30.9.09
William Carlos Williams: "This is just to say" / "Isto é só para dizer"
Isto é só para dizer
Eu comi
as ameixas
que estavam
na geladeira
as quais
você decerto
guardara
para o desjejum
Desculpe-me
estavam deliciosas
tão doces
e tão frias
This is just to say
I have eaten
the plums
that were in
the icebox
and which
you were probably
saving
for breakfast
Forgive me
they were delicious
so sweet
and so cold
WILLIAMS, William Carlos. The collected poems of, v.1. New York: A New Directions Book, 1986.
29.9.09
Gastão Cruz: "A moeda do tempo"
A moeda do tempo
Distraí-me e já tu ali não estavas
vendeste ao tempo a glória do início
e na mão recebeste a moeda fria
com que o tempo pagou a tua entrada.
CRUZ, Gastão. A moeda do tempo. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.
26.9.09
e.e.cummings: "my sweet old etcetera" / "minha boa e velha coisa e tal": trad. de Nelson Ascher
my sweet old etcetera
my sweet old etcetera
aunt lucy during the recent
war could and what
is more did tell you just
what everybody was fighting
for,
my sister
Isabel created hundreds
(and
hundreds)of socks not to
mention shirts fleaproof earwarmers
etcetera wristers etcetera, my
mother hoped that
i would die etcetera
bravely of course my father used
to become hoarse talking about how it was
a privilege and if only he
could meanwhile my
self etcetera lay quietly
in the deep mud et
cetera
(dreaming,
et
        cetera, of
Your smile
eyes knees and of your Etcetera)
minha boa e velha coisa e tal
minha boa e velha coisa e tal
tia lúcia durante a última guerra
era capaz de dizer e dizia
aliás na cara exatamente
o quê se combatia e por
quê,
minha irmã
isabel produziu centenas
(mais
centenas) de meias sem falar de
camisas de tapa-ouvidos à prova de pulgas
coisa punhos e tal, minha
mãe torcia para que
eu morresse corajosa coisa
e talmente é claro meu pai ficava
rouco de tanto repetir que honra que
era e que se ele próprio ainda
pudesse entrementes eu
coisa e tal mesmo jazia calado
bem no fundo da coisa e
tal lama
(sonhando,
coisa
          e tal, com
Teu sorriso
olhos joelhos e com tua Coisa e tal)
Tradução de Nelson Ascher
cummmings, e.e. Complete poems. New York: HBJ, 1979.
22.9.09
Lançamento de "A moeda do tempo", de Gastão Cruz
O belíssimo livro A moeda do tempo, do poeta Gastão Cruz, será lançado no dia 25, sexta-feira, às 18 horas, na Fundação Casa de Rui Barbosa. Eis o convite:
Juan Ramón Jiménez: "Poesia"
Poesia
Veio, primeiro, pura,
vestida de inocência.
E a amei como um menino.
Logo se foi vestindo
de não sei que roupagens.
E a fui odiando sem o saber.
Chegou a ser uma rainha,
fastuosa de tesouros...
Que iracúndia de fel e sem sentido!
...Mas se foi desnudando.
E eu lhe sorria.
Ficou com a túnica
de sua inocência antiga.
Acreditei de novo nela.
E tirou a túnica
e apareceu toda nua...
Oh paixão de minha vida, poesia
nua, minha para sempre!
Poesía
Vino, primero, pura,
vestida de inocencia.
Y la amé como un niño.
Luego se fue vistiendo
de no sé qué ropajes.
Y la fui odiando sin saberlo.
Llegó a ser una reina,
fastuosa de tesoros...
¡Qué iracundia de yel y sin sentido!
...Mas se fue desnudando.
Y yo le sonreía.
Se quedó con la túnica
de su inocencia antigua.
Creí de nuevo en ella.
Y se quitó la túnica
y apareció desnuda toda...
¡Oh pasión de mi vida, poesía
desnuda, mía para siempre!
JIMÉNEZ, Juan Ramón. Eternidades. Buenso Aires: Losada, 1957.
21.9.09
Pensar o mundo
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 19 de setembro:
Pensar o mundo
ANOS ATRÁS , um dos admiráveis ciclos de conferências concebidos e organizados por Adauto Novaes intitulava-se "Poetas que Pensaram o Mundo". Sempre gostei desse título.
A sintaxe presente na expressão "pensar o mundo" não é corriqueira ou normal. Normalmente diríamos "pensar SOBRE o mundo". Não é que seja gramaticalmente incorreto dizer "pensar o mundo"; apenas, não se trata de uma construção comum. O verbo "pensar" pode ser intransitivo, transitivo direto ou transitivo indireto. Como transitivo direto, porém, seu objeto é normalmente (1) uma oração substantivada (por exemplo, "eles pensam que a terra é plana"), (2) um verbo ("penso sonhar"), ou (3) um nome ou um pronome com função adverbial ("penso isso" por "penso assim"; "penso o contrário" por "penso de modo contrário").
Em geral, é somente como transitivo indireto que o objeto do verbo "pensar" pode ser um nome, de modo que se diz "penso numa (ou sobre) uma rosa" ou "penso em (ou sobre) Marcelo", mas raramente, exceto em poesia, dir-se-ia "penso uma rosa" ou "penso Marcelo".
Em francês, tais construções são mais comuns do que em português, de modo que não é raro encontrarem-se títulos de livros ou artigos contendo o sintagma "penser l'être" (pensar o ser) ou "penser l'homme" (pensar o homem). Mesmo em francês, porém, essa expressão é, segundo o monumental "Trésor de la Langue Française", que cita, a propósito, textos de Sartre, de Merleau-Ponty e de Alain, usada "sobretudo no domínio da reflexão, do conhecimento científico e filosófico".
Ora, não creio que a construção tradicional, em que o verbo "pensar", ao ter por objeto um nome, é transitivo indireto, construção que também se encontra nas demais línguas indoeuropeias que conheço, seja arbitrária. Parece-me que lhe subjaz uma concepção do pensamento como um ato dotado da estrutura de uma proposição, de uma sentença, de um juízo. Nesse sentido, pensar numa coisa ou sobre uma coisa é fazer para si mesmo um juízo a respeito dela: de que ela existe e/ou de que tem tais ou quais propriedades e/ou de que tem tais ou quais relações com tais ou quais coisas. Normalmente concebemos o pensamento, portanto, como primariamente discursivo ou dianoético, como dizia Aristóteles, e não como intuitivo ou noético. A preposição "em" ou "sobre", quando digo "penso numa rosa" ou "penso sobre uma rosa" funciona como uma marca verbal do caráter mediado da relação do meu pensamento com a rosa. Interpondo-se entre o pensamento e a rosa, ela, por um lado, os separa e, por outro, os reúne. É desse modo que funciona o pensamento filosófico.
Pode-se dizer que, quando a palavra "mundo" significa a totalidade do pensável tomada como uma totalidade, então "pensar sobre o mundo" é filosofar. Mas, e "pensar o mundo"? Nesse caso, a abolição da preposição sugere a abolição da separação e da mediação entre o pensamento e a coisa pensada. É como se o pensamento não pretendesse ficar SOBRE, isto é, acima ou, de algum modo, "fora" do mundo, para pensá-lo. É como se ele ou bem se situasse no mundo pensado, ou bem como se apreendesse o mundo enquanto pensamento. Tal seria um pensamento intuitivo e noético, isto é, uma intuição intelectual. Nesse sentido, pensar o mundo afigura-se inteiramente diferente de pensar sobre o mundo e, portanto, de filosofar.
Entretanto, se, como foi dito há pouco, a construção em que o objeto direto do verbo "pensar" é um nome, como em "pensar o mundo", parece ser de origem filosófica, pode-se questionar se não será ilusória a distinção que acabo de desenhar. Parece-me que não. Dos três pensadores citados pelo "Trésor", dois, Sartre e Merleau-Ponty, são fenomenólogos. Ora, a fenomenologia criticava exatamente a relação excessivamente mediada estabelecida pela filosofia tradicional entre o pensamento e seu objeto intencional. Ela pretendia, portanto, voltar a uma intuição direta e pura dos objetos. Pois é precisamente essa relação intuitiva do pensamento com seu objeto intencional que os filósofos citados pretendem exprimir ao tornar direta a transitividade normalmente indireta do verbo "pensar". Portanto, ainda que originada no discurso filosófico, essa sintaxe foi concebida para exprimir ambição cognitiva oposta à da filosofia tradicional.
De qualquer maneira, trata-se de uma construção admiravelmente apta a exprimir a ambição poética do pensar intuitivo. Melhor dizendo: ela poeticamente revela a diferença específica do pensamento poético.
Pensar o mundo
ANOS ATRÁS , um dos admiráveis ciclos de conferências concebidos e organizados por Adauto Novaes intitulava-se "Poetas que Pensaram o Mundo". Sempre gostei desse título.
A sintaxe presente na expressão "pensar o mundo" não é corriqueira ou normal. Normalmente diríamos "pensar SOBRE o mundo". Não é que seja gramaticalmente incorreto dizer "pensar o mundo"; apenas, não se trata de uma construção comum. O verbo "pensar" pode ser intransitivo, transitivo direto ou transitivo indireto. Como transitivo direto, porém, seu objeto é normalmente (1) uma oração substantivada (por exemplo, "eles pensam que a terra é plana"), (2) um verbo ("penso sonhar"), ou (3) um nome ou um pronome com função adverbial ("penso isso" por "penso assim"; "penso o contrário" por "penso de modo contrário").
Em geral, é somente como transitivo indireto que o objeto do verbo "pensar" pode ser um nome, de modo que se diz "penso numa (ou sobre) uma rosa" ou "penso em (ou sobre) Marcelo", mas raramente, exceto em poesia, dir-se-ia "penso uma rosa" ou "penso Marcelo".
Em francês, tais construções são mais comuns do que em português, de modo que não é raro encontrarem-se títulos de livros ou artigos contendo o sintagma "penser l'être" (pensar o ser) ou "penser l'homme" (pensar o homem). Mesmo em francês, porém, essa expressão é, segundo o monumental "Trésor de la Langue Française", que cita, a propósito, textos de Sartre, de Merleau-Ponty e de Alain, usada "sobretudo no domínio da reflexão, do conhecimento científico e filosófico".
Ora, não creio que a construção tradicional, em que o verbo "pensar", ao ter por objeto um nome, é transitivo indireto, construção que também se encontra nas demais línguas indoeuropeias que conheço, seja arbitrária. Parece-me que lhe subjaz uma concepção do pensamento como um ato dotado da estrutura de uma proposição, de uma sentença, de um juízo. Nesse sentido, pensar numa coisa ou sobre uma coisa é fazer para si mesmo um juízo a respeito dela: de que ela existe e/ou de que tem tais ou quais propriedades e/ou de que tem tais ou quais relações com tais ou quais coisas. Normalmente concebemos o pensamento, portanto, como primariamente discursivo ou dianoético, como dizia Aristóteles, e não como intuitivo ou noético. A preposição "em" ou "sobre", quando digo "penso numa rosa" ou "penso sobre uma rosa" funciona como uma marca verbal do caráter mediado da relação do meu pensamento com a rosa. Interpondo-se entre o pensamento e a rosa, ela, por um lado, os separa e, por outro, os reúne. É desse modo que funciona o pensamento filosófico.
Pode-se dizer que, quando a palavra "mundo" significa a totalidade do pensável tomada como uma totalidade, então "pensar sobre o mundo" é filosofar. Mas, e "pensar o mundo"? Nesse caso, a abolição da preposição sugere a abolição da separação e da mediação entre o pensamento e a coisa pensada. É como se o pensamento não pretendesse ficar SOBRE, isto é, acima ou, de algum modo, "fora" do mundo, para pensá-lo. É como se ele ou bem se situasse no mundo pensado, ou bem como se apreendesse o mundo enquanto pensamento. Tal seria um pensamento intuitivo e noético, isto é, uma intuição intelectual. Nesse sentido, pensar o mundo afigura-se inteiramente diferente de pensar sobre o mundo e, portanto, de filosofar.
Entretanto, se, como foi dito há pouco, a construção em que o objeto direto do verbo "pensar" é um nome, como em "pensar o mundo", parece ser de origem filosófica, pode-se questionar se não será ilusória a distinção que acabo de desenhar. Parece-me que não. Dos três pensadores citados pelo "Trésor", dois, Sartre e Merleau-Ponty, são fenomenólogos. Ora, a fenomenologia criticava exatamente a relação excessivamente mediada estabelecida pela filosofia tradicional entre o pensamento e seu objeto intencional. Ela pretendia, portanto, voltar a uma intuição direta e pura dos objetos. Pois é precisamente essa relação intuitiva do pensamento com seu objeto intencional que os filósofos citados pretendem exprimir ao tornar direta a transitividade normalmente indireta do verbo "pensar". Portanto, ainda que originada no discurso filosófico, essa sintaxe foi concebida para exprimir ambição cognitiva oposta à da filosofia tradicional.
De qualquer maneira, trata-se de uma construção admiravelmente apta a exprimir a ambição poética do pensar intuitivo. Melhor dizendo: ela poeticamente revela a diferença específica do pensamento poético.
19.9.09
Rainer Maria Rilke: "Pont du Carrousel"
Pont du Carrousel
O homem cego parado na ponte,
marco cinza de anônimo país,
talvez seja o que é sempre igual a si,
o eixo que ao horóscopo se absconde,
centro fixo do céu que em torno gira.
Pois tudo em volta erra e corre e brilha.
Ele é o inamovível integral
postado entre os caminhos mais erráticos;
sombria entrada a um mundo subterrâneo
em meio a um povo superficial.
Pont du Carrousel
Der blinde Mann, der auf der Brücke steht,
grau wie ein Markstein namenloser Reiche,
er ist vielleicht das Ding, das immer gleiche,
um das von fern die Sternenstunde geht,
und der Gestirne stiller Mittelpunkt.
Denn alles um ihn irrt und rinnt und prunkt.
Er ist der unbewegliche Gerechte,
in viele wirre Wege hingestellt;
der dunkle Eingang in die Unterwelt
bei einem oberflächlichen Geschlechte.
RILKE, Rainer Maria. "Das Buch der Bilder II". Sämtliche Werke. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 1955.
16.9.09
Museu de Arte Contemporânea
MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA
Fica em Boa Viagem. Disco voador
ele não é, pois não pousou na pedra
mas se ergue sobre ela; nem alça vôo:
à orla de cidades e florestas
suspende-se no ar feito pergunta
e o que tem dentro mergulha e se banha
no mundo em volta e o mundo em volta o inunda:
é o museu fora de si, de atalaia
à curva do abismo, à altura das musas,
sobre o mar, sobre a pedra sobre o mar,
e sobre o espelho d'água em que se apura
sobre essa pedra um mar a flutuar,
um céu na terra, quase nada, um aire,
a flor de concreto do Niemeyer.
CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002;
Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006.
13.9.09
Jorge Luis Borges: "Nubes I"
Nubes I
No habrá una sola cosa que no sea
una nube. Lo son las catedrales
de vasta piedra y bíblicos cristales
que el tiempo allanará. Lo es la Odisea,
que cambia como el mar. Algo hay distinto
cada vez que la abrimos. El reflejo
de tu cara ya es otro en el espejo
y en el día es un dudoso laberinto.
Somos los que se van. La numerosa
nube que se deshace en el poniente
es nuestra imagen. Incesantemente
la rosa se convierte en otra rosa.
Eres nube, eres mar, eres olvido.
Eres también aquellos que has perdido.
Nuvens
Nuvens I
Não haverá uma só coisa que não seja
uma nuvem. São nuvens as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo aplanará. São nuvens a Odisséia
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de tua cara já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte noutra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também o que já está perdido.
BORGES, Jorge Luis. "Los conjurados". Obras completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1989.
No habrá una sola cosa que no sea
una nube. Lo son las catedrales
de vasta piedra y bíblicos cristales
que el tiempo allanará. Lo es la Odisea,
que cambia como el mar. Algo hay distinto
cada vez que la abrimos. El reflejo
de tu cara ya es otro en el espejo
y en el día es un dudoso laberinto.
Somos los que se van. La numerosa
nube que se deshace en el poniente
es nuestra imagen. Incesantemente
la rosa se convierte en otra rosa.
Eres nube, eres mar, eres olvido.
Eres también aquellos que has perdido.
Nuvens
Nuvens I
Não haverá uma só coisa que não seja
uma nuvem. São nuvens as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo aplanará. São nuvens a Odisséia
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de tua cara já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte noutra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também o que já está perdido.
BORGES, Jorge Luis. "Los conjurados". Obras completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1989.
11.9.09
Helder Macedo: "Não é bastante"
Não é bastante
que eu reconheça a minha solidão
e a queira como início dum caminho.
Não é bastante
ser livremente tudo quanto sei
e estar aberto a tudo o que serei.
Tudo o que fui e o que sou e o que serei
já são iguais
no tempo do meu todo ignorado.
Quero abrir o que as palavras não descrevem
para já não responder ao sim e ao não
do meu espelho conhecível.
Já não me basta apenas dar um nome
à morte que me cabe enquanto vivo
porque morrer é ter perdido a morte
para sempre
tornando sem sentido o sim e o não
com que me circundei e defini-me.
Conheço-me as fronteiras.
Quero o resto.
MACEDO, Helder. “Orfeu”. Viagem de inverno e outros poemas. Rio de Janeiro: Record, 2000.
9.9.09
Francisco de Sá de Miranda: Trova
Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.
Com dor, da gente fugia,
antes que esta assim crescesse:
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo
tamanho imigo de mim?
SÁ DE MIRANDA, Francisco de. "Trovas à maneira antiga". Obras completas. Lisboa: Sá da Costa, 1976.
7.9.09
Ivan Junqueira: "Vai tudo em mim"
Vai tudo em mim
Vai tudo em mim, enfim, se despedindo
neste pomar sem ramos ou maçãs,
sem sol, sem hera ou relva, sem manhãs
que me recordem o que foi e é findo.
Tudo se faz sombrio, e as sombras vãs
do que eu não fui agora vão cobrindo
os ermos epitáfios, indo e vindo
entre as hermas e as lápides mais chãs.
Tudo se esvai num remoinho infindo
de atávicas moléculas malsãs:
essas do avô, do pai e das irmãs
que o sangue foi à alma transmitindo.
Tudo o que eu fui em mim de mim fugindo
em meu encalço vem me perseguindo.
JUNQUEIRA, Ivan. O outro lado. Rio de Janeiro: Record, 2007.
6.9.09
Vladimir Jankélévitch: sobre o tempo
O tempo revela o charme das coisas sem charme. É por isso que o tempo é poeta. Só os
poetas e pintores são capazes de conhecer de imediato o charme do presente. [...] Utrillo [1883-1955] pintava um poste ou um muro num subúrbio sórdido... e isso fazia sonhar. O que os poetas e pintores sabem traduzir no presente, o tempo o traduz para nós que não somos nem pintores nem poetas. É o tempo que é poeta para nós".
JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Citado por: VIANNA, Hermano. "O mercado da desconfiança". Folha de São Paulo, caderno "Mais", São Paulo, 6 de setembro de 2009.
5.9.09
Noemi Jaffe: "Tem coisas que parecem"
Tem coisas que parecem ser mais de verdade
do que outras que parecem ser mais de mentira
Mas as coisas que parecem ser mais de verdade
na verdade só são verdade como parecer,
porque na verdade são de mentira.
Já as coisas que parecem ser mais de mentira,
na verdade são verdade sendo mentira,
como também são verdade como parecer.
Sendo assim as coisas que parecem ser mais de mentira
são mais de verdade
do que as coisas que parecem ser mais de verdade
JAFFE, Noemi. Todas as coisas pequenas. São Paulo: Hedra, 2005.
4.9.09
Alex Varella: "Alexandrias, o caminho do visível"
O poeta Alex Varella publicou no blog A cidade sou eu seu extraordinário livro "Alexandrias, o caminho do visível". Cada poema é esplendidamente recitado pelo próprio Alex. Trata-se de uma das mais belas publicações dos últimos tempos, em matéria de poesia.
3.9.09
Luís Miguel Nava: "Ao mínimo clarão"
Ao mínimo clarão
Talvez seja melhor não nos voltarmos
a ver, ao mínimo clarão
das mãos a pele se desavém com a memória.
As mãos são de qualquer corpo a coroa.
Das dele já nem sequer o itinerário
sei hoje muito bem, onde o horizonte
se desata o mar agora
regressa ao coração de que faz parte.
Ainda é o mar contudo o que se vê
florir onde ele chegar. chamando a esse
rapaz rebentação,
o céu rasga-se à volta dos seus ombros.
NAVA, Luís Miguel. "Como alguém disse". In: Poesia completa (1979-1994). Lisboa: Dom Quixote, 2002.