23.9.12
Folha de São Paulo: "Subdesenvolvimento puro"
O seguinte -- excelente -- editorial da Folha de São Paulo foi publicado no dia 21 do corrente:
Subdesenvolvimento puro
A publicação de mais charges satirizando o profeta Maomé por uma revista francesa, "Charlie Hebdo", faz antever novas manifestações violentas no Oriente Médio.
Alguns já se perguntam se, de fato, vale a pena que sistemas jurídicos de países democráticos deem guarida a manifestações que poderiam ser classificadas como provocação. E a resposta só pode ser um inequívoco "sim".
Ninguém é obrigado a gostar das charges nem do filme produzido nos EUA que deflagrou a onda de protestos, mas é essencial que se preserve o direito das pessoas de exprimir o que bem entendam. E essa liberdade só faz sentido se for robusta, ou seja, se abarcar até aquilo que a maioria considera errado, ou mesmo repugnante.
Defesa tão veemente da liberdade de expressão poderia parecer um capricho, comparável ao fundamentalismo daqueles que querem blindar cultos e profetas de críticas e sátiras. Mas há uma diferença crucial: enquanto a proteção almejada por religiões serviria apenas para evitar que se questionem seus dogmas, a afirmação do direito de dizer o que se pensa está na origem das principais conquistas da civilização ocidental.
Para começar, a liberdade de expressão é indissociável da própria noção de democracia representativa. A possibilidade de crítica ampla é decisiva não apenas para controlar governantes como também para constituir um eleitorado razoavelmente bem informado, que é a base do sistema.
Mais que isso: se ideias, teorias e evidências não pudessem ser livremente discutidas, a ciência, com todos os confortos tecnológicos que acarreta, caminharia bem mais devagar -se é que se moveria.
Mesmo no campo da moral, tão cara a religiosos, a liberdade de expressão, ao assegurar que todos os temas possam ser discutidos sob todos os aspectos, ajuda a sociedade a encontrar o equilíbrio entre mudança e estabilidade.
A própria noção de modernidade implica aceitar que costumes, tradições e crenças são históricos e se alteram na esteira das transformações da sociedade e do conhecimento objetivo sobre o mundo.
A aversão do fanatismo islâmico à crítica e aos direitos do indivíduo, assim, é um dos fatores que impedem o avanço institucional e científico das sociedades em que se torna dominante -ou seja, impedem seu próprio desenvolvimento. Até que se deem conta da contradição, muito sangue será vertido.
Cícero:
ResponderExcluirNa teoria a pratica é outra... Estou me lixando para a sensibilidade bárbara do islã, mas basta que saia uma charge criticando os gays ou os bombeiros, que os interessados fervem de indignação cívica e acham mil motivo para censura. Agora mesmo, os movimentos negros estão querendo censurar Monteiro Lobato... É a velha história, pimenta no cu nos outros é refresco... A Folha mesmo censura qualquer critica ao jornal nos seus comentários de leitores. Você mesmo não é um exemplo de tolerância com o que não gosta e censura violentamente seu blog. Seus amigos são considerados "sacrossantos", imunes aos erros e a críticas. Quem tem moral para criticar os muçulmanos? Quando você censurar esse comentário estará me dando carradas de razão... Mas fique a vontade.
Anônimo,
ResponderExcluirVocê confunde alhos com bugalhos. Uma coisa é que os gays critiquem uma charge que lhes seja ofensiva; outra coisa seria que, por causa de uma charge ofensiva, eles saíssem matando pessoas e incendiando automóveis e prédios. O mesmo direito que tem alguém de publicar uma charge ofensiva aos gays, têm os gays de criticar essa charge. Por outro lado, aquele que não apenas ofende, mas incita à violência contra os gays merece não apenas ser críticado, mas reprimido.
Quanto a Monteiro Lobato, o que se pede não é, que eu saiba, a censura, mas sim que, nos textos destinados às escolas elementares, haja ao menos notas explicativas, quando ocorrem expressões consideradas depreciativas em relação a negros.
No que diz respeito a mim, tenho horror ao racismo, por exemplo, e jamais deixaria entrar um comentário racista no meu blog, a menos que achasse que houvesse algum valor didático em publicá-lo para, logo em seguida, publicar também uma enérgica resposta minha, que o colocasse no seu lugar. Mas eu não poderia fazer isso a menos que me sobrasse tempo e paciência para tanto. E como isso raramente acontece, muitas vezes simplesmente deixo de publicar o texto em questão.
No entanto, é ridículo chamarem de “censura” o fato de eu não publicar um comentário que considere ofensivo ou que contrarie os meus princípios, e é ridículo afirmarem que, com isso, perco o direito de defender a liberdade de expressão. Só um imbecil não entende que uma coisa é uma pessoa defender a liberdade de expressão no espaço público, outra coisa – absurda – seria essa pessoa ser obrigada a acolher e divulgar, em seu próprio espaço, isto é, no seu próprio blog, ideias e palavras que ofendessem a ela ou aos seus amigos. Assim, ao não admitir um comentário racista no meu blog, eu não o estou excluindo do espaço público, pois ele pode ser publicado em milhares de lugares – que devem ser criticados, por serem abomináveis – em que comentários racistas são bem-vindos; sem falar do fato de que o próprio racista pode abrir um site, blog ou uma página em inúmeros pontos da rede.
Assim, defendo, sim, a liberdade de expressão e tenho, sim, moral para condenar a intolerância do fanatismo religioso. Nada pior do que esse relativismo frouxo e impotente que você – que oculta o próprio nome – defende.
Certas coisas estão para além da rasa visão do fato.
ResponderExcluirHá milhares de dogmas, nas infindas religiões, que não só não aceito como passíveis de compreensão, como não entendo como podem ser digeridos por alguém minimamente racional. Isto, entretanto, não significa absolutamente nada para quem os defende, e seu direito de defendê-lo, blindá-lo, venerá-lo e crer com todos os seus neurônios é sagrado.
O que, definitivamente, não é aceitável, é que para se defender uma crença, seja de que ordem for, se faça uso de violência física ou moral.
A imposição de “verdades”, ao longo da história, já provou ser danosa e ventre fértil de massacres. Não tenho nenhum direito de julgar quem pauta sua vida por bússolas diferentes das minhas, mas, embora acredite que certas provocações são desnecessárias, não me furto a concordar que tal direito deva ser preservado e nunca é demais lembrar que a minha liberdade termina aonde começa a do meu vizinho.
Não entendo fanatismos em nenhum espaço, nem a ignorância por opção,mas se este for o caminho de outrem,que seja feliz,só não me peça para apreender como factível o uso da força.
Parabéns pelo blog,
abraços,
Anna kaum.
Oi, Cícero!
ResponderExcluirUm poema que escrevi:
SÓ COM O MUNDO TODO
Na curva, na calçada
no meio de todo mundo
no meio, sempre no meio
do mundo, do povo, da rua
andamos com o Só
No quarto recolhido
se escreve o Só
a sós com o mundo todo
Não se deve excluir o Só
mas sustentá-lo à mostra
como ferida aberta de pé
No estar do meio de tudo
somos pontos de muitos
só(i)s pequenos, errantes
iluminando as diferenças
sem drama ou clausura
Na rua cada um é uma ilha
onde os Sós se fazem um Só
Cícero,
ResponderExcluirEu concordo, basicamente com o artigo. Mas discordo do título.
Por que "Subdesenvolvimento" Puro?
A América Latina é subdesenvolvida, e nem por isso alguém quer matar quem critica alguma fé religiosa.
O problema é de fanatismo religioso (no caso, de muçulmanos).
E fanáticos existem em todas religiões; uma amiga que costuma se vestir de forma liberal, quando esteve em Jerusalém, foi incisivamente advertida a não circular nos bairros de população ortodoxa, pois seria agredida. Aliás, carros que circulem nesses bairros durante o shabat são apedrejados.
Acho que o problema deriva do islamismo ser uma religião onde o percentual de fanáticos é muito superior ao de outras religiões, e talvez até hegemônico.
Abraço,
JR.
Explodir avões em prédios pode...e a vontade! Agora fazer gozação com deus deles não pode! Quantos deuses tem o mundo??? Todos ou nenhum!!! Valeu pelo o artigo MUITO PERTINENTE!!!
ResponderExcluirCícero, embora não discorde essencialmente do que você escreveu, tendo a achar que nesse caso específico faria bem a você ter acesso a esse texto, que traz um olhar alternativo ao da maior parte da mídia no que diz respeito à "ira muçulmana".
ResponderExcluirhttp://www.avaaz.org/po/7_things_you_should_know_global/?fb
NoBreBreNo,
ResponderExcluirAcho que o texto que você me enviou está certo no sentido de que a violência desencadeada pelo filme seja praticada apenas por alguns grupos radicais. No entanto, pior do que essa violência é a iniciativa da Organização de Cooperação Islâmica, contando com o inacreditável apoio do Secretário Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, de pressionar as Nações Unidas para que proíbam, no mundo inteiro, a blasfêmia. É a censura em escala global. Mas não penso que o problema seja apenas do Islã. O Cristianismo estaria ainda matando cientistas na fogueira, se não houvesse sido freado pelo Iluminismo. Diga-se a verdade: nada mais nocivo à liberdade do que as religiões.
Cícero, eu gostaria de corrigir parte do meu comentário, onde digo que: "Acho que o problema deriva do islamismo ser uma religião onde o percentual de fanáticos é muito superior ao de outras religiões, e talvez até hegemônico".
ResponderExcluirAté depois de ler o texto que o NoBreBreNo indicou, eu tiraria o "e talvez até hegemônico" porque é besteira mesmo, e corrigiria a frase toda para:
"Acho que o percentual de fanáticos islâmicos é maior do que em outras religiões. E não só é um percentual maior, como também é bem mais radical. E sendo assim, este radicalismo adquire tamanha visibilidade que contamina a visão ocidental do islamismo em geral".
JR.
Cícero, permita-me polemizar.
ResponderExcluirA história, você sabe, é contada pelos vencedores, e é típico dos vencedores generalizar, entre os perdedores, a atitude do que você mesmo chamou de "alguns grupos radicais". Como você, me interesso pela poesia e pela canção, o que me levou a estudar os trovadores occitanos (mais conhecidos no brasil, nas traduções de Augusto de Campos, como provençais) e consequentemente o século XII.
A despeito da imagem esteriotipada das "bruxas sendo queimadas na fogueira" o século XII foi pródigo em fazer medrar diversas correntes de pensamento modernas até hoje, como a própria poesia dos trovadores atesta. Nas trovas occitanas, parte da historiografia francesa reconhece a gênese do nosso atual conceito de amor e de humanismo. Acontece que muitos desses trovadores eram membros do clero e todos eram cristãos praticantes.
Vejo no pensamento religioso um imenso potencial libertário tanto no âmbito político quanto no âmbito estético, assim como a história é farta de exemplos de autoritarismos e recalques promovidos por pessoas não religiosas e anti-religiosas. Acho que mais verdade existe em dizermos que não há nada mais nocivo à liberdade do que os radicalismos.
Sou um grande admirador seu,
Breno Góes.
Breno,
ResponderExcluirinfelizmente não se trata apenas de um estereótipo. Na Idade Média, muita, muita gente boa foi mesmo torturada e queimada lentamente na fogueira, por ordens da Igreja. Nas palavras de uma bula do papa Inocente III, “qualquer um que tente imaginar uma concepção pessoal de Deus que entre em conflito com o dogma da Igreja deve ser impiedosamente queimado”.
Quanto aos trovadores, o fato é que eles acabaram porque foram perseguidos pela Igreja como hereges cátaros (dos quais um milhão foram mortos). Por isso, suas obras foram recuperadas na época moderna, graças, afinal, ao triunfo do laicismo, do secularismo, do iluminismo.
A meu ver, não somente não há absolutamente nenhum potencial libertário nas religiões monoteístas, como não há nada mais nocivo à liberdade de pensamento – e a toda liberdade – do que tais religiões. Caso você leia em alemão, recomendo a obra de Karlheinz Dechner, “Kriminalgeschichte des Christentums”, em que ele calcula em dez milhões o número de vítimas do Cristianismo.
Abraço
Caros amigos,
ResponderExcluirEu concordo com Antonio Cicero: não há nada mais nocivo à liberdade do que as religiões. Mas eu faria apenas um acréscimo, para mim, muito importante: deve-se incluir neste balaio as "religiões seculares", a saber, nazifascismo e comunismo. Deste último, deriva uma certa esquerda intolerante à RELIGIOSIDADE...
Também deve-se atentar para um certo ateísmo ou secularismo militante, geralmente de esquerda, e para o seu fervor religioso. Essa militância, organizada, vem provocando danos à liberdade, basta ver a proibição do uso de véus por mulheres muçulmanas, em alguns países europeus.
Dito isto, quero agora aprimorar o que disse antes: a liberdade corre mais risco diante de um homem militante, seja qual for a sua causa, do que propriamente diante de um homem religioso (que pode ser um indiferente). Se ainda há dúvidas, deixo vcs com Cioran:
"[...]
Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua ideia em deus: as conseqüências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela ideia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. [...]"
(CIORAN, "Breviário de decomposição", pp. 13/14)
Abraços
Aetano
Não sou relativista, mas a liberdade de expressão total e absoluta, como prega o editorial da Folha, me parece um exagero; que só atende mesmo aos interêsses de quem tem um jornal nas mãos. É o caso, por exemplo, de se perguntar: seria lícito, ou legítimo, alguém criar um blog em defesa da pedofilia, em nome da liberdade de expressão como um valor absoluto?
ResponderExcluirQuando se trata dessa questão dos valores hoje sempre me vem à lembrança um caso emblemático que teve ampla repercussão quando foi noticiado mas, estranhamente, logo foi relegado a um silêncio tumular: o daquele psicanalha paulista — pedófilo e gay — que sedava os seus pacientes adolescentes, filhos da classe média alta, pra abusar sexualmente deles. Ocorre que este senhor já tinha publicado livros nos quais defendia a pedofilia, com os argumentos — já bem conhecidos e surrados — de que era uma prática comum entre os gregos, a moral varia no tempo e no espaço, e que no futuro seria socialmente aceita.
Nem os pais destes pacientes, supostamente bem-informados, e nenhum dos seus pares da comunidade científica, ninguém, ao que se saiba, sequer o questionou por sua pregação. Depois do fato se tornar público foram pra imprensa, hipócritamente, se declarar estarrecidos, supresos e indignados com a conduta do médico. Quase tão violenta e covarde (ou mais, pela confiança depositada e a relação de poder envolvida) quanto a desses fanáticos islâmicos, ou dos homofóbicos que atacam os gays.
Até porque pedofilia é crime, fica a questão: não teria sido o caso desse médico (e a editora, inclusive) ser interpelado ao tornar públicas suas taras pessoais, ou ao menos ter sido questionado publicamente ?
Caro Aetano,
ResponderExcluirSim, as religiões seculares que você menciona estão no mesmo balaio que as religiões monoteístas. O problema tanto daquelas quanto destas é o culto a um absoluto positivo.
Não concordo quanto à sua crítica ao que chama de “ateísmo militante”. Essa é a designação que a direita religiosa dá a defensores do ateísmo como Richard Dawkins, Christopher Hitchens e outros. Ora, eles nada têm de “fervor religioso”. Em artigo de 2007, expliquei o que penso sobre esse assunto. É o seguinte:
Há quem se surpreenda com o fato de que, aparentemente, foram editados mais livros anti-religiosos na primeira década do século 21 do que nas últimas cinco décadas do século 20. Só dos livros traduzidos para o português, lembro-me, além do de Dawkins, do de Michel Onfray ("Tratado de Ateologia"; Martins Fontes, 2006), do de Daniel Dennet ("Quebrando o Encanto"; Globo, 2006), e do de Christopher Hitchens ("Deus Não É Grande"; Ediouro, 2007).
A que se deve esse fenômeno editorial? Em grande parte, sem dúvida, à percepção do risco que correm os direitos humanos em toda parte do mundo – ou melhor, à percepção do risco que corre o próprio mundo –, tanto em conseqüência dos atentados terroristas perpetrados por extremistas religiosos muçulmanos quanto em conseqüência do aumento da influência dos extremistas religiosos cristãos sobre a política interna e externa norte-americana.
Mas a questão realmente interessante talvez seja outra: por que é que, ao contrário do que ocorreu nos séculos 18 e 19, é difícil lembrar algum livro desse tipo que se tenha destacado, no século 20, na Europa ou nos Estados Unidos? Houve, sem dúvida, inúmeros ateus e agnósticos entre os cientistas, filósofos, escritores e artistas da época, mas, com a exceção de Bertrand Russell, não me ocorre nenhum pensador importante que tenha escrito específica e explicitamente contra a religião.
Será talvez que se haja pensado, como Marx, que a crítica da religião já se tivesse completado? A melhor descrição que conheço do estado de espírito em que, no que toca a religião, a maior parte dos intelectuais se encontrava no final do século 20 é a que o filósofo norte-americano John Searle fez, no seu admirável livro "Mind, Language and Society", de 1998.
Para ele, o mundo moderno simplesmente se desmistificara. Um exemplo dessa desmistificação é, segundo ele, a história de são Miniato, em honra ao qual ergue-se a igreja de San Miniato, em Florença. São Miniato foi um mártir cristão. Tendo sido condenado à morte, ele sobreviveu ao ataque de leões na arena, mas acabou sendo decapitado. Levantou-se então, pôs a cabeça debaixo do braço, saiu da arena, atravessou o rio e saiu da cidade. Em seguida, subiu até o topo do morro ao sul do Arno, e lá se sentou. Nesse lugar foi construída a sua igreja.
Segundo Searle, hoje os guias da cidade têm até vergonha de contar essa história. "O que interessa", diz, "não é o fato de que a consideramos falsa, mas o fato de que não a levamos a sério nem mesmo como uma possibilidade".
"Hoje em dia", observava Searle, "até evocar a questão da existência de Deus é considerado de mau gosto. Os assuntos religiosos são como os que dizem respeito às preferências sexuais de cada qual: não devem ser discutidos em público, e mesmo as questões abstratas só são discutidas por chatos".
Searle escreveu o texto há menos de dez anos; no entanto, ele já parece pertencer a outra época. Em 2007, é evidente que, longe de se limitarem à esfera privada, algumas religiões alimentam o sonho teocrático de privatizar o espaço público e policiar o privado. Assim, é importante que se escrevam e discutam livros como o de Dawkins.
Abraço
Caro anônimo,
ResponderExcluirNão creio que o caso que você relata seja argumento convincente na defesa da censura.
É que me parece evidente que o psicanalista teria abusado de seus pacientes adolescentes, ainda que não tivesse escrito seus artigos, ou que seus artigos houvessem sido censurados. E o fato de ele os ter escrito poderia ter alertado os pais dos adolescentes sobre suas ideias. Além disso, seus artigos e seu pensamento, poderiam, de fato ter sido criticados na própria imprensa, já que ele os publicou. Se não foram, é evidente que a culpa não pode ser atribuída à liberdade da imprensa.
Caríssimo Cicero,
ResponderExcluirQue a expressão "ateísmo militante" tenha a sua origem na "direita religiosa" não me diz nada, já que não a utilizei com a mesma finalidade apontada por você, qual seja, criticar os defensores do ateísmo. Acho de suma importância que os ateus possam manifestar suas convicções e até me divirto quando estou diante de um ateu bem-humorado (coisa que Dawkins definitivamente não é).
A minha intervenção tinha por objetivo:
1) alargar o balaio "religião";
2) estabelecer, em consequência, que o religioso missionário (não o indiferente) é apenas uma espécie de um gênero muito mais amplo, a saber, o militante fervoroso, que defende a sua causa, qualquer que seja ela, com a ardência e a intolerância de um fanático.
Esperto ter conseguido esclarecer.
Forte abraço,
Aetano
Caro Aetano,
ResponderExcluirObservei que “ateísmo militante” é a designação que a direita religiosa dá a defensores do ateísmo como Richard Dawkins, Christopher Hitchens e outros. Pela sua observação de que “Dawkins definitivamente não é” um “ateu bem-humorado”, suponho que você o considere um “homem militante”.
Eu não teria objeção a isso, se você não houvesse dito, na postagem anterior, que “a liberdade corre mais risco diante de um homem militante, seja qual for a sua causa, do que propriamente diante de um homem religioso (que pode ser indiferente)”. Parece-me, então, que você supõe que a liberdade corre riscos diante de homens como Dawkins. Ora, isso é um completo absurdo, uma vez que a “militância” de Dawkins se dá exatamente em defesa da liberdade, contra os fanáticos religiosos que a ameaçam.
Mas já expliquei o que penso sobre Dawkins em três artigos que se encontram no blog, e não pretendo me repetir. Você pode encontrá-los no endereço
http://antoniocicero.blogspot.com.br/search/label/Richard%20Dawkins.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro Cícero,
ResponderExcluirNão é possível, a partir do que escrevi, inferir que Dawkins é um ateu militante! Eu disse apenas que ele não é bem-humorado. A sua suposição, me perdoe, é um exagero: imagina se agora chamar alguém de mal-humorado é considerá-lo um militante fanático!? Ademais, eu sempre fui muito claro nas minhas colocações: se eu considerasse Dawkins um militante fanático, por que eu não diria isso diretamente?
Eu também não pretendo mais me repetir, já que apontei, na postagem anterior, quais eram os objetivos da minha intervenção. Vez que sobre estes vc silenciou, é com felicidade que recebo a sua aquiescência.
Abraço
Aetano
Caro Cícero;
ResponderExcluirDevo estar me expressando muito mal se em algum momento, de alguma forma, passei a ideia da intenção de defender a censura.
O problema da liberdade de expressão não se restringe à questão religiosa, embora essa, de fato, seja central. Ateus, ou agnósticos, também tem valores e não são amorais, necessariamente. E ser amoral é também uma forma de moral.
O artigo diz:
"...a afirmação do direito de dizer o que se pensa está na origem das principais conquistas da civilização ocidental."
E quando esse direito, concebido como absoluto, significar uma ameaça a essas mesmas conquistas que diz defender? Quem comunica ao comunicador que o conteúdo da sua comunicação está ferindo essas conquistas?
No relativismo pós-moderno, onde vigora o gozo a qualquer preço e o ser humano é visto como objeto desse gozo, ou mercadoria, não falta muito pra alguém propor a abolição do tabu do incesto. Os estupradores das próprias filhas — e adeptos de práticas conexas — vão adorar. A relativização de valores fundamentais dá nisso: quem exerce algum tipo de poder sobre o Outro estabelece o que é lícito. Me detenho nesses exemplos porque considero o que a pessoa tem de mais íntimo, de mais inviolavelmente seu, o próprio corpo (e não separo corpo e alma).
Não sou filósofo (apenas fiz uma cadeira de Introdução à Filosofia) mas me ocorre que, talvez, seja importante pensar melhor a concepção, o conceito de liberdade.
Também não sou especialista em Direito mas me parece que defender a pedofilia, por exemplo, assim como injúria, difamação, etc., sejam 'crimes de opinião'. Interpelar alguém por cometer um desses crimes seria censura? Seria preciso, portanto, conceituar também com mais rigor o que vem a ser 'censura', de fato.
Essa era a minha motivação, na verdade: comentar sobre a questão dos valores, e a sua aplicação, na prática.
Em Tempo: às vêzes penso que o fantasma da ditadura ainda ronda o nosso tempo, e a qualquer questionamento que implique numa suposta restrição a uma pretensa "liberdade absoluta", seus prosélitos nos assombram com essa alma penada. Claro que, por tudo que tenho lido nesse blog, não considero que seja o seu caso.
ResponderExcluirdrauzio varella, em entrevista ontem no jô soares, disse que é ateu. tanto o apresentador quanto o público me pareceram constrangidos. o médico deu uma declaração super bonita e bem articulada, mas ninguém o aplaudiu (como geralmente é feito nesses momentos).
ResponderExcluirpor isso tanta gente continua a se dizer agnóstica, mesmo que não o seja. uma vez que a palavra é obscura - quase mística -, ela se presta a eufemizar uma declaração que ainda é vista, pela maioria das pessoas, como uma coisa doentia. muita gente ainda vê no ateísmo uma espécie de "lepra espiritual".
*
salman rushdie tem uma frase lapidar sobre o assunto: "é possível que, em algum ponto, elas [as crenças religiosas] pareçam inescapáveis, não do modo que a verdade é inescapável, mas do modo que o é uma prisão."
o texto de rushdie, simplesmente brilhante, está aqui: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0901200018.htm
Caro Aetano,
ResponderExcluirComo ando muito ocupado, acabei deixando passar alguns pontos em que discordo fundamentalmente de sua formulação do problema.
Quando você diz, no seu primeiro comentário, que
“não há nada mais nocivo à liberdade do que as religiões. Mas eu faria apenas um acréscimo, para mim, muito importante: deve-se incluir neste balaio as "religiões seculares", a saber, nazifascismo e comunismo. Deste último, deriva uma certa esquerda intolerante à RELIGIOSIDADE...”
Posso concordar.
1) Mas não concordo, quando diz:
“Também deve-se atentar para um certo ateísmo ou secularismo militante, geralmente de esquerda, e para o seu fervor religioso. Essa militância, organizada, vem provocando danos à liberdade, basta ver a proibição do uso de véus por mulheres muçulmanas, em alguns países europeus”.
2) Tampouco concordo quando diz que
“a liberdade corre mais risco diante de um homem militante, seja qual for a sua causa, do que propriamente diante de um homem religioso (que pode ser um indiferente)”.
Sobre (1), não concordo que o ateísmo ou secularismo militante tenha causado danos à liberdade.
E nesse ponto, penso que é preciso distinguir duas coisas. O que é liberticida é toda militância a favor de alguma positividade tida como absoluta, seja uma entidade, isto é, Deus, seja uma doutrina, como a nazista ou a comunista.
Já o ateísmo ou secularismo – sendo precisamente lutas contra a própria pretensão a tomar uma positividade, seja qual for, como absoluta – são militâncias libertárias, e não liberticidas como aquelas.
Sendo assim, não posso concordar com (2). A liberdade não corre risco diante da militância pela própria liberdade. É preciso que haja tal militância.
Quanto à proibição do uso de véus por mulheres muçulmanas, já me pronunciei sobre isso. Penso que, longe de liberticida, ele liberta as mulheres de uma opressão religiosamente machista. Aliás, na época, parece-me que você também pensava assim. Veja http://antoniocicero.blogspot.com.br/2009/06/sarkozy-e-burca.html.
Abraço
Caro Cicero,
ResponderExcluirA minha ocupação é uma preocupação. Preocupa-me a sua ocupação e, talvez por isso mesmo, a nossa falta de disposição para o debate.
Para não me repetir e para não cansá-lo (preso muito o tempo de quem admiro), eu optei por segui-lo no encerramento da nossa conversa, vez que os nossos respectivos pontos de vista já tinham sido suficientemente expostos.
Não estaria motivado a retomar essa discussão, se não fosse a necessidade de esclarecer alguns pontos:
1) Vc diz que "liberticida é toda militância a favor de alguma positividade tida como absoluta, seja uma entidade, isto é, Deus, seja uma doutrina [...]. Já o ateísmo ou secularismo – sendo precisamente lutas contra a própria pretensão a tomar uma positividade, seja qual for, como absoluta – são militâncias libertárias, e não liberticidas".
De saída, quero dizer que aqui não há como haver acordo, dado o caráter fortemente idiossincrático do seu conceito de ateísmo e secularismo. Com efeito, para mim, ateísmo é, e sempre foi, apenas uma doutrina que nega a existência de Deus, nada mais. Quem tiver a curiosidade de percorrer suas postagens sobre "ateísmo" verá que esse conceito que vc ora apresenta é, além de idiossincrático, inédito, se considerado o seu próprio pensamento (a propósito, o mesmo se deu quando conversávamos sobre "direita" e "esquerda". Naquela oportunidade, vc lançou mão de um conceito de esquerda nunca dantes visto nos seus próprios textos. Mas, tudo bem, até gosto disso...).
Do seu conceito de ateísmo, deduz-se que um ateu é alguém para quem não há positividades absolutas. Ora, mas o comunismo - que vc diz ser uma positividade absoluta - é uma doutrina defendida eminentemente por ateus. E aí? Já enxergo vc dizer que eles, independentemente de como se denominem, e apesar de não crerem em Deus, não são verdadeiramente ateus... Nesse caso, eu pedirei que vc tente entrar em acordo com eles...
[segue]
[2a parte]
ResponderExcluir2) Noutro ponto, vc diz que a liberdade não corre risco "diante da militância pela própria liberdade". Ocorre que a proibição do uso do véu, que eu mencionei anteriormente, tem entre seus defensores pessoas que dizem militar em prol da "liberdade das mulheres". Vc mesmo, que é um libertário, agora diz que concorda com a proibição do uso do VÉU, muito embora, numa conversa mantida comigo, por e-mail, fosse outra a sua opinião (mas, tudo bem, eu até aprecio isso...).
3) Aprecio tanto a mudança sincera de opinião que, no tocante ao uso da BURCA (e não véu, como vc mencionou), mudei a minha - basta ver aqui: http://www.blogger.com/comment.g?blogID=4784026675001070232&postID=6178422474263837301.
Mudei porque fui convencido pelos artigos da "Human Rights Watch" - instituição que é contra a proibição do uso da burca e do véu. Sugiro uma lida no trabalho "Discrimination in the name of neutrality", aqui: http://www.hrw.org/en/reports/2009/02/25/discrimination-name-neutrality-0.
Na ocasião, vc leu e concluiu:
"Aetano,
As mulheres que você cita estudaram e são professoras na Alemanha e, de fato, usam a burca porque querem.
Mas a imensa maioria jamais teve a liberdade de estudar fora, para saber que há outros estilos de vida possíveis. É o que mostram Hirsi Ali (que descobriu essa possibilidade quando já havia sido submetida à clitorectomia) ou Necla Kelek, que cito na resposta ao Edson. NESSES CASOS, a burca representa a escravidão da mulher ao homem.[...]"
(Grifei)
Forte abraço, Cicero!
Aetano
Errata:
ResponderExcluirEu disse "preso" (arghhh), mas queria dizer "prezo". De todo modo, prezar é um modo de estar preso.
Aetano
Caro Aetano,
ResponderExcluir1) Meu conceito de “ateísmo” é o do Houaiss: “doutrina ou atitude de espírito que nega categoricamente a existência de Deus, asseverando a inconsistência de qualquer saber ou sentimento direta ou indiretamente religioso, seja aquele calcado na fé ou revelação, seja o que se propõe alcançar a divindade em uma perspectiva racional ou argumentativa”.
Aquele que nega a existência de Deus está negando a positividade absoluta que as religiões monoteístas chamam de “Deus”. A meu ver, essa negação que, no Ocidente, ocorreu principalmente a partir da Renascença e do Iluminismo, tem um caráter eminentemente libertário. Assim foi o ateísmo de Feuerbach e o de Marx.
É claro que é possível que alguém dê esse passo e, logo em seguida, ponha no lugar de Deus uma outra positividade qualquer, tida como absoluta. É como dar um passo a frente e outro atrás. É o caso dos militantes marxistas-leninistas que, tendo dado o passo libertário de negar a existência de Deus, acabam por colocar no lugar dele suas convicções políticas, que consideram como verdades ao mesmo tempo positivas e absolutas.
2) Jamais mudei de opinião acerca da burca. Trata-se de uma vestimenta que priva a mulher de ter um rosto, uma persona, uma personalidade, uma identidade pública. Isso é um modo de mantê-la como um ser privado, privativo, propriedade da família e, em particular, do marido. No artigo acima citado, digo que “haverá sem dúvida mulheres que gostam de usar a burca, pois, como diz Sartre, há quem prefira ser coisa do que ser gente, mas penso que a proibição é o único caminho para permitir que as muitas mulheres que se sintam humilhadas por essa vestimenta-prisão livrem-se dela. Sem a proibição, é certo que muitas mulheres que não gostam da burca sejam obrigadas a usá-la pelos maridos que, no Islã, têm o direito de surrar suas esposas.”
No e-mail que você cita, menciono um outro grupo de mulheres: as que estudaram no Ocidente e usam a burca como sinal de afirmação e aprovação de sua cultura de origem. Mas, como lá afirmo, “a imensa maioria das mulheres que usam a burca jamais teve a liberdade de estudar fora, para saber que há outros estilos de vida possíveis. Nesses casos, a burca representa a escravidão da mulher ao homem”. Ora, assim é a imensa maioria das mulheres que usam a burca. Penso que a vaidade de algumas mulheres que, embora ocidentalizadas, achem algum charme em ostentar uma vestimenta exótica pode perfeitamente ser sacrificada, quando se trata de liberar centenas de milhares de mulheres oprimidas.
Abraço
Caro Cícero,
ResponderExcluirGostaria que vc me respondesse algumas perguntas:
1) Como vc compatibiliza o conceito do Houaiss - que se refere apenas a UMA espécie de positividade absoluta, qual seja, "Deus" - com o seu conceito enunciado lá atrás, segundo o qual o ateísmo seria a luta "contra a própria pretensão a tomar uma positividade, SEJA QUAL FOR, como absoluta"? (grifei). Não está suficientemente claro que o seu conceito de ateísmo é mais abrangente, já que engloba "Deus e seus sucedâneos", ou seja, QUALQUER positividade tida como absoluta?
2) Na sua opinião, quem nega a existência de Deus e, logo em seguida, põe "no lugar de Deus uma outra positividade qualquer, tida como absoluta", é ou não ATEU?
3) Noutro ponto, vc diz que jamais mudou de opinião acerca da BURCA. Ora, procuro à minha direita, à minha esquerda, à frente, atrás e em mim e não encontro quem tenha lhe acusado disso (embora aquela manifestação sua que eu transcrevi seja ambígua, no meu entender). O que disse expressamente é que a sua opinião sobre o uso do VÉU, aqui exposta, é diferente da que vc me informou através de e-mail, onde fica clara a sua posição contrária à proibição do uso do VÉU. Mas acho legítimo e até saudável a mudança sincera de opinião. Todavia, para que fique claro, de uma vez por todas, eu pergunto: afinal, vc é contra ou a favor da proibição do uso do VÉU?
4) Vc diz: "Penso que a VAIDADE de algumas mulheres que, embora ocidentalizadas, achem algum CHARME em ostentar uma vestimenta EXÓTICA pode perfeitamente ser sacrificada, quando se trata de liberar centenas de milhares de mulheres oprimidas." (grifei). Pergunto: depois de ter lido a matéria de uma organização insuspeita como a Human Rights Watch, vc, que é um um intelectual brilhante, um defensor dos direitos humanos vai reduzir uma opção consciente, séria, sopesada a uma mera questão de "vaidade" e "charme"? Isso denuncia uma má-vontade da sua parte, Cicero. E daí para a militância, é só um passo...
Forte abraço!
Aetano
Caros amigos,
ResponderExcluirEsse ponto da conversa fez-me lembrar de um artigo da Fernanda Torres, publicado na Folha de São Paulo, em 20/01/2012, onde ela diz:
"Caetano [...] confessou que também não acreditava em Deus na adolescência.
Mais velho, no entanto, percebeu uma censura repressora por trás da rejeição da esquerda ao sagrado e se reaproximou do divino."
(grifei)
Reflitamos...
Abraços
https://twitter.com/Aetano
Caro Cicero,
ResponderExcluirVeja o que diz o ilustre ateu, conhecido por vc, Hélio Schwartsman (de quem eu gosto muito):
"Destacam-se, hoje, duas formas de ateísmo. Há aquele mais militante, de Richard Dawkins e Christopher Hitchens, que procura nos convencer de que a ideia de um criador é absurda, e há um outro mais sutil, dos físicos, que, seguindo a tradição inaugurada por Laplace, sugerem que Deus é uma hipótese desnecessária."
(Folha de São Paulo, sexta-feira, 14 de setembro de 2012)
https://twitter.com/Aetano
Aetano,
ResponderExcluir1) Parece-me evidente que a definição do Houaiss é correta até do ponto de vista etimológico, já que a-theos significa literalmente “sem deus”.
Assim, quando falei do ateísmo como a “luta contra a pretensão a tomar uma positividade, seja qual for, como absoluta”, o que eu tinha em mente era que, dado que o arquétipo de toda positividade absoluta é Deus, então toda positividade absoluta é o que os alemães chamam de Gottersatz, isto é, um substituto do Deus tradicional, um “Deus genérico”, por assim dizer. Por isso, usando a palavra nesse sentido ampliado (e, por isso mesmo, a rigor, impróprio), o verdadeiro ateu rejeitaria tanto o Deus tradicional quanto o “Deus genérico”.
No entanto, como é possível que alguém rejeite o Deus tradicional, mas adote um “Deus genérico”, como fazem muitos marxistas-leninistas, então, para distinguir uma coisa da outra, é melhor usar a palavra “ateu” no seu sentido rigoroso, estreito e etimológico.
2) No sentido rigoroso que acabo de explicar, quem não acredita em Deus é ateu, ainda que ponha no lugar de Deus uma outra positividade qualquer. Contudo, não se pode negar que, num sentido muito amplo, essa pessoa está usando um “Gottersatz”, um “Deus genérico”.
3) Quanto ao véu, a confusão foi que, quando você falou há pouco contra a proibição dos véus por mulheres muçulmanas, entendi que você se referia à burca. Em suma, usei a palavra “véu” num sentido genérico. Não sou contra a proibição de qualquer véu, mas sim da burca.
4) Não penso que a redução de milhares de seres humanos a escravas domésticas – que é um dos maiores crimes concebíveis – possa tolerada, em nome da concessão de liberdade a algumas intelectuais para exibirem uma opção religiosa ou nacionalista.
Aetano,
ResponderExcluircomo eu já afirmei aqui muitas vezes, penso ser uma verdade lógica que não é concebível nenhuma positividade absoluta. Além de ser uma hipótese desnecessária, a afirmação da existência de tal ser é também absurda.
Sendo assim, a crença em Deus é irracional. Por isso, as religiões tendem ou ao sofisma ou -- cada vez mais -- ao irracionalismo. Ora, o irracionalismo é capaz de justificar os piores horrores.
Caro Cicero,
ResponderExcluirObrigado pelos esclarecimentos. Não retomarei a conversa, já que nossos pontos de vista já foram exaustivamente expostos. Embora eu discorde de vc em alguns pontos, não deixo de admirar a sua disposição para a conversa. Isso é raríssimo, não só entre intelectuais. Diante do (necessário) declínio das autoridades tradicionais, hoje, toda e qualquer celebridade - até mesmo a mais vazia - é uma "autoridade". E, enquanto tal, julgam-se "modernas" e, simultânea e paradoxalmente, inquestionáveis. Vc, sendo um intelectual célebre, não se furta ao debate. Nada mais natural num kantiano, mas, ainda assim, não se pode deixar de reconhecer que isso é nobre. Muito nobre.
Forte abraço!
https://twitter.com/Aetano
Acho proibir a burca tão ruim quanto obrigar o uso dela. Não vejo diferença, do ponto de vista da liberdade.
ResponderExcluirAnônimo,
ResponderExcluirNão entendo como é que alguém não vê a enorme diferença entre as duas coisas. Sem a proibição da burca, milhares de mulheres são proibidas, pelos maridos e pela religião, de usar qualquer modelo de roupa, exceto a burca; com a proibição, todas as mulheres podem usar qualquer modelo de roupa, exceto a burca.
Não ver a diferença é como não ver a diferença entre, por um lado, estar preso num apartamento, do qual se é proibido de sair para qualquer outro lugar, e, por outro lado, estar inteiramente solto, apenas sendo proibido de entrar em um determinado apartamento.
O debate sobre o uso da burca nos remete à questão que apontei antes, quanto à necessidade de se conceituar com mais rigor 'liberdade' e 'censura': proibir esse uso poderia ser considerado uma forma de censura? Nesse caso, a proibição de se andar nu na rua também seria?
ResponderExcluirVoltamos ao problema da preservação de valores fundamentais como conquistas civilizatórias. Civil vem de civis, o cidadão, aquele que habita a cidade, o espaço público. Este, sendo compartilhado por todos, requer respeito a regras mínimas de convivência.
Refletindo sobre o tema formulei algumas hipóteses que às vêzes me soam um tanto simplórias, mas em outras me parecem tão evidentes e óbvias que me admira que outros não as observem com a mesma clareza: a burca esconde, oculta a persona do sujeito com o qual vc está interagindo no espaço público.
Até por um princípio de igualdade, acho que tenho o direito de saber se aquele ser que fequenta o mesmo cinema que eu, a praça, a fila do banco, a repartição, a mesma via pública, etc., é homem ou mulher, está armado ou não, é mais ou menos simpático, etc., etc., assim como eu me mostro na minha inteireza, pelo menos fisionomicamente. E a burca não permite nada disso.