O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 3 de maio:
O sentido da vanguarda
Não se deve ignorar o sentido metafórico da palavra "vanguarda". No âmbito militar em que se origina, ela designa o dispositivo avançado de um exército ou de uma frota, isto é, o destacamento que, indo à frente, indica ou abre caminho para o grosso do Exército ou da frota. Analogamente, chamam-se de “vanguarda” os artistas que, estando à frente dos demais, indicam ou abrem os caminhos que serão eventualmente tomados por estes.
Historicamente, a vanguarda não só se atribuiu o papel de indicar ou abrir caminhos, mas efetivamente o cumpriu. Por exemplo, antes da eclosão das vanguardas, as formas poéticas mais tradicionais em uso nas línguas modernas haviam sido fetichizadas. Supunha-se que o uso de métrica ou de rima ou o emprego de alguma das diversas formas fixas então catalogadas (tais quais o soneto, a balada e a sextina) fosse necessário para a produção de um bom poema. Desse modo, consideravam-se naturais determinadas formas convencionais.
Pois bem: ao produzir autênticos poemas sem o emprego dessas formas, as vanguardas mostraram, em primeiro lugar, o caráter convencional de tais formas; em segundo lugar, mostraram que a poesia ou o poético não se encontram prêt-à-porter, à disposição do poeta, nestas ou naquelas formas fixas; em terceiro lugar, mostraram que a poesia não é necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada: que é possível inventar novas formas para ela.
Assim, ao desfetichizar as formas poéticas tradicionais, as vanguardas abriram novas possibilidades para todos os poetas. E ressalto que, apesar da retórica da "morte", da "destruição", do "fim" das formas poéticas que a vanguarda mostrou serem relativas, a verdade é que nenhuma das formas convencionais jamais deixou de existir ou de continuar a ser realizada, em maior ou menor grau. As formas existentes podem ser relativizadas, mas não morrem.
No meu artigo anterior, observei que, no seu "Plano-Piloto", a poesia concreta errara ao dar por encerrado o ciclo do verso. Por outro lado, o "Plano-Piloto" também afirmava que "a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural. Espaço qualificado: estrutura espaço-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear".
Pois bem, ao efetivamente criar poemas de estrutura não-discursiva, espaço-temporal, a poesia concreta eliminou a possibilidade de qualquer fetichismo residual em relação a qualquer forma convencional da poesia. Trata-se, sem dúvida, de um feito eminentemente vanguardista, pois todos os poetas são afetados tanto pelas possibilidades que ele abre quanto pela conseqüente relativização de todas as formas tradicionais de poesia.
Entretanto, é preciso reconhecer que esse foi o derradeiro feito da vanguarda no campo da poesia. Com isso, não quero dizer, de maneira nenhuma, que deixe de existir a poesia experimental. Ao contrário: o feito vanguardista consistiu exatamente na abertura ilimitada de possibilidades experimentais. Acontece porém que, quando todas as experiências são possíveis e nenhuma possibilidade já experimentada está morta, cada qual está livre para seguir o seu próprio e singular caminho.
Que diríamos de um poeta ou crítico que hoje decretasse serem poemas só os experimentos vídeo-áudio-verbais? Ou só aquilo que fosse composto em versos metrificados e rimados? Ou, ao contrário, só aquilo que fosse escrito em versos livres? Sabemos hoje que, por princípio, não se pode em são juízo decretar o que é admissível e o que é inadmissível num poema; nem estabelecer critérios a priori pelos quais todos os poemas devam ser julgados.
O poeta moderno -e moderno aqui quer dizer "que vive depois que a experiência da vanguarda se cumpriu"- é capaz de empregar as formas que bem entender para fazer os seus poemas, mas não pode deixar de saber que elas constituem apenas algumas das formas possíveis; e o crítico deve reconhecer esse fato. Em tal situação, não pode haver nenhum caminho a ser indicado ou aberto por alguns poucos, para ser seguido pelos outros muitos. Não há mais vanguarda.
Nesse sentido, não há como não concordar com Haroldo de Campos quando, em seu ensaio "Poesia e Modernidade: Da Morte do Verso à Constelação. O Poema Pós-Utópico", afirma que "ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis".
Antonio Cicero,
ResponderExcluirLendo este artigo publicado na FSP me lembrei de uma entrevista do dia 1 de março deste ano no Estadão, onde o entrevistado (Lee Siegel) dizia:
"Quando todos têm o mesmo direito de falar, acaba a discordância. É o igualitarismo antidemocrático. Vivemos um clima de hostilidade ao mérito e ao talento que destaca certas pessoas."
Esta é a modernidade onde não há nenhum caminho a ser indicado ou aberto por alguns poucos, para ser seguido pelos outros muitos. Não há mais vanguarda?
Tiago
ResponderExcluirNão há por que pensar que "Quando todos têm o mesmo direito de falar, acaba a discordância”. Nem há por que pensar que o igualitarismo seja antidemocrático. O fato de que todos têm o mesmo direito de falar não significa que leiamos e escutemos a todos ou que demos o mesmo peso a todas as opiniões. Eu, pelo menos, não sou hoje menos seletivo no que leio ou ouço do que era no passado. Sempre foi preciso saber selecionar. Ademais, longe de ter hostilidade ao mérito ou ao talento que destaca certas pessoas, considero a admiração um dos sentimentos mais nobres que há, e admiro muita gente. E o fato de não haver mais vanguarda não significa que não haja distinção de valor entre as obras de arte. Nem sempre houve vanguarda e sempre houve tais distinções. Como sempre, há obras geniais, obras boas, obras medíocres, obras ruins e obras péssimas. Não vejo por que seria de outro modo.
Antonio Cicero
Cícero,
ResponderExcluirse não há mais vanguarda,
não haverá mais nada que seja realmente "novo"?
ou o "novo" será uma revisão do passado?
Antonio, tudo bem?
ResponderExcluirDesde que eu li essas suas idéias no seu belíssimo livro, o que me vem à mente é a seguinte pergunta: Sim, agora todas as "formas poéticas" são possíveis, mas algumas delas não teriam perdido a capacidade de produzir "informação nova"?
Tentando me explicar: essas "formas poéticas", após tantos e tantos anos (às vezes, séculos) de utilização por tão variados poetas e depois de serem alvo de tantos processos de metalinguagem crítica, elas não teriam acumulado uma quantidade de redundância que tiraria delas boa parte da capacidade de surprender o leitor (falo de um leitor afeito à leitura da tradição poética)?
Abraços
André,
ResponderExcluirSempre haverá coisas novas. Em primeiro lugar, todas as obras de arte são novas, independentemente de serem de vanguarda, pois exigem invenção. Em segundo lugar, a experimentação com novas formas, novos materiais, novos meios, nova mídia e novos conceitos pode até se expandir. Não dá é para chamá-la de “vanguarda”, porque hoje é absurdo ter a pretensão de ser “o” caminho que toda arte subseqüente terá que levar em conta. Os caminhos são múltiplos, e cada um pode fazer o seu. Como sempre, algumas obras serão geniais, outras boas, outras medíocres, outras ruins e outras péssimas; mas o valor estético de uma obra de arte jamais dependeu de ela ser de vanguarda ou não.
Antonio Cicero
Prezado Antônio Cícero,
ResponderExcluirSempre que lia sobre o clima de virulência em que aconteceram os debates com os modernistas e, posteriormente, com os concretistas, ficava impressionado com a agressividade das vanguardas e "retaguardas".
Acho que o momento atual "quando todas as experiências são possíveis e nenhuma possibilidade já experimentada está morta, e cada qual está livre para seguir o seu próprio e singular caminho", uma conquista para o autor e o leitor de poesia atuais.
A suposta obrigação de ser novo, moderno ou revolucionário esteticamente datou negativamente alguns poemas e poetas bons.
Um abraço,
João Renato.
Caro Antonio, é lógico que não se deve "estabelecer regras" para a feitura de poemas.
ResponderExcluirMas, vamos fazer o seguinte raciocínio: um leitor afeito à leitura de sonetos (shakespearianos, camonianos, drummondianos etc. etc.) ao ler outro soneto, seja ele de quem for, já não teria, em sua mente, um conjunto de expectativas (mesmo que inconscientes) que o levariam a gostar ou não desse soneto, expectativas essas produzidas pelo que há de redundante na "forma soneto"? Obviamente, há muito mais nessa forma poética do que a sua "forma", mas esta não funcionaria como um elemento de "familiarização", o que daria ao soneto uma prévia carga de redundância?
Abraços.
Eu havia postado a seguinte mensagem em 5 de maio, em resposta à mensagem de Paulo de Toledo, da mesma data. Ao relê-la, entretanto, notei um erro de concordância, desses que se devem ao uso apressado dos recursos de edição do computador. Resolvi retirá-la, corrigir o erro e republicá-la aqui:
ResponderExcluirCaro Paulo,
O que não se pode é estabelecer regras que excluam forma alguma. Você pergunta se não acho que, depois de muitos anos (às vezes, séculos) de utilização, uma forma não se tornaria incapaz de surpreender o leitor. Uma forma não ficaria velha depois de, digamos, trezentos anos de utilização? Acontece que uns trezentos anos depois da invenção do soneto, por exemplo, Shakespeare e Camões escreveram os deles: que se encontram entre os maiores poemas jamais escritos. Ponhamos mais trezentos anos nessa história: seiscentos anos não serão demasiados para qualquer forma? Pois seiscentos anos depois de criado o soneto, Baudelaire escreveu os dele. E não ficam atrás de nenhum dos que haviam sido escritos antes dele: nem são menos novos do que os de Petrarca. E depois de Baudelaire, Mallarmé... Mas depois da vanguarda, ainda dava para escrever sonetos interessantes? Rilke provou que sim (e o próprio Augusto de Campos, que o traduziu, pode confirmar esse fato). Mas, depois de Rilke? Basta ler as obras-primas que são os sonetos de Borges, em “Los conjurados”. A partir da década de 1950, e mais ainda na de 1960, aumentaram as vozes que declaravam que o soneto se tornara obsoleto. Indiferente a elas – felizmente – Drummond escreveu vários sonetos que se contam entre os maiores poemas da língua portuguesa. Leia-se, por exemplo, “Destruição”, de 1962. Mas depois disso, ainda hoje, 800 anos depois da sua invenção? Leiam-se os poemas de Paulo Henriques Britto e os de Nelson Ascher. Em suma, não dá para estabelecer regras. É preciso considerar caso por caso. É que absolutamente tudo, num poema, é forma: e tudo é conteúdo. O que chamamos de “forma fixa” é uma forma mais ou menos externa, no fundo uma forma secundária, que se repete. Mas as palavras também são formas que se repetem. Entre formas que se repetem e formas que não se repetem é que se criam os todos os poemas, inclusive os que se consideram experimentais. E como não há fórmula nem receita para criá-los, todo poema bom – inclusive o soneto bom – é, no fundo, experimental.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro Paulo,
ResponderExcluirAcho que quem vai escrever um soneto leva em conta o fato de que se trata de uma forma tradicional e muito usada.
Para o leitor, entretanto, o que interessa é se o soneto é bom. Quase todos os sonetos são ruins. Alguns pouquíssimos são bons. Já fui jurado de um concurso de poemas e li dezenas de péssimos sonetos; mas também, na mesma ocasião, li centenas de poemas ruins de todos os tipos. Jamais gostei de soneto nenhum simplesmente porque fosse um soneto. Ao contrário, como já li sonetos que eram obras-primas, exijo muito de qualquer soneto que leia. Um soneto bom é uma raridade, mas ainda hoje pode ser feito: e pode ser uma coisa maravilhosa, como qualquer poema bom.
Talvez você queira dizer isso: que hoje é mais difícil fazer um soneto bom do que fazer um poema experimental bom; talvez queira dizer que seja mais fácil. E talvez, no caso de poemas em geral, o mais fácil seja o mais difícil; e talvez o mais difícil seja o mais fácil. Mas semelhantes considerações não têm importância. Em poesia, só o resultado importa. Pode ser uma quadrinha, como as de Fernando Pessoa, pode ser uma canção de roda, pode ser um verso. Se for um bom poema é um bom poema, e pronto. Só se pode decidir caso a caso. A Shakespeare já se podia ter dito: “você vai usar uma forma velha, inventada três séculos atrás?”. A Drummond disseram efetivamente que ele não devia usar uma forma inventada oito séculos atrás. Ainda bem que ele se lixou para esse tipo de objeção. Estamos exatamente na mesma situação hoje.
Abraços.
Posso estar enganado, mas admitir uma forma fixa como prévia carga de redundância me parece uma temeridade. Se não me engano, a forma não é gaiola mas um meio de transmitir informação estética.
ResponderExcluirO leitor atento não pode se recusar ao contínuo exercício de definição de seus próprios critérios de juízo para não se cercar de preconceitos estéreis.
Imagino, não sem espanto, como seria se fôssemos adotar posturas radicais contra redundâncias.
Basta considerarmos o fato de que, como disse o já citado Haroldo de Campos a respeito de determinado aspecto da poesia de Manuel Bandeira, sutis deslocamentos de perspectiva podem ser capazes de produzir informação estética original mesmo utilizando-se de lugares-comuns.
Abraços a todos,
Carlos Eduardo
Caro Carlos Eduardo,
ResponderExcluirconcordo inteiramente com o que você diz. E gostei muito da lembrança das palavras de Haroldo.
Abraço,
Antonio Cicero
Caros Antonio e Carlos Eduardo, gostaria de dizer que não acho que fazer sonetos (ou quadras, ou sextilhas etc.) seja algo "errado". O que quero dizer é que, como acontece com tudo na vida, depois que nos acostumamos com determinadas coisas, estas tendem a nos "tocar" com menos intensidade. Aquela comidinha da mamãe, de que tanto gostamos, depois de um certo tempo, a gente passa a saber o gosto só de sentir o cheiro. Mesmo que a mamãe coloque um temperinho diferente, a gente vai gostar da comidinha principalmente por aquilo que já sabemos que gostamos.
ResponderExcluirObviamente, um poema não é um prato de macarronada, mas a fruição de um poema (ou de um quadro, de um filme etc.) é, sim, influenciada pelo grau de familiaridade que temos com certos aspectos estruturais utilizados para a configuração desse poema. Certos tipos de estrofação, de ritmo, de esquema rímico, certos jogos sonoros, todos esses recursos, que caracterizam há muito o discurso poético, são elementos familiares ao leitor de poesia, e essa familiaridade os torna elementos com certa carga de redundância.
É claro também que nada impede que esses recursos sejam utilizados de forma surpreendente, como o fez um João Cabral, p.ex.
Espero ter sido mais claro desta vez.
Abraços
Caro Paulo,
ResponderExcluirentendo o que você está dizendo. Numa entrevista que dei para a Daniela Name, de O Globo, em 24/07/2002, eu dizia até algumas coisas semelhantes. Resolvi postá-la hoje, por causa da nossa discussão. Mas acho que a minha posição também ficou clara: sou tão contra os preconceitos em relação às formas fixas quanto contra os preconceitos em relação às formas experimentais.
Abraços.
Cicero, li o artigo e mesmo sem ser um crítico 'profissional' gostei bastante e também estudo alguns dos que 'fizeram' essa vanguarda. permitame republica-lo no http://monomanniaco.blogspot.com/
ResponderExcluirporfavor? ficarei muito grato!!
abraços!
Caro "Anônimo",
ResponderExcluirSinta-se à vontade para republicá-lo. Gostarei de vê-lo no
http://monomanniaco.blogspot.com.
Abraços.
Caro "Anônimo",
ResponderExcluirSinta-se à vontade para republicá-lo. Gostarei de vê-lo no seu blog. Gostarei de vê-lo no
http://monomanniaco.blogspot.com.
Abraços.
Quanta clarividência, sr. Antonio Cícero. O que importa, de fato, é o resultado. Dizer que o soneto é uma "gaiola" é admitir não saber o que é um soneto, e tampouco uma gaiola. O soneto é um instrumento (diria, até, de sopro) musical: usa quem quer, mas só faz música quem pode. O resultado, você acertadamente diz, é o que importa. O que por sua vez me provoca: qual bom resultado nós temos com o concretismo? Não me recordo de bom poema concreto, seja de seus três principais arquitetos (posto que o Gullar debandou) ou de seus posteriores seguidores. "babe coca-cola"? Hm. E eu continuo acreditando que o mais longe que o Concretismo chegou foi despertar a simpatia de Murilo Mendes e abastecer médias letras de músicas para os violeiros de ocasião. Uma falsa novidade. O mundo está cheio delas. O Brasil, então, é tão vulnerável a isso... Tudo me soa meio "facilitador" de inteligência. Mas... posso estar enganado. E é bem provável que esteja.
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