O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 27 de junho:
A noção de humanidade
"NÃO HÁ homem no mundo", afirma Joseph de Maistre, em 1797. "Vi em minha vida", continua, "franceses, italianos, russos. Sei até, graças a Montesquieu, que se pode ser persa; mas quanto ao homem, declaro nunca tê-lo encontrado; se ele existe, ignoro". A boutade de Maistre, inimigo declarado da Revolução Francesa e do Iluminismo, atinge, entre outras coisas, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. É naturalmente irônica a menção a Montesquieu, cujo livro "Cartas Persas" havia sido uma das primeiras manifestações da Ilustração.
Na verdade, o epigrama de Maistre não deve ser levado a sério, pois, assim como ele diz que não há homens no mundo, mas apenas franceses, italianos, russos etc., alguém poderia sustentar que não há italianos, mas apenas piemonteses, lombardos, toscanos etc.; ao que um terceiro poderia replicar que não há toscanos, mas apenas florentinos, sienenses, pisanos etc.; e assim por diante, até chegar a um indivíduo. E o indivíduo? Esse será todas essas coisas e muitas outras, inclusive homem (no sentido de "ser humano"), animal, ser vivo, ser.
Maistre morreu muito antes da publicação, em 1899, dos cadernos de Montesquieu. Pois bem, estranhamente, num desses cadernos, o autor de "O Espírito das Leis" parece postumamente responder à sentença de Maistre, ao afirmar: "Sou necessariamente homem, e só sou francês por acaso". Em termos escolásticos, ele poderia ter dito: sou essencialmente homem, e acidentalmente francês.
Mas não poderia sua humanidade ser fruto do acaso? Não poderia ele ter dito, por exemplo: "Sou necessariamente animal, e só sou homem por acaso"? Não. O único animal que Montesquieu poderia ser é o homem (no sentido de "ser humano"), pois, de todos os animais, só o homem é capaz de pensar e dizer tais coisas.
Aos modernos, a maneira de pensar de Montesquieu é normal. É normal, por exemplo, que um brasileiro pense que, por acaso, é brasileiro, mas que poderia ter sido chinês ou nigeriano, ou americano, ou espanhol... E raramente nos damos conta de que os seres humanos só há pouco tempo aprenderam a ver as coisas desse modo. É claro que nesse ponto, como em tantos outros, alguns gregos já eram modernos. Diógenes, o Cínico, por exemplo, se dizia "kosmou polités", de onde "cosmopolita", que quer dizer "cidadão do mundo", expressão adotada pelos filósofos estóicos. Mas eles eram relativamente poucos.
Lévi-Strauss ensina que "a noção de humanidade, englobando, sem distinção de raça ou de civilização, todas as formas da espécie humana, é de aparição muito tardia e de expansão limitada. Lá mesmo onde ela parece ter atingido seu mais alto desenvolvimento, não é de modo algum certo -a história recente o prova- que ela esteja a salvo de equívocos e regressões. Mas para vastas frações da espécie humana e durante dezenas de milhares de anos, essa noção parece estar totalmente ausente. A humanidade cessa às fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, às vezes até do vilarejo".
Para termos uma idéia de como Lévi-Strauss tem razão ao falar da "aparição tardia" desse modo moderno de pensar, basta lembrar que os 250 anos que nos separam de Montesquieu estão para os 50 mil anos do Homo sapiens como os últimos sete minutos de um dia de 24 horas.
Hoje é um truísmo dizer que vivemos num mundo cada vez menor, mais economicamente interdependente e mais tecnologicamente interconectado do que jamais antes. Ao mesmo tempo, nunca foi tão desenvolvida e disseminada a consciência do caráter acidental, para o ser humano, não só da sua nacionalidade, mas da sua língua, cultu- ra, religião, etnia. Em tal mundo, seria de se esperar que as fronteiras políticas se tornassem cada vez mais porosas.
Entretanto, não é necessariamente isso que se observa, nem mesmo nas regiões do mundo onde a modernidade é mais desenvolvida e disseminada. De novo, Lévi-Strauss tem razão, ao dizer que a concepção moderna de humanidade não está a salvo de equívocos e regressões. Esta última palavra, aliás, mostra que, no fundo, ele considera essa concepção superior às pré-modernas. E como não o faria, se ela constitui uma das condições de possibilidade da própria antropologia que ele representa? De todo modo, aqueles que pensam assim e prezam a liberdade de pensamento e ação que só se tornou possível no mundo moderno devem ficar alertas. Se alguém duvidar disso, que leia, por exemplo, a regressiva legislação sobre imigração recentemente aprovada pelo Parlamento Europeu.
Ao ler o seu artigo (nomeadamente a primeira metade do texto), não pude deixar de me lembrar do poema do Ruy Belo (não sei se conhece)
ResponderExcluir"Peregrino e Hóspede sobre a Terra", de Ruy Belo
Meu único país é sempre onde estou bem
é onde pago o bem com sofrimento
é onde num momento tudo tenho
O meu país agora são os mesmos campos verdes
que no outono vi tristes e desolados
e onde nem me pedem passaporte
pois neles nasci e morro a cada instante
que a paz não é palavra para mim
O malmequer a erva o pessegueiro em flor
asseguram o mínimo de dor indispensável
a quem na felicidade que tivesse
veria uma reforma e um insulto
A vida recomeça e o sol brilha
a tudo isto chamam primavera
mas nada disto cabe numa só palavra
abstracta quando tudo é tão concreto e vário
O meu país são todos os amigos
que conquisto e que perco a cada instante
Os meus amigos são os mais recentes
os dos demais países os que mal conheço e
tenho de abandonar porque me vou embora
pois eu nunca estou bem aonde estou
nem mesmo estou sequer aonde estou
Eu não sou muito grande nasci numa aldeia
mas o país que tinha já de si pequeno
fizeram-no pequeno para mim
os donos das pessoas e das terras
os vendilhões das almas no templo do mundo
Sou donde estou e só sou português
por ter em portugal olhado a luz pela primeira vez
Abraço,
Pedro
Caro Antônio Cícero,
ResponderExcluirgostei imenso do artigo! Não há nem judeu nem heleno (e, no contexto contemporâneo, nem "métèque" nem gringo), mas todos são, antes de tudo, homens criados à imagem de Deus, ou seja, perfeitamente iguais em sua essência primeva. Lembrando os iluministas, "si tout le monde pensait comme ça, tout serait pour le mieux dans ce meilleur des mondes possibles"!
Muito obrigado,
Oleg Almeida.
Caro Cícero,
ResponderExcluirA "chave de ouro" do artigo me permite refletir sobre a "essência" econômica que nos rege. Não há muito, apregoávamos o fim das fronteiras mediante os adventos tecnológicos- cibernéticos, a dita globalização preconizando teses e mais teses turísticas de culturas globalizagas ou minimamente miscigenadas. Entretanto se colocarmos o pão na mesa, veremos quem realmente o morde e quem que se contenta com a raspa, o farelo. Ficam as indagações entre nós e os sem papéis sem o perfume dos jardins parisienses...
A voz de dentro e o que ela diz.
ResponderExcluirApontar palavras para o mundo.
Sentar à mesa, comer de tudo.
Falar de dentro do que finge o ser.
Da dobra negra que produz a sombra.
Da sombra escura de onde nasce a alma.
Do amor recluso entre silêncios vãos.
Dos olhos tristes que postei na vida.
Da luz que emana quando somos nós.
Caro ACicero,
ResponderExcluirTenho acompanhado atentamente a sua série de artigos sobre a modernidade e conceitos correlatos. Este último me deixou curioso acerca de se você considera Jesus um homem moderno, uma vez que ele não fazia distinção de espécie alguma entre os seres humanos.
Abraço,
edg
cicero cicero cicero,
ResponderExcluirque noção terá você do meu assombramento ante os seus textos(rs)?
as idéias, tão bem postas, desencadeando um processo de leitura seqüencial magistral, porque elucidativo e direto, dizendo ao que veio, sem, com isso, perder as sutilezas. o discurso de quem sabe aquilo que escreve, e com muita propriedade.
tudo bonito, tudo lindo, só tenho a concordar. sobre o assunto, li, estudei e conversei com amigos a respeito, e é por aí: a humanidade não caminha para uma direção, em busca de um determinado lugar, lugar onde se pretende chegar. as realidades são múltiplas, a vida, muito complexa, um emaranhado de relações sobrepostas e que, ainda que não se correlacionem diretamente, coexistem num mesmo tempo. por isso, grande equívoco dizer que a humanidade, que o mundo, andam evoluindo, em progresso. como se todas as nuances de uma vida humana pudessem ser taxadas assim, "o mundo progride", "a humanidade evolui", etc. etc. a bem da verdade, o mundo é multidimensional: temos ganhos e perdas a todo o instante, obtemos avanços em determinadas áreas, embora, em outras, possamos perceber o que você tão bem escreveu, uma regressão. a vida só é melhor absorvida e entendida se observarmos todos os seus lados. é um jogo que está em permanente trânsito, com agentes que mudam com o passar do tempo. sem contar todos os acontecimentos que não podemos prever - aos quais chamo de acasos - e que podem mudar, e muito, o curso de acontecimentos.
como escrito, a noção de humanidade também me parece de expansão limitada. você citou a legislação européia sobre imigração. eu cito o aumento de poder dos partidos políticos de extrema direita na europa. a tal legislação é fruto de um processo de um lindo e grande paradoxo: ao mesmo tempo em que se fala no estreitamento do mundo, na diminuição de fronteiras - e essas discussões são grande em países de grandes avanços tecnológicos e econômicos -, vê-se, em demasia, a aplicação de políticas de cunho protecionista, entre elas, as políticas aplicadas pelos países desenvolvidos em relação à imigração. assim como o aumento do número de jovens com ideais nacionalistas num mundo que se canta "globalizado", interligado, menor - portanto, mais próximo -.
para o que bem peço - um mundo sem fome mais, sem opressão, sem tráfico, sem terror, e com união/ educação -, por conta de tudo isso a que assisto, fica a distância de alcançar tal desejo.
é claro: agradeço, e muito, viver num lugar onde se fala, se pensa, e, sobretudo, se vive as liberdades individuais. acredito, através da democracia - poesia na democracia! -, numa expansão ilimitada d' "a noção de humanidade, englobando, sem distinção de raça ou de civilização, todas as formas da espécie humana."
mas é preciso muito para que isso ocorra. eu torço a favor. sempre.
é isso, querido.
mais uma vez, parabéns pelo texto!
beijão!
uma pequena retificação que meu senso crítico não quer deixar passar. uma besteira, mas, vá lá:
ResponderExcluirum "s" não foi devidamente posto nesta oração, "e essas discussões são grande(S) em países de grandes avanços tecnológicos e econômicos".
não disse (rs)?
(bobagens, meu filho, bobagens... rs)
beijim nocê e um cafuné nessa cuca linda.
Caro Edson,
ResponderExcluirdesculpe a demora a lhe responder. Quando postei seu comentário, não tive tempo para respondê-lo imediatamente e deixei para depois: e confesso que, depois, esqueci.
De fato, o homem moderno reconhece que sua nacionalidade particular lhe é acidental; mas, por razões análogas ele também reconhece que sua religião particular lhe é acidental. Basta lembrar que, já no século XVI, Montaigne explicava que “recebemos a nossa religião como as outras religiões se recebem. Encontrávamo-nos no país em que ela era praticada; observamos sua antiguidade ou a autoridade dos homens que a mantiveram; ou tememos as ameaças que faz aos descrentes; ou seguimos suas promessas [...] Outra região, outros testemunhos, semelhantes promessas e ameaças poderiam imprimir pelo mesmo caminho uma crença contrária. Somos cristãos ao mesmo título que somos perigordinos ou alemães”.
Pensando desse modo até as últimas consequências, isto é, reconhecendo o caráter acidental e contingente das diferentes religiões particulares, o homem moderno parte dos princípios de que (1) a religião particular de cada um é sua convicção privada; (2) cada um tem o direito de ter a convicção privada que quiser; (3) ninguém tem o direito de impor a sua convicção privada aos demais.
Voltando a Jesus, é verdade que ele não se identifica com nenhuma nacionalidade particular; entretanto, o motivo que o leva a rejeitar as particularidades nacionais é a pretensão a tornar supranacional ou universal uma única religião particular. Para comprová-lo, basta ler João 14:6: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim”. O fato é que as identidades nacionais não interessam a Jesus porque só lhe interessa a identidade religiosa. Ora, nem essa unidimensionalidade identitária nem a recusa a reconhecer o caráter privado das suas próprias convicções religiosas podem ser consideradas modernas.
Caro ACicero,
ResponderExcluirEntendo o que quer dizer, mas, sinceramente, não creio que Jesus quisesse universalizar uma religião. Aliás, nem creio que ele pretendesse fundar alguma. Jesus, na sua citação, não fala como um indivíduo, judeu, varão, marceneiro etc., mas como Cristo, ou seja, como lógos. E isso tampouco é uma exclusividade "cristã", pois outros avatares e místicos falaram do mesmo modo, antes e depois de Cristo. Parafraseando o cardeal Martini, duvido muitíssimo que Jesus quisesse cristianizar Deus...
Abraço,
edg