30.6.10
Entrevista ao Jornal Vaia
O Jornal Vaia publicou em junho uma entrevista que dei ao poeta Sidnei Schneider. O endereço é: http://umbigodolago.blogspot.com/2010/06/um-vinho-digno-de-recordar-dionisio.html.
28.6.10
Ossip Mandelstam: "Não é a lua": trad. de Augusto de Campos
Não é a lua
Não é a lua, não, é um mostrador.
Que culpa tenho se as estrelas baças
Me parecem leitosas, sem fulgor?
Batiúshkov não merece piedade.
"Que horas são?", perguntaram-lhe uma vez,
E ele só respondeu: "Eternidade."
MANDELSTAM, Ossip. "Não é a lua". Trad. de Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.
27.6.10
Mais confusões de Tuffani
Primeiro, uma viagem ao exterior que me ocupou muito tempo e, em seguida, o falecimento de minha mãe impediram-me de prestar atenção ao que Maurício Tuffani escrevia sobre mim. Hoje, porém, um amigo me chamou atenção para um artigo que havia lido no blog dele. Os frequentadores do Acontecimentos sabem que aprecio uma boa polêmica, em que se discutam ideias filosóficas. Só desisto se reconhecer que meu interlocutor tem razão ou se eu e/ou ele começarmos a nos repetir. A discussão com Tuffani, porém, dá-me um enorme fastio, pois os textos dele não contêm senão confusões, erros, imprecisões, sofismas baratos e distorções das palavras minhas ou das de Heidegger (cujo pensamento ele evidentemente não conhece), e nenhuma ideia. Contudo, acabei decidindo por, pelo menos, rebater algumas de suas acusações e insinuações. Eis aí:
I.
Na minha réplica ao segundo ataque de Tuffani, chamei atenção para o fato de que, já que praticamente todos os grandes comentadores da obra de Heidegger o consideram anticartesiano, caberia a quem pensa o oposto refutar meus argumentos e citar vários e importantes comentadores de Heidegger que afirmassem o contrário.
Que fez então Tuffani? Duas coisas:
1)
Ele disse que apresentou um fundamento, sim. Qual? A seguinte frase de Heidegger em “Carta sobre o humanismo”:
“No âmbito do pensamento essencial, toda oposição é insensata”.
Pergunto: pode alguém seriamente achar que essa afirmação é algum indício de que Heidegger não era anticartesiano?
É como se alguém, querendo provar que Deleuze não era contra o pensamento dos “Nouveaux philosophes”, lembrasse que ele declarou a Claire Parnet que “objeções não levam a nada”.
É como se alguém, querendo provar que determinado filósofo kantiano não havia mentido em certa ocasião, apresentasse uma declaração escrita dessa pessoa, no sentido de que “mentir ofende a humanidade de quem o faz”.
Em suma, Tuffani não apresentou mesmo nenhum fundamento para sua declaração.
E não é o próprio Heidegger que, na mesma “Carta sobre o humanismo”, exorta a pensar CONTRA os valores e diz que “pensar CONTRA os valores não significa bater os tambores a favor da ausência de valor e da nulidade do ente, mas significa: CONTRA a subjetivização do ente, trazer a clareira da verdade do ser ante o pensamento”? (HEIDEGGER, Martin. “Brief über den Humanismus”. Wegmarken. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1967, p.349.
Ademais, qualquer um que conheça a trajetória de Heidegger sabe que a "Carta sobre o humanismo" consiste, antes de tudo, num ATAQUE a “O existencialismo é um humanismo”, de Sartre, ensaio que havia sido publicado no mesmo ano da publicação da “Carta”. Nela, Heidegger está, portanto, OPONDO-SE a Sartre. Se levarmos a sério a frase citada por Tuffani, isso quer dizer ou que Heidegger está sendo insensato, ou que o pensamento dele não é essencial, ou que a frase “No âmbito do pensamento essencial, toda oposição é insensata” não passa, realmente, de um frase. Que Tuffani não tenha percebido isso confirma minha impressão de que ele mal e confusamente consegue ver uma árvore do pensamento de Heidegger, mas não a floresta.
Mas Tuffani pensa poder congratular-se porque, segundo ele, “nessa resposta Antonio Cicero pelo menos não insiste mais em defender a aplicação do adjetivo ‘feroz’ ao substantivo ‘anticartesianismo’”. Ora, Tuffani, não é que eu tenha deixado de pensar que o anticartesianismo de Heidegger não seja feroz, mas que, se você tivesse apenas se oposto ao uso desse adjetivo, seu erro teria sido bem menor.
2)
Acreditem ou não, ele citou um texto de Richard Rorty, afirmando que Heidegger, Wittgenstein e Dewey haviam realizado uma revolução anticartesiana!
Isso não deixa de ser um modo tortuoso de reconhecer que Heidegger foi anticartesiano. Mas, sem querer dar totalmente o braço a torcer, ele diz então que se opõe ao meu uso de “anticartesiano”, entre outras coisas, porque:
“o uso do prefixo “anti” em relação à obra de qualquer pensador tem implicações que extrapolam o que se pretendia caracterizar ao usá-lo. Por exemplo, o termo “antiliberal” pode ser aplicado a comunistas, fascistas e até a anarquistas, mas não iguala estas três categorias nem mesmo naquilo em que cada uma delas se opõe à dos liberais”.
Que espécie de "lógica" é essa? Se for assim, a linguagem não é possível, pois nenhum vocábulo deverá ser usado em relação a nada, já que todos têm “implicações que extrapolam o que se pretendia caracterizar ao usá-lo”. O vocábulo “bonita”, por exemplo, pode ser usado em relação a uma mulher, a uma palavra, a uma lancha, a uma metáfora, mas não iguala essas três coisas nem mesmo naquilo em que cada uma delas se opõe a “feia”.
De todo modo, quem disse que todos os anticartesianos são iguais, senão no fato de serem anticartesianos, cada qual ao seu modo? Pelo jeito, ele não está lutando contra mim, mas contra moinhos de vento.
II.
Tuffani criticou em mim o que considera a “banalização” da filosofia. Observei que ele não cita exemplos concretos do meu afã banalizador. Depois, comentei que, segundo ele, a banalização “está no apelo exagerado aos ‘ismos’ – o humanismo, o niilismo e outros – e em chavões manipuláveis ao gosto de cada intérprete”. Ironicamente, observei que o próprio Heidegger, filósofo que ele pretensamente quer salvar da minha banalização, escreveu uma obra chamada “Carta sobre o HUMANISMO” e outra chamada “O NIILISMO europeu”…
A ironia lhe passou despercebida. Pareceu-lhe que cometi um erro de grandes proporções ao mencionar a “Carta”. Para prová-lo, ele citou um texto dela em que Heidegger ataca os ismos. A partir desse “erro de grandes proporções”, ele afirma que poderia “tecer considerações das mais desfavoráveis” sobre minha interpretação acerca do título dessa obra.
Observo apenas duas coisas: a primeira é que o ataque heideggeriano aos ismos é que não passa de uma banalidade. Esse desprezo pelos ismos se encontra nos mais vulgares manuais de estilo. Há algo mais banal do que os manuais americanos de estilo? Pois bem, em quase todos eles, lê-se: “avoid isms”: "evite ismos”. Faça a experiência, Tuffani: escreva no Google, entre aspas, a expressão “avoid isms” e veja o tipo de resultados que você vai ter. Exemplo:
(http://www.fscj.edu/employers/documents/SummerSchedule2010.pdf):
“Avoid ‘isms,’ stereotypes, bias and gender errors, and discover the five “C’s” of better writing”.
A segunda coisa a observar – e dá ainda mais motivo para ironia – é que Heidegger, na própria “Carta sobre o humanismo”, além de “humanismo” e existencialismo”, usa “materialismo”, “comunismo”, “americanismo”, “nacionalismo”, “antropologismo”, “subjetivismo”, “internacionalismo”, “individualismo”, “coletivismo”, “irracionalismo”, “positivismo”, “ateísmo”, “niilismo”, “indiferentismo”, “teísmo”, “biologismo”, “pragmatismo” “idealismo”, por exemplo.
Logo, ao contrário do que pensa Tuffani, nada indica, pelo menos nesse livro, que ele realmente tivesse algo contra o ismo de “anticartesianismo”.
III.
O que se segue no artigo de Tuffani é uma confusão completa: a árvore lhe tapa totalmente a floresta. Ele diz:
“Contrariamente a toda a tradição que sempre mostrou as concepções cartesianas como sendo fundamentadas somente pelo próprio pensamento de Descartes, isto é, como sendo o verdadeiro fundamento autônomo da filosofia moderna, Heidegger apontou em Ser e Tempo (§ 6, § 18, e § 19) que essas noções são derivadas da escolástica medieval. Na medida em que a análise heideggeriana aponta essa dependência, eu me contrapus à afirmação de Antonio Cicero de que o pensamento desse filósofo alemão é uma 'desqualificação' da razão”.
Aqui cabe perguntar: o que é que tem a ver uma coisa com a outra? Como é que o fato de que Heidegger afirma que o pensamento de Descartes deriva da escolástica medieval significa que está errado dizer outra coisa completamente diferente, isto é, que Heidegger relativiza ou desqualifica a razão?
Que Heidegger afirme que o pensamento de Descartes tenha relação com a escolástica é uma coisa; que Heidegger desqualifique a razão é evidentemente outra, completamente diferente.
O meu artigo (1) qualifica Heidegger de anticartesiano e (2) diz que Heidegger relativizou a razão. Mas não confundo essas duas coisas.
En passant, observo que Heidegger, ao relativizar a razão, desqualificou-a, pois relativizar uma coisa é, como diz o Houaiss, tratá-la ou descrevê-la “negando-lhe caráter absoluto ou independente, considerando-a, portanto, como de importância ou valor relativo”. Já a desqualificação de uma coisa é, como diz o mesmo Houaiss, a sua “perda da excelência, da qualidade superior”. Ora, que maior excelência pode uma coisa ter do que ser tida por absoluta? E, sendo assim, que maior desqualificação pode sofrer do que passar a ser tida por apenas relativa?
IV.
Determinado trecho do § 6 de Ser e tempo diz o seguinte:
“Se, para a questão do ser, deve-se conseguir transparência em relação à sua história, ela precisa liberar-se da tradição esclerosada e a dissolver os encobrimentos por esta produzidos. Entendemos essa tarefa como a consecução, seguindo o fio condutor da questão do ser, da destruição do conteúdo tradicional da ontologia antiga, até alcançar as experiências originárias em que as primeiras e desde então decisivas determinações do ser foram obtidas.
“Essa comprovação da procedência dos conceitos ontológicos fundamentais como a exposição investigadora da sua ‘certidão de nascimento’ nada tem a ver com uma má relativização dos pontos de vista ontológicos. A destruição tampouco tem o sentido negativo de uma arrasar a tradição ontológica. Ela deve ao contrário defini-las em suas possibilidades positivas, e isso sempre quer dizer, em seus limites. [...]”
Heidegger nega, portanto, que tenha a intenção de fazer uma “má relativização” (“schlechte Relativierung”) dos pontos de vista ontológicos. Evidentemente, como se depreende das sentenças seguintes, para ele uma “má relativização” seria uma relativização que tivesse apenas um sentido negativo: que apenas descartasse a tradição em bloco. Ora, ele pretende definir os pontos de vista ontológicos também em suas possibilidades positivas “e isso sempre quer dizer, em seus limites”. Em outras palavras, o que pretende não é uma “má relativização”, mas uma BOA relativização. É o que afirmo em O mundo desde o fim.
Pois bem, Tuffani não entendeu nada desse trecho de Heidegger; e entendeu menos ainda o trecho de O mundo desde o fim. O que ele pensa é que Heidegger está dizendo que a destruição que pretende realizar nada tem a ver com uma relativização (tout court) dos pontos de vista ontológicos...
Recentemente, alguém me alertou para o fato de que a tradução portuguesa de Ser e tempo omite a palavra “má”, que traduziria “schlechte”. Sendo generoso, culparei a tradução brasileira pela confusão de Tuffani.
V.
Tuffani acha, por alguma razão, que eu deliberadamente deixei de dizer que Heidegger considera, nos seus livros da década de 1920 e 1930, que o pensamento de Descartes é tributário do pensamento escolástico. Simplesmente, não vejo por que eu teria obrigação de mencionar isso. Não o fiz porque (1) isso nada tem a ver com minhas preocupações ao citar os textos em questão e (2) isso é simplesmente um dos modos em que, naquelas décadas, manifestava-se o anticartesianismo de Heidegger.
Como os trechos que efetivamente citei (por exemplo: “a radicalidade da dúvida de descartes e o vigor da nova fundamentação da filosofia e do saber em geral é uma aparência e, assim, fonte de ilusões fatais, hoje muito difíceis de serem eliminadas [...]” e “esse PRETENSO novo princípio da filosofia moderna não apenas não consiste [...]”) já revelavam, de modo mais abrangente, que Heidegger negava a originalidade de Descartes, não vi por que entrar em detalhes nesse ponto.
Aliás, como a tese que eu defendia era a de que Heidegger era anticartesiano, e como o trecho em questão tenta relativizar e desqualificar Descartes, eu, se quisesse, tê-lo-ia citado em apoio à minha tese, logo, contra a de Tuffani. Vê-se como é estranha a “lógica” dele. Evidentemente falta-lhe aptidão para a argumentação racional: o que talvez seja a verdadeira explicação para sua implicância com a minha defesa da razão.
Na verdade, a relação de Descartes com a escolástica já foi muito melhor tratada por outros, como Étienne Gilson, por exemplo, do que por Heidegger. Heidegger, até a década de 30, exagerava essa relação, como se chegasse a ser uma dependência. Na década de 40, porém, ele mudou, passando a reconhecer e enfatizar a originalidade do pensamento de Descartes, o que é mais correto. Como Tuffani, evidentemente, não conhece essas obras, vou citá-las.
Em “A época das concepções do mundo”, por exemplo, Heidgger afirma que
“O ente é determinado PELA PRIMEIRA VEZ [a caixa alta é minha] como objetividade da representação, e a verdade como certeza, na metafísica de Descartes. O título de sua obra principal é: Meditationes de prima philosophia, meditações sobre a primeira filosofia. “Prote filosofia” é a designação aristotélica do que se chamará mais tarde Metafísica. A Metafísica moderna inteira, Nietzsche inclusive, manter-se-á doravante no interior da INTERPRETAÇÃO DO ENTE E DA VERDADE INICIADA POR DESCARTES”.
E mais:
“Descartes não é superável senão pela superação do que ele mesmo fundou, pela superação da metafísica moderna, quer dizer, ao mesmo tempo, da Metafísica ocidental”.
Portanto, o respeito de Heidegger por Descartes cresceu, com o tempo. O que não quer dizer que ele tenha deixado de ser seu inimigo: ao contrário.
Em O niilismo europeu, Heidegger explica ainda melhor a extraordinária novidade de Descartes:
“ATRAVÉS DE DESCARTES E DESDE DESCARTES, na metafísica o homem, o ‘eu’ humano torna-se de modo dominante o ‘sujeito’”.
E:
“PARA O FUNDAMENTO DA METAFÍSICA DA MODERNIDADE, A METAFÍSICA DE DESCARTES É O COMEÇO DECISIVO”.
Concordo com tudo isso.
VI.
Na época de Ser e tempo (década de 1920), em relação ao Dasein, Heidegger pretende usar determinadas palavras, como “Verfall”, “decadência”, sem carga valorativa. Depois de Ser e tempo, porém, a partir da década de 1930, Heidegger voltou a empregar a palavra “Verfall” pejorativamente, como todo o mundo. É o que afirmei, rebatendo a afirmação de Tuffani de que, ao chamar Descartes de decadente em texto de 1935, Heidegger não pretendia desqualificá-lo. Para provar o contrário, Tuffani citou o seguinte trecho de “Carta sobre o humanismo”, de 1947:
“O termo [decadência] não significa uma queda do homem, entendida sob uma perspectiva filosófico-moral e ao mesmo tempo secularizada, pois designa uma relação essencial do homem com o ser, no interior da referência deste à essência do homem. [Das wort meint nicht einen » moralphilosophisch « verstandenen und zugleich säkularisierten Sündfall des Menschen, sondern nennt ein wesenhaftes Verhältnis des Menschen zum Sein innerhalb des Bezugs des Seins zum Menschwesen.]
(Über den Humanismus, p. 24.)”
De maneira geral, é concebível que os erros de Tuffani de que falei acima não sejam resultado de má fé; talvez resultem simplesmente de sua ignorância. Este, porém, me parece mais suspeito. Vejam bem: eu afirmo que o uso pejorativo de “Verfall” se restringe, em Heidegger, à época de Ser e tempo, que é de 1927. Tuffani cita, em resposta, um texto de 1947, que parece dizer o oposto. Apenas, ele omite a primeira frase desse parágrafo. E que diz ela? Que:
“O esquecimento da verdade do ser a favor de uma afluência do ente impensado em sua essência é o sentido da chamada “decadência” [Verfallens] em Ser e tempo”.
Ou seja, confirmando o que afirmei, no parágrafo criticado por Tuffani, Heidegger está explicando o sentido de “Verfall” exatamente em Ser e tempo.
VII.
A tese de que a banalização é pior do que o dogma dispensa comentários, pois, como já comentei, o dogma é a banalização canonizada.
I.
Na minha réplica ao segundo ataque de Tuffani, chamei atenção para o fato de que, já que praticamente todos os grandes comentadores da obra de Heidegger o consideram anticartesiano, caberia a quem pensa o oposto refutar meus argumentos e citar vários e importantes comentadores de Heidegger que afirmassem o contrário.
Que fez então Tuffani? Duas coisas:
1)
Ele disse que apresentou um fundamento, sim. Qual? A seguinte frase de Heidegger em “Carta sobre o humanismo”:
“No âmbito do pensamento essencial, toda oposição é insensata”.
Pergunto: pode alguém seriamente achar que essa afirmação é algum indício de que Heidegger não era anticartesiano?
É como se alguém, querendo provar que Deleuze não era contra o pensamento dos “Nouveaux philosophes”, lembrasse que ele declarou a Claire Parnet que “objeções não levam a nada”.
É como se alguém, querendo provar que determinado filósofo kantiano não havia mentido em certa ocasião, apresentasse uma declaração escrita dessa pessoa, no sentido de que “mentir ofende a humanidade de quem o faz”.
Em suma, Tuffani não apresentou mesmo nenhum fundamento para sua declaração.
E não é o próprio Heidegger que, na mesma “Carta sobre o humanismo”, exorta a pensar CONTRA os valores e diz que “pensar CONTRA os valores não significa bater os tambores a favor da ausência de valor e da nulidade do ente, mas significa: CONTRA a subjetivização do ente, trazer a clareira da verdade do ser ante o pensamento”? (HEIDEGGER, Martin. “Brief über den Humanismus”. Wegmarken. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1967, p.349.
Ademais, qualquer um que conheça a trajetória de Heidegger sabe que a "Carta sobre o humanismo" consiste, antes de tudo, num ATAQUE a “O existencialismo é um humanismo”, de Sartre, ensaio que havia sido publicado no mesmo ano da publicação da “Carta”. Nela, Heidegger está, portanto, OPONDO-SE a Sartre. Se levarmos a sério a frase citada por Tuffani, isso quer dizer ou que Heidegger está sendo insensato, ou que o pensamento dele não é essencial, ou que a frase “No âmbito do pensamento essencial, toda oposição é insensata” não passa, realmente, de um frase. Que Tuffani não tenha percebido isso confirma minha impressão de que ele mal e confusamente consegue ver uma árvore do pensamento de Heidegger, mas não a floresta.
Mas Tuffani pensa poder congratular-se porque, segundo ele, “nessa resposta Antonio Cicero pelo menos não insiste mais em defender a aplicação do adjetivo ‘feroz’ ao substantivo ‘anticartesianismo’”. Ora, Tuffani, não é que eu tenha deixado de pensar que o anticartesianismo de Heidegger não seja feroz, mas que, se você tivesse apenas se oposto ao uso desse adjetivo, seu erro teria sido bem menor.
2)
Acreditem ou não, ele citou um texto de Richard Rorty, afirmando que Heidegger, Wittgenstein e Dewey haviam realizado uma revolução anticartesiana!
Isso não deixa de ser um modo tortuoso de reconhecer que Heidegger foi anticartesiano. Mas, sem querer dar totalmente o braço a torcer, ele diz então que se opõe ao meu uso de “anticartesiano”, entre outras coisas, porque:
“o uso do prefixo “anti” em relação à obra de qualquer pensador tem implicações que extrapolam o que se pretendia caracterizar ao usá-lo. Por exemplo, o termo “antiliberal” pode ser aplicado a comunistas, fascistas e até a anarquistas, mas não iguala estas três categorias nem mesmo naquilo em que cada uma delas se opõe à dos liberais”.
Que espécie de "lógica" é essa? Se for assim, a linguagem não é possível, pois nenhum vocábulo deverá ser usado em relação a nada, já que todos têm “implicações que extrapolam o que se pretendia caracterizar ao usá-lo”. O vocábulo “bonita”, por exemplo, pode ser usado em relação a uma mulher, a uma palavra, a uma lancha, a uma metáfora, mas não iguala essas três coisas nem mesmo naquilo em que cada uma delas se opõe a “feia”.
De todo modo, quem disse que todos os anticartesianos são iguais, senão no fato de serem anticartesianos, cada qual ao seu modo? Pelo jeito, ele não está lutando contra mim, mas contra moinhos de vento.
II.
Tuffani criticou em mim o que considera a “banalização” da filosofia. Observei que ele não cita exemplos concretos do meu afã banalizador. Depois, comentei que, segundo ele, a banalização “está no apelo exagerado aos ‘ismos’ – o humanismo, o niilismo e outros – e em chavões manipuláveis ao gosto de cada intérprete”. Ironicamente, observei que o próprio Heidegger, filósofo que ele pretensamente quer salvar da minha banalização, escreveu uma obra chamada “Carta sobre o HUMANISMO” e outra chamada “O NIILISMO europeu”…
A ironia lhe passou despercebida. Pareceu-lhe que cometi um erro de grandes proporções ao mencionar a “Carta”. Para prová-lo, ele citou um texto dela em que Heidegger ataca os ismos. A partir desse “erro de grandes proporções”, ele afirma que poderia “tecer considerações das mais desfavoráveis” sobre minha interpretação acerca do título dessa obra.
Observo apenas duas coisas: a primeira é que o ataque heideggeriano aos ismos é que não passa de uma banalidade. Esse desprezo pelos ismos se encontra nos mais vulgares manuais de estilo. Há algo mais banal do que os manuais americanos de estilo? Pois bem, em quase todos eles, lê-se: “avoid isms”: "evite ismos”. Faça a experiência, Tuffani: escreva no Google, entre aspas, a expressão “avoid isms” e veja o tipo de resultados que você vai ter. Exemplo:
(http://www.fscj.edu/employers/documents/SummerSchedule2010.pdf):
“Avoid ‘isms,’ stereotypes, bias and gender errors, and discover the five “C’s” of better writing”.
A segunda coisa a observar – e dá ainda mais motivo para ironia – é que Heidegger, na própria “Carta sobre o humanismo”, além de “humanismo” e existencialismo”, usa “materialismo”, “comunismo”, “americanismo”, “nacionalismo”, “antropologismo”, “subjetivismo”, “internacionalismo”, “individualismo”, “coletivismo”, “irracionalismo”, “positivismo”, “ateísmo”, “niilismo”, “indiferentismo”, “teísmo”, “biologismo”, “pragmatismo” “idealismo”, por exemplo.
Logo, ao contrário do que pensa Tuffani, nada indica, pelo menos nesse livro, que ele realmente tivesse algo contra o ismo de “anticartesianismo”.
III.
O que se segue no artigo de Tuffani é uma confusão completa: a árvore lhe tapa totalmente a floresta. Ele diz:
“Contrariamente a toda a tradição que sempre mostrou as concepções cartesianas como sendo fundamentadas somente pelo próprio pensamento de Descartes, isto é, como sendo o verdadeiro fundamento autônomo da filosofia moderna, Heidegger apontou em Ser e Tempo (§ 6, § 18, e § 19) que essas noções são derivadas da escolástica medieval. Na medida em que a análise heideggeriana aponta essa dependência, eu me contrapus à afirmação de Antonio Cicero de que o pensamento desse filósofo alemão é uma 'desqualificação' da razão”.
Aqui cabe perguntar: o que é que tem a ver uma coisa com a outra? Como é que o fato de que Heidegger afirma que o pensamento de Descartes deriva da escolástica medieval significa que está errado dizer outra coisa completamente diferente, isto é, que Heidegger relativiza ou desqualifica a razão?
Que Heidegger afirme que o pensamento de Descartes tenha relação com a escolástica é uma coisa; que Heidegger desqualifique a razão é evidentemente outra, completamente diferente.
O meu artigo (1) qualifica Heidegger de anticartesiano e (2) diz que Heidegger relativizou a razão. Mas não confundo essas duas coisas.
En passant, observo que Heidegger, ao relativizar a razão, desqualificou-a, pois relativizar uma coisa é, como diz o Houaiss, tratá-la ou descrevê-la “negando-lhe caráter absoluto ou independente, considerando-a, portanto, como de importância ou valor relativo”. Já a desqualificação de uma coisa é, como diz o mesmo Houaiss, a sua “perda da excelência, da qualidade superior”. Ora, que maior excelência pode uma coisa ter do que ser tida por absoluta? E, sendo assim, que maior desqualificação pode sofrer do que passar a ser tida por apenas relativa?
IV.
Determinado trecho do § 6 de Ser e tempo diz o seguinte:
“Se, para a questão do ser, deve-se conseguir transparência em relação à sua história, ela precisa liberar-se da tradição esclerosada e a dissolver os encobrimentos por esta produzidos. Entendemos essa tarefa como a consecução, seguindo o fio condutor da questão do ser, da destruição do conteúdo tradicional da ontologia antiga, até alcançar as experiências originárias em que as primeiras e desde então decisivas determinações do ser foram obtidas.
“Essa comprovação da procedência dos conceitos ontológicos fundamentais como a exposição investigadora da sua ‘certidão de nascimento’ nada tem a ver com uma má relativização dos pontos de vista ontológicos. A destruição tampouco tem o sentido negativo de uma arrasar a tradição ontológica. Ela deve ao contrário defini-las em suas possibilidades positivas, e isso sempre quer dizer, em seus limites. [...]”
Heidegger nega, portanto, que tenha a intenção de fazer uma “má relativização” (“schlechte Relativierung”) dos pontos de vista ontológicos. Evidentemente, como se depreende das sentenças seguintes, para ele uma “má relativização” seria uma relativização que tivesse apenas um sentido negativo: que apenas descartasse a tradição em bloco. Ora, ele pretende definir os pontos de vista ontológicos também em suas possibilidades positivas “e isso sempre quer dizer, em seus limites”. Em outras palavras, o que pretende não é uma “má relativização”, mas uma BOA relativização. É o que afirmo em O mundo desde o fim.
Pois bem, Tuffani não entendeu nada desse trecho de Heidegger; e entendeu menos ainda o trecho de O mundo desde o fim. O que ele pensa é que Heidegger está dizendo que a destruição que pretende realizar nada tem a ver com uma relativização (tout court) dos pontos de vista ontológicos...
Recentemente, alguém me alertou para o fato de que a tradução portuguesa de Ser e tempo omite a palavra “má”, que traduziria “schlechte”. Sendo generoso, culparei a tradução brasileira pela confusão de Tuffani.
V.
Tuffani acha, por alguma razão, que eu deliberadamente deixei de dizer que Heidegger considera, nos seus livros da década de 1920 e 1930, que o pensamento de Descartes é tributário do pensamento escolástico. Simplesmente, não vejo por que eu teria obrigação de mencionar isso. Não o fiz porque (1) isso nada tem a ver com minhas preocupações ao citar os textos em questão e (2) isso é simplesmente um dos modos em que, naquelas décadas, manifestava-se o anticartesianismo de Heidegger.
Como os trechos que efetivamente citei (por exemplo: “a radicalidade da dúvida de descartes e o vigor da nova fundamentação da filosofia e do saber em geral é uma aparência e, assim, fonte de ilusões fatais, hoje muito difíceis de serem eliminadas [...]” e “esse PRETENSO novo princípio da filosofia moderna não apenas não consiste [...]”) já revelavam, de modo mais abrangente, que Heidegger negava a originalidade de Descartes, não vi por que entrar em detalhes nesse ponto.
Aliás, como a tese que eu defendia era a de que Heidegger era anticartesiano, e como o trecho em questão tenta relativizar e desqualificar Descartes, eu, se quisesse, tê-lo-ia citado em apoio à minha tese, logo, contra a de Tuffani. Vê-se como é estranha a “lógica” dele. Evidentemente falta-lhe aptidão para a argumentação racional: o que talvez seja a verdadeira explicação para sua implicância com a minha defesa da razão.
Na verdade, a relação de Descartes com a escolástica já foi muito melhor tratada por outros, como Étienne Gilson, por exemplo, do que por Heidegger. Heidegger, até a década de 30, exagerava essa relação, como se chegasse a ser uma dependência. Na década de 40, porém, ele mudou, passando a reconhecer e enfatizar a originalidade do pensamento de Descartes, o que é mais correto. Como Tuffani, evidentemente, não conhece essas obras, vou citá-las.
Em “A época das concepções do mundo”, por exemplo, Heidgger afirma que
“O ente é determinado PELA PRIMEIRA VEZ [a caixa alta é minha] como objetividade da representação, e a verdade como certeza, na metafísica de Descartes. O título de sua obra principal é: Meditationes de prima philosophia, meditações sobre a primeira filosofia. “Prote filosofia” é a designação aristotélica do que se chamará mais tarde Metafísica. A Metafísica moderna inteira, Nietzsche inclusive, manter-se-á doravante no interior da INTERPRETAÇÃO DO ENTE E DA VERDADE INICIADA POR DESCARTES”.
E mais:
“Descartes não é superável senão pela superação do que ele mesmo fundou, pela superação da metafísica moderna, quer dizer, ao mesmo tempo, da Metafísica ocidental”.
Portanto, o respeito de Heidegger por Descartes cresceu, com o tempo. O que não quer dizer que ele tenha deixado de ser seu inimigo: ao contrário.
Em O niilismo europeu, Heidegger explica ainda melhor a extraordinária novidade de Descartes:
“ATRAVÉS DE DESCARTES E DESDE DESCARTES, na metafísica o homem, o ‘eu’ humano torna-se de modo dominante o ‘sujeito’”.
E:
“PARA O FUNDAMENTO DA METAFÍSICA DA MODERNIDADE, A METAFÍSICA DE DESCARTES É O COMEÇO DECISIVO”.
Concordo com tudo isso.
VI.
Na época de Ser e tempo (década de 1920), em relação ao Dasein, Heidegger pretende usar determinadas palavras, como “Verfall”, “decadência”, sem carga valorativa. Depois de Ser e tempo, porém, a partir da década de 1930, Heidegger voltou a empregar a palavra “Verfall” pejorativamente, como todo o mundo. É o que afirmei, rebatendo a afirmação de Tuffani de que, ao chamar Descartes de decadente em texto de 1935, Heidegger não pretendia desqualificá-lo. Para provar o contrário, Tuffani citou o seguinte trecho de “Carta sobre o humanismo”, de 1947:
“O termo [decadência] não significa uma queda do homem, entendida sob uma perspectiva filosófico-moral e ao mesmo tempo secularizada, pois designa uma relação essencial do homem com o ser, no interior da referência deste à essência do homem. [Das wort meint nicht einen » moralphilosophisch « verstandenen und zugleich säkularisierten Sündfall des Menschen, sondern nennt ein wesenhaftes Verhältnis des Menschen zum Sein innerhalb des Bezugs des Seins zum Menschwesen.]
(Über den Humanismus, p. 24.)”
De maneira geral, é concebível que os erros de Tuffani de que falei acima não sejam resultado de má fé; talvez resultem simplesmente de sua ignorância. Este, porém, me parece mais suspeito. Vejam bem: eu afirmo que o uso pejorativo de “Verfall” se restringe, em Heidegger, à época de Ser e tempo, que é de 1927. Tuffani cita, em resposta, um texto de 1947, que parece dizer o oposto. Apenas, ele omite a primeira frase desse parágrafo. E que diz ela? Que:
“O esquecimento da verdade do ser a favor de uma afluência do ente impensado em sua essência é o sentido da chamada “decadência” [Verfallens] em Ser e tempo”.
Ou seja, confirmando o que afirmei, no parágrafo criticado por Tuffani, Heidegger está explicando o sentido de “Verfall” exatamente em Ser e tempo.
VII.
A tese de que a banalização é pior do que o dogma dispensa comentários, pois, como já comentei, o dogma é a banalização canonizada.
26.6.10
Federico García Lorca: "Y despues" / "E depois": trad. William Agel de Melo
Y despues
Los laberintos
que crea el tiempo
se desvanecen.
  (Solo queda
el desierto.)
  El corazón,
fuente del deseo,
se desvanece.
  (Solo queda
el desierto.)
  La ilusión de la aurora
y los besos
se desvanecen.
  Solo queda
el desierto.
Un ondulado
desierto.
E depois
Os labirintos
que cria o tempo
se desvanecem.
  (Só fica
o deserto.)
  O coração,
fonte do desejo,
se desvanece.
  (Só fica
o deserto)
  A ilusão da aurora
e os beijos
se desvanecem.
  Só fica
o deserto.
Um ondulado
deserto.
GARCIA LORCA, Federico. Obra poética completa. Trad. William Agel de Melo. Brasília: Martins Fontes / Ed. Universidade de Brasília, 1989.
25.6.10
24.6.10
Jaime Gil de Biedma: "De vita beata"
De vita beata
En un viejo país ineficiente,
algo así como España entre dos guerras
civiles, en un pueblo junto al mar,
poseer una casa y poca hacienda
y memoria ninguna. No leer,
no sufrir, no escribir, no pagar cuentas,
y vivir como un noble arruinado
entre las ruinas de mi inteligencia.
De vita beata
Num velho país ineficiente,
algo assim como a Espanha entre duas guerras
civis, num povoado junto ao mar
possuir uma casa e poucos bens
e memória nenhuma. Não ler,
não sofrer, não escrever, não pagar contas,
e viver como um nobre arruinado
entre as ruínas de minha inteligência.
GIL DE BIEDMA, Jaime. Poemas póstumos. Madrid: Poesía Para Todos, 1968.
22.6.10
Carlos Drummond de Andrade: "Memória"
Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. "Claro enigma". Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
20.6.10
José Saramago: Sobre Deus
Antes da criação do Universo, que se saiba, Deus nada fez. Depois, fez o Universo em seis dias: e nota-se, como diz minha mulher, Pilar. Ao sétimo dia descansou e continua a descansar até hoje.
SARAMAGO, José. "Saramago: Deus é vingativo e má pessoa". In: Correio da Manhã, Lisboa, 21/10/2009.
19.6.10
Eugénio de Andrade: "Vegetal e só"
Agradeço ao pintor Gonçalo Ivo por me ter lembrado o seguinte poema de Eugénio de Andrade:
Vegetal e só
É outono, desprende-te de mim.
Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.
Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.
Devolve-me o rosto de um verão
Sem a febre de tantos lábios,
Sem nenhum rumor de lágrimas
Nas pálpebras acesas
Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.
ANDRADE, Eugénio. As palavras interditas. Porto: Limiar, 1983 (8ª ed.).
Vegetal e só
É outono, desprende-te de mim.
Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.
Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.
Devolve-me o rosto de um verão
Sem a febre de tantos lábios,
Sem nenhum rumor de lágrimas
Nas pálpebras acesas
Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.
ANDRADE, Eugénio. As palavras interditas. Porto: Limiar, 1983 (8ª ed.).
16.6.10
Contardo Calligaris: "O direito de buscar a felicidade"
O seguinte, excelente artigo de Contardo Calligaris, foi publicado na "Ilustrada", da Folha de São Paulo, na quinta-feira, 10 de junho:
CONTARDO CALLIGARIS
O direito de buscar a felicidade
O ARTIGO SEXTO da Constituição Federal declara que "são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados".
O Movimento Mais Feliz (www.maisfeliz.org) promove uma emenda constitucional pela qual o artigo seria modificado da seguinte forma: "São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde etc." (segue inalterado até o fim).
É claro que, se eu dispuser de casa, emprego, assistência médica, segurança, terei mais tempo e energia para buscar minha felicidade. No entanto o respeito a esses direitos sociais básicos não garante a felicidade de ninguém; como se diz, ter comida e roupa lavada é bom e ajuda, mas não é condição suficiente nem absolutamente necessária para a busca da felicidade.
Em suma, implico um pouco com o adjetivo "essencial" no texto da emenda, mas, fora isso, gosto da iniciativa porque, como a Declaração de Independência dos EUA, ela situa a busca da felicidade como um direito do indivíduo, anterior a todos os direitos sociais.
Por que a busca da felicidade não seria apenas mais um direito social na lista? Simples.
A felicidade, para você, pode ser uma vida casta; para outro, pode ser um casamento monogâmico; para outro ainda, pode ser uma orgia promíscua.
Para você, buscar a felicidade consiste em exercer uma rigorosa disciplina do corpo; para outros, é comilança e ociosidade. Alguns procuram o agito da vida urbana, e outros, o silêncio do deserto. Há os que querem simplicidade e os que preferem o luxo. Buscar a felicidade, para alguns, significa servir a grandes ideais ou a um deus; para outros, permitir-se os prazeres mais efêmeros.
Invento e procuro minha versão da felicidade, com apenas um limite: minha busca não pode impedir os outros de procurar a felicidade que eles bem entendem. Por isso, obviamente, por mais que eu pense que isto me faria muito feliz, não posso dirigir bêbado, assaltar bancos ou escutar música alta depois da meia-noite. Por isso também não posso exigir que, para eu ser feliz, todos busquem a mesma felicidade que eu busco.
Por exemplo, você procura ser feliz num casamento indissolúvel diante de Deus e dos homens. A sociedade deve permitir que você se case, na sua igreja, e nunca se divorcie. Mas, se, para ser feliz, você exigir que todos os casamentos sejam indissolúveis, você não será fundamentalmente diferente de quem, para ser feliz, quer estuprar, assaltar ou dirigir bêbado.
Não ficou claro? Pois bem, imagine que, para ser feliz, você ache necessário que todos queiram ser felizes do jeito que você gosta; inevitavelmente, você desprezará a busca da felicidade de seus concidadãos exatamente como o bandido ou o estuprador a desprezam.
Em matéria de felicidade, os governos podem oferecer as melhores condições possíveis para que cada indivíduo persiga seu projeto -por exemplo, como sugere a emenda constitucional proposta, garantindo a todos os direitos sociais básicos. Mas o melhor governo é o que não prefere nenhuma das diferentes felicidades que seus sujeitos procuram.
Não é coisa simples. Nosso governo oferece uma isenção fiscal às igrejas, as quais, certamente, são cruciais na procura da felicidade de muitos. Mas as escolas de dança de salão ou os clubes sadomasoquistas também são significativos na busca da felicidade de vários cidadãos. Será que um governo deve favorecer a ideia de felicidade compartilhada pela maioria? Ou, então, será que deve apoiar a felicidade que teria uma mais "nobre" inspiração moral?
Antes de responder, considere: os governos totalitários (laicos ou religiosos) sempre "sabem" qual é a felicidade "certa" para seus sujeitos. Juram que eles querem o bem dos cidadãos e garantem a felicidade como um direito social -claro, é a mesma felicidade para todos. É isso que você quer?
Enfim, introduzir na Constituição Federal a busca da felicidade como direito do indivíduo, aquém e acima de todos os direitos sociais, é um gesto de liberdade, quase um ato de resistência.
ccalligari@uol.com.br
13.6.10
Nietzsche e o niilismo
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 12 de junho:
Nietzsche e o niilismo
Nietzsche, em “A vontade de poder”, pergunta: “Que significa o niilismo?” E responde: “Que os valores supremos estão perdendo o seu valor”. Em “A gaia ciência”, ele descreve o niilismo como “a desconfiança de que há uma oposição entre o mundo em que até há pouco estávamos em casa com nossas venerações [...] e outro mundo em que somos nós mesmos: desconfiança inexorável, radical, profundíssima [...] que poderia colocar a próxima geração ante a terrível alternativa: ou vocês abolem as suas venerações ou – a si próprios! A segunda opção seria o niilismo – mas não seria a primeira também niilismo?”
Na verdade, o niilismo nesse sentido, isto é, a desconfiança e a negação dos valores supremos, constitui a SEGUNDA etapa do niilismo. A primeira consiste na depreciação da vida real em nome da postulação e da valorização de um mundo supra-sensível superior a ela. É o que faz a metafísica platônica, por exemplo. Platão, como se sabe, defende que o mundo que nos é dado pelos sentidos e no qual agimos, não passa de um simulacro do mundo verdadeiramente real, que é o mundo das ideias eternas, universais e imutáveis e, em primeiro lugar, da ideia do bem: do bem em si. “O pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje”, diz Nietzsche, “foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito do bem em si”. Por que? Porque ele desvaloriza o mundo real. O mundo sublunar em que vivemos é tanto menos dotado de realidade e valor, quanto mais se afaste desse mundo ideal.
Segundo Nietzsche, o Cristianismo é um platonismo vulgar, um “platonismo para o povo”. Trata-se, portanto, de niilismo para o povo. É “o nada divinizado”, como diz. Que maior degradação do mundo real pode ser concebida? Tal é a primeira etapa do niilismo, na Europa.
E como se chega à segunda etapa, isto é, o niilismo que já se considera como tal? Em “A vontade do poder”, Nietzsche especula que a moralidade cristã acaba por se voltar contra o próprio Deus cristão. A valorização da veracidade, que faz parte dessa moral, alimenta uma vontade da verdade que acaba por se revoltar contra a falsidade das interpretações cristãs do mundo. Descobre-se que não se tem o menor direito de pressupor um ser transcendente ou um em si das coisas, que fosse ou divino ou a encarnação da moralidade. A reação contra a ficção de que “Deus é a verdade” é: “Tudo é falso”.
A partir disso, negam-se todos os valores supremos. É a morte de Deus. O domínio do transcendente se torna nulo e vazio. O niilista nega Deus, o bem, a verdade, a beleza. Nada é realmente verdadeiro, nada realmente bom. Se antes a vida real era desvalorizada em nome dos valores supremos, agora os próprios valores supremos são desvalorizados, sem que se tenha reabilitado a vida real. Desmente-se o mundo metafísico, sem se crer no mundo físico. Nega-se qualquer finalidade ou unidade ao mundo. Nada vale a pena. No limite, dá-se uma negação de toda vontade. A vida é inteiramente depreciada.
Mas além desse modo passivo de niilismo passivo, que representa decadência e constitui um retrocesso do poder do espírito, há um outro niilismo, que Nietzsche chama de “niilismo ativo”. Este representa o aumento do poder do espírito. Nietzsche afirma que “seu máximo de força relativa, o [espírito] alcança como força violenta de destruição: como niilismo ativo”. Nietzsche classifica a si próprio como o primeiro niilista europeu perfeito, isto é, “o primeiro niilista europeu que já viveu em si o niilismo até o fim, já o deixou atrás de si e o superou”.
Tal niilismo não pode consistir, evidentemente, na destruição física das coisas ou dos seres humanos. Trata-se antes da abertura do caminho para a “transvaloração de todos os valores”, através do reconhecimento do caráter meramente relativo, particular e contingente de todas as crenças e valores dados. Ora, não é exatamente a esse reconhecimento que o ceticismo metódico instaurado pela filosofia moderna deveria ter conduzido, se tivesse realmente sido levado às últimas conseqüências? Não teria ele então consistido em niilismo ativo? Nesse sentido, Heidegger tem razão, ao pensar que Descartes está menos distante de Nietzsche do que este imagina...
12.6.10
Resposta a Maurício Tuffani
Resposta a Maurício Tuffani
Lembro aos leitores que, em 15/05, escrevi um artigo, na Folha de São Paulo, intitulado “Irracionalismo” em que, entre outras coisas, especulo que, paradoxalmente, uma das razões para a popularidade de Heidegger entre os intelectuais franceses pós-modernistas tem a ver com o seu feroz anticartesianismo.
A partir disso, Maurício Tuffani escreveu, no mesmo jormal, um artigo afirmando, sem nenhum fundamento, que Heidegger não era sequer anticartesiano.
Em resposta, mostrei – creio que de modo claro, apesar de sucinto – que o anticartesianismo não é episódico, mas estrutural ao pensamento de Heidegger, de modo que este ficaria sem dúvida horrorizado com essa malograda tentativa de “salvá-lo” do anticartesianismo. Ademais, chamei atenção para o fato de que praticamente todos os grandes comentadores da obra de Heidegger o consideram anticartesiano. Caberia, portanto, a meu adversário refutar meus argumentos e citar vários e importantes comentadores de Heidegger que pensam o contrário (não valeriam textos em que Heidegger parece RESPEITAR Descartes, pois, como observo no mesmo artigo, “naturalmente, reconhecer alguém como seu inimigo fundamental é antes respeitá-lo do que desprezá-lo”).
Em vez disso, Tuffani escreveu um artigo intitulado “Uma ameaça maior que o dogma”. E qual seria a ameaça maior que o dogma? Segundo ele, trata-se da banalização da filosofia. Já isso está errado, é claro. O dogma é pior do que a banalização, pois, além de ser banalizado, é também esclerosado, intolerante e surdo a críticas.
Mas onde está a banalização da filosofia? “Está”, segundo Tuffani, “no apelo exagerado aos ‘ismos’ – o humanismo, o niilismo e outros – e em chavões manipuláveis ao gosto de cada intérprete”. É disso que ele me acusa. Há dois problemas nessa acusação. O primeiro é que ele não cita nenhum exemplo concreto do meu suposto afã banalizador; o segundo é que ele se esquece de que o próprio Heidegger, o filósofo que ele pretensamente quer salvar da minha banalização, escreveu uma obra chamada “Sobre o HUMANISMO” e outra chamada “O NIILISMO europeu”...
Ou será que, para Tuffani, estou banalizando Heidegger ao chamá-lo de “anticartesiano”? Creio que se eu tivesse escrito um artigo para provar que Heidegger era “anticartesiano”, isso seria, para os filósofos – embora não para os leigos – banal, uma vez que uma verdade muito repetida é banal. Contudo, o tema do meu primeiro artigo não foi esse. Só toquei nesse assunto porque minha intenção era mostrar a curiosa relação entre o anticartesianismo de Heidegger e sua popularidade entre intelectuais franceses; e, no segundo artigo, só falei do anticartesianismo exatamente porque Tuffani questionara – e, para ser sincero, penso que ele simplesmente ignorava – o fato de que Heidegger era anticartesiano.
No mais, como digo que Heidegger tentou relativizar a razão, Tuffani afirma que não notei que ele “contestara essa rotulação” (sic) no parágrafo 6 de “Ser e tempo”. Engano dele: já em “O mundo desde o fim”, de 1995 (p.96-7 da edição brasileira ou p.89 da edição portuguesa), eu ironizava a pretensão de Heidegger no § 6, dizendo:
“Negando que tenha a pretensão de efetuar uma "má relativização" (schlechte Relativierung) de pontos de vista ontológicos, Heidegger explica que tenciona levar a cabo uma "comprovação da procedência dos conceitos ontológicos fundamentais como exposição investigadora das suas 'certidões de nascimento'", tendo em vista "delimitar [a tradição ontológica] em suas possibilidades positivas"; e complementa: "e isso sempre quer dizer em seus limites". Em suma, ele pretende realizar uma boa relativização dos conceitos ontológicos -- para nós, noético-ontológicos – fundamentais”.
Quanto à atitude de Heidegger em relação a Descartes, em “A questão fundamental da filosofia”, não é verdade que, como Tuffani afirma, o “alvo” dele fosse apenas a tradição acadêmica dogmática e louvadora do cartesianismo. Heidegger diz, efetivamente, que a importância atribuída a Descartes é sinal de falta de pensamento e irresponsabilidade das universidades alemãs e, logo depois, explica:
“COM O PROPÓSITO DE DETERMINAR A POSIÇÃO REAL DE DESCARTES NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL, NO TOCANTE ÀS QUESTÕES FUNDAMENTAIS, e ao fazê-lo, realçar o predomínio decisivo da ideia matemática do método, AFIRMO O SEGUINTE:
“1. A RADICALIDADE DA DÚVIDA DE DESCARTES E O VIGOR DA NOVA FUNDAMENTAÇÃO DA FILOSFIA E DO SABER EM GERAL É UMA APARÊNCIA E, ASSIM, FONTE DE ILUSÕES FATAIS, HOJE MUITO DIFÍCEIS DE SEREM ELIMINADAS.
“2. ESSE PRETENSO NOVO PRINCÍPIO DA FILOSOFIA MODERNA, COM DESCARTES, NÃO APENAS NÃO CONSISTE, COMO É, SOBRETUDO, O INÍCIO DE MAIS UMA DECADÊNCIA DA FILOSOFIA. DESCARTES NÃO LEVA A FILOSOFIA DE VOLTA PARA SI MESMA, PARA SEU FUNDO E SEU CHÃO, MAS A DISTANCIA MAIS AINDA DO QUESTIONAMENTO DA QUESTÃO FUNDAMENTAL” (Ser e verdade. Trad. de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, Ed. Vozes, 1007.
Segundo Tuffani, “Verfall” (“decadência”) não exprime, para Heidegger, qualquer avaliação negativa. Novamente, ele confunde as coisas. Segundo Heidegger, o termo “Verfall” não exprime qualquer avaliação negativa quando aplicado ao “Dasein”, isto é, ao ser humano situado no mundo. Observo, en passant, que, na verdade, é altamente questionável que palavras como “decadência”, e “inautenticidade” possam ser usadas sem carga valorativa. Como diz Adorno em Die Jargon der Eigentlichkeit (Frankfurt: Suhrkamp, 1964, p.81): “As expressões terminologicamente escolhidas não se esgotam nos seus usos que são escolhidos com liberdade subjetiva, mas – e Heidgger, o filósofo da linguagem, devia ser o primeiro a concordar – conservam como seu conteúdo objetivo as normas das quais Heidegger as separa”. De todo modo, é verdade que separá-las das suas cargas valorativas é, de fato, o que Heidegger diz PRETENDER, no livro Ser e tempo, de 1927.
Depois disso, porém, e fora desse contexto, Heidegger continuou a empregar a palavra “Verfall” – “decadência” – pejorativamente, como todo o mundo. O texto sobre Descartes como decadente é de 1933-34. Pela mesma época, em Introdução à metafísica, de 1935, por exemplo, Heidegger declara que “a decadência espiritual da terra já foi tão longe que os povos estão ameaçados de perderem a última força espiritual que lhes permite ver e avaliar enquanto tal a decadência”.
Se Tuffani não percebe a carga pejorativa do vocábulo “decadência” nesse texto, então receio que, se não no que diz respeito à terra como um todo, ao menos no que diz respeito a ele essas palavras de Heidegger foram proféticas.
Em suma, nenhuma das acusações de Tuffani contra mim tem procedência.
Lembro aos leitores que, em 15/05, escrevi um artigo, na Folha de São Paulo, intitulado “Irracionalismo” em que, entre outras coisas, especulo que, paradoxalmente, uma das razões para a popularidade de Heidegger entre os intelectuais franceses pós-modernistas tem a ver com o seu feroz anticartesianismo.
A partir disso, Maurício Tuffani escreveu, no mesmo jormal, um artigo afirmando, sem nenhum fundamento, que Heidegger não era sequer anticartesiano.
Em resposta, mostrei – creio que de modo claro, apesar de sucinto – que o anticartesianismo não é episódico, mas estrutural ao pensamento de Heidegger, de modo que este ficaria sem dúvida horrorizado com essa malograda tentativa de “salvá-lo” do anticartesianismo. Ademais, chamei atenção para o fato de que praticamente todos os grandes comentadores da obra de Heidegger o consideram anticartesiano. Caberia, portanto, a meu adversário refutar meus argumentos e citar vários e importantes comentadores de Heidegger que pensam o contrário (não valeriam textos em que Heidegger parece RESPEITAR Descartes, pois, como observo no mesmo artigo, “naturalmente, reconhecer alguém como seu inimigo fundamental é antes respeitá-lo do que desprezá-lo”).
Em vez disso, Tuffani escreveu um artigo intitulado “Uma ameaça maior que o dogma”. E qual seria a ameaça maior que o dogma? Segundo ele, trata-se da banalização da filosofia. Já isso está errado, é claro. O dogma é pior do que a banalização, pois, além de ser banalizado, é também esclerosado, intolerante e surdo a críticas.
Mas onde está a banalização da filosofia? “Está”, segundo Tuffani, “no apelo exagerado aos ‘ismos’ – o humanismo, o niilismo e outros – e em chavões manipuláveis ao gosto de cada intérprete”. É disso que ele me acusa. Há dois problemas nessa acusação. O primeiro é que ele não cita nenhum exemplo concreto do meu suposto afã banalizador; o segundo é que ele se esquece de que o próprio Heidegger, o filósofo que ele pretensamente quer salvar da minha banalização, escreveu uma obra chamada “Sobre o HUMANISMO” e outra chamada “O NIILISMO europeu”...
Ou será que, para Tuffani, estou banalizando Heidegger ao chamá-lo de “anticartesiano”? Creio que se eu tivesse escrito um artigo para provar que Heidegger era “anticartesiano”, isso seria, para os filósofos – embora não para os leigos – banal, uma vez que uma verdade muito repetida é banal. Contudo, o tema do meu primeiro artigo não foi esse. Só toquei nesse assunto porque minha intenção era mostrar a curiosa relação entre o anticartesianismo de Heidegger e sua popularidade entre intelectuais franceses; e, no segundo artigo, só falei do anticartesianismo exatamente porque Tuffani questionara – e, para ser sincero, penso que ele simplesmente ignorava – o fato de que Heidegger era anticartesiano.
No mais, como digo que Heidegger tentou relativizar a razão, Tuffani afirma que não notei que ele “contestara essa rotulação” (sic) no parágrafo 6 de “Ser e tempo”. Engano dele: já em “O mundo desde o fim”, de 1995 (p.96-7 da edição brasileira ou p.89 da edição portuguesa), eu ironizava a pretensão de Heidegger no § 6, dizendo:
“Negando que tenha a pretensão de efetuar uma "má relativização" (schlechte Relativierung) de pontos de vista ontológicos, Heidegger explica que tenciona levar a cabo uma "comprovação da procedência dos conceitos ontológicos fundamentais como exposição investigadora das suas 'certidões de nascimento'", tendo em vista "delimitar [a tradição ontológica] em suas possibilidades positivas"; e complementa: "e isso sempre quer dizer em seus limites". Em suma, ele pretende realizar uma boa relativização dos conceitos ontológicos -- para nós, noético-ontológicos – fundamentais”.
Quanto à atitude de Heidegger em relação a Descartes, em “A questão fundamental da filosofia”, não é verdade que, como Tuffani afirma, o “alvo” dele fosse apenas a tradição acadêmica dogmática e louvadora do cartesianismo. Heidegger diz, efetivamente, que a importância atribuída a Descartes é sinal de falta de pensamento e irresponsabilidade das universidades alemãs e, logo depois, explica:
“COM O PROPÓSITO DE DETERMINAR A POSIÇÃO REAL DE DESCARTES NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL, NO TOCANTE ÀS QUESTÕES FUNDAMENTAIS, e ao fazê-lo, realçar o predomínio decisivo da ideia matemática do método, AFIRMO O SEGUINTE:
“1. A RADICALIDADE DA DÚVIDA DE DESCARTES E O VIGOR DA NOVA FUNDAMENTAÇÃO DA FILOSFIA E DO SABER EM GERAL É UMA APARÊNCIA E, ASSIM, FONTE DE ILUSÕES FATAIS, HOJE MUITO DIFÍCEIS DE SEREM ELIMINADAS.
“2. ESSE PRETENSO NOVO PRINCÍPIO DA FILOSOFIA MODERNA, COM DESCARTES, NÃO APENAS NÃO CONSISTE, COMO É, SOBRETUDO, O INÍCIO DE MAIS UMA DECADÊNCIA DA FILOSOFIA. DESCARTES NÃO LEVA A FILOSOFIA DE VOLTA PARA SI MESMA, PARA SEU FUNDO E SEU CHÃO, MAS A DISTANCIA MAIS AINDA DO QUESTIONAMENTO DA QUESTÃO FUNDAMENTAL” (Ser e verdade. Trad. de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, Ed. Vozes, 1007.
Segundo Tuffani, “Verfall” (“decadência”) não exprime, para Heidegger, qualquer avaliação negativa. Novamente, ele confunde as coisas. Segundo Heidegger, o termo “Verfall” não exprime qualquer avaliação negativa quando aplicado ao “Dasein”, isto é, ao ser humano situado no mundo. Observo, en passant, que, na verdade, é altamente questionável que palavras como “decadência”, e “inautenticidade” possam ser usadas sem carga valorativa. Como diz Adorno em Die Jargon der Eigentlichkeit (Frankfurt: Suhrkamp, 1964, p.81): “As expressões terminologicamente escolhidas não se esgotam nos seus usos que são escolhidos com liberdade subjetiva, mas – e Heidgger, o filósofo da linguagem, devia ser o primeiro a concordar – conservam como seu conteúdo objetivo as normas das quais Heidegger as separa”. De todo modo, é verdade que separá-las das suas cargas valorativas é, de fato, o que Heidegger diz PRETENDER, no livro Ser e tempo, de 1927.
Depois disso, porém, e fora desse contexto, Heidegger continuou a empregar a palavra “Verfall” – “decadência” – pejorativamente, como todo o mundo. O texto sobre Descartes como decadente é de 1933-34. Pela mesma época, em Introdução à metafísica, de 1935, por exemplo, Heidegger declara que “a decadência espiritual da terra já foi tão longe que os povos estão ameaçados de perderem a última força espiritual que lhes permite ver e avaliar enquanto tal a decadência”.
Se Tuffani não percebe a carga pejorativa do vocábulo “decadência” nesse texto, então receio que, se não no que diz respeito à terra como um todo, ao menos no que diz respeito a ele essas palavras de Heidegger foram proféticas.
Em suma, nenhuma das acusações de Tuffani contra mim tem procedência.
10.6.10
Manuel António Pina: "A avó"
A avó
Tinha ao colo o gato velho
cansadamente passando
a sua branca mão pelo
pelo dele preto e brando
Sentada ao pé da janela
olhando a rua ou sonhando-a
todo o passado passando
a passos lentos por ela
Dormiam ambos enquanto
a tarde se ia acabando
o gato dormindo por fora
a avó dormindo por dentro
PINA, Manuel António. Os livros. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.
6.6.10
Salgado Maranhão: "Desconcerto"
Desconcerto
Por querer teus seios
(e não poder)
já sofri demais.
E ainda sofro,
por não querer mais.
MARANHÃO, Salgado. "Solo de gaveta". A cor da palavra. Rio de Janeiro: Imago, 2009.
Emily Dickinson: "I died for Beauty" / "Morri pela beleza: tradução de Augusto de Campos
Morri pela beleza – e assim que no Jazigo
Meu Corpo foi fechado,
Um outro Morto foi depositado
Num Túmulo contíguo –
“Por que morreu?” murmurou sua voz.
“Pela Beleza” – retruquei –
“Pois eu – pela Verdade – É o mesmo. Nós
Somos Irmãos. É uma só lei” –
E assim Parentes pela Noite, sábios –
Conversamos a Sós –
Até que o Musgo encobriu nossos lábios –
E – nomes – logo após –
I died for Beauty — but was scarce
Adjusted in the Tomb
When One who died for Truth, was lain
In an adjoining room —
He questioned softly "Why I failed"?
"For Beauty", I replied —
"And I — for Truth — Themself are One —
We Brethren, are", He said —
And so, as Kinsmen, met a Night —
We talked between the Rooms —
Until the Moss had reached our lips —
And covered up — our names —
DICKINSON, Emily. Não sou ninguém. Poemas. traduções de CAMPOS, Augusto de. Unicamp: 2009.
Meu Corpo foi fechado,
Um outro Morto foi depositado
Num Túmulo contíguo –
“Por que morreu?” murmurou sua voz.
“Pela Beleza” – retruquei –
“Pois eu – pela Verdade – É o mesmo. Nós
Somos Irmãos. É uma só lei” –
E assim Parentes pela Noite, sábios –
Conversamos a Sós –
Até que o Musgo encobriu nossos lábios –
E – nomes – logo após –
I died for Beauty — but was scarce
Adjusted in the Tomb
When One who died for Truth, was lain
In an adjoining room —
He questioned softly "Why I failed"?
"For Beauty", I replied —
"And I — for Truth — Themself are One —
We Brethren, are", He said —
And so, as Kinsmen, met a Night —
We talked between the Rooms —
Until the Moss had reached our lips —
And covered up — our names —
DICKINSON, Emily. Não sou ninguém. Poemas. traduções de CAMPOS, Augusto de. Unicamp: 2009.
3.6.10
H. Dobal: "Azul"
Azul
O vento no canavial
as moças com seus vestidos de verão,
e a nuvem – grandes cúmulos
na pura duração do azul.
O poeta Keats sabia que um coisa bonita
é uma alegria para sempre.
A vida é uma sucessão de imagens
a alegria de belas imagens
guardadas na memória:
– o vento no canavial,
as moças com seus vestidos de verão,
e as nuvens - grandes cúmulos brancos
na pura duração do azul.
DOBAL, H."Novos poemas". Poesia reunida. Edição comemorativa dos 80 anos do poeta. Teresna PI: Plug Propaganda e Marketing Ltda., 2007.