27.9.12
Ítalo Calvino: de "Por que ler os clássicos"
Segunda proposta de definição de "clássico":
Faz alguns anos, Michel Butor, lecionando nos Estados Unidos, cansado de ouvir perguntas sobre Emile Zola, que jamais lera, decidiu ler todo o ciclo dos Rougon-Macquart. Descobriu que era totalmente diverso do que pensava: uma fabulosa genealogia mitológica e cosmogônica, que descreveu num belíssimo ensaio. Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitura da juventude. A juventude comunica ao ato de ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao passo que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) muitos detalhes, níveis e significados a mais. Podemos tentar então esta outra fórmula de definição:
2 Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.
CALVINO, Ítalo. "Por que ler os clássicos". In:_____. Por que ler os clássicos. Trad. de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
25.9.12
Francisco Sá de Miranda: "Ao Amor e à Fortuna"
Ao Amor e à Fortuna
Amor e Fortuna são
dous deuses que os antigos
ambos os pintaram cegos;
ambos não seguem rezão;
ambos aos mores amigos
dão mores desassossegos;
ambos são sem piedade;
ambos não lhes tomais tino
do querer ou não querer;
ambos não falam verdade:
Amor é cego minino,
Fortuna é cega mulher.
SÁ de MIRANDA, Francisco. Obras completas. Lisboa: Sá da Costa, 1976.
23.9.12
Folha de São Paulo: "Subdesenvolvimento puro"
O seguinte -- excelente -- editorial da Folha de São Paulo foi publicado no dia 21 do corrente:
Subdesenvolvimento puro
A publicação de mais charges satirizando o profeta Maomé por uma revista francesa, "Charlie Hebdo", faz antever novas manifestações violentas no Oriente Médio.
Alguns já se perguntam se, de fato, vale a pena que sistemas jurídicos de países democráticos deem guarida a manifestações que poderiam ser classificadas como provocação. E a resposta só pode ser um inequívoco "sim".
Ninguém é obrigado a gostar das charges nem do filme produzido nos EUA que deflagrou a onda de protestos, mas é essencial que se preserve o direito das pessoas de exprimir o que bem entendam. E essa liberdade só faz sentido se for robusta, ou seja, se abarcar até aquilo que a maioria considera errado, ou mesmo repugnante.
Defesa tão veemente da liberdade de expressão poderia parecer um capricho, comparável ao fundamentalismo daqueles que querem blindar cultos e profetas de críticas e sátiras. Mas há uma diferença crucial: enquanto a proteção almejada por religiões serviria apenas para evitar que se questionem seus dogmas, a afirmação do direito de dizer o que se pensa está na origem das principais conquistas da civilização ocidental.
Para começar, a liberdade de expressão é indissociável da própria noção de democracia representativa. A possibilidade de crítica ampla é decisiva não apenas para controlar governantes como também para constituir um eleitorado razoavelmente bem informado, que é a base do sistema.
Mais que isso: se ideias, teorias e evidências não pudessem ser livremente discutidas, a ciência, com todos os confortos tecnológicos que acarreta, caminharia bem mais devagar -se é que se moveria.
Mesmo no campo da moral, tão cara a religiosos, a liberdade de expressão, ao assegurar que todos os temas possam ser discutidos sob todos os aspectos, ajuda a sociedade a encontrar o equilíbrio entre mudança e estabilidade.
A própria noção de modernidade implica aceitar que costumes, tradições e crenças são históricos e se alteram na esteira das transformações da sociedade e do conhecimento objetivo sobre o mundo.
A aversão do fanatismo islâmico à crítica e aos direitos do indivíduo, assim, é um dos fatores que impedem o avanço institucional e científico das sociedades em que se torna dominante -ou seja, impedem seu próprio desenvolvimento. Até que se deem conta da contradição, muito sangue será vertido.
19.9.12
Marco Lucchesi: "Ubi es, vita..."
Ubi es, vita...
O sono de Leopardi
o verbo de Clarice
e a sombra de Cioran
vida vida
eis o botim
dos que reclamam vida
LUCCHESI, Marco. "Temporais". In:_____. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Record, 2000.
17.9.12
Teócrito: Epigrama IX.599: trad. de José Paulo Paes
I.599
Olha para essa estátua, ó forasteiro,
atentamente e diz, de regresso à pátria:
"Eu vi em Teos a estátua de Anacreonte,
que entre os antigos foi excelente aedo".
Ah, e do seu pendor por rapazes não
te esqueças, para dizer o homem todo.
Texto grego: clique para ampliar:
PAES, José Paulo (org. e trad.). Poemas da Antologia Grega ou Palatina. Séculos VII a.C. a V d.C. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
15.9.12
Epicuro: fragmento de "Carta a Meneceu"
Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz.
Epicure. "Lettre à Ménécée". In: CONCHE, Marcel (org.). Epicure: lettres et maximes. Villiers-sur-mer: Éditions de Mégare, 1977.
14.9.12
Curso "Poesia e Filosofia", no POP
A partir de quarta-feira que vem, darei um curso de três aulas no POP (Pólo de Pensamento), intitulado Poesia e Filosofia. Elas terão lugar nos dias 19 de setembro, 26 de setembro e 3 de outubro. Mais detalhes abaixo (clique na imagem para ampliá-la):
O POP fica na Rua Conde Afonso Celso, 103, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Seus telefones são (21)2286-3299 e (21)2286-3682.
12.9.12
Manuel Bandeira: "O espelho"
O espelho
Ardo em Desejo na tarde que arde!
Oh, como é belo dentro de mim
Teu corpo de ouro no fim da tarde:
Teu corpo que arde dentro de mim
Que ardo contigo no fim da tarde!
Num espelho sobrenatural,
No infinito (e esse espelho é o infinito?...)
Vejo-te nua, como num rito,
À luz também sobrenatural,
Dentro de mim, nua no infinito!
De novo em posse da virgindade,
- virgem, mas sabendo toda a vida -
No ambiente da minha soledade,
De pé, toda nua, na virgindade
Da revelação primeira da vida!
BANDEIRA, Manuel. "O ritmo dissoluto". In:_____. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.
8.9.12
Adriano Espínola: "O prego"
O que mais dói não
é o retrato na parede,
mas o prego ali
cravado, persistente,
no centro da mancha
do quadro ausente.
ESPÍNOLA, Adriano. Praia provisória. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.
6.9.12
Nulla unda
Nulla unda
tam profunda
quam vis amoris
furibunda.
Nenhuma onda
tão profunda
quanto a força do amor
é furibunda.
Provérbio latino.
3.9.12
Adriano Nunes: "Crítica literária: 'Porventura' de Antonio Cicero
CRÍTICA LITERÁRIA:
"Porventura" de Antonio Cicero
A poesia é indispensável. Isso seria um justo balanço para que um poeta dissesse às musas o quão importante é a poesia, para o próprio poeta, para os outros poetas, para o leitor, para o mundo, para a poesia, sim, para a poesia, porque a poesia que é indispensável é a boa poesia, aquela trabalhada, pensada, muitas vezes tardia, muitas vezes mutilada, dissecada, precisa, que pode demorar anos, meses, dias, horas, minutos ou surgir, súbita, em segundos, como um susto, um lampejo, um relâmpago, para, depois de plena, lançar cosmos no cosmo, existências sobre a existência. Bem, o leitor, no final das contas, no balanço geral, definitivo, é quem mais ganha com isso. O livro "Porventura" de Antonio Cicero, recentemente lançado pelo Grupo Editorial Record, com seus 35 belos poemas, justifica afirmar: A poesia é muito mais que indispensável!
Marcado por momentos intimistas, cotidianos (perdas de amigos, familiares) e reflexivos, "Porventura" se desdobra, multiplica-se a cada vez que é lido. O livro se abre com o denso e tenso poema "Balanço" com hendecassílabos instigantes, belos, nos quais o saldo alegre, nítido, colorido que o amor impõe à vida, anulando a morte, contrapõe-se com a presença fria, dura, pesada, da morte, que também tem arte.
"Porventura" é um grande achado na poesia contemporânea. Seus poemas, aparentemente simples, muitos dos quais fazendo referências ao dia a dia, como se fossem feitos para um leitor comum, desatento, não o são. São versos calculados, feitos com maestria, onde se percebem o rigor técnico apurado, uma sensibilidade superior e um viés poético único, universal, capaz de criar imagens especiais, impactantes, de uma beleza rara, ou melhor, dadas como portentos à vista de quem lê.
Cicero trabalha ainda um de seus temas preferidos, a mitologia, a Grécia Clássica, fazendo referências explícitas a Homero, a Horácio, à Guerra de Troia, a Ícaro, iluminando-nos com o seu saber.
Ao ler "Porventura", emocionei-me bastante. Algo me tocou profundamente. Como leitor. Como poeta. Como amigo que ganha de presente um poema dedicado - "Leblon" -. E chorei ao recitar o poema "Presente" dedicado ao poeta Eucanaã Ferraz, entendendo a pergunta: E Por que não dar a mim mesmo este presente?
"Porventura" é livro para se dar, dar aos amigos, é para louvar, levá-lo aonde se vai, para que a vida seja indispensável, porque é tudo e sagrada.
Adriano Nunes
2.9.12
Pedro Tamen: "(Washington D.C.")
(Washington, D.C.)
Como um velho como um cão
sentado num parque frente aos desportistas
ressentindo Pessoa o Campos como ele
como um velho como um cão
sentado num parque ao sol
a não pensar em nada ou repensando
as coisas sem interesse e sem razão
Deixar correr o tempo sem memória
entre memoriais de tudo quanto houve
valendo-me assim do que os outros lembram
para nada lembrar não tanto
como um velho sentado num parque:
como um cão.
TAMEN, Pedro. Memorial indescritível. Lisboa: Gótica, 2000.