoo facilmente, pela razão de que não sei odiar. Parece-me que o ódio é doloroso. Quando alguém quis se reconciliar comigo, senti minha vaidade lisonjeada e parei de ver como inimigo um homem que me prestava o serviço de me dar uma boa opinião de mim.
Quando se esperou que eu brilhasse numa conversa, jamais o fiz. Prefiro ter um homem de espírito a me apoiar do que muitos tolos a me aprovar.
Se eu soubesse de uma coisa útil para minha nação que fosse destruidora para outra, não a proporia ao meu príncipe, porque sou homem antes de ser francês, (ou então) porque sou necessariamente homem, e só sou francês por acaso.
Se eu soubesse de alguma coisa que me fosse útil e que fosse prejudicial à minha família, eu a expulsaria do meu espírito. Se soubesse de alguma coisa útil à minha família e que não o fosse à minha pátria, eu tentaria esquecê-la. Se eu soubesse de alguma coisa útil à minha pátria, e que fosse prejudicial à Europa, ou que fosse útil à Europa e prejudicial ao gênero humano, eu a consideraria um crime.
Não esposo opiniões, exceto as dos livros de Euclides.
Eu dizia: “Não faço parte das vinte pessoas que conhecem essas ciências em Paris, nem das cinquenta mil que crêem conhecê-la”.
Alguém me reprochou de ter mudado a seu respeito. Eu lhe disse: “Se é uma mudança para você, é uma revolução para mim”.
De: MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. "Mes pensées". In Oeuvres complètes. Vol.1. Org. p. Roger Caillois. Paris: Gallimard, 1949.
Quase nunca tenho tristeza, e menos ainda tédio.
O estudo tem sido para mim o remédio soberano contra os desgostos da vida, e jamais tive tristeza de que uma hora de leitura não me tenha livrado.
Acordo de manhã com uma alegria secreta; vejo a luz com uma espécie de arrebatamento. Todo o resto do dia fico contente.
Passo a noite sem acordar e, à noite, quando vou para a cama, uma espécie de entorpecimento me impede de fazer reflexões.
Quando viajei pelos países estrangeiros, liguei-me a eles como ao meu próprio: tomei parte da sorte deles, e gostaria que estivessem num estado florescente.
Nunca me irritei de passar por distraído: isso me permitiu arriscar-me a cometer muitas negligências que me teriam encabulado.
Quanto à maior parte das pessoas, prefiro aprová-las a escutá-las.
Jamais vi correrem lágrimas sem me enternecer.
Perdoo facilmente, pela razão de que não sei odiar. Parece-me que o ódio é doloroso. Quando alguém quis se reconciliar comigo, senti minha vaidade lisonjeada e parei de ver como inimigo um homem que me prestava o serviço de me dar uma boa opinião de mim.
Quando se esperou que eu brilhasse numa conversa, jamais o fiz. Prefiro ter um homem de espírito a me apoiar do que muitos tolos a me aprovar.
Se eu soubesse de uma coisa útil para minha nação que fosse destruidora para outra, não a proporia ao meu príncipe, porque sou homem antes de ser francês, (ou então) porque sou necessariamente homem, e só sou francês por acaso.
Se eu soubesse de alguma coisa que me fosse útil e que fosse prejudicial à minha família, eu a expulsaria do meu espírito. Se soubesse de alguma coisa útil à minha família e que não o fosse à minha pátria, eu tentaria esquecê-la. Se eu soubesse de alguma coisa útil à minha pátria, e que fosse prejudicial à Europa, ou que fosse útil à Europa e prejudicial ao gênero humano, eu a consideraria um crime.
Não esposo opiniões, exceto as dos livros de Euclides.
Eu dizia: “Não faço parte das vinte pessoas que conhecem essas ciências em Paris, nem das cinquenta mil que crêem conhecê-la”.
Alguém me reprochou de ter mudado a seu respeito. Eu lhe disse: “Se é uma mudança para você, é uma revolução para mim”.
De: MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. "Mes pensées". In Oeuvres complètes. Vol.1. Org. p. Roger Caillois. Paris: Gallimard, 1949.
25.6.08
Caio Meira: "pequeno sutra da mais completa ignorância"
.
pequeno sutra da mais completa ignorância
não sei migrar para o sul quando chega o verão, nem caminhar sobre o carvão em brasa
carroças já não passam por minha boca
desconheço regras de retórica, o manejo de sombras, tipos exóticos de peixes, datas e aparatos de cerimônia
sei que tenho 32 dentes, leio livros e jornais, vou ao mercado e ao cinema, escuto música clássica e popular, e posso dizer de cor os números dos meus documentos, além de uns poucos poemas aprendidos há muito tempo
teimo também em me lembrar dos conselhos dos amigos, que permanecem vagando desacertados entre frases que de algum modo saltam prontas de minha garganta
não posso, apesar de grandes esforços, distinguir o fútil do necessário, o que me vale tantas horas misturando fadiga e prazer
nenhum balanço pode ser feito
apesar de meus olhos e meus pés se considerarem auto-suficientes na avaliação das distâncias, acabo sempre por tropeçar numa pessoa ou numa pedra
De: MEIRA, Caio. Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer. Rio de Janeiro: Azougue, 2003.
pequeno sutra da mais completa ignorância
não sei migrar para o sul quando chega o verão, nem caminhar sobre o carvão em brasa
carroças já não passam por minha boca
desconheço regras de retórica, o manejo de sombras, tipos exóticos de peixes, datas e aparatos de cerimônia
sei que tenho 32 dentes, leio livros e jornais, vou ao mercado e ao cinema, escuto música clássica e popular, e posso dizer de cor os números dos meus documentos, além de uns poucos poemas aprendidos há muito tempo
teimo também em me lembrar dos conselhos dos amigos, que permanecem vagando desacertados entre frases que de algum modo saltam prontas de minha garganta
não posso, apesar de grandes esforços, distinguir o fútil do necessário, o que me vale tantas horas misturando fadiga e prazer
nenhum balanço pode ser feito
apesar de meus olhos e meus pés se considerarem auto-suficientes na avaliação das distâncias, acabo sempre por tropeçar numa pessoa ou numa pedra
De: MEIRA, Caio. Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer. Rio de Janeiro: Azougue, 2003.
24.6.08
Paulo Leminski: "O náufrago náugrafo"
Em homenagem ao meu querido amigo, o poeta Paulo Roberto Sabino Júnior, cujo aniversário é hoje, publico um dos seus poemas favoritos.
22.6.08
Blogs de Caetano Veloso, Yoani Sanchez e Reinaldo Escobar
Hoje li e recomendo enfaticamente o blog “Obra em progresso” (http://www.obraemprogresso.com.br/), de Caetano Veloso. A partir dele, também conheci e também recomendo os blogs “Generación Y” (http://www.desdecuba.com/generaciony/), da cubana Yoani Sanchez, e “Desde aquí” (http://desdecuba.com/reinaldoescobar/), de Reinaldo Escobar, também cubano, marido de Yoani.
Carlos Pena Filho: "Soneto do desmantelo azul"
.
Soneto do Desmantelo Azul
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
De: PENA FILHO, Carlos. "A vertigem lúcida". In: Livro geral. Olinda: Gráfica Vitória, 1977.
Soneto do Desmantelo Azul
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
De: PENA FILHO, Carlos. "A vertigem lúcida". In: Livro geral. Olinda: Gráfica Vitória, 1977.
19.6.08
Cioran: de "Syllogismes de l'amertume"
Sans Dieu tout est néant; et Dieu? Néant suprême.
[Sem Deus tudo é nada; e Deus? Nada supremo.]
De: "Le cirque de la solitude", in: Syllogismes de l'amertume. Paris: Gallimard, 1980, p.79
[Sem Deus tudo é nada; e Deus? Nada supremo.]
De: "Le cirque de la solitude", in: Syllogismes de l'amertume. Paris: Gallimard, 1980, p.79
18.6.08
Sophia de Mello Breyner Andresen: "Terror de te amar"
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
De: PEDROSA, Inês (org.). Poemas de amor. Antologia de poesia portuguesa. Lisboa: Dom Quixote, 2005, p.140.
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
De: PEDROSA, Inês (org.). Poemas de amor. Antologia de poesia portuguesa. Lisboa: Dom Quixote, 2005, p.140.
15.6.08
Sobre "Identidade e violência"
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 14 de junho de 2008:
Sobre "Identidade e violência"
NO LIVRO "Identidade e violência" (SEN, Amartya. Identity and Violence. London: W.W. Norton & Company, 2006) , o economista indiano Amartya Sen, detentor do Prêmio Nobel, chama atenção para os perigos da chamada "política da identidade".
Esta consiste em reduzir, para fins políticos, os seres humanos a membros de exatamente um grupo: seja de um sexo, de uma etnia, de uma nacionalidade, de uma classe social, de uma cultura, de uma religião etc.
Quando criança, Sen testemunhou a violência dos conflitos entre hindus e muçulmanos, nos anos 40, em que "os seres humanos complexos de janeiro subitamente se transformaram nos impiedosos hindus e nos ferozes muçulmanos de julho", o que resultou na morte de centenas de milhares de pessoas.
Os "artífices do ódio" que lideraram a carnificina haviam induzido as pessoas a pensarem nos membros da sua própria comunidade como apenas hindus e nos membros da outra comunidade como apenas muçulmanos, e vice-versa.
Contra a política da unidimensionalidade identitária, Sen defende o poder das identidades competitivas. "Posso ser ao mesmo tempo", diz, no que é sem dúvida uma auto-descrição, "asiático, cidadão indiano, bengali com ancestrais de Bangladesh, residente americano ou britânico, economista, filósofo amador, escritor, sanscritista, alguém que crê fortemente no secularismo e na democracia, homem, feminista, heterossexual, defensor dos direitos gays e lésbicos, praticante de um estilo de vida não-religioso, de background hindu, não-brâmane, descrente em vida depois da vida (e, caso interrogado, descrente em vida antes da vida também)". E complementa: "Isso é apenas uma pequena amostra das diversas categorias às quais posso simultaneamente pertencer".
De fato, muitas das teorias de cultura e civilização em voga no mundo de hoje convidam as pessoas a se verem em termos de uma única identidade. Sen se refere, em particular, por um lado, ao comunitarismo, que privilegia a identidade comunitária acima de todas as outras, e, por outro lado, às teses de Samuel Huntington sobre o pretenso conflito das civilizações.
Quanto ao comunitarismo, Sen pensa que, embora tenha surgido como uma tentativa de considerar os seres humanos de modo mais concreto e social, tende hoje, de modo insustentável, a considerar os seres humanos exclusivamente como membros de uma comunidade. Ora, isso significa ignorar que, em grande medida, somos capazes de escolher nossas crenças, associações e atitudes, e que devemos aceitar responsabilidade pelo que, ainda que implicitamente, escolhemos.
Já Huntington, partindo do princípio de que "de todos os elementos que definem as civilizações, o mais importante geralmente é a religião", acaba caindo numa unidimensionalidade identitária que, como todas, só se pode afirmar às custas da violentação dos fatos.
Assim, por exemplo, Sen observa que Huntington, ao descrever a Índia como uma "civilização hindu", ignora a importância do fato de que, excetuando-se a Indonésia e, marginalmente, o Paquistão, a Índia tem mais muçulmanos do que qualquer outro país do mundo.
Assim também, tentando confinar o pensamento dos membros de cada civilização nos marcos de uma identidade específica, finita, reificada, Huntington chega ao ponto de pretender que "as idéias de liberdade individual, democracia política, império da lei, direitos humanos e liberdade cultural são idéias européias, não idéias asiáticas, nem africanas, nem do Oriente Médio". Por trás de tais pretensões se encontra, sem dúvida, o pressuposto implícito de que a razão crítica pertence à "civilização ocidental".
Contra tal pressuposto, Sen cita o fato de que, já em 1590, o imperador indiano Akbar, muçulmano, afirmava que a fé não pode ter prioridade sobre a razão, argumentando que é por meio da razão que cada um deve justificar -e, se necessário, rejeitar- a fé que herdou.
Ademais, tendo sido atacado pelos tradicionalistas, favoráveis à fé instintiva, Akbar afirmou que a necessidade de cultivar a razão e rejeitar o tradicionalismo é tão patente que não necessita de argumentação, pois "se o tradicionalismo fosse certo, os profetas teriam apenas seguido os mais velhos (e não teriam apresentado novas mensagens)".
É a identidade racional de Akbar que aqui prevalece sobre a sua identidade muçulmana e tradicional: o que prova que Sen tem razão ao afirmar que somos consideravelmente livres para decidir o grau de prioridade que a cada momento atribuímos a cada uma das identidades que simultaneamente possuímos.
Parece-me auspicioso que justamente um oriental tenha escrito uma obra capaz de funcionar como um poderoso antídoto contra as tendências irracionalistas do pensamento ocidental contemporâneo.
Sobre "Identidade e violência"
NO LIVRO "Identidade e violência" (SEN, Amartya. Identity and Violence. London: W.W. Norton & Company, 2006) , o economista indiano Amartya Sen, detentor do Prêmio Nobel, chama atenção para os perigos da chamada "política da identidade".
Esta consiste em reduzir, para fins políticos, os seres humanos a membros de exatamente um grupo: seja de um sexo, de uma etnia, de uma nacionalidade, de uma classe social, de uma cultura, de uma religião etc.
Quando criança, Sen testemunhou a violência dos conflitos entre hindus e muçulmanos, nos anos 40, em que "os seres humanos complexos de janeiro subitamente se transformaram nos impiedosos hindus e nos ferozes muçulmanos de julho", o que resultou na morte de centenas de milhares de pessoas.
Os "artífices do ódio" que lideraram a carnificina haviam induzido as pessoas a pensarem nos membros da sua própria comunidade como apenas hindus e nos membros da outra comunidade como apenas muçulmanos, e vice-versa.
Contra a política da unidimensionalidade identitária, Sen defende o poder das identidades competitivas. "Posso ser ao mesmo tempo", diz, no que é sem dúvida uma auto-descrição, "asiático, cidadão indiano, bengali com ancestrais de Bangladesh, residente americano ou britânico, economista, filósofo amador, escritor, sanscritista, alguém que crê fortemente no secularismo e na democracia, homem, feminista, heterossexual, defensor dos direitos gays e lésbicos, praticante de um estilo de vida não-religioso, de background hindu, não-brâmane, descrente em vida depois da vida (e, caso interrogado, descrente em vida antes da vida também)". E complementa: "Isso é apenas uma pequena amostra das diversas categorias às quais posso simultaneamente pertencer".
De fato, muitas das teorias de cultura e civilização em voga no mundo de hoje convidam as pessoas a se verem em termos de uma única identidade. Sen se refere, em particular, por um lado, ao comunitarismo, que privilegia a identidade comunitária acima de todas as outras, e, por outro lado, às teses de Samuel Huntington sobre o pretenso conflito das civilizações.
Quanto ao comunitarismo, Sen pensa que, embora tenha surgido como uma tentativa de considerar os seres humanos de modo mais concreto e social, tende hoje, de modo insustentável, a considerar os seres humanos exclusivamente como membros de uma comunidade. Ora, isso significa ignorar que, em grande medida, somos capazes de escolher nossas crenças, associações e atitudes, e que devemos aceitar responsabilidade pelo que, ainda que implicitamente, escolhemos.
Já Huntington, partindo do princípio de que "de todos os elementos que definem as civilizações, o mais importante geralmente é a religião", acaba caindo numa unidimensionalidade identitária que, como todas, só se pode afirmar às custas da violentação dos fatos.
Assim, por exemplo, Sen observa que Huntington, ao descrever a Índia como uma "civilização hindu", ignora a importância do fato de que, excetuando-se a Indonésia e, marginalmente, o Paquistão, a Índia tem mais muçulmanos do que qualquer outro país do mundo.
Assim também, tentando confinar o pensamento dos membros de cada civilização nos marcos de uma identidade específica, finita, reificada, Huntington chega ao ponto de pretender que "as idéias de liberdade individual, democracia política, império da lei, direitos humanos e liberdade cultural são idéias européias, não idéias asiáticas, nem africanas, nem do Oriente Médio". Por trás de tais pretensões se encontra, sem dúvida, o pressuposto implícito de que a razão crítica pertence à "civilização ocidental".
Contra tal pressuposto, Sen cita o fato de que, já em 1590, o imperador indiano Akbar, muçulmano, afirmava que a fé não pode ter prioridade sobre a razão, argumentando que é por meio da razão que cada um deve justificar -e, se necessário, rejeitar- a fé que herdou.
Ademais, tendo sido atacado pelos tradicionalistas, favoráveis à fé instintiva, Akbar afirmou que a necessidade de cultivar a razão e rejeitar o tradicionalismo é tão patente que não necessita de argumentação, pois "se o tradicionalismo fosse certo, os profetas teriam apenas seguido os mais velhos (e não teriam apresentado novas mensagens)".
É a identidade racional de Akbar que aqui prevalece sobre a sua identidade muçulmana e tradicional: o que prova que Sen tem razão ao afirmar que somos consideravelmente livres para decidir o grau de prioridade que a cada momento atribuímos a cada uma das identidades que simultaneamente possuímos.
Parece-me auspicioso que justamente um oriental tenha escrito uma obra capaz de funcionar como um poderoso antídoto contra as tendências irracionalistas do pensamento ocidental contemporâneo.
13.6.08
Jorge Luis Borges: "Prólogo a 'Los conjurados'"
Prólogo a Los Conjurados
A nadie puede maravillar que el primero de los elementos, el fuego, no abunde en el libro de un hombre de ochenta y tantos años. Una reina, en la hora de su muerte, dice que es fuego y aire; yo suelo sentir que soy tierra, cansada tierra. Sigo, sin embargo, escribiendo. ¿Qué otra suerte me queda, qué otra hermosa suerte me queda? La dicha de escribir no se mida por las virtudes o flaquezas de la escritura. Toda obra humana es deleznable, afirma Carlyle, pero su ejecución no lo es.
No profeso ninguna estética. Cada obra confía a su escritor la forma que busca: el verso, la prosa, el estilo barroco o el llano. Las teorías pueden ser admirables estímulos (recordemos a Whitman) pero asimismo pueden engendrar monstruos o meras piezas de museo. Recordemos el monólogo interior de James Joyce o el sumamente incómodo Polifemo.
Al cabo de los años he observado que la belleza, como la felicidad, es frecuente. No pasa un día en que no estemos, un instante, en el paraíso. No hay poeta, por mediocre que sea, que no haya escrito el mejor verso de la literatura, pero también los más desdichados. La belleza no es privilegio de unos cuantos nombres ilustres. Sería muy raro que este libro, que abarca unas cuarenta composiciones, no atesorara una sola línea secreta, digna de acompañarte hasta el fin.
En este libro hay muchos sueños. Aclaro que fueron dones de la noche o, más precisamente, del alba, no ficciones deliberadas. Apenas si me he atrevido a agregar uno que otro rasgo circunstancial, de los que exige nuestro tiempo, a partir de Defoe.
Dicto este prólogo en una de mis patrias, Ginebra.
J.L.B.
9 de enero de 1985.
De: BORGES, Jorge Luis. "Los conjurados". In: Obras completas. Vol.2: 1975-1985. Buenos Aires: Emecé Editores. 1989, p.455.
A nadie puede maravillar que el primero de los elementos, el fuego, no abunde en el libro de un hombre de ochenta y tantos años. Una reina, en la hora de su muerte, dice que es fuego y aire; yo suelo sentir que soy tierra, cansada tierra. Sigo, sin embargo, escribiendo. ¿Qué otra suerte me queda, qué otra hermosa suerte me queda? La dicha de escribir no se mida por las virtudes o flaquezas de la escritura. Toda obra humana es deleznable, afirma Carlyle, pero su ejecución no lo es.
No profeso ninguna estética. Cada obra confía a su escritor la forma que busca: el verso, la prosa, el estilo barroco o el llano. Las teorías pueden ser admirables estímulos (recordemos a Whitman) pero asimismo pueden engendrar monstruos o meras piezas de museo. Recordemos el monólogo interior de James Joyce o el sumamente incómodo Polifemo.
Al cabo de los años he observado que la belleza, como la felicidad, es frecuente. No pasa un día en que no estemos, un instante, en el paraíso. No hay poeta, por mediocre que sea, que no haya escrito el mejor verso de la literatura, pero también los más desdichados. La belleza no es privilegio de unos cuantos nombres ilustres. Sería muy raro que este libro, que abarca unas cuarenta composiciones, no atesorara una sola línea secreta, digna de acompañarte hasta el fin.
En este libro hay muchos sueños. Aclaro que fueron dones de la noche o, más precisamente, del alba, no ficciones deliberadas. Apenas si me he atrevido a agregar uno que otro rasgo circunstancial, de los que exige nuestro tiempo, a partir de Defoe.
Dicto este prólogo en una de mis patrias, Ginebra.
J.L.B.
9 de enero de 1985.
De: BORGES, Jorge Luis. "Los conjurados". In: Obras completas. Vol.2: 1975-1985. Buenos Aires: Emecé Editores. 1989, p.455.
12.6.08
Bertrand Russell: Sobre a fé
Os cristãos afirmam que sua fé é benfazeja, mas que outras fés fazem mal. Pelo menos pensam isso da fé comunista. O que quero sustentar é que todas as fés fazem mal. Pode-se definir a ‘fé’ como uma firme crença em algo para o qual não há nenhuma evidência. Quando há evidência, ninguém fala de ‘fé’. Não se fala de ter fé em que dois e dois sejam quatro ou em que a terra seja redonda. Só se fala de fé quando se quer substituir a evidência pela emoção.
RUSSELL, Bertrand. Human Society in Ethics and Politics, London: George Allen and Unwin, 1954, p.215.
RUSSELL, Bertrand. Human Society in Ethics and Politics, London: George Allen and Unwin, 1954, p.215.
9.6.08
Nietzsche: "Dos poetas"
A idéia de que os poetas mentem se encontra também no seguinte trecho de "Assim falou Zarathustra":
Dos poetas
“Desde que conheço melhor o corpo” – disse Zarathustra a um dos seus discípulos – “o espírito é para mim só figurativamente espírito; e todo o “imperecível” – também não passa de figura”.
“Assim já te ouvi falar uma vez”, respondeu o discípulo; “e então adicionaste: ‘mas os poetas mentem demais’. Mas por que disseste que os poetas mentem demais?”
“Por que?” disse Zarathustra. “Perguntas por que? Não sou daqueles a quem se possa perguntar pelo seu por que.
Será de ontem a minha vivência? Faz muito tempo que vivenciei as razões das minhas opiniões.
Não teria eu que ser um tonel de memória se quisesse ter comigo também as minhas razões?
Já me é demasiado até conservar as minhas opiniões; e mais de um pássaro foge voando.
E vez por outra também encontro um bicho que veio voando para o meu pombal e que me é estranho, e que treme quando nele ponho a mão.
Porém o que te disse uma vez Zarathustra? Que os poetas mentem demais? – Mas também Zarathustra é um poeta.
Ora, crês que nesse ponto ele disse a verdade? Por que o crês?”
O discípulo respondeu: “Confio em Zarathustra”. Mas Zarathustra sacudiu a cabeça e riu.
“A confiança não me faz feliz”, disse ele, “principalmente a confiança em mim.
Mas dado que alguém com toda seriedade diga que os poetas mentem demais: terá razão – mentimos demais.
Também sabemos muito pouco e somos maus aprendizes: já por isso temos que mentir.
E qual de nós, poetas, não adulterou o seu vinho? Mais de uma mistura venenosa ocorreu nos nossos celeiros, mais de uma coisa indescritível foi lá preparada.
E como sabemos pouco, gostamos muito dos pobres de espírito, principalmente quando são jovens mulherzinhas.
E cobiçamos até mesmo as coisas que as velhas contam à noite. A isso chamamos o eterno feminino em nós mesmos.
E como se houvesse um acesso secreto ao saber, oculto àqueles que aprendem algo: assim cremos nós no povo e em sua ‘sabedoria’.
Mas todos os poetas crêem no seguinte: que quem deitado na grama ou numa encosta solitária aguce os ouvidos experimentará algo das coisas que se encontram entre o céu e a terra.
E se movimentos delicados os alcançarem, sempre pensam os poetas que a natureza mesma se apaixonou por eles:
E ela se desliza aos seus ouvidos para contar segredos e fazer lisonjas apaixonadas: das quais eles se vangloriam e se envaidecem acima de todos os mortais!
Ah, há tanta coisa entre o céu e a terra com as quais só os poetas se permitem sonhar!
E principalmente acima do céu: pois todos os deuses são figuras de poetas, manhas de poetas!
Em verdade, sempre somos atraídos para cima – isto é, para o reino das nuvens: nestas colocamos nossos fantoches coloridos e os chamamos deuses e super-homens;
pois eles são justo bastante leves para esses assentos! – todos esses deuses e super-homens.
Ah, como estou cansado de todo o inalcançável que se pretende acontecimento! Ah, como estou cansado dos poetas!”
Quando Zarathustra assim falou, zangou-se com ele seu discípulo, mas se calou. E também Zarathustra se calou; e seu olhos se haviam voltado para dentro, como se olhassem para muito longe. Finalmente ele suspirou e tomou fôlego.
“Sou de hoje e de outrora, disse então; mas há algo em mim que é de amanhã e de depois de amanhã e do porvir.
Cansei-me dos poetas, dos velhos e dos novos: Superficiais ele todos são para mim, e mares rasos.
Não pensaram bastante das profundezas: com isso seu sentimento não mergulhou até o fundo.
Alguma volúpia e algum tédio: ainda é isso o melhor das suas reflexões.
Um sopro e um deslizar de fantasmas me parecem todos os seus harpejos; que sabem eles até hoje do ardor dos sons!
Para mim tampouco são bastante puros: turvam todas as suas águas, para que pareçam profundas.
E gostam de se apresentar como conciliadores; mas para mim permanecem mediadores e misturadores e meio isto e meio aquilo, e impuros!
Ah, lancei minha rede no seu mar e quis pescar bons peixes; mas sempre recolhi a cabeça de um velho deus.
Assim ao faminto o mar deu uma pedra. E eles mesmos poderiam vir do mar.
Certo, acham-se pérolas neles: tanto mais, por isso, parecem eles mesmos com duros crustáceos. E, em vez de alma, muitas vezes neles achei lodo salgado.
Aprenderam do mar também sua vaidade: não é o mar o pavão dos pavões?
Mesmo ante o mais feio dos búfalos ele ostenta sua cauda: jamais se cansa de seu leque de prata e seda.
Carrancudo contempla-o búfalo, pois sua alma é mais afim da areia, mais ainda do cerrado e mais de tudo do pântano.
Que são para ele a beleza e o mar e os adornos do pavão! Esta parábola dedico aos poetas.
Em verdade seu espírito mesmo é o pavão dos pavões e um mar de vaidade!
Quer espectadores o espírito do poeta: ainda que sejam búfalos! –
Mas desse espírito cansei-me: e vejo o dia em que ele mesmo se cansará de si.
Já vi os poetas transformados, a dirigir seu olhar contra si mesmos.
Penitentes do espírito vi chegarem: e surgiam dos poetas.”
Assim falou Zarathustra.
De: NIETZSCHE, Friedrich. "Also sprach Zarathustra. Ein Buch für alle und keinen". In: Werke. Vol.2. Org.: K. Schlechta. München: Carl Hansen, 1954, p.381-384.
Dos poetas
“Desde que conheço melhor o corpo” – disse Zarathustra a um dos seus discípulos – “o espírito é para mim só figurativamente espírito; e todo o “imperecível” – também não passa de figura”.
“Assim já te ouvi falar uma vez”, respondeu o discípulo; “e então adicionaste: ‘mas os poetas mentem demais’. Mas por que disseste que os poetas mentem demais?”
“Por que?” disse Zarathustra. “Perguntas por que? Não sou daqueles a quem se possa perguntar pelo seu por que.
Será de ontem a minha vivência? Faz muito tempo que vivenciei as razões das minhas opiniões.
Não teria eu que ser um tonel de memória se quisesse ter comigo também as minhas razões?
Já me é demasiado até conservar as minhas opiniões; e mais de um pássaro foge voando.
E vez por outra também encontro um bicho que veio voando para o meu pombal e que me é estranho, e que treme quando nele ponho a mão.
Porém o que te disse uma vez Zarathustra? Que os poetas mentem demais? – Mas também Zarathustra é um poeta.
Ora, crês que nesse ponto ele disse a verdade? Por que o crês?”
O discípulo respondeu: “Confio em Zarathustra”. Mas Zarathustra sacudiu a cabeça e riu.
“A confiança não me faz feliz”, disse ele, “principalmente a confiança em mim.
Mas dado que alguém com toda seriedade diga que os poetas mentem demais: terá razão – mentimos demais.
Também sabemos muito pouco e somos maus aprendizes: já por isso temos que mentir.
E qual de nós, poetas, não adulterou o seu vinho? Mais de uma mistura venenosa ocorreu nos nossos celeiros, mais de uma coisa indescritível foi lá preparada.
E como sabemos pouco, gostamos muito dos pobres de espírito, principalmente quando são jovens mulherzinhas.
E cobiçamos até mesmo as coisas que as velhas contam à noite. A isso chamamos o eterno feminino em nós mesmos.
E como se houvesse um acesso secreto ao saber, oculto àqueles que aprendem algo: assim cremos nós no povo e em sua ‘sabedoria’.
Mas todos os poetas crêem no seguinte: que quem deitado na grama ou numa encosta solitária aguce os ouvidos experimentará algo das coisas que se encontram entre o céu e a terra.
E se movimentos delicados os alcançarem, sempre pensam os poetas que a natureza mesma se apaixonou por eles:
E ela se desliza aos seus ouvidos para contar segredos e fazer lisonjas apaixonadas: das quais eles se vangloriam e se envaidecem acima de todos os mortais!
Ah, há tanta coisa entre o céu e a terra com as quais só os poetas se permitem sonhar!
E principalmente acima do céu: pois todos os deuses são figuras de poetas, manhas de poetas!
Em verdade, sempre somos atraídos para cima – isto é, para o reino das nuvens: nestas colocamos nossos fantoches coloridos e os chamamos deuses e super-homens;
pois eles são justo bastante leves para esses assentos! – todos esses deuses e super-homens.
Ah, como estou cansado de todo o inalcançável que se pretende acontecimento! Ah, como estou cansado dos poetas!”
Quando Zarathustra assim falou, zangou-se com ele seu discípulo, mas se calou. E também Zarathustra se calou; e seu olhos se haviam voltado para dentro, como se olhassem para muito longe. Finalmente ele suspirou e tomou fôlego.
“Sou de hoje e de outrora, disse então; mas há algo em mim que é de amanhã e de depois de amanhã e do porvir.
Cansei-me dos poetas, dos velhos e dos novos: Superficiais ele todos são para mim, e mares rasos.
Não pensaram bastante das profundezas: com isso seu sentimento não mergulhou até o fundo.
Alguma volúpia e algum tédio: ainda é isso o melhor das suas reflexões.
Um sopro e um deslizar de fantasmas me parecem todos os seus harpejos; que sabem eles até hoje do ardor dos sons!
Para mim tampouco são bastante puros: turvam todas as suas águas, para que pareçam profundas.
E gostam de se apresentar como conciliadores; mas para mim permanecem mediadores e misturadores e meio isto e meio aquilo, e impuros!
Ah, lancei minha rede no seu mar e quis pescar bons peixes; mas sempre recolhi a cabeça de um velho deus.
Assim ao faminto o mar deu uma pedra. E eles mesmos poderiam vir do mar.
Certo, acham-se pérolas neles: tanto mais, por isso, parecem eles mesmos com duros crustáceos. E, em vez de alma, muitas vezes neles achei lodo salgado.
Aprenderam do mar também sua vaidade: não é o mar o pavão dos pavões?
Mesmo ante o mais feio dos búfalos ele ostenta sua cauda: jamais se cansa de seu leque de prata e seda.
Carrancudo contempla-o búfalo, pois sua alma é mais afim da areia, mais ainda do cerrado e mais de tudo do pântano.
Que são para ele a beleza e o mar e os adornos do pavão! Esta parábola dedico aos poetas.
Em verdade seu espírito mesmo é o pavão dos pavões e um mar de vaidade!
Quer espectadores o espírito do poeta: ainda que sejam búfalos! –
Mas desse espírito cansei-me: e vejo o dia em que ele mesmo se cansará de si.
Já vi os poetas transformados, a dirigir seu olhar contra si mesmos.
Penitentes do espírito vi chegarem: e surgiam dos poetas.”
Assim falou Zarathustra.
De: NIETZSCHE, Friedrich. "Also sprach Zarathustra. Ein Buch für alle und keinen". In: Werke. Vol.2. Org.: K. Schlechta. München: Carl Hansen, 1954, p.381-384.
5.6.08
Hans Magnus Enzensberger: "Weitere Gründen dafür, das die Dichter lügen" / "Por que os poetas mentem: motivos adicionais", tradução de Nelson Ascher
.
Por que os poetas mentem: motivos adicionais
Porque o momento
em que a palavra feliz
é dita
nunca é o momento da felicidade.
Porque o sedento não traz
aos lábios sua sede.
Porque pela boca da classe operária
não passa a expressão classe operária.
Porque quem se desespera
não tem vontade de dizer:
"Estou desesperado."
Porque orgasmo e orgasmo
estão a mundos de distância.
Porque o moribundo, em vez de declarar
"estou morrendo", estertora apenas um gemido baixo
e, para nós, incompreensível.
Porque são os vivos
que enchem o ouvido dos mortos
com suas notícias atrozes.
Porque as palavras sempre chegam
tarde demais ou cedo demais.
Porque é um outro,
sempre um outro,
quem fala
e porque
aquele de quem se fala
silencia.
Weitere Gründe dafür, das die Dichter lügen
Weil der Augenblick,
in dem das Wort glücklich
ausgesprochen wird,
niemals der glückliche Augenblick ist.
Weil der Verdurstende seinen Durst
nicht über die Lippen bringt.
Weil im Munde der Arbeiterklasse
das Wort Arbeiterklasse nicht vorkommt.
Weil, wer verzweifelt,
nicht Lust hat, zu sagen:
»Ich bin ein Verzweifelnder. «
Weil Orgasmus und Orgasmus
nicht miteinander vereinbar sind.
Weil der Sterbende, statt zu behaupten:
»Ich sterbe jetzt« nur ein mattes Geräusch vernehmen läßt,
das wir nicht verstehen.
Weil es die Lebenden sind,
die den Toten in den Ohren liegen
mit ihren Schreckensnachrichten.
Weil die Wärter zu spät kommen,
oder zu früh.
Weil es also ein anderer ist,
immer ein anderer,
der da redet,
und weil der,
von dem da die Rede ist,
schweigt.
De: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998, p.314-315.
Por que os poetas mentem: motivos adicionais
Porque o momento
em que a palavra feliz
é dita
nunca é o momento da felicidade.
Porque o sedento não traz
aos lábios sua sede.
Porque pela boca da classe operária
não passa a expressão classe operária.
Porque quem se desespera
não tem vontade de dizer:
"Estou desesperado."
Porque orgasmo e orgasmo
estão a mundos de distância.
Porque o moribundo, em vez de declarar
"estou morrendo", estertora apenas um gemido baixo
e, para nós, incompreensível.
Porque são os vivos
que enchem o ouvido dos mortos
com suas notícias atrozes.
Porque as palavras sempre chegam
tarde demais ou cedo demais.
Porque é um outro,
sempre um outro,
quem fala
e porque
aquele de quem se fala
silencia.
Weitere Gründe dafür, das die Dichter lügen
Weil der Augenblick,
in dem das Wort glücklich
ausgesprochen wird,
niemals der glückliche Augenblick ist.
Weil der Verdurstende seinen Durst
nicht über die Lippen bringt.
Weil im Munde der Arbeiterklasse
das Wort Arbeiterklasse nicht vorkommt.
Weil, wer verzweifelt,
nicht Lust hat, zu sagen:
»Ich bin ein Verzweifelnder. «
Weil Orgasmus und Orgasmus
nicht miteinander vereinbar sind.
Weil der Sterbende, statt zu behaupten:
»Ich sterbe jetzt« nur ein mattes Geräusch vernehmen läßt,
das wir nicht verstehen.
Weil es die Lebenden sind,
die den Toten in den Ohren liegen
mit ihren Schreckensnachrichten.
Weil die Wärter zu spät kommen,
oder zu früh.
Weil es also ein anderer ist,
immer ein anderer,
der da redet,
und weil der,
von dem da die Rede ist,
schweigt.
De: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998, p.314-315.
2.6.08
Eucanaã Ferraz: "Valsa para Graça"
VALSA PARA GRAÇA
Abra-se tudo
em grande-angular:
alas a ela, abra-se tudo
em salas que se abram
em salas abertas, salões,
e o que se fechara
antes desabroche
numa sucessão de estrelas
em pleno dia claro.
Abra-se o teto
do planetário, abra-se
o coração do fogo
e nele toda dor
torne a nada e
nada lhe resista
e por onde passe alastre
sua leveza. Alas a ela,
e que ela me leve.
Porque nela tudo parece
mover-se sobre salto
alto, sobretudo a alma,
a alma que parece calçar
a mesma sandália
que as palavras e os gestos
dela, alas
a ela, que, assim
alta,
como que vai
descalça e dançasse
sobre-além dos alarmes
e do medo, largando
na sua valsa
um rasto só de beleza.
Alas a ela.
De: FERRAZ, Eucanaã. Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.14.
Abra-se tudo
em grande-angular:
alas a ela, abra-se tudo
em salas que se abram
em salas abertas, salões,
e o que se fechara
antes desabroche
numa sucessão de estrelas
em pleno dia claro.
Abra-se o teto
do planetário, abra-se
o coração do fogo
e nele toda dor
torne a nada e
nada lhe resista
e por onde passe alastre
sua leveza. Alas a ela,
e que ela me leve.
Porque nela tudo parece
mover-se sobre salto
alto, sobretudo a alma,
a alma que parece calçar
a mesma sandália
que as palavras e os gestos
dela, alas
a ela, que, assim
alta,
como que vai
descalça e dançasse
sobre-além dos alarmes
e do medo, largando
na sua valsa
um rasto só de beleza.
Alas a ela.
De: FERRAZ, Eucanaã. Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.14.
1.6.08
Ainda a vanguarda
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 31 de maio de 2008:
FSP, 1 de Junho de 2008
ANTONIO CICERO
Ainda a vanguarda
EM ARTIGO que aqui publiquei em 3 do corrente, afirmei que, tendo cumprido a sua função, a vanguarda acabou. Não cheguei, porém, a explicar que uma das principais razões pelas quais penso assim é que estou convencido de que o feito principal da vanguarda enquanto vanguarda não foi de natureza propriamente estética ou artística, mas cognitiva e, mais precisamente, conceitual.
Em outras palavras, não é que, a partir da experiência da vanguarda, a arte tenha ficado melhor do que era, mas que, sobre ela, se aprendeu alguma coisa que não se sabia antes. Deu-se um aprendizado, um progresso cognitivo após o qual se passou a saber algo fundamental, antes não plenamente reconhecido, sobre a natureza da arte.
Com certeza o divórcio mais célebre entre o feito conceitual e o feito estético de uma obra não se deu no campo da poesia, mas no das artes plásticas. Refiro-me, é claro, a "Fontaine", o urinol que Marcel Duchamp pôs de cabeça para baixo e expôs como arte. Como se sabe, a partir de "Fontaine" e do conceito correlato de ready-made, foi profunda e amplamente posto em discussão o próprio conceito de arte. Ou seja, uma peça de valor artístico ou estético praticamente insignificante foi capaz de ter uma importância conceitual incalculável.
Ora, evidentemente, o valor puramente conceitual de uma coisa está naquilo que ela ensinou, e não nela própria. É claro que nada impede que uma obra seja importante tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista conceitual. Se o seu valor é exclusivamente conceitual, porém, ela não passa de veículo para o que ensina. Logo que o que ensina é aprendido, ela passa a ser mero exemplo do que ensinou, dotado, no máximo, de um valor histórico.
Em outras palavras, uma vez realizado o feito conceitual de uma obra puramente cognitiva, ela se torna supérflua. Assim como quem quiser aprender a lei da gravidade fará melhor lendo um livro-texto de física clássica do que os "Principia" de Newton, cujo texto original tem hoje um valor meramente histórico, assim também mais vale ler sobre "Fontaine" e ver as suas fotos do que contemplar uma das suas réplicas (a obra "original" desapareceu há muito tempo). O mesmo jamais poderia ser dito de uma obra dotada de valor estético, como "Les Demoiselles d'Avignon", de Picasso, ou o soneto "Salut", de Mallarmé, cujas presenças são insubstituíveis.
Supor que uma obra importante do ponto de vista cognitivo fosse necessariamente importante do ponto de vista artístico ou estético foi um equívoco comum da vanguarda e dos seus admiradores.
Por outro lado, não perceber ou negar que uma obra estética ou artisticamente insignificante ("Fontaine" é o caso clássico) pudesse ter uma grande importância conceitual e histórica foi o erro dos detratores da vanguarda.
Não só o feito da vanguarda enquanto vanguarda foi primariamente conceitual, mas o que com esse feito se aprendeu pode ser enunciado em poucas palavras. Aprendeu-se, de uma vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade -em princípio- de que a arte empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes. O "gênero" artístico revelou-se como convencional e perdeu toda a importância. A obra de arte não se vale de direitos hereditários ou de prerrogativas de família. Isso não significa que todas as obras se equivalham, mas que cada uma é antes um indivíduo do que um membro de uma espécie ou gênero e que é enquanto indivíduo que exige ser considerada.
Ora, o caminho até essas descobertas -que, no fundo, são o desdobramento de uma só- já foi cumprido e não tem como se estender. Não é possível ir "além" ou voltar "aquém" delas. Nesse sentido, não há mais vanguarda. O seu percurso já foi cumprido e nenhum artista ou crítico moderno pode dar-se ao luxo de ignorá-lo.
No artigo mencionado, eu já havia observado que se, etimologicamente, vanguarda é, como se sabe, o destacamento que, progredindo à frente do grosso do exército, abre caminho para este, de modo que, analogamente, dizem-se vanguarda também os artistas que, progredindo à frente dos demais, abrem caminho para estes, então essa designação só é de fato inteiramente adequada aos artistas cujo progresso não pode deixar de ser reconhecido e assimilado pelos demais.
Tal é o caso do progresso cognitivo que acabo de descrever que, sendo tão irrepetível quanto a descoberta da lei da gravidade, não pode mais ocorrer na arte experimental contemporânea.
FSP, 1 de Junho de 2008
ANTONIO CICERO
Ainda a vanguarda
EM ARTIGO que aqui publiquei em 3 do corrente, afirmei que, tendo cumprido a sua função, a vanguarda acabou. Não cheguei, porém, a explicar que uma das principais razões pelas quais penso assim é que estou convencido de que o feito principal da vanguarda enquanto vanguarda não foi de natureza propriamente estética ou artística, mas cognitiva e, mais precisamente, conceitual.
Em outras palavras, não é que, a partir da experiência da vanguarda, a arte tenha ficado melhor do que era, mas que, sobre ela, se aprendeu alguma coisa que não se sabia antes. Deu-se um aprendizado, um progresso cognitivo após o qual se passou a saber algo fundamental, antes não plenamente reconhecido, sobre a natureza da arte.
Com certeza o divórcio mais célebre entre o feito conceitual e o feito estético de uma obra não se deu no campo da poesia, mas no das artes plásticas. Refiro-me, é claro, a "Fontaine", o urinol que Marcel Duchamp pôs de cabeça para baixo e expôs como arte. Como se sabe, a partir de "Fontaine" e do conceito correlato de ready-made, foi profunda e amplamente posto em discussão o próprio conceito de arte. Ou seja, uma peça de valor artístico ou estético praticamente insignificante foi capaz de ter uma importância conceitual incalculável.
Ora, evidentemente, o valor puramente conceitual de uma coisa está naquilo que ela ensinou, e não nela própria. É claro que nada impede que uma obra seja importante tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista conceitual. Se o seu valor é exclusivamente conceitual, porém, ela não passa de veículo para o que ensina. Logo que o que ensina é aprendido, ela passa a ser mero exemplo do que ensinou, dotado, no máximo, de um valor histórico.
Em outras palavras, uma vez realizado o feito conceitual de uma obra puramente cognitiva, ela se torna supérflua. Assim como quem quiser aprender a lei da gravidade fará melhor lendo um livro-texto de física clássica do que os "Principia" de Newton, cujo texto original tem hoje um valor meramente histórico, assim também mais vale ler sobre "Fontaine" e ver as suas fotos do que contemplar uma das suas réplicas (a obra "original" desapareceu há muito tempo). O mesmo jamais poderia ser dito de uma obra dotada de valor estético, como "Les Demoiselles d'Avignon", de Picasso, ou o soneto "Salut", de Mallarmé, cujas presenças são insubstituíveis.
Supor que uma obra importante do ponto de vista cognitivo fosse necessariamente importante do ponto de vista artístico ou estético foi um equívoco comum da vanguarda e dos seus admiradores.
Por outro lado, não perceber ou negar que uma obra estética ou artisticamente insignificante ("Fontaine" é o caso clássico) pudesse ter uma grande importância conceitual e histórica foi o erro dos detratores da vanguarda.
Não só o feito da vanguarda enquanto vanguarda foi primariamente conceitual, mas o que com esse feito se aprendeu pode ser enunciado em poucas palavras. Aprendeu-se, de uma vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade -em princípio- de que a arte empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes. O "gênero" artístico revelou-se como convencional e perdeu toda a importância. A obra de arte não se vale de direitos hereditários ou de prerrogativas de família. Isso não significa que todas as obras se equivalham, mas que cada uma é antes um indivíduo do que um membro de uma espécie ou gênero e que é enquanto indivíduo que exige ser considerada.
Ora, o caminho até essas descobertas -que, no fundo, são o desdobramento de uma só- já foi cumprido e não tem como se estender. Não é possível ir "além" ou voltar "aquém" delas. Nesse sentido, não há mais vanguarda. O seu percurso já foi cumprido e nenhum artista ou crítico moderno pode dar-se ao luxo de ignorá-lo.
No artigo mencionado, eu já havia observado que se, etimologicamente, vanguarda é, como se sabe, o destacamento que, progredindo à frente do grosso do exército, abre caminho para este, de modo que, analogamente, dizem-se vanguarda também os artistas que, progredindo à frente dos demais, abrem caminho para estes, então essa designação só é de fato inteiramente adequada aos artistas cujo progresso não pode deixar de ser reconhecido e assimilado pelos demais.
Tal é o caso do progresso cognitivo que acabo de descrever que, sendo tão irrepetível quanto a descoberta da lei da gravidade, não pode mais ocorrer na arte experimental contemporânea.