Pardais novos
Um dia o meu telefone, instalado à cabeceira de minha cama, retiniu violentamente, às sete da manhã. Estremunhado tomei do receptor e ouvi do outro lado uma voz que dizia:
Mestre, sou um pardal novo. Posso, ler-lhe uns versos par que o senhor me dê a sua opinião?
Ponderei com mau humor ao pardal que aquilo não eram horas para consultas de tal natureza, que ele me telefonasse mais tarde. O pardal não telefonou de novo: veio às nove e meia ao meu apartamento.
Mal o vi, percebi que não se tratava de pardal novo. Ele mesmo como que concordou que o não era, pois perguntando-lhe eu a idade, hesitou contrafeito para responder que tinha trinta e cinco anos. Ainda por cima era um pardal velho!
Desde esse dia passei a chamar de pardais novos os rapazes que me procuram para mostrar-me os seus primeiros ensaios de voo no céu da poesia. Dizem eles que desejam saber se têm realmente queda para o ofício, se vale a pena persistir, etc. Fico sempre embaraçado para dar qualquer conselho. A menos que se seja um Rimbaud ou, mais modestamente, um Castro Alves, que poesia se pode fazer antes dos vinte anos? Como Mallarmé afirmou certa vez que todo verso é um esforço para o estilo, acabo aconselhando ao pardal que vá fazendo os seus versinhos, sem se preocupar com a opinião de ninguém, inclusive a minha.
A semana passada recebi carta, não de um pardal, mas de uma pardoca. De urna pardoquinha. Com dezesseis anos, que beleza! Mandava-me versos não só em português, mas em francês também e inglês. Havia qualquer coisa naqueles balbucios. O francês estava bem erradinho, mas o inglês não, e até saiu bonitinho. Respondi-lhe assim:
Dos poemas que você me mandou o melhor está no próprio texto de sua carta e é isto:
Tenho dezesseis anos
Estou cursando o 1.° cientifico
E fico eufórica sempre que escrevo algo.
Se você se sente eufórica quando escreve alguma coisa, vá continuando a escrever, pelo só prazer de escrever, que já não é pouco.
Dezesseis anos! Que idade risonha e bela, não, leitores?
3/7/1955
De: BANDEIRA, Manuel. Poesia e prosa completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967, p.559.
29.5.08
27.5.08
25.5.08
23.5.08
António Ramos Rosa: "Onde os deuses se encontram"
ONDE OS DEUSES SE ENCONTRAM
Não busques não esperes
Como procurar a nudez do simples?
Os deuses encontram-se no refúgio aberto sombreado
O círculo dilata-se e dilata-nos
O lugar revela-se no esplendor da luz
O mar levanta as suas lâmpadas brancas
Diz de novo a fascinante simplicidade
Diz agora as minúcias
deslumbrantes
arcos na areia insectos frutos
Tanta luz tanta sombra iluminada!
Não busques não esperes
Como procurar a nudez do simples?
Os deuses encontram-se no refúgio aberto sombreado
O círculo dilata-se e dilata-nos
O lugar revela-se no esplendor da luz
O mar levanta as suas lâmpadas brancas
Diz de novo a fascinante simplicidade
Diz agora as minúcias
deslumbrantes
arcos na areia insectos frutos
Tanta luz tanta sombra iluminada!
22.5.08
Rilke: "Die Tod des Dichters" / "A morte do poeta" (traduzido por Augusto de Campos)
Rainer Maria Rilke: original alemão, seguido da tradução de Augusto de Campos
Der Tod des Dichters
Er lag. Sein aufgestelltes Antlitz war
bleich und verweigernd in den steilen Kissen,
seitdem die Welt und dieses von ihr Wissen,
von seinen Sinnen abgerissen,
zurückfiel an das teilnahmslose Jahr.
Die, so ihn leben sahen, wußten nicht,
wie sehr er eines war mit allem diesen,
denn Dieses: diese Tiefen, diese Wiesen
und diese Wasser waren sein Gesicht.
O sein Gesicht war diese ganze Weite,
die jezt noch zu ihm will und um ihn wirbt;
und seine Maske, die nun bang verstirbt,
ist zart und offen wie die Innenseite
von einer Frucht, die an des Luft verdirbt.
A Morte do Poeta
Jazia. A sua face, antes intensa,
pálida negação no leito frio,
desde que o mundo, e tudo o que é presença,
dos seus sentidos já vazio,
se recolheu à Era da Indiferença.
Ninguém jamais podia ter suposto
que ele e tudo estivessem conjugados
e que tudo, essas sombras, esses prados,
essa água mesma eram o seu rosto.
Sim, seu rosto era tudo o que quisesse
e que ainda agora o cerca e o procura;
a máscara da vida que perece
é mole e aberta como a carnadura
de um fruto que no ar, lento, apodrece.
De: CAMPOS, Augusto de. Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.44-45.
Der Tod des Dichters
Er lag. Sein aufgestelltes Antlitz war
bleich und verweigernd in den steilen Kissen,
seitdem die Welt und dieses von ihr Wissen,
von seinen Sinnen abgerissen,
zurückfiel an das teilnahmslose Jahr.
Die, so ihn leben sahen, wußten nicht,
wie sehr er eines war mit allem diesen,
denn Dieses: diese Tiefen, diese Wiesen
und diese Wasser waren sein Gesicht.
O sein Gesicht war diese ganze Weite,
die jezt noch zu ihm will und um ihn wirbt;
und seine Maske, die nun bang verstirbt,
ist zart und offen wie die Innenseite
von einer Frucht, die an des Luft verdirbt.
A Morte do Poeta
Jazia. A sua face, antes intensa,
pálida negação no leito frio,
desde que o mundo, e tudo o que é presença,
dos seus sentidos já vazio,
se recolheu à Era da Indiferença.
Ninguém jamais podia ter suposto
que ele e tudo estivessem conjugados
e que tudo, essas sombras, esses prados,
essa água mesma eram o seu rosto.
Sim, seu rosto era tudo o que quisesse
e que ainda agora o cerca e o procura;
a máscara da vida que perece
é mole e aberta como a carnadura
de um fruto que no ar, lento, apodrece.
De: CAMPOS, Augusto de. Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.44-45.
20.5.08
Nicolás Gómez Dávila: de "Sucesivos escólios a un texto implícito"
*
Comuinicación o expresión no son fines, sino meramente medios de la obra de arte.
*
La idea peligrosa no es la falsa, sino la parcialmente correcta.
*
No les demos a las opiniones estúpidas el placer de escandalizarnos.
De: GÓMEZ DÁVILA, Nicolás. Sucesivos escólios a un texto implícito. Barcelona: Áltera, 2002.
Comuinicación o expresión no son fines, sino meramente medios de la obra de arte.
*
La idea peligrosa no es la falsa, sino la parcialmente correcta.
*
No les demos a las opiniones estúpidas el placer de escandalizarnos.
De: GÓMEZ DÁVILA, Nicolás. Sucesivos escólios a un texto implícito. Barcelona: Áltera, 2002.
18.5.08
A questão da história
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna na Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 18 de maio de 2008:
A questão da história
Para o filósofo inglês John Gray, os “humanistas” (palavra pela qual denomina os homens que vêem o mundo com olhos seculares e não religiosos) “gostam de pensar que têm uma visão racional do mundo; mas a sua crença central no progresso é uma superstição, mais afastada da verdade acerca do animal humano do que qualquer das religiões do mundo”. Que exista progresso é, segundo ele, “o artigo de fé central das sociedades liberais”.
Com isso, ele repete uma velha pretensão do pensamento reacionário: a de que o iluminismo (palavra mais adequada, neste contexto, do que “humanismo”), no fundo, não se baseie na razão, mas na fé, de modo que não passe de uma nova religião, com a desvantagem de ser, no que diz respeito ao conhecimento da natureza humana, mais simploriamente otimista do que as religiões tradicionais.
Trata-se, é claro, de um engano. O iluminismo não surgiu da crença na bondade natural ou na infinita perfectibilidade do homem, nem depende de tais pressupostos. Ao contrário: ele se manifesta, já nos séculos 16 e 17, como o mais completo ceticismo, a dúvida mais cabal, a crítica mais impiedosa. Desde os seus primórdios, mesmo avant la lettre, o iluminismo destruiu todas as certezas da filosofia, da teologia, da ciência, da Igreja, da política.
A dúvida e a crítica, ou melhor, a razão, pôs tudo abaixo. Naturalmente, a crença que não resiste à crítica da razão merece cair. Mas a crença na própria razão não seria uma fé? Não: a razão questiona também a si mesma; justamente ao fazê-lo, entretanto, ela não pode deixar de se afirmar.
É em conseqüência da consciência da falibilidade de toda produção de conhecimento que a ciência moderna se constituiu como um processo, em princípio, aberto à crítica, público, capaz de contemplar todas as hipóteses, e sujeito à revisão ou à refutação.
E é pela mesma consciência da falibilidade do conhecimento humano – e não por uma ingênua crença na bondade inata dos homens – que, em última instância, a modernidade política chega a identificar o direito com a liberdade. Ao traduzir para a prática política a certeza de que qualquer crença particular é capaz de ser falsa, o homem moderno questiona a legitimidade de toda imposição ou lei que se baseie nesta ou naquela crença particular, quer de origem laica, quer religiosa. Com isso, ele não concorda em restringir sua liberdade senão à medida que isso seja necessário para compatibilizá-la com a liberdade do outro.
Vê-se assim que nem a “fé no progresso” nem qualquer outro artigo de fé pode ser tomado como central para a constituição das sociedades liberais ou abertas. Se as sociedades liberais ou abertas têm um pressuposto central, trata-se de algo racional e oposto à fé: trata-se, isto é, do falibilismo. Para ela, a tese do progresso é uma hipótese como outra qualquer: nem pode ser descartada nem afirmada a priori.
Entretanto, pode-se perguntar se uma sociedade crítica e moderna como a que acabo de descrever não se considera superior a uma sociedade pré-crítica e pré-moderna: e se nesse caso, ela não pressupõe que a passagem da sociedade pré-moderna para a sociedade moderna configure um progresso.
Aqui, é inevitável responder que sim. Contudo, observe-se que se trata de um progresso cognitivo; ora, o próprio John Gray admite que há progresso na ciência. Julgo, porém, que é necessário refletir melhor sobre o progresso que constitui a modernidade.
Imaginamos o progresso através da metáfora geométrica da construção de uma linha: na construção da linha A-Z, por exemplo, chega-se de A a Z através dos pontos B, C, D etc. Assim, para Marx e Engels, por exemplo, a história progride da comunidade primitiva até o comunismo através do escravagismo, do feudalismo e do capitalismo. Ora, não creio que a metáfora da linha seja adequada para pensar sobre a passagem da pré-modernidade à modernidade.
Parece-me que tal passagem seria mais apropriadamente imaginada através da metáfora astronômica que Kant usou para caracterizar a sua filosofia crítica. Trata-se, em suma, de algo como a revolução copernicana, através da qual a terra passou do centro para a periferia e o sol, da periferia para o centro do mundo.
Nada do que pode ser consistentemente submetido à dúvida, nada do que é contingente, nada do que é instável, oscilante ou precário pode ser o centro imóvel. Neste só se pode encontrar o que não é suscetível de ser consistentemente submetido à dúvida, o que é necessário, o que é fixo, firme e inconcusso. É assim que, através da revolução moderna, as crenças e os objetos das crenças, como, por exemplo, as divindades, passam do centro para a periferia, e a própria faculdade do conhecimento – tendo como núcleo a razão crítica – passa da periferia para o centro. É uma mudança de perspectiva.
A questão da história
Para o filósofo inglês John Gray, os “humanistas” (palavra pela qual denomina os homens que vêem o mundo com olhos seculares e não religiosos) “gostam de pensar que têm uma visão racional do mundo; mas a sua crença central no progresso é uma superstição, mais afastada da verdade acerca do animal humano do que qualquer das religiões do mundo”. Que exista progresso é, segundo ele, “o artigo de fé central das sociedades liberais”.
Com isso, ele repete uma velha pretensão do pensamento reacionário: a de que o iluminismo (palavra mais adequada, neste contexto, do que “humanismo”), no fundo, não se baseie na razão, mas na fé, de modo que não passe de uma nova religião, com a desvantagem de ser, no que diz respeito ao conhecimento da natureza humana, mais simploriamente otimista do que as religiões tradicionais.
Trata-se, é claro, de um engano. O iluminismo não surgiu da crença na bondade natural ou na infinita perfectibilidade do homem, nem depende de tais pressupostos. Ao contrário: ele se manifesta, já nos séculos 16 e 17, como o mais completo ceticismo, a dúvida mais cabal, a crítica mais impiedosa. Desde os seus primórdios, mesmo avant la lettre, o iluminismo destruiu todas as certezas da filosofia, da teologia, da ciência, da Igreja, da política.
A dúvida e a crítica, ou melhor, a razão, pôs tudo abaixo. Naturalmente, a crença que não resiste à crítica da razão merece cair. Mas a crença na própria razão não seria uma fé? Não: a razão questiona também a si mesma; justamente ao fazê-lo, entretanto, ela não pode deixar de se afirmar.
É em conseqüência da consciência da falibilidade de toda produção de conhecimento que a ciência moderna se constituiu como um processo, em princípio, aberto à crítica, público, capaz de contemplar todas as hipóteses, e sujeito à revisão ou à refutação.
E é pela mesma consciência da falibilidade do conhecimento humano – e não por uma ingênua crença na bondade inata dos homens – que, em última instância, a modernidade política chega a identificar o direito com a liberdade. Ao traduzir para a prática política a certeza de que qualquer crença particular é capaz de ser falsa, o homem moderno questiona a legitimidade de toda imposição ou lei que se baseie nesta ou naquela crença particular, quer de origem laica, quer religiosa. Com isso, ele não concorda em restringir sua liberdade senão à medida que isso seja necessário para compatibilizá-la com a liberdade do outro.
Vê-se assim que nem a “fé no progresso” nem qualquer outro artigo de fé pode ser tomado como central para a constituição das sociedades liberais ou abertas. Se as sociedades liberais ou abertas têm um pressuposto central, trata-se de algo racional e oposto à fé: trata-se, isto é, do falibilismo. Para ela, a tese do progresso é uma hipótese como outra qualquer: nem pode ser descartada nem afirmada a priori.
Entretanto, pode-se perguntar se uma sociedade crítica e moderna como a que acabo de descrever não se considera superior a uma sociedade pré-crítica e pré-moderna: e se nesse caso, ela não pressupõe que a passagem da sociedade pré-moderna para a sociedade moderna configure um progresso.
Aqui, é inevitável responder que sim. Contudo, observe-se que se trata de um progresso cognitivo; ora, o próprio John Gray admite que há progresso na ciência. Julgo, porém, que é necessário refletir melhor sobre o progresso que constitui a modernidade.
Imaginamos o progresso através da metáfora geométrica da construção de uma linha: na construção da linha A-Z, por exemplo, chega-se de A a Z através dos pontos B, C, D etc. Assim, para Marx e Engels, por exemplo, a história progride da comunidade primitiva até o comunismo através do escravagismo, do feudalismo e do capitalismo. Ora, não creio que a metáfora da linha seja adequada para pensar sobre a passagem da pré-modernidade à modernidade.
Parece-me que tal passagem seria mais apropriadamente imaginada através da metáfora astronômica que Kant usou para caracterizar a sua filosofia crítica. Trata-se, em suma, de algo como a revolução copernicana, através da qual a terra passou do centro para a periferia e o sol, da periferia para o centro do mundo.
Nada do que pode ser consistentemente submetido à dúvida, nada do que é contingente, nada do que é instável, oscilante ou precário pode ser o centro imóvel. Neste só se pode encontrar o que não é suscetível de ser consistentemente submetido à dúvida, o que é necessário, o que é fixo, firme e inconcusso. É assim que, através da revolução moderna, as crenças e os objetos das crenças, como, por exemplo, as divindades, passam do centro para a periferia, e a própria faculdade do conhecimento – tendo como núcleo a razão crítica – passa da periferia para o centro. É uma mudança de perspectiva.
15.5.08
Luís Miguel Nava
MANUEL
Fui ter com ele à Feira Popular, donde minutos
depois partimos para Sintra. Lembro-me
de o carro avançar à velocidade do meu sangue.
No Guincho, onde momentos antes
de o sol se pôr parámos, vi o mar
ganhar no espírito dele outra ondulação.
De nós, assim o soube, erguem paisagens
as viagens. Entre a pele e o coração alçam-se as pontes.
De: NAVA, Luís Miguel. "Onde à nudez". In: Poesia completa. Org. CRUZ, Gastão. Lisboa: Dom Quixote, 2002, p.62.
Fui ter com ele à Feira Popular, donde minutos
depois partimos para Sintra. Lembro-me
de o carro avançar à velocidade do meu sangue.
No Guincho, onde momentos antes
de o sol se pôr parámos, vi o mar
ganhar no espírito dele outra ondulação.
De nós, assim o soube, erguem paisagens
as viagens. Entre a pele e o coração alçam-se as pontes.
De: NAVA, Luís Miguel. "Onde à nudez". In: Poesia completa. Org. CRUZ, Gastão. Lisboa: Dom Quixote, 2002, p.62.
12.5.08
Salvatore Quasimodo: "La muraglia" / "A amurada": trad. de Geraldo Holanda Cavalcanti
Poema de Salvatore Quasimodo; tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti:
La muraglia
E già sulla muraglia dello stadio,
tra gli spacchi e i ciuffi d’erba pensile,
le lucertole guizzano fulminee;
e la rana ritorna nelle rogge,
canto fermo alle mie notti lontane
dei paesi. Tu ricordi questo luogo
dove la grande stella salutava
il nostro arrivo d’ombre. O cara, quanto
tempo è sceso con le foglie dei pioppi,
quanto sangue nei fiumi della terra.
A amurada
E já na amurada do estádio,
entre fendas e tufos de erva pênsil,
as lagartixas correm como raios;
e a rã retorna às águas dos canais,
canto-chão das minhas noites distantes
de aldeia. Tu recordas este sítio
onde Vênus saudava nosso encontro
de sombras. Ó querida, quanto tempo
com as folhas dos álamos se foi,
quanto sangue pelos rios da terra.
De: QUASIMODO, Salvatore. Poesias. Edição bilingüe. Seleção, tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.142-43.
La muraglia
E già sulla muraglia dello stadio,
tra gli spacchi e i ciuffi d’erba pensile,
le lucertole guizzano fulminee;
e la rana ritorna nelle rogge,
canto fermo alle mie notti lontane
dei paesi. Tu ricordi questo luogo
dove la grande stella salutava
il nostro arrivo d’ombre. O cara, quanto
tempo è sceso con le foglie dei pioppi,
quanto sangue nei fiumi della terra.
A amurada
E já na amurada do estádio,
entre fendas e tufos de erva pênsil,
as lagartixas correm como raios;
e a rã retorna às águas dos canais,
canto-chão das minhas noites distantes
de aldeia. Tu recordas este sítio
onde Vênus saudava nosso encontro
de sombras. Ó querida, quanto tempo
com as folhas dos álamos se foi,
quanto sangue pelos rios da terra.
De: QUASIMODO, Salvatore. Poesias. Edição bilingüe. Seleção, tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.142-43.
10.5.08
Carlos Drummond de Andrade: "Destruição"
Destruição
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.
Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.
Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.
E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente.
De: "Lição de Coisas". In: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p.475.
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.
Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.
Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.
E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente.
De: "Lição de Coisas". In: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p.475.
8.5.08
7.5.08
Entrevista a Daniela Name
Dada a discussão sobre o meu artigo "O sentido da vanguarda", resolvi postar a versão integral da entrevista que dei a Daniela Name e que foi publicada, com alguns cortes, em O Globo, em 24/07/2002:
Antonio Cicero mistura cidades e palavras num mundo a se descobrir
1- "A cidade e os livros" parece ser um livro que tem mais unidade, que é mais orgânico do que "Guardar" - e aí não vai nenhum juízo de valor dos poemas. Vc concorda com isso? Por quê?
Concordo. O que ocorre é que “Guardar” foi o meu primeiro livro de poesia. Cerca de 30% dos seus poemas eram novos; os outros haviam sido escritos em diferentes épocas de minha vida. O critério que usei para selecionar cada poema foi o sentimento de que ainda hoje poderia escrevê-lo e me orgulhar de assiná-lo. Entretanto, o fato é que só os 30% novos haviam sido feitos para integrar um livro. Já os poemas de “A cidade e os livros” foram feitos nos últimos quatro anos, e, com uma ou outra exceção, feitos para integrar esse livro.
2- Um dos aspectos mais interessantes do livro - e o Wisnik o destaca lindamente na orelha - é a fusão que você faz entre os mitos clássicos (Prometeu, Ícaro, Narciso) e a vida de todo dia, das ruas cariocas, da praia, das angústias presentes. Como fazer esta mistura? Como lidar com todo este patrimônio clássico, que é berço da nossa palavra, nosso teatro e nossa filosofia de um jeito que transmita frescor e uma certa autenticidade?
Para mim, a literatura clássica constitui grande parte das idéias e do vocabulário com os quais pensamos e imaginamos o mundo em que vivemos. Por direito, o mundo clássico pertence aos brasileiros, assim como nos pertence a língua portuguesa. Como diz Ezra Pound, “o que bem amas é tua herança verdadeira / o que bem amas não te será arrancado”. A grande poesia grega e latina está viva, mas está viva por tornar mais vital a minha própria vida (e a vida de todos aqueles que amam as línguas e a literatura clássicas), no século XXI.
3- O Centro do Rio e suas livrarias estão presentes em "A cidade..." em muitos poemas, inclusive na dedicatória à dona Vanna. Queria que você comentasse este aspecto labiríntico da cidade, que se confunde com o labirinto da própria construção de um texto. Falasse também do aspecto de libertação X claustrofobia que há nos labirintos de ambos os casos e de como, tantos anos depois de ter vindo para cá, vc enxerga hoje o Rio-labirinto. (nossa, que pergunta tagarela!!!)
Na verdade, eu sou carioca, do Leblon. Mas, quando criança, fora o Leblon e Ipanema, o resto da cidade era off-limits, para mim. O que descrevo no poema “A cidade e os livros” é a descoberta de que o centro da cidade – e, por extensão, todo o resto desta e das demais cidades do mundo – era um território aberto à minha exploração: que tudo isso me pertencia, por direito, assim como, por direito, me pertencia tudo o que havia sido escrito. Mas acho que os poemas do meu livro falam melhor sobre as coisas que você me pergunta do que eu poderia fazê-lo aqui.
4- Você usa soneto, decassílabo, odes, enfim, recorre a formas "clássicas" de fazer poema. Como se dá o processo de escolha da forma, que é tudo num poema? E como esta herança clássica se relaciona com a confusão e uma certa decadência contemporânea, que também aparece no livro?
Para falar a verdade, não penso que o mundo esteja em decadência, nem tenho nada contra a “confusão” contemporânea. Estou longe de pensar que o mundo seja velho ou que tudo já tenha sido dito, ou que o melhor já tenha passado. Como diz um verso de um poema desse livro, “ontem nasceu o mundo”. Mil vezes pior do que as “confusões” que observamos são as reações religiosas e políticas a elas, as tentativas de voltar atrás e de “organizar” ou “simplificar” o mundo. Essas reações incluem tanto o terrorismo dos fundamentalistas quanto a violência dos ideólogos da guerra – também religiosos – que tomaram o poder nos Estados Unidos. É essa gente terrível que, querendo reprimir a liberdade do mundo moderno, o acusa de estar em decadência.
Quanto à questão da forma, é verdade que, muitas vezes, uso formas tradicionais. Entretanto, não as idolatro. Em si, nenhum formato é melhor do que nenhum outro. Tanto a invenção de um novo formato quanto o uso de um formato tradicional se justificará ex post facto, caso o poema, estando pronto e bem realizado, retroativamente pareça tornar necessário o formato em que foi feito: embora necessário apenas para o poema individual em questão. A poesia é o que transforma o arbitrário em necessário. Gosto das formas fixas porque me estimulam. Acho o soneto conveniente principalmente tem quatorze versos de igual tamanho, o que, em geral, é muito adequado para os meus projetos líricos.
Entretanto, os formatos tradicionais são, na verdade, dispositivos dotados da propriedade de produzir determinados efeitos. A métrica dos versos, por exemplo, é um método que propicia a obtenção de certos ritmos. Assim, o decassílabo tende a ser acentuado na sexta e na décima sílabas (verso heróico), o que resulta em pentâmetros jâmbicos, ou então na quarta, na oitava e na décima sílabas (verso sáfico), o que produz dois dijambos e um jambo. Pois bem, para mim, justamente tais efeitos tornaram-se excessivamente gastos e, por isso, enjoativos. Para evitá-los, pratico freqüentemente o enjambement e uma pontuação que quebra internamente os versos. Desse modo, eles se tornam mais sujos e menos previsíveis. Assim também as rimas, quando perfeitas, são excessivamente calculáveis e restritivas. Uso, por isso, rimas assonantes. Meus sonetos são, portanto, desnaturados.
Contudo, quero ressaltar que a minha intenção, ao desnaturar os sonetos, não é conspurcar o seu formato. Longe disso: desnaturo-os somente na medida em que essa é a única maneira pela qual torno interessante, para mim, escrevê-los. Faço uso dos sonetos porque, ao contrário tanto dos que os idolatram quanto dos que os vilipendiam, não os tenho como fetiches. Sou justamente contra a associação automática de qualquer soneto, ou de qualquer forma dada, a uma postura determinada: tradicionalista ou vanguardista. Todo o repertório formal e lingüístico já dado está disponível a meu uso e nenhum preconceito me obrigará a abrir mão do direito de fazê-lo, exatamente como não abro mão do direito de inventar novas palavras ou formas, se isso me parecer necessário.
5- Ainda sobre esta questão formal, "Guardar" trazia vários poemas que viraram letras de música. Isto também está acontecendo/vai acontecer com alguns versos de "A cidade..."? Você me contou que os primeiros poemas foram musicados por Marina sem a sua autorização. Mas hoje, como isso se dá?
Não escrevi esses poemas com a pretensão de que fossem musicados. Tenho a impressão de que a maior parte deles não seriam facilmente musicáveis, isto é, não ficariam bem numa canção. Isso não impede que um ou outro possa sê-lo. Alguns poemas de “Guardar” foram musicados depois de publicado o livro. Na verdade, um trecho do poema “Don’Ana” e o poema “Francisca” são recitados à maneira de um rap, no disco novo da Marina.
6- No livro, há Citera e Narciso, mas também personagens como Don'Ana e
Francisca. Como esta memória pessoal, no primeiro caso, e um certo ar de
crônica, no segundo, invadem o poema?
Don’Ana foi personagem da minha infância e Francisca, da vida inteira. Eu quis “guardá-las”, no sentido em que uso essa palavra no poema “Guardar”. Mas não sei explicar exatamente por que é que uma coisa entra num poema e outra não.
7- A filosofia de um lado, a poesia de outro. Duas vertentes clássicas quase opostas. Às vezes, pinta em vc uma sensação esquizofrênica? (risos) Foi a filosofia que retardou seu primeiro livro de poemas, já lançado numa idade madura?
Há, de fato, certa esquizofrenia na relação entre a poesia e a filosofia, tais como as concebo. São extremidades opostas do meu espírito. Lutam para se apossar do tempo que me é dado. Não me é fácil administrar esse tempo. Sou um palco microcósmico em que se representa a velha rixa entre a poesia e a filosofia. Quando me dedico a escrever sobre filosofia, não consigo escrever poemas, pois, para escrevê-los, é necessário pôr à disposição da poesia la crême de la crême do meu tempo livre: Ovídio o diz muito bem: vacuae carmina mentis opus, isto é, os poemas são obra de uma mente desocupada; e para que o creme do creme do meu tempo livre esteja disponível à poesia, não posso estar preocupado com questões filosóficas.
Embora, desde a adolescência, eu escrevesse tanto em prosa quanto em verso, nada do que fazia parecia-me estar à altura dos critérios que eu mesmo me impunha, isto é, à altura de mim mesmo. O destino de quase todos os meus escritos era o lixo, após terem passado por uma gaveta qualquer. Mesmo sabendo que, em parte, isso se devia ao medo de me definir ou limitar, isto é, ao medo de escolher uma realidade finita no lugar da potencialidade infinita, e soubesse que como diz Hegel, “quem tem demasiado desprezo pelo finito não chega a realidade alguma, permanece no abstrato e consome-se a si próprio”, eu não conseguia agir de outro modo.
Há também uma razão, digamos, conjuntural para a minha relutância. É que, no Brasil, no terreno da poesia, a vanguarda mais consistente era a concretista, que, no seu “Plano-Piloto”, havia dado por encerrado o “ciclo histórico do verso”. Ora, por um lado, ideológica e intuitivamente, eu queria ver o mundo com olhos novos e tinha horror à mistificação conservadora dos gêneros e das formas tradicionais, de modo que me identificava com a vanguarda na vontade de fazer tabula rasa dos preconceitos e das convenções; por outro lado, pelo feitio da minha sensibilidade, eu preferia e ainda prefiro a poesia discursiva e, em particular, a poesia feita em versos. Por essas razões, não me identificava totalmente nem com os concretistas (embora admirasse então e admire ainda a primeira geração da poesia concreta, isto é, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignattari) nem com os seus inimigos. Havia também, é claro, a poesia marginal, que tendia a confundir poesia e vida; mas essa jamais me interessou, pois, para mim, era claro que a poesia não era vida, mas escritura, isto é, produção de formas. Tal isolamento no que diz respeito às tendências dominantes da poesia brasileira tornava-me ainda mais recalcitrante quanto a publicar.
Esse quadro começou a mudar a partir do momento em que minha irmã, Marina, pôs música em alguns poemas meus. Tendo sido musicado, um poema se transformava na letra de uma canção; ora, como eu sempre pensara em ser escritor, mas nunca em ser compositor, meus critérios eram literários e não se aplicavam imediatamente a canções. Esse fato me ajudou a contornar o meu superego. Além disso, como as canções não eram somente minhas, mas também da Marina, acontecia que, quando me dava por mim, elas já tinham sido cantadas perante outras pessoas, gravadas etc. É verdade que, como as minhas letras eram, de certo modo, publicadas nas canções dos discos, isso me aliviou a angústia de não publicar um livro de poemas: o que me permitiu demorar ainda mais um pouco para publicar... Mas, por outro lado, eu tinha, por assim dizer, perdido o cabaço. A partir daí, comecei a publicar em periódicos, e o futuro livro me apareceu no horizonte das coisas realmente exequíveis.
Hoje penso que, independentemente da música, eu devia ter exercido menos autocensura e publicado mais poemas mais cedo. Dei-me conta de que, enquanto a gente não publica, tende a sempre reescrever as mesmas peças. Entre outras coisas, o poema “Guardar” exprime essa percepção. No entanto, eu detestaria que alguém tivesse recolhido os textos que joguei fora, e jamais permitiria que algo que eu mesmo não tivesse destinado à publicação fosse publicado agora ou no futuro.
8- Em "Merde de poète", você faz graça com a poesia "visceral". Sua poesia parece estar mais ligada ao clássico e a uma linhagem do modernismo maduro brasileiro (Cabral, Drummond) do que às chamadas vanguardas. A experimentação dos anos 50 ficou datada? Ou passou a haver outras formas de se experimentar?
No Brasil, a poesia que se quer “visceral” é, de certo modo, o oposto da poesia praticada pela vanguarda mais forte, que era, ao contrário, construtivista. É da poesia “visceral” que não gosto. Gosto de poesia construída.
Acho que, de certo modo, toda poesia boa é experimental, pois ela tenta exceder os limites do que se considera possível, ela força ou explode os limites do possível. Isso não surgiu com a época moderna: toda boa poesia sempre foi assim. A partir do uso da palavra ácros pelo poeta Calímaco, chamo esse tipo de ambição de “acroísmo”.
Num sentido mais estreito, diz-se “poesia experimental” aquela que experimenta com novas formas, linguagens, veículos, suportes etc. Chamo esse exercício de poesia de “experimentalismo”. Penso, por exemplo, em Eduardo Kak, que usa a holografia em alguns trabalhos. Pois bem, creio que sempre haverá lugar para o experimentalismo. Entretanto, o que torna um poema bom não é o fato de ser experimentalista. Um poema experimentalista pode ser bom ou ruim. E, evidentemente, nem toda poesia tem que ser experimentalista.
Finalmente, chama-se de “experimental” também a poesia da vanguarda. Mas, se toda vanguarda é experimentalista, nem todo experimentalismo é vanguardista. As vanguardas foram o experimentalismo que teve a função cognitiva – já cumprida com êxito – de revelar uma coisa muito importante sobre a natureza da arte.
Independentemente das ambições e das ilusões dos seus protagonistas, o que as vanguardas efetivamente mostraram – e não o fizeram com seus manifestos, mas com seus poemas – foi o fato de que a poesia é compatível com uma infinidade de formas. É verdade que o corolário disso é que as formas tradicionais eram meramente tradicionais e não essenciais à poesia, isto é, que elas têm origem na convenção e não na natureza. Ao revelar esse fato, as vanguardas relativizaram essas formas; mas relativizar uma coisa é diferente de destrui-la. Do século XII ao século XVII, foram inventadas diversas formas de poesia escrita adequadas às línguas modernas. Do século XVII ao XIX, essas formas estiveram institucionalizadas, principalmente pelas academias. No século XIX, elas se apresentavam como “naturais” e infringi-las parecia anti-natural. As vanguardas simultaneamente abriram caminho para as infinitas possibilidades que haviam sido excluídas e mostraram que as formas “naturais” eram na verdade formas que haviam sido fetichizadas. Bastou essa revelação para se desmontar o fetiche. Uma vez feito isso, as vanguardas haviam cumprido a sua função histórica.
É importante ressaltar que o resultado realmente importante dessa história não foi nenhum progresso artístico, isto é, nenhum progresso da própria poesia, mas um progresso cognitivo. O resultado objetivo de todo o afã da vanguarda foi a aquisição de um conhecimento de caráter negativo sobre a essência da poesia. Descobriu-se que nenhuma forma é essencial à poesia. Isso significa que por princípio não se pode receitar como deve ser um poema. Pela mesma razão, não há critérios prontos para serem aplicados a cada poema que surja. É nesse ponto que nos encontramos hoje. Trata-se, evidentemente, de uma situação muito diferente tanto daquela (pré-vanguardista) em que se supunha conhecer as formas essenciais à poesia quanto daquela (vanguardista) em que ainda se buscava determinar as formas essenciais à poesia. O grande erro que alguns vanguardistas cometeram foi confundir os progressos cognitivos que obtiveram com um progresso artístico.
Outro erro não menos grave, porém, é cometido pelos inimigos da vanguarda e da modernidade que, ao ridicularizarem a confusão que acabo de apontar, entre conhecimento e arte, negam à vanguarda qualquer sentido e se recusam a reconhecer o que ela realizou do ponto de vista cognitivo. Mas não é possível voltar atrás e é preciso dizer a verdade: as vanguardas acabaram; mas acabaram, não porque não tenham dado certo, mas porque cumpriram a missão de legar ao mundo a liberdade da qual, hoje, a poesia da nossa geração se beneficia. Quanto a mim pessoalmente, alguns dos poetas mais importantes na minha formação foram vanguardistas ou ex-vanguardistas, como Carlos Drummond de Andrade.
9- Faz parte da atividade do poeta uma certa superexposição de sentimentos. Em "A cidade... " você volta a fazer declarações rasgadas e despudoradas de amor. Como é amar em público?
Na realidade, de maneira geral, faço questão de manter a diferença entre o que é público e o que é privado. Tenho horror a essa mania contemporânea de se falar em público sobre coisas íntimas.
No entanto, sou um servo da poesia. Se ela me ordena falar de amor, eu obedeço.
10 - Esta última pergunta vai além da entrevista. Vc tb é leitor de Lewis
Carroll? Sou fanática!!!
Sim. Desde criança até hoje adoro Lewis Carroll.
Antonio Cicero mistura cidades e palavras num mundo a se descobrir
1- "A cidade e os livros" parece ser um livro que tem mais unidade, que é mais orgânico do que "Guardar" - e aí não vai nenhum juízo de valor dos poemas. Vc concorda com isso? Por quê?
Concordo. O que ocorre é que “Guardar” foi o meu primeiro livro de poesia. Cerca de 30% dos seus poemas eram novos; os outros haviam sido escritos em diferentes épocas de minha vida. O critério que usei para selecionar cada poema foi o sentimento de que ainda hoje poderia escrevê-lo e me orgulhar de assiná-lo. Entretanto, o fato é que só os 30% novos haviam sido feitos para integrar um livro. Já os poemas de “A cidade e os livros” foram feitos nos últimos quatro anos, e, com uma ou outra exceção, feitos para integrar esse livro.
2- Um dos aspectos mais interessantes do livro - e o Wisnik o destaca lindamente na orelha - é a fusão que você faz entre os mitos clássicos (Prometeu, Ícaro, Narciso) e a vida de todo dia, das ruas cariocas, da praia, das angústias presentes. Como fazer esta mistura? Como lidar com todo este patrimônio clássico, que é berço da nossa palavra, nosso teatro e nossa filosofia de um jeito que transmita frescor e uma certa autenticidade?
Para mim, a literatura clássica constitui grande parte das idéias e do vocabulário com os quais pensamos e imaginamos o mundo em que vivemos. Por direito, o mundo clássico pertence aos brasileiros, assim como nos pertence a língua portuguesa. Como diz Ezra Pound, “o que bem amas é tua herança verdadeira / o que bem amas não te será arrancado”. A grande poesia grega e latina está viva, mas está viva por tornar mais vital a minha própria vida (e a vida de todos aqueles que amam as línguas e a literatura clássicas), no século XXI.
3- O Centro do Rio e suas livrarias estão presentes em "A cidade..." em muitos poemas, inclusive na dedicatória à dona Vanna. Queria que você comentasse este aspecto labiríntico da cidade, que se confunde com o labirinto da própria construção de um texto. Falasse também do aspecto de libertação X claustrofobia que há nos labirintos de ambos os casos e de como, tantos anos depois de ter vindo para cá, vc enxerga hoje o Rio-labirinto. (nossa, que pergunta tagarela!!!)
Na verdade, eu sou carioca, do Leblon. Mas, quando criança, fora o Leblon e Ipanema, o resto da cidade era off-limits, para mim. O que descrevo no poema “A cidade e os livros” é a descoberta de que o centro da cidade – e, por extensão, todo o resto desta e das demais cidades do mundo – era um território aberto à minha exploração: que tudo isso me pertencia, por direito, assim como, por direito, me pertencia tudo o que havia sido escrito. Mas acho que os poemas do meu livro falam melhor sobre as coisas que você me pergunta do que eu poderia fazê-lo aqui.
4- Você usa soneto, decassílabo, odes, enfim, recorre a formas "clássicas" de fazer poema. Como se dá o processo de escolha da forma, que é tudo num poema? E como esta herança clássica se relaciona com a confusão e uma certa decadência contemporânea, que também aparece no livro?
Para falar a verdade, não penso que o mundo esteja em decadência, nem tenho nada contra a “confusão” contemporânea. Estou longe de pensar que o mundo seja velho ou que tudo já tenha sido dito, ou que o melhor já tenha passado. Como diz um verso de um poema desse livro, “ontem nasceu o mundo”. Mil vezes pior do que as “confusões” que observamos são as reações religiosas e políticas a elas, as tentativas de voltar atrás e de “organizar” ou “simplificar” o mundo. Essas reações incluem tanto o terrorismo dos fundamentalistas quanto a violência dos ideólogos da guerra – também religiosos – que tomaram o poder nos Estados Unidos. É essa gente terrível que, querendo reprimir a liberdade do mundo moderno, o acusa de estar em decadência.
Quanto à questão da forma, é verdade que, muitas vezes, uso formas tradicionais. Entretanto, não as idolatro. Em si, nenhum formato é melhor do que nenhum outro. Tanto a invenção de um novo formato quanto o uso de um formato tradicional se justificará ex post facto, caso o poema, estando pronto e bem realizado, retroativamente pareça tornar necessário o formato em que foi feito: embora necessário apenas para o poema individual em questão. A poesia é o que transforma o arbitrário em necessário. Gosto das formas fixas porque me estimulam. Acho o soneto conveniente principalmente tem quatorze versos de igual tamanho, o que, em geral, é muito adequado para os meus projetos líricos.
Entretanto, os formatos tradicionais são, na verdade, dispositivos dotados da propriedade de produzir determinados efeitos. A métrica dos versos, por exemplo, é um método que propicia a obtenção de certos ritmos. Assim, o decassílabo tende a ser acentuado na sexta e na décima sílabas (verso heróico), o que resulta em pentâmetros jâmbicos, ou então na quarta, na oitava e na décima sílabas (verso sáfico), o que produz dois dijambos e um jambo. Pois bem, para mim, justamente tais efeitos tornaram-se excessivamente gastos e, por isso, enjoativos. Para evitá-los, pratico freqüentemente o enjambement e uma pontuação que quebra internamente os versos. Desse modo, eles se tornam mais sujos e menos previsíveis. Assim também as rimas, quando perfeitas, são excessivamente calculáveis e restritivas. Uso, por isso, rimas assonantes. Meus sonetos são, portanto, desnaturados.
Contudo, quero ressaltar que a minha intenção, ao desnaturar os sonetos, não é conspurcar o seu formato. Longe disso: desnaturo-os somente na medida em que essa é a única maneira pela qual torno interessante, para mim, escrevê-los. Faço uso dos sonetos porque, ao contrário tanto dos que os idolatram quanto dos que os vilipendiam, não os tenho como fetiches. Sou justamente contra a associação automática de qualquer soneto, ou de qualquer forma dada, a uma postura determinada: tradicionalista ou vanguardista. Todo o repertório formal e lingüístico já dado está disponível a meu uso e nenhum preconceito me obrigará a abrir mão do direito de fazê-lo, exatamente como não abro mão do direito de inventar novas palavras ou formas, se isso me parecer necessário.
5- Ainda sobre esta questão formal, "Guardar" trazia vários poemas que viraram letras de música. Isto também está acontecendo/vai acontecer com alguns versos de "A cidade..."? Você me contou que os primeiros poemas foram musicados por Marina sem a sua autorização. Mas hoje, como isso se dá?
Não escrevi esses poemas com a pretensão de que fossem musicados. Tenho a impressão de que a maior parte deles não seriam facilmente musicáveis, isto é, não ficariam bem numa canção. Isso não impede que um ou outro possa sê-lo. Alguns poemas de “Guardar” foram musicados depois de publicado o livro. Na verdade, um trecho do poema “Don’Ana” e o poema “Francisca” são recitados à maneira de um rap, no disco novo da Marina.
6- No livro, há Citera e Narciso, mas também personagens como Don'Ana e
Francisca. Como esta memória pessoal, no primeiro caso, e um certo ar de
crônica, no segundo, invadem o poema?
Don’Ana foi personagem da minha infância e Francisca, da vida inteira. Eu quis “guardá-las”, no sentido em que uso essa palavra no poema “Guardar”. Mas não sei explicar exatamente por que é que uma coisa entra num poema e outra não.
7- A filosofia de um lado, a poesia de outro. Duas vertentes clássicas quase opostas. Às vezes, pinta em vc uma sensação esquizofrênica? (risos) Foi a filosofia que retardou seu primeiro livro de poemas, já lançado numa idade madura?
Há, de fato, certa esquizofrenia na relação entre a poesia e a filosofia, tais como as concebo. São extremidades opostas do meu espírito. Lutam para se apossar do tempo que me é dado. Não me é fácil administrar esse tempo. Sou um palco microcósmico em que se representa a velha rixa entre a poesia e a filosofia. Quando me dedico a escrever sobre filosofia, não consigo escrever poemas, pois, para escrevê-los, é necessário pôr à disposição da poesia la crême de la crême do meu tempo livre: Ovídio o diz muito bem: vacuae carmina mentis opus, isto é, os poemas são obra de uma mente desocupada; e para que o creme do creme do meu tempo livre esteja disponível à poesia, não posso estar preocupado com questões filosóficas.
Embora, desde a adolescência, eu escrevesse tanto em prosa quanto em verso, nada do que fazia parecia-me estar à altura dos critérios que eu mesmo me impunha, isto é, à altura de mim mesmo. O destino de quase todos os meus escritos era o lixo, após terem passado por uma gaveta qualquer. Mesmo sabendo que, em parte, isso se devia ao medo de me definir ou limitar, isto é, ao medo de escolher uma realidade finita no lugar da potencialidade infinita, e soubesse que como diz Hegel, “quem tem demasiado desprezo pelo finito não chega a realidade alguma, permanece no abstrato e consome-se a si próprio”, eu não conseguia agir de outro modo.
Há também uma razão, digamos, conjuntural para a minha relutância. É que, no Brasil, no terreno da poesia, a vanguarda mais consistente era a concretista, que, no seu “Plano-Piloto”, havia dado por encerrado o “ciclo histórico do verso”. Ora, por um lado, ideológica e intuitivamente, eu queria ver o mundo com olhos novos e tinha horror à mistificação conservadora dos gêneros e das formas tradicionais, de modo que me identificava com a vanguarda na vontade de fazer tabula rasa dos preconceitos e das convenções; por outro lado, pelo feitio da minha sensibilidade, eu preferia e ainda prefiro a poesia discursiva e, em particular, a poesia feita em versos. Por essas razões, não me identificava totalmente nem com os concretistas (embora admirasse então e admire ainda a primeira geração da poesia concreta, isto é, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignattari) nem com os seus inimigos. Havia também, é claro, a poesia marginal, que tendia a confundir poesia e vida; mas essa jamais me interessou, pois, para mim, era claro que a poesia não era vida, mas escritura, isto é, produção de formas. Tal isolamento no que diz respeito às tendências dominantes da poesia brasileira tornava-me ainda mais recalcitrante quanto a publicar.
Esse quadro começou a mudar a partir do momento em que minha irmã, Marina, pôs música em alguns poemas meus. Tendo sido musicado, um poema se transformava na letra de uma canção; ora, como eu sempre pensara em ser escritor, mas nunca em ser compositor, meus critérios eram literários e não se aplicavam imediatamente a canções. Esse fato me ajudou a contornar o meu superego. Além disso, como as canções não eram somente minhas, mas também da Marina, acontecia que, quando me dava por mim, elas já tinham sido cantadas perante outras pessoas, gravadas etc. É verdade que, como as minhas letras eram, de certo modo, publicadas nas canções dos discos, isso me aliviou a angústia de não publicar um livro de poemas: o que me permitiu demorar ainda mais um pouco para publicar... Mas, por outro lado, eu tinha, por assim dizer, perdido o cabaço. A partir daí, comecei a publicar em periódicos, e o futuro livro me apareceu no horizonte das coisas realmente exequíveis.
Hoje penso que, independentemente da música, eu devia ter exercido menos autocensura e publicado mais poemas mais cedo. Dei-me conta de que, enquanto a gente não publica, tende a sempre reescrever as mesmas peças. Entre outras coisas, o poema “Guardar” exprime essa percepção. No entanto, eu detestaria que alguém tivesse recolhido os textos que joguei fora, e jamais permitiria que algo que eu mesmo não tivesse destinado à publicação fosse publicado agora ou no futuro.
8- Em "Merde de poète", você faz graça com a poesia "visceral". Sua poesia parece estar mais ligada ao clássico e a uma linhagem do modernismo maduro brasileiro (Cabral, Drummond) do que às chamadas vanguardas. A experimentação dos anos 50 ficou datada? Ou passou a haver outras formas de se experimentar?
No Brasil, a poesia que se quer “visceral” é, de certo modo, o oposto da poesia praticada pela vanguarda mais forte, que era, ao contrário, construtivista. É da poesia “visceral” que não gosto. Gosto de poesia construída.
Acho que, de certo modo, toda poesia boa é experimental, pois ela tenta exceder os limites do que se considera possível, ela força ou explode os limites do possível. Isso não surgiu com a época moderna: toda boa poesia sempre foi assim. A partir do uso da palavra ácros pelo poeta Calímaco, chamo esse tipo de ambição de “acroísmo”.
Num sentido mais estreito, diz-se “poesia experimental” aquela que experimenta com novas formas, linguagens, veículos, suportes etc. Chamo esse exercício de poesia de “experimentalismo”. Penso, por exemplo, em Eduardo Kak, que usa a holografia em alguns trabalhos. Pois bem, creio que sempre haverá lugar para o experimentalismo. Entretanto, o que torna um poema bom não é o fato de ser experimentalista. Um poema experimentalista pode ser bom ou ruim. E, evidentemente, nem toda poesia tem que ser experimentalista.
Finalmente, chama-se de “experimental” também a poesia da vanguarda. Mas, se toda vanguarda é experimentalista, nem todo experimentalismo é vanguardista. As vanguardas foram o experimentalismo que teve a função cognitiva – já cumprida com êxito – de revelar uma coisa muito importante sobre a natureza da arte.
Independentemente das ambições e das ilusões dos seus protagonistas, o que as vanguardas efetivamente mostraram – e não o fizeram com seus manifestos, mas com seus poemas – foi o fato de que a poesia é compatível com uma infinidade de formas. É verdade que o corolário disso é que as formas tradicionais eram meramente tradicionais e não essenciais à poesia, isto é, que elas têm origem na convenção e não na natureza. Ao revelar esse fato, as vanguardas relativizaram essas formas; mas relativizar uma coisa é diferente de destrui-la. Do século XII ao século XVII, foram inventadas diversas formas de poesia escrita adequadas às línguas modernas. Do século XVII ao XIX, essas formas estiveram institucionalizadas, principalmente pelas academias. No século XIX, elas se apresentavam como “naturais” e infringi-las parecia anti-natural. As vanguardas simultaneamente abriram caminho para as infinitas possibilidades que haviam sido excluídas e mostraram que as formas “naturais” eram na verdade formas que haviam sido fetichizadas. Bastou essa revelação para se desmontar o fetiche. Uma vez feito isso, as vanguardas haviam cumprido a sua função histórica.
É importante ressaltar que o resultado realmente importante dessa história não foi nenhum progresso artístico, isto é, nenhum progresso da própria poesia, mas um progresso cognitivo. O resultado objetivo de todo o afã da vanguarda foi a aquisição de um conhecimento de caráter negativo sobre a essência da poesia. Descobriu-se que nenhuma forma é essencial à poesia. Isso significa que por princípio não se pode receitar como deve ser um poema. Pela mesma razão, não há critérios prontos para serem aplicados a cada poema que surja. É nesse ponto que nos encontramos hoje. Trata-se, evidentemente, de uma situação muito diferente tanto daquela (pré-vanguardista) em que se supunha conhecer as formas essenciais à poesia quanto daquela (vanguardista) em que ainda se buscava determinar as formas essenciais à poesia. O grande erro que alguns vanguardistas cometeram foi confundir os progressos cognitivos que obtiveram com um progresso artístico.
Outro erro não menos grave, porém, é cometido pelos inimigos da vanguarda e da modernidade que, ao ridicularizarem a confusão que acabo de apontar, entre conhecimento e arte, negam à vanguarda qualquer sentido e se recusam a reconhecer o que ela realizou do ponto de vista cognitivo. Mas não é possível voltar atrás e é preciso dizer a verdade: as vanguardas acabaram; mas acabaram, não porque não tenham dado certo, mas porque cumpriram a missão de legar ao mundo a liberdade da qual, hoje, a poesia da nossa geração se beneficia. Quanto a mim pessoalmente, alguns dos poetas mais importantes na minha formação foram vanguardistas ou ex-vanguardistas, como Carlos Drummond de Andrade.
9- Faz parte da atividade do poeta uma certa superexposição de sentimentos. Em "A cidade... " você volta a fazer declarações rasgadas e despudoradas de amor. Como é amar em público?
Na realidade, de maneira geral, faço questão de manter a diferença entre o que é público e o que é privado. Tenho horror a essa mania contemporânea de se falar em público sobre coisas íntimas.
No entanto, sou um servo da poesia. Se ela me ordena falar de amor, eu obedeço.
10 - Esta última pergunta vai além da entrevista. Vc tb é leitor de Lewis
Carroll? Sou fanática!!!
Sim. Desde criança até hoje adoro Lewis Carroll.
Alberto da Cunha Melo: "Schopenhauer"
Agradeço ao professor
Edson Dognaldo Gil ter-me chamado atenção para o seguinte -- extraordinário -- poema de Alberto da Cunha Melo:
Schopenhauer
Para cada sonho uma lápide
sóbria como o próprio cortejo,
depois disso, treinar seu cão
para morder qualquer desejo;
rasgada a farda da alegria
que, na batalha, o distraía,
agora a dor, em tempo célere,
pode estender, com dignidade,
sua cólera à flor da pele,
para sarjar com sua lança
tantos tumores da esperança.
Do livro Meditação sob os Lajedos.
Natal/Recife: EDUFRN/Bagaço, 2002.
Edson Dognaldo Gil ter-me chamado atenção para o seguinte -- extraordinário -- poema de Alberto da Cunha Melo:
Schopenhauer
Para cada sonho uma lápide
sóbria como o próprio cortejo,
depois disso, treinar seu cão
para morder qualquer desejo;
rasgada a farda da alegria
que, na batalha, o distraía,
agora a dor, em tempo célere,
pode estender, com dignidade,
sua cólera à flor da pele,
para sarjar com sua lança
tantos tumores da esperança.
Do livro Meditação sob os Lajedos.
Natal/Recife: EDUFRN/Bagaço, 2002.
4.5.08
O sentido da vanguarda
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 3 de maio:
O sentido da vanguarda
Não se deve ignorar o sentido metafórico da palavra "vanguarda". No âmbito militar em que se origina, ela designa o dispositivo avançado de um exército ou de uma frota, isto é, o destacamento que, indo à frente, indica ou abre caminho para o grosso do Exército ou da frota. Analogamente, chamam-se de “vanguarda” os artistas que, estando à frente dos demais, indicam ou abrem os caminhos que serão eventualmente tomados por estes.
Historicamente, a vanguarda não só se atribuiu o papel de indicar ou abrir caminhos, mas efetivamente o cumpriu. Por exemplo, antes da eclosão das vanguardas, as formas poéticas mais tradicionais em uso nas línguas modernas haviam sido fetichizadas. Supunha-se que o uso de métrica ou de rima ou o emprego de alguma das diversas formas fixas então catalogadas (tais quais o soneto, a balada e a sextina) fosse necessário para a produção de um bom poema. Desse modo, consideravam-se naturais determinadas formas convencionais.
Pois bem: ao produzir autênticos poemas sem o emprego dessas formas, as vanguardas mostraram, em primeiro lugar, o caráter convencional de tais formas; em segundo lugar, mostraram que a poesia ou o poético não se encontram prêt-à-porter, à disposição do poeta, nestas ou naquelas formas fixas; em terceiro lugar, mostraram que a poesia não é necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada: que é possível inventar novas formas para ela.
Assim, ao desfetichizar as formas poéticas tradicionais, as vanguardas abriram novas possibilidades para todos os poetas. E ressalto que, apesar da retórica da "morte", da "destruição", do "fim" das formas poéticas que a vanguarda mostrou serem relativas, a verdade é que nenhuma das formas convencionais jamais deixou de existir ou de continuar a ser realizada, em maior ou menor grau. As formas existentes podem ser relativizadas, mas não morrem.
No meu artigo anterior, observei que, no seu "Plano-Piloto", a poesia concreta errara ao dar por encerrado o ciclo do verso. Por outro lado, o "Plano-Piloto" também afirmava que "a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural. Espaço qualificado: estrutura espaço-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear".
Pois bem, ao efetivamente criar poemas de estrutura não-discursiva, espaço-temporal, a poesia concreta eliminou a possibilidade de qualquer fetichismo residual em relação a qualquer forma convencional da poesia. Trata-se, sem dúvida, de um feito eminentemente vanguardista, pois todos os poetas são afetados tanto pelas possibilidades que ele abre quanto pela conseqüente relativização de todas as formas tradicionais de poesia.
Entretanto, é preciso reconhecer que esse foi o derradeiro feito da vanguarda no campo da poesia. Com isso, não quero dizer, de maneira nenhuma, que deixe de existir a poesia experimental. Ao contrário: o feito vanguardista consistiu exatamente na abertura ilimitada de possibilidades experimentais. Acontece porém que, quando todas as experiências são possíveis e nenhuma possibilidade já experimentada está morta, cada qual está livre para seguir o seu próprio e singular caminho.
Que diríamos de um poeta ou crítico que hoje decretasse serem poemas só os experimentos vídeo-áudio-verbais? Ou só aquilo que fosse composto em versos metrificados e rimados? Ou, ao contrário, só aquilo que fosse escrito em versos livres? Sabemos hoje que, por princípio, não se pode em são juízo decretar o que é admissível e o que é inadmissível num poema; nem estabelecer critérios a priori pelos quais todos os poemas devam ser julgados.
O poeta moderno -e moderno aqui quer dizer "que vive depois que a experiência da vanguarda se cumpriu"- é capaz de empregar as formas que bem entender para fazer os seus poemas, mas não pode deixar de saber que elas constituem apenas algumas das formas possíveis; e o crítico deve reconhecer esse fato. Em tal situação, não pode haver nenhum caminho a ser indicado ou aberto por alguns poucos, para ser seguido pelos outros muitos. Não há mais vanguarda.
Nesse sentido, não há como não concordar com Haroldo de Campos quando, em seu ensaio "Poesia e Modernidade: Da Morte do Verso à Constelação. O Poema Pós-Utópico", afirma que "ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis".
O sentido da vanguarda
Não se deve ignorar o sentido metafórico da palavra "vanguarda". No âmbito militar em que se origina, ela designa o dispositivo avançado de um exército ou de uma frota, isto é, o destacamento que, indo à frente, indica ou abre caminho para o grosso do Exército ou da frota. Analogamente, chamam-se de “vanguarda” os artistas que, estando à frente dos demais, indicam ou abrem os caminhos que serão eventualmente tomados por estes.
Historicamente, a vanguarda não só se atribuiu o papel de indicar ou abrir caminhos, mas efetivamente o cumpriu. Por exemplo, antes da eclosão das vanguardas, as formas poéticas mais tradicionais em uso nas línguas modernas haviam sido fetichizadas. Supunha-se que o uso de métrica ou de rima ou o emprego de alguma das diversas formas fixas então catalogadas (tais quais o soneto, a balada e a sextina) fosse necessário para a produção de um bom poema. Desse modo, consideravam-se naturais determinadas formas convencionais.
Pois bem: ao produzir autênticos poemas sem o emprego dessas formas, as vanguardas mostraram, em primeiro lugar, o caráter convencional de tais formas; em segundo lugar, mostraram que a poesia ou o poético não se encontram prêt-à-porter, à disposição do poeta, nestas ou naquelas formas fixas; em terceiro lugar, mostraram que a poesia não é necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada: que é possível inventar novas formas para ela.
Assim, ao desfetichizar as formas poéticas tradicionais, as vanguardas abriram novas possibilidades para todos os poetas. E ressalto que, apesar da retórica da "morte", da "destruição", do "fim" das formas poéticas que a vanguarda mostrou serem relativas, a verdade é que nenhuma das formas convencionais jamais deixou de existir ou de continuar a ser realizada, em maior ou menor grau. As formas existentes podem ser relativizadas, mas não morrem.
No meu artigo anterior, observei que, no seu "Plano-Piloto", a poesia concreta errara ao dar por encerrado o ciclo do verso. Por outro lado, o "Plano-Piloto" também afirmava que "a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural. Espaço qualificado: estrutura espaço-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear".
Pois bem, ao efetivamente criar poemas de estrutura não-discursiva, espaço-temporal, a poesia concreta eliminou a possibilidade de qualquer fetichismo residual em relação a qualquer forma convencional da poesia. Trata-se, sem dúvida, de um feito eminentemente vanguardista, pois todos os poetas são afetados tanto pelas possibilidades que ele abre quanto pela conseqüente relativização de todas as formas tradicionais de poesia.
Entretanto, é preciso reconhecer que esse foi o derradeiro feito da vanguarda no campo da poesia. Com isso, não quero dizer, de maneira nenhuma, que deixe de existir a poesia experimental. Ao contrário: o feito vanguardista consistiu exatamente na abertura ilimitada de possibilidades experimentais. Acontece porém que, quando todas as experiências são possíveis e nenhuma possibilidade já experimentada está morta, cada qual está livre para seguir o seu próprio e singular caminho.
Que diríamos de um poeta ou crítico que hoje decretasse serem poemas só os experimentos vídeo-áudio-verbais? Ou só aquilo que fosse composto em versos metrificados e rimados? Ou, ao contrário, só aquilo que fosse escrito em versos livres? Sabemos hoje que, por princípio, não se pode em são juízo decretar o que é admissível e o que é inadmissível num poema; nem estabelecer critérios a priori pelos quais todos os poemas devam ser julgados.
O poeta moderno -e moderno aqui quer dizer "que vive depois que a experiência da vanguarda se cumpriu"- é capaz de empregar as formas que bem entender para fazer os seus poemas, mas não pode deixar de saber que elas constituem apenas algumas das formas possíveis; e o crítico deve reconhecer esse fato. Em tal situação, não pode haver nenhum caminho a ser indicado ou aberto por alguns poucos, para ser seguido pelos outros muitos. Não há mais vanguarda.
Nesse sentido, não há como não concordar com Haroldo de Campos quando, em seu ensaio "Poesia e Modernidade: Da Morte do Verso à Constelação. O Poema Pós-Utópico", afirma que "ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis".
1.5.08
Pedro Salinas: "El zumo / O sumo"
Pedro Salinas
El zumo
¡Tan visible está el secreto!
¡Tan alegre,
Tan alegre,
colgando al aire!
Le ven todas las mirada,
y le sopesan los vientos;
los chiquillos le conocen
y gritan: "Mirad, un secreto.
¡Dámelo! Si parece una naranja."
Pero el secreto defiende,
invisible amarga almendra,
su mañana, su secreto
mayor, dentro.
Lo que da son disimulos,
redondos, color, rebrillo,
solución fácil, naranja,
a la mirada y al viento.
O sumo
Tão visível está o segredo!
Tão alegre,
suspenso no ar!
Vêem-no todos os olhares
E o sopesam os ventos;
Os miúdos o conhecem
e gritam: “Olha, um segredo.
Me dá! Parece uma laranja.”
Mas o segredo defende,
invisível amarga amêndoa,
sua manhã, seu segredo
maior, dentro.
O que dá são dissímulos,
redondeza, cor, rebrilho,
solução fácil, laranja,
tanto ao olhar quanto ao vento.
El zumo
¡Tan visible está el secreto!
¡Tan alegre,
Tan alegre,
colgando al aire!
Le ven todas las mirada,
y le sopesan los vientos;
los chiquillos le conocen
y gritan: "Mirad, un secreto.
¡Dámelo! Si parece una naranja."
Pero el secreto defiende,
invisible amarga almendra,
su mañana, su secreto
mayor, dentro.
Lo que da son disimulos,
redondos, color, rebrillo,
solución fácil, naranja,
a la mirada y al viento.
O sumo
Tão visível está o segredo!
Tão alegre,
suspenso no ar!
Vêem-no todos os olhares
E o sopesam os ventos;
Os miúdos o conhecem
e gritam: “Olha, um segredo.
Me dá! Parece uma laranja.”
Mas o segredo defende,
invisível amarga amêndoa,
sua manhã, seu segredo
maior, dentro.
O que dá são dissímulos,
redondeza, cor, rebrilho,
solução fácil, laranja,
tanto ao olhar quanto ao vento.