Lucas Matos, editor da Revista Bliss, e Clarissa fizeram uns vídeos em que digo uns poemas. Encontram-se no You Tube. Eis um deles, em que digo o poema Meio-Fio:
29.6.09
28.6.09
Homero e as Musas
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 28 de junho.
Homero e as Musas
É COMUM O pressuposto de que tanto a consideração puramente estética da obra de arte quanto a autonomia da arte são fenômenos exclusivamente modernos. A verdade, porém, é que, paradoxalmente, já se manifestam modalidades de ambas entre os primeiros poetas gregos cujas obras chegaram até nós.
Como se sabe, os poetas arcaicos se consideravam inspirados pelas Musas, deusas que eles descreviam como filhas de outra divindade, a Memória. Normalmente, essa filiação é interpretada de duas maneiras. Por um lado, supõe-se que ela simbolize o fato de que os poemas preservavam a memória dos feitos originários da comunidade. Assim, o sentido da "Ilíada", de Homero, teria sido manter a memória da Guerra de Troia.
Essa interpretação, porém, é desmentida pelo fato de que a "Odisseia", por exemplo, nada tem a ver com fatos históricos. Ademais, Hesíodo, outro poeta arcaico, fazia suas Musas se gabarem de dizer "muitas mentiras parecidas com a verdade": o que dificilmente fariam, se pretendessem ser as guardiãs da memória do passado.
A outra interpretação se apoia no fato de que a poesia arcaica não era escrita, mas oral. Ela supõe que os poetas recitassem os poemas tradicionais que tivessem memorizado. A deusa Memória simbolizaria a memorização.
Entretanto, o estudo da poesia oral moderna mostrou que, ao recitar os poemas, os poetas orais primários não os repetem palavra por palavra, mas de modo criativo, num processo denominado "composition in performance" (mais ou menos "composição durante a apresentação"), no qual a memorização tem um papel limitado. De fato, Telêmaco, na "Odisseia", afirma serem tanto mais apreciadas as canções quanto mais novas.
Na verdade, tudo indica que os poetas consideram as Musas filhas da Memória, não porque os poemas por elas inspirados guardem a memória de outras coisas, ou porque sejam memorizáveis, mas porque são memoráveis. Já os primeiros poetas líricos, como Píndaro, jactavam-se de que a memorabilidade dos seus poemas conferia memorabilidade também às pessoas de que tratavam.
Mas por que o poeta faz questão de atribuir às Musas e não a si próprio a capacidade de produzir o memorável? Que Homero, por exemplo, faz questão disso, mostra-o a lenda, por ele relatada, do poeta Tâmiris, o Trácio. Atribuindo a si próprio a genialidade dos seus poemas, Tâmiris desafiou as Musas para um duelo. Tendo sido derrotado, as Musas lhe tomaram o talento e a visão.
No fundo, o poeta faz questão de depender das Musas porque tal associação o enobrece. Ele se considera o discípulo e o favorito das deusas. Assim, de certo modo, é como se delas descendesse. Homero faz Ulisses declarar que "entre todos os homens da terra, os poetas merecem honra e respeito, pois a eles a Musa, que ama a raça dos poetas, ensinou".
Com isso, o poeta conquista a liberdade de cantar, nas palavras de Telêmaco, na "Odisseia", "por onde quer que a mente o conduza". Se não tivesse sido atribuída origem divina às palavras do poeta, elas jamais teriam conquistado semelhante liberdade.
Há uma circularidade evidente no fato de que quem legitima a liberdade do poeta sejam as Musas, mas quem garanta a existência das Musas seja o poeta. Só a evidência de que ele esteja possuído pela divindade quebra tal círculo. Ora, a natureza da evidência de que as Musas possuem o poeta é sugerida pelos versos nos quais o poeta Teógnis afirma que as Musas cantavam "um belo poema: o belo é nosso, o não belo não é nosso".
A beleza dos poemas – que é o que os torna memoráveis – é prova de sua origem divina, e sua origem divina legitima a liberdade do poeta. Por direito, seus poemas são belos por serem divinos; de fato, porém, são divinos por serem belos.
Logo, a primeira preocupação do poeta não é fazer o poema "verdadeiro", mas fazer, por onde quer que, para tanto, sua mente – sua Musa – o leve, o poema inesquecivelmente belo, o poema memorável pela sua beleza; e a primeira exigência do seu público não é escutar um poema "verdadeiro", mas um poema cuja origem se encontre na dimensão da divindade ou, o que dá no mesmo, um poema que lhe dê prazer estético, pois o "cantor divino" é, como se lê na "Odisseia", aquele que "delicia ao cantar".
Uma vez que o puro esplendor do poema constitui a prova da sua autoria divina, nele as considerações morais ou religiosas se subordinam a considerações estéticas.
Se, como diz Goethe, os gregos sonharam mais esplendidamente o sonho da vida é porque -agora sou eu que o digo- sonharam sonhos de poetas e não de profetas, pastores ou sacerdotes.
Homero e as Musas
É COMUM O pressuposto de que tanto a consideração puramente estética da obra de arte quanto a autonomia da arte são fenômenos exclusivamente modernos. A verdade, porém, é que, paradoxalmente, já se manifestam modalidades de ambas entre os primeiros poetas gregos cujas obras chegaram até nós.
Como se sabe, os poetas arcaicos se consideravam inspirados pelas Musas, deusas que eles descreviam como filhas de outra divindade, a Memória. Normalmente, essa filiação é interpretada de duas maneiras. Por um lado, supõe-se que ela simbolize o fato de que os poemas preservavam a memória dos feitos originários da comunidade. Assim, o sentido da "Ilíada", de Homero, teria sido manter a memória da Guerra de Troia.
Essa interpretação, porém, é desmentida pelo fato de que a "Odisseia", por exemplo, nada tem a ver com fatos históricos. Ademais, Hesíodo, outro poeta arcaico, fazia suas Musas se gabarem de dizer "muitas mentiras parecidas com a verdade": o que dificilmente fariam, se pretendessem ser as guardiãs da memória do passado.
A outra interpretação se apoia no fato de que a poesia arcaica não era escrita, mas oral. Ela supõe que os poetas recitassem os poemas tradicionais que tivessem memorizado. A deusa Memória simbolizaria a memorização.
Entretanto, o estudo da poesia oral moderna mostrou que, ao recitar os poemas, os poetas orais primários não os repetem palavra por palavra, mas de modo criativo, num processo denominado "composition in performance" (mais ou menos "composição durante a apresentação"), no qual a memorização tem um papel limitado. De fato, Telêmaco, na "Odisseia", afirma serem tanto mais apreciadas as canções quanto mais novas.
Na verdade, tudo indica que os poetas consideram as Musas filhas da Memória, não porque os poemas por elas inspirados guardem a memória de outras coisas, ou porque sejam memorizáveis, mas porque são memoráveis. Já os primeiros poetas líricos, como Píndaro, jactavam-se de que a memorabilidade dos seus poemas conferia memorabilidade também às pessoas de que tratavam.
Mas por que o poeta faz questão de atribuir às Musas e não a si próprio a capacidade de produzir o memorável? Que Homero, por exemplo, faz questão disso, mostra-o a lenda, por ele relatada, do poeta Tâmiris, o Trácio. Atribuindo a si próprio a genialidade dos seus poemas, Tâmiris desafiou as Musas para um duelo. Tendo sido derrotado, as Musas lhe tomaram o talento e a visão.
No fundo, o poeta faz questão de depender das Musas porque tal associação o enobrece. Ele se considera o discípulo e o favorito das deusas. Assim, de certo modo, é como se delas descendesse. Homero faz Ulisses declarar que "entre todos os homens da terra, os poetas merecem honra e respeito, pois a eles a Musa, que ama a raça dos poetas, ensinou".
Com isso, o poeta conquista a liberdade de cantar, nas palavras de Telêmaco, na "Odisseia", "por onde quer que a mente o conduza". Se não tivesse sido atribuída origem divina às palavras do poeta, elas jamais teriam conquistado semelhante liberdade.
Há uma circularidade evidente no fato de que quem legitima a liberdade do poeta sejam as Musas, mas quem garanta a existência das Musas seja o poeta. Só a evidência de que ele esteja possuído pela divindade quebra tal círculo. Ora, a natureza da evidência de que as Musas possuem o poeta é sugerida pelos versos nos quais o poeta Teógnis afirma que as Musas cantavam "um belo poema: o belo é nosso, o não belo não é nosso".
A beleza dos poemas – que é o que os torna memoráveis – é prova de sua origem divina, e sua origem divina legitima a liberdade do poeta. Por direito, seus poemas são belos por serem divinos; de fato, porém, são divinos por serem belos.
Logo, a primeira preocupação do poeta não é fazer o poema "verdadeiro", mas fazer, por onde quer que, para tanto, sua mente – sua Musa – o leve, o poema inesquecivelmente belo, o poema memorável pela sua beleza; e a primeira exigência do seu público não é escutar um poema "verdadeiro", mas um poema cuja origem se encontre na dimensão da divindade ou, o que dá no mesmo, um poema que lhe dê prazer estético, pois o "cantor divino" é, como se lê na "Odisseia", aquele que "delicia ao cantar".
Uma vez que o puro esplendor do poema constitui a prova da sua autoria divina, nele as considerações morais ou religiosas se subordinam a considerações estéticas.
Se, como diz Goethe, os gregos sonharam mais esplendidamente o sonho da vida é porque -agora sou eu que o digo- sonharam sonhos de poetas e não de profetas, pastores ou sacerdotes.
26.6.09
Augusto dos Anjos: "Vandalismo"
.
Vandalismo
Meu coração tem catedrais imensas,
templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas,
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos templários medievais,
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
De: ANJOS, Augusto dos. Toda poesia. Com estudo crítico de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
Vandalismo
Meu coração tem catedrais imensas,
templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas,
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos templários medievais,
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
De: ANJOS, Augusto dos. Toda poesia. Com estudo crítico de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
25.6.09
Sarkozy e a burca
Ontem Penetralia deixou um comentário sobre meu artigo “O clássico e o contemporâneo”, dizendo que estava tudo bem com as minhas posições, desde que eu não defendesse a “proibição imbecil do Sarkozy da burca em nome da laicidade e da razão”. Respondi que não via relação entre o artigo citado e a questão da burca. Hoje Marcelo Pereira, confundindo a burca com o chador, que é um lenço no cabelo, e que já havia sido proibido nas escolas francesas antes do governo Sarkozy, defendeu essa proibição.
A burca, porém, é algo muito mais grave do que o chador. Como se pode ver pela foto acima, ela cobre toda a cabeça, inclusive o rosto de quem a usa. Anteontem o Sarkozy falou em proibir a burca. Essa proibição não se basearia simplesmente na defesa da laicidade e da razão, como afirma Penetralia, mas na convicção de que se trata de algo opressivo à mulher. “Em nosso país”, disse Sarkozy, “não podemos aceitar que mulheres sejam prisioneiras atrás de uma tela, privadas de toda vida social, desprovidas de toda identidade”. Sarkozy observou também que “a burca não é um sinal religioso, é um sinal de subserviência, de rebaixamento”.
Mesmo embora eu não simpatize muito com o Sarkozy, acho que ele está certo, sim. Entre as correntes mais conservadoras do Islã, as mulheres – jamais os homens – são obrigadas a usar a burca. Haverá sem dúvida mulheres que gostam de usar a burca, pois, como diz Sartre, há quem prefira ser coisa do que ser gente, mas penso que a proibição é o único caminho para permitir que as muitas mulheres que se sintam humilhadas por essa vestimenta-prisão livrem-se dela. Sem a proibição, é certo que muitas mulheres que não gostam da burca sejam obrigadas a usá-la pelos maridos que, no Islã, têm o direito de bater nas esposas.
22.6.09
Walt Whitman: "Once I passed through a populous city"
Adriano Nunes sugeriu que eu traduzisse e publicasse algum poema do Walt Whitman. Resolvi traduzir "Once I passed through a populous city". Optei, porém, pela versão original do poema (que se encontra no manuscrito UPP, II, 102, e é reproduzida na edição abaixo citada). Nessa versão original, quem perambula pela cidade com o poeta é um homem, e não uma mulher, como na versão modificada para publicação.
Uma vez passei por uma cidade populosa
Uma vez passei por uma cidade populosa, imprimindo no cérebro, para uso futuro,
seus espetáculos, sua arquitetura, seus costumes e tradições
Mas agora de toda aquela cidade só recordo o homem que perambulou comigo por lá, por amor a mim.
Dia após dia e noite após noite ficamos juntos.
Tudo mais foi há muito esquecido por mim – Recordo, repito, só um homem rude e ignorante que, quando parti, segurou-me a mão por muito, muito tempo, com lábios silenciosos, triste e trêmulo.
Once I passed through a populous city
Once I passed through a populous city, imprinting on my brain, for future use, its shows, architecture, customs and traditions
But now of all that city I remember only the man who wandered with me there, for love of me.
Day by day, and night by night, we were together.
All else has long been forgotten by me — I remember, I say, only one rude and' ignorant man who, when I departed, long and long held me by the hand, with silent lips, sad and tremulous.
De: WHITMAN, Walt. The complete poems.
Uma vez passei por uma cidade populosa
Uma vez passei por uma cidade populosa, imprimindo no cérebro, para uso futuro,
seus espetáculos, sua arquitetura, seus costumes e tradições
Mas agora de toda aquela cidade só recordo o homem que perambulou comigo por lá, por amor a mim.
Dia após dia e noite após noite ficamos juntos.
Tudo mais foi há muito esquecido por mim – Recordo, repito, só um homem rude e ignorante que, quando parti, segurou-me a mão por muito, muito tempo, com lábios silenciosos, triste e trêmulo.
Once I passed through a populous city
Once I passed through a populous city, imprinting on my brain, for future use, its shows, architecture, customs and traditions
But now of all that city I remember only the man who wandered with me there, for love of me.
Day by day, and night by night, we were together.
All else has long been forgotten by me — I remember, I say, only one rude and' ignorant man who, when I departed, long and long held me by the hand, with silent lips, sad and tremulous.
De: WHITMAN, Walt. The complete poems.
20.6.09
Carlos Drummond de Andrade: "As rosas do tempo"
.
As rosas do tempo
Admirável espírito dos moços,
a vida te pertence. Os alvoroços,
as iras e entusiasmos que cultivas
são as rosas do tempo, inquietas, vivas.
Erra e procura e sofre e indaga e ama,
que nas cinzas do amor perdura a flama.
De: ANDRADE, Carlos Drummond de. "Viola de bolso". In: TELES, G.M. (org.) Poesia completa.. Intr. de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
As rosas do tempo
Admirável espírito dos moços,
a vida te pertence. Os alvoroços,
as iras e entusiasmos que cultivas
são as rosas do tempo, inquietas, vivas.
Erra e procura e sofre e indaga e ama,
que nas cinzas do amor perdura a flama.
De: ANDRADE, Carlos Drummond de. "Viola de bolso". In: TELES, G.M. (org.) Poesia completa.. Intr. de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
18.6.09
John Ashbery: "What is poetry" / "Que é a poesia": tradução de Antonio Cicero e Waly Salomão
.
Que é a poesia
A cidade medieval, com frisa
De escoteiros de Nagoya? A neve
Que veio quando queríamos que nevasse?
Belas imagens? Tentar evitar
Ideias, feito neste poema? Mas
Voltamos a elas como a uma esposa, largando
A amante que desejamos? Agora
Terão que acreditar
Como acreditamos. Na escola
O pente fino tirou todo pensamento:
O que sobrou era feito uma planície.
Feche os olhos, para senti-la por milhas em torno.
Abra-os agora num caminho estreito e vertical.
Ela talvez nos dê – o que? – algumas flores em breve?
What Poetry Is
The medieval town, with frieze
Of boy scouts from Nagoya? The snow
That came when we wanted it to snow?
Beautiful images? Trying to avoid
Ideas, as in this poem? But we
Go back to them as to a wife, leaving
The mistress we desire? Now they
Will have to believe it
As we believed it. In school
All the thought got combed out:
What was left was like a field.
Shut your eyes, and you can feel it for miles around.
Now open them on a thin vertical path.
It might give us--what?--some flowers soon?
De: ASHBERY, John. "Houseboat days". In: Selected poems. New York: Penguin, 1986.
Que é a poesia
A cidade medieval, com frisa
De escoteiros de Nagoya? A neve
Que veio quando queríamos que nevasse?
Belas imagens? Tentar evitar
Ideias, feito neste poema? Mas
Voltamos a elas como a uma esposa, largando
A amante que desejamos? Agora
Terão que acreditar
Como acreditamos. Na escola
O pente fino tirou todo pensamento:
O que sobrou era feito uma planície.
Feche os olhos, para senti-la por milhas em torno.
Abra-os agora num caminho estreito e vertical.
Ela talvez nos dê – o que? – algumas flores em breve?
What Poetry Is
The medieval town, with frieze
Of boy scouts from Nagoya? The snow
That came when we wanted it to snow?
Beautiful images? Trying to avoid
Ideas, as in this poem? But we
Go back to them as to a wife, leaving
The mistress we desire? Now they
Will have to believe it
As we believed it. In school
All the thought got combed out:
What was left was like a field.
Shut your eyes, and you can feel it for miles around.
Now open them on a thin vertical path.
It might give us--what?--some flowers soon?
De: ASHBERY, John. "Houseboat days". In: Selected poems. New York: Penguin, 1986.
16.6.09
Hans Magnus Enzensberger: de "Rebus": tradução de Samuel Titan
.
Hábitos
Quantas vezes Platão assoou o nariz,
e São Tomás de Aquino
tirou os sapatos,
quantas vezes Einstein escovou os dentes,
e Kafka ligou e desligou a luz,
antes de enfim chegarem
ao que lhes cabia fazer?
Semanas sem fim, feitas as contas,
levamos
abotoar e desabotoar camisas,
procurar os óculos
ou, tomada a decisão,
novamente descartá-la.
Como são efêmeras as nossas opiniões
e as nossas obras, em comparação
com aquilo que nos é comum:
cozinhar, lavar a roupa, subir escadas –
repetições de pouco relevo,
pacíficas, corriqueiras
e mais indispensáveis que qualquer chef d'oeuvre.
Angewohnheiten
Wie oft mußte Plato sich schneuzen,
der heilige Thomas von Aquin
seine Schuhe ausziehen,
Einstein sich die Zähne putzen,
Kafka das Licht ein- und ausschalten,
bevor sie zu dem kamen,
was ihnen aufgetragen war?
Ganze Wochen, aufs ganze gesehen,
bringen wir damit zu,
unsere Hemden auf- und zuzuknöpfen,
unsere Brillen zu suchen
oder das, was wir zu uns nahmen,
wieder auszuscheiden.
Wie flüchtig sind unsere Meinungen
und unsere Werke, verglichen mit dem,
was wir miteinander teilen:
Kochen, Waschen, Treppensteigen –
unscheinbare Wiederholungen,
die friedlich sind, gewöhnlich
und unentbehrlicher als jedes chef d’oeuvre.
De: ENZENSBERGER, Hans Magnus. Rebus. Frankfurt: Suhrkamp, 2009.
Hábitos
Quantas vezes Platão assoou o nariz,
e São Tomás de Aquino
tirou os sapatos,
quantas vezes Einstein escovou os dentes,
e Kafka ligou e desligou a luz,
antes de enfim chegarem
ao que lhes cabia fazer?
Semanas sem fim, feitas as contas,
levamos
abotoar e desabotoar camisas,
procurar os óculos
ou, tomada a decisão,
novamente descartá-la.
Como são efêmeras as nossas opiniões
e as nossas obras, em comparação
com aquilo que nos é comum:
cozinhar, lavar a roupa, subir escadas –
repetições de pouco relevo,
pacíficas, corriqueiras
e mais indispensáveis que qualquer chef d'oeuvre.
Angewohnheiten
Wie oft mußte Plato sich schneuzen,
der heilige Thomas von Aquin
seine Schuhe ausziehen,
Einstein sich die Zähne putzen,
Kafka das Licht ein- und ausschalten,
bevor sie zu dem kamen,
was ihnen aufgetragen war?
Ganze Wochen, aufs ganze gesehen,
bringen wir damit zu,
unsere Hemden auf- und zuzuknöpfen,
unsere Brillen zu suchen
oder das, was wir zu uns nahmen,
wieder auszuscheiden.
Wie flüchtig sind unsere Meinungen
und unsere Werke, verglichen mit dem,
was wir miteinander teilen:
Kochen, Waschen, Treppensteigen –
unscheinbare Wiederholungen,
die friedlich sind, gewöhnlich
und unentbehrlicher als jedes chef d’oeuvre.
De: ENZENSBERGER, Hans Magnus. Rebus. Frankfurt: Suhrkamp, 2009.
14.6.09
O clássico e o contemporâneo
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada" da Folha de São Paulo, sábado, 13 de junho:
O clássico e o contemporâneo
ATRAVÉS DE e-mails e comentários no meu blog, alguns leitores atacaram aquilo que consideraram ser o conservadorismo do artigo "O desejo do contemporâneo", publicado aqui, em 28 de maio.
Em primeiro lugar, há os que supõem conservadora a minha crítica à obsessão de grande parte dos intelectuais brasileiros pelo "dernier cri" europeu ou americano. "Mal se conhece o "dernier cri'", eu dizia, "e ele já deixou de o ser, de modo que, correndo-se atrás do próximo, deixa-se para pensar por conta própria mais tarde". Observei, ademais, que "quem só deseja estar "up to date" acaba por jamais ler os clássicos". Também essa implícita defesa da leitura dos clássicos foi tida por conservadora.
Ora, "um clássico é um clássico", como afirma o poeta Ezra Pound, "não porque se conforme a certas regras estruturais ou se enquadre em certas definições (das quais o seu autor provavelmente nunca ouviu falar), mas porque possui certo eterno e irreprimível frescor". É clássica a obra que permanece sempre nova.
No caso da filosofia, isso ocorre quando, independentemente de concordarmos ou não com as teses defendidas por uma obra, ela nos solicita a questionar e a pensar de modo mais claro e mais profundo aquilo que realmente pensamos. É assim que podemos, à primeira vista, não concordar em nada com "A República", de Platão, ou com "Ser e Tempo", de Heidegger, por exemplo; entretanto, a leitura de tais livros enriquece o nosso modo de pensar. Nenhuma paráfrase, explicação ou interpretação de tais obras jamais seria capaz de substituir a leitura delas. Além disso, é a partir de semelhantes leituras que sabemos o que é ou o que deve ser a filosofia.
É claro que, quando consideramos determinado problema filosófico hoje, devemos conhecer o "status quaestionis", isto é, o estado em que se encontra a discussão sobre esse problema, e isso significa que é preciso saber o que pensam sobre ele também os nossos contemporâneos. Estes, ademais, exatamente por serem nossos contemporâneos, são capazes de levar em conta certas preocupações que só se tenham manifestado ou tornado prementes exatamente na nossa época. Por isso, no meu artigo anterior não critiquei o interesse, mas a obsessão que os brasileiros demonstram ter pelos contemporâneos. E o fiz porque observo que ela chega ao ponto de ter como contrapartida o desprezo pelos clássicos.
Essa obsessão pelos contemporâneos corresponde, é claro, ao desejo de superação do provincianismo. Sentido-se "atrasados", os brasileiros se esforçam por se livrar do passado, de modo a alcançar o tempo presente, que imaginam pertencer aos outros. Em tal esforço, dado que a tradição filosófica lhes parece pertencer ao passado, os brasileiros a alienam. É assim que perdem a posse direta dos clássicos que, por direito, é tanto deles quanto de qualquer outro povo contemporâneo. Fugindo do provincianismo espacial, caem no provincianismo temporal.
Mas meu artigo foi considerado conservador também por outra razão. É que a referência que nele fiz às "bobagens ou trivialidades que são cotidianamente escritas sobre Nietzsche por alguns dos seus fãs" foi tida como um ataque a Nietzsche. Associando esse pretenso ataque ao autor de "Genealogia da Moral" com a crítica que eu havia feito, no artigo anterior, a certas teses de Foucault, houve quem pensasse detectar uma mudança para o conservadorismo na minha orientação filosófica, sintetizada do seguinte modo: "Antes Nietzsche e Foucault; agora Hegel e Aristóteles".
Na verdade, nem antes fui discípulo dos primeiros nem sou agora dos segundos; além do que há dúvidas sobre se os segundos são mais conservadores do que os primeiros. Em Foucault, critiquei sua defesa incondicional do regime reacionário instaurado pelo aiatolá Khomeini, bem como o relativismo cultural com o qual racionalizou essa defesa.
Quanto a Nietzsche, longe de atacá-lo, cheguei a emulá-lo. No ensaio "Sobre o Uso e o Abuso da História para a Vida", ele mesmo acusa os seus contemporâneos de "adaptarem o passado às trivialidades contemporâneas". É o que penso que alguns dos meus contemporâneos fazem com o próprio Nietzsche. Este, aliás, não tinha admiração nenhuma pelos seus contemporâneos, de modo que se considerava, sobretudo, extemporâneo. "Ao procurar biografias", aconselhava ele, "não queiram as que tragam o refrão "Fulano de Tal e o seu tempo", mas as que na página de título tenham que dizer "Um lutador contra o seu tempo'".
O clássico e o contemporâneo
ATRAVÉS DE e-mails e comentários no meu blog, alguns leitores atacaram aquilo que consideraram ser o conservadorismo do artigo "O desejo do contemporâneo", publicado aqui, em 28 de maio.
Em primeiro lugar, há os que supõem conservadora a minha crítica à obsessão de grande parte dos intelectuais brasileiros pelo "dernier cri" europeu ou americano. "Mal se conhece o "dernier cri'", eu dizia, "e ele já deixou de o ser, de modo que, correndo-se atrás do próximo, deixa-se para pensar por conta própria mais tarde". Observei, ademais, que "quem só deseja estar "up to date" acaba por jamais ler os clássicos". Também essa implícita defesa da leitura dos clássicos foi tida por conservadora.
Ora, "um clássico é um clássico", como afirma o poeta Ezra Pound, "não porque se conforme a certas regras estruturais ou se enquadre em certas definições (das quais o seu autor provavelmente nunca ouviu falar), mas porque possui certo eterno e irreprimível frescor". É clássica a obra que permanece sempre nova.
No caso da filosofia, isso ocorre quando, independentemente de concordarmos ou não com as teses defendidas por uma obra, ela nos solicita a questionar e a pensar de modo mais claro e mais profundo aquilo que realmente pensamos. É assim que podemos, à primeira vista, não concordar em nada com "A República", de Platão, ou com "Ser e Tempo", de Heidegger, por exemplo; entretanto, a leitura de tais livros enriquece o nosso modo de pensar. Nenhuma paráfrase, explicação ou interpretação de tais obras jamais seria capaz de substituir a leitura delas. Além disso, é a partir de semelhantes leituras que sabemos o que é ou o que deve ser a filosofia.
É claro que, quando consideramos determinado problema filosófico hoje, devemos conhecer o "status quaestionis", isto é, o estado em que se encontra a discussão sobre esse problema, e isso significa que é preciso saber o que pensam sobre ele também os nossos contemporâneos. Estes, ademais, exatamente por serem nossos contemporâneos, são capazes de levar em conta certas preocupações que só se tenham manifestado ou tornado prementes exatamente na nossa época. Por isso, no meu artigo anterior não critiquei o interesse, mas a obsessão que os brasileiros demonstram ter pelos contemporâneos. E o fiz porque observo que ela chega ao ponto de ter como contrapartida o desprezo pelos clássicos.
Essa obsessão pelos contemporâneos corresponde, é claro, ao desejo de superação do provincianismo. Sentido-se "atrasados", os brasileiros se esforçam por se livrar do passado, de modo a alcançar o tempo presente, que imaginam pertencer aos outros. Em tal esforço, dado que a tradição filosófica lhes parece pertencer ao passado, os brasileiros a alienam. É assim que perdem a posse direta dos clássicos que, por direito, é tanto deles quanto de qualquer outro povo contemporâneo. Fugindo do provincianismo espacial, caem no provincianismo temporal.
Mas meu artigo foi considerado conservador também por outra razão. É que a referência que nele fiz às "bobagens ou trivialidades que são cotidianamente escritas sobre Nietzsche por alguns dos seus fãs" foi tida como um ataque a Nietzsche. Associando esse pretenso ataque ao autor de "Genealogia da Moral" com a crítica que eu havia feito, no artigo anterior, a certas teses de Foucault, houve quem pensasse detectar uma mudança para o conservadorismo na minha orientação filosófica, sintetizada do seguinte modo: "Antes Nietzsche e Foucault; agora Hegel e Aristóteles".
Na verdade, nem antes fui discípulo dos primeiros nem sou agora dos segundos; além do que há dúvidas sobre se os segundos são mais conservadores do que os primeiros. Em Foucault, critiquei sua defesa incondicional do regime reacionário instaurado pelo aiatolá Khomeini, bem como o relativismo cultural com o qual racionalizou essa defesa.
Quanto a Nietzsche, longe de atacá-lo, cheguei a emulá-lo. No ensaio "Sobre o Uso e o Abuso da História para a Vida", ele mesmo acusa os seus contemporâneos de "adaptarem o passado às trivialidades contemporâneas". É o que penso que alguns dos meus contemporâneos fazem com o próprio Nietzsche. Este, aliás, não tinha admiração nenhuma pelos seus contemporâneos, de modo que se considerava, sobretudo, extemporâneo. "Ao procurar biografias", aconselhava ele, "não queiram as que tragam o refrão "Fulano de Tal e o seu tempo", mas as que na página de título tenham que dizer "Um lutador contra o seu tempo'".
12.6.09
Constatinos Cavafis: "Οταν διεγείρονται" / "Quando despertam": tradução de Ísis Borges da Fonseca
.
Quando despertam
Esforça-te em guardá-las, poeta,
por menos numerosas que sejam as que se detêm.
As visões de teu erotismo.
Põe-nas, meio ocultas, em tuas frases.
Esforça-te em guardá-las, poeta,
quando despertam em teu cérebro,
na noite ou no fulgor do meio-dia.
Οταν διεγείρονται
Προσπάθησε να τα φυλάξεις, ποιητή,
όσο κι αν είναι λίγα αυτά που σταματιούνται.
Του ερωτισμού σου τα οράματα.
Βαλ'τα, μισοκρυμένα, μες τες φράσεις σου.
Προσπάθησε να τα κρατήσεις, ποιητή,
όταν διεγείρονται μες το μυαλό σου
την νύχτα ή μες την λάμψι του μεσημεριού.
DE: KAVÁFIS, K. Poemas de K. Kaváfis. Tradução de Ísis Borges da Fonseca. São Paulo: Odysseus, 2006.
Quando despertam
Esforça-te em guardá-las, poeta,
por menos numerosas que sejam as que se detêm.
As visões de teu erotismo.
Põe-nas, meio ocultas, em tuas frases.
Esforça-te em guardá-las, poeta,
quando despertam em teu cérebro,
na noite ou no fulgor do meio-dia.
Οταν διεγείρονται
Προσπάθησε να τα φυλάξεις, ποιητή,
όσο κι αν είναι λίγα αυτά που σταματιούνται.
Του ερωτισμού σου τα οράματα.
Βαλ'τα, μισοκρυμένα, μες τες φράσεις σου.
Προσπάθησε να τα κρατήσεις, ποιητή,
όταν διεγείρονται μες το μυαλό σου
την νύχτα ή μες την λάμψι του μεσημεριού.
DE: KAVÁFIS, K. Poemas de K. Kaváfis. Tradução de Ísis Borges da Fonseca. São Paulo: Odysseus, 2006.
9.6.09
Rafael Alberti: "Pregón submarino" / "Pregão submarino"
.
Pregão submarino
Como eu estaria bem
nalguma horta do mar,
com você, hortelã minha!
Em um carrinho puxado
por um salmão, que alegria
vender sob o mar salgado,
amor, a mercadoria!
- Algas fresquinhas do mar
algas, algas!
Pregón submarino
¡Tan bien como yo estaría
en una huerta del mar,
contigo, hortelana mía!
En un carrito, tirado
por un salmón. ¡Qué alegría
vender bajo el mar salado,
amor, tu mercadería!
–¡Algas frescas de la mar,
algas, algas!
ALBERTI, Rafael. Marinero en tierra. La amante. El alba del Alheli. Madrid: Castalia, 1972.
Pregão submarino
Como eu estaria bem
nalguma horta do mar,
com você, hortelã minha!
Em um carrinho puxado
por um salmão, que alegria
vender sob o mar salgado,
amor, a mercadoria!
- Algas fresquinhas do mar
algas, algas!
Pregón submarino
¡Tan bien como yo estaría
en una huerta del mar,
contigo, hortelana mía!
En un carrito, tirado
por un salmón. ¡Qué alegría
vender bajo el mar salado,
amor, tu mercadería!
–¡Algas frescas de la mar,
algas, algas!
ALBERTI, Rafael. Marinero en tierra. La amante. El alba del Alheli. Madrid: Castalia, 1972.
7.6.09
5.6.09
Cecília Meireles: "Desejo de regresso"
.
Desejo de regresso
Deixai-me nascer de novo,
nunca mais em terra estranha,
mas no meio do meu povo,
com meu céu, minha montanha,
meu mar e minha família.
E que na minha memória
fique esta vida bem viva,
para contar minha história
de mendiga e de cativa
e meus suspiros de exílio.
Porque há doçura e beleza
na amargura atravessada,
e eu quero memória acesa
depois da angústia apagada.
Com que afeição me remiro!
Marinheiro de regresso
com seu barco posto a fundo,
ás vezes quase me esqueço
que foi verdade este mundo.
(Ou talvez fosse mentira...)
MEIRELES, Cecília. "Mar absoluto". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.
Desejo de regresso
Deixai-me nascer de novo,
nunca mais em terra estranha,
mas no meio do meu povo,
com meu céu, minha montanha,
meu mar e minha família.
E que na minha memória
fique esta vida bem viva,
para contar minha história
de mendiga e de cativa
e meus suspiros de exílio.
Porque há doçura e beleza
na amargura atravessada,
e eu quero memória acesa
depois da angústia apagada.
Com que afeição me remiro!
Marinheiro de regresso
com seu barco posto a fundo,
ás vezes quase me esqueço
que foi verdade este mundo.
(Ou talvez fosse mentira...)
MEIRELES, Cecília. "Mar absoluto". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.
2.6.09
Goethe: das "Conversações"
.
Não há nada insignificante no mundo. Tudo depende da maneira de olhar as coisas.
Es gibt nichts Unbedeutendes in der Welt. Es kommt nur auf die Anschauungsweise an.
De: Goethes Gespräche. Herausgegeben von Woldemar Freiherr von Biedermann, Band 1-10. Leipzig 1889-1896.
Não há nada insignificante no mundo. Tudo depende da maneira de olhar as coisas.
Es gibt nichts Unbedeutendes in der Welt. Es kommt nur auf die Anschauungsweise an.
De: Goethes Gespräche. Herausgegeben von Woldemar Freiherr von Biedermann, Band 1-10. Leipzig 1889-1896.