31.8.08

Platão: do "Simpósio"

Do discurso de Fedro sobre o amor, do Simpósio, de Platão:



[...] Mas Orfeu, filho de Eagro, foi de mãos vazias expulso do Hades pelos deuses, que lhe mostraram uma imagem da mulher pela qual ele viera, mas não a entregaram em pessoa, pois ele lhes pareceu ter fraquejado – mero cantor que era – por não ter tido a coragem de morrer, como Alceste, pelo seu amor, e ter maquinado entrar vivo no Hades. E foi por essa razão que eles o justiçaram, fazendo-o morrer pelas mãos de mulheres; ao contrário de Aquiles, filho de Tétis, a quem honraram e enviaram para as ilhas dos bem-aventurados, já que ele, embora informado pela mãe de que morreria, caso matasse Heitor, e que, se não o fizesse, regressaria para casa e terminaria seus dias na velhice, ousou preferir defender seu amante, Pátroclo, e vingá-lo; e assim morreu não apenas pelo seu amante mas para segui-lo: por isso os deuses o admiraram a tal ponto – por ter valorizado seu amante acima de tudo – que o honraram de modo tão magnífico. E Ésquilo diz tolice, quando afirma que Aquiles era o amante de Pátroclo, pois Aquiles era mais belo, não só do que Pátroclo, mas do que todos os outros heróis, e era ainda imberbe, logo muito mais jovem, como diz Homero. Pois na verdade a virtude mais honrada pelos deuses é a que diz respeito ao amor, e admiram e prezam e recompensam mais o carinho do amado pelo amante do que o do amante pelo amado: pois é mais divino o amante do que os rapazes que ama, já que está possuído por um deus: por isso Aquiles foi mais honrado que Alceste, quando foram enviados às ilhas dos bem-aventurados. [...]




De: PLATÃO. "Symposium". Platonis opera. Vol.2. BURNET, John (Org.). Oxford: Clarendon Press, 1901.


Texto grego:


27.8.08

Duda Machado: "para trás para nunca mais"





De: Duda Machado. “Zil”. In: Crescente (177-1990). São Paulo: Duas Cidades: Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

25.8.08

Lewis Carroll: de "As aventuras de Alice no país das Maravilhas"

“Para o lado de lá”, disse o Gato [de Cheshire], apontando com a pata direita, “vive um Chapeleiro: e para o lado de lá”, apontando com a outra pata, “vive uma Lebre de Março”. Visite qualquer um dos dois: ambos são loucos”.
“Mas não quero encontrar gente louca”, observou Alice.
“Ah, isso não tem jeito”, disse o Gato: “Somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca”.
“Como é que você sabe que eu sou louca?” disse Alice.
“Só pode ser”, disse o Gato, “ou não estaria aqui”.



De: CARROLL, Lewis. "Alice's adventures in Wonderland". In: GARDNER, Martin (Org.). The annotated Alice. London: Penguin Books, 1970.

24.8.08

A elitização brasileira

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 23 de agosto:



A elitização brasileira

NÃO SOU o primeiro e certamente não serei o último a criticar o abuso da palavra "elite" no Brasil. Como não fazê-lo? Em política, a imprecisão conceitual só serve aos oportunistas.

É sobretudo no vocabulário de quem se considera "de esquerda" que essa palavra costuma aparecer. Seu uso entre "soi-disant" marxistas resulta de um desleixo conceitual que mostra que nem mais eles levam a sério a teoria em que pretendem se basear.

O emprego da palavra "elite" na sociologia se estabeleceu a partir das obras de Vilfredo Pareto e de Gaetano Mosca. Sua pretensão era substituir o conceito marxista de "classe dominante". Pareto afirmava que há, em toda sociedade, um estrato inferior e um estrato superior. O estrato superior constitui a elite, que é composta pelos indivíduos mais capazes. Segundo Mosca, o domínio da minoria sobre a maioria se explica pela organização da primeira, que é composta por indivíduos que possuem um atributo, real ou aparente, altamente valorizado pela sociedade em que vivem.
Ao criticar as "teorias da elite", os marxistas atacaram tanto a pretensão, nelas embutida, de que a estratificação social seja supra-histórica, universal, eterna, quanto o fato de que elas desviam atenção do fundamental, que é a base econômica da sociedade.

Suponho que os marxistas brasileiros tenham ignorado essas e outras críticas em conseqüência, pelo menos em parte, da influência que sofreram de políticos e intelectuais não-marxistas, durante a luta contra a ditadura. Entre esses, destaca-se, por exemplo, o antropólogo Darcy Ribeiro, que não hesitava em falar da "maldade" da elite: "velha elite, feita de filhos e netos de senhores de escravos calejados na maldade; de ricaços descendentes de imigrantes que olham de cima, com desprezo, a quem não enricou também; e sobretudo desta casta de gerentes das multinacionais, só leais a seus patrões".

Segundo essa perspectiva, é por culpa de uma elite má que temos os problemas que temos. O Brasil, diz Darcy, é "um país que não deu certo, por culpa não do seu povo, mas das elites". "Maldade", "culpa": é fácil entender que também os teólogos da libertação – católicos – tenham se reconhecido nessa linguagem, excelente catalisadora de todo ressentimento difuso.

Tal tipo de "explicação" psicologista da realidade social é absolutamente incompatível com o pensamento de Marx, em que não entram em jogo "culpas" ou "maldades". Para Marx, a relação das diferentes classes sociais entre si é determinada em primeiro lugar pelo caráter das relações de produção vigentes na formação sócio-econômica em consideração.

De todo modo, não é difícil entender como, paradoxalmente, a vulgarização da teoria das elites –que havia sido introduzida na sociologia para enfrentar as teorias liberais e socialistas, e que era simpática ao fascismo – pôde dar subsídios exatamente para a execração das elites. É que, já que a dominação destas não se explica pela estrutura econômico-social, mas pela sua putativa superioridade, é concebível que essa "superioridade" se reduza ao maquiavelismo com que se supõe que elas submetem as massas, por meio da doutrinação, da violência, da intimidação, da intriga, da corrupção, do engodo: em suma, da "maldade".

Já a facilidade dessa inversão vulgar do sentido da teoria das elites seria suficiente para evidenciar sua inanidade teórica. Mas isso não é tudo. Além de não ser capaz de explicar coisa nenhuma, a noção de "elite" é vaga demais para ter qualquer eficácia cognitiva.

Essa ineficácia ficou comicamente clara no ano passado, quando o apresentador de programa de televisão Luciano Huck, ao ter seu relógio roubado, escreveu um artigo na Folha, queixando-se da insegurança das cidades brasileiras. Uma enxurrada de cartas à redação o atacou, alegando que, pertencendo à elite, ele não tinha qualquer direito de se queixar. Uma delas foi do cantor Zeca Baleiro. No dia seguinte, uma leitora escrevia: "Lamentável o comentário dele sobre o texto de Luciano Huck – como se Zeca Baleiro não fizesse parte dessa elite".

O fato é que, cada vez mais, também a classe média tem sido chamada de "elite" pela esquerda. Consequentemente, como as estatísticas indicam que o Brasil é cada vez mais um país de classe média, trata-se sem dúvida de um país em que, segundo a esquerda, quase todos fazem parte da elite. Será a pior elite do mundo, como muitos afirmam? Não sei; mas é certamente a mais autoflagelante.

22.8.08

Paul Valéry: sobre a falta de tempo

Outro dia, por ocasião do lançamento do excelente O livro das citações, do Eduardo Giannetti, conversei com ele sobre a epidemia da falta de tempo que, paradoxalmente, assola nosso mundo informatizado. Ele se lembrou então de um texto (citado exatamente n’O livro das citações) em que Valéry, em 1935, já falava desse flagelo. Ei-lo:



O tempo livre que tenho em mente não é o lazer tal como normalmente entendido. O lazer aparente ainda permanece conosco, e, de fato, está protegido e propagado por medidas legais e pelo progresso mecânico. As jornadas de trabalho são medidas, e a sua duração em horas, regulada por lei. O que eu digo, porém, é que o nosso ócio interno, algo muito distinto do lazer cronometrado, está desaparecendo. Estamos perdendo aquela paz essencial nas profundezas do nosso ser, aquela ausência sem preço na qual os elementos mais delicados da vida se renovam e se confortam, ao passo que o ser interior é de algum modo liberado de passado e futuro, de um estado de alerta presente, de obrigações pendentes e expectativas à espreita. Nenhuma preocupação, nenhum amanhã, nenhuma pressão interna, mas uma forma de repouso na ausência, uma vacuidade benéfica que traz a mente de volta à sua verdadeira liberdade, ocupada apenas consigo mesma. Livre de suas obrigações para com o saber prático e desonerada de qualquer preocupação sobre o porvir, ela cria formas tão puras como o cristal. Mas as demandas, a tensão, a pressa da existência moderna perturbam e destroem esse precioso repouso. Olhe para dentro e ao redor de si! O progresso da insônia é notável e anda pari passu com todas as outras modalidades de progresso.

PAUL VALÉRY (1935)


In: GIANNETTI, Eduardo. O livro das citações. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

16.8.08

Philip Larkin: "Going" ("Indo")

Indo

Há uma noite a chegar
Através dos campos, uma jamais antes vista,
Que não acende lâmpadas.

Sedosa parece à distância, contudo
Quando encobre os joelhos e o peito
Não traz conforto.

Aonde foi a árvore, que prendia
A terra ao céu? O que está sob minhas mãos
Que não consigo sentir?

O que pesa em minhas pensas mãos?



Going

There is an evening coming in
Across the fields, one never seen before,
That lights no lamps.

Silken it seems at a distance, yet
When it is drawn up over the knees and breast
It brings no comfort.

Where has the tree gone, that locked
Earth to sky? What is under my hands,
That I cannot feel?

What loads my hand down?



De: LARKIN, Philip. Collected poems. Org. Anthony Thwaite. London: Faber and Faber, 1988.

15.8.08

Jean-Jacques Rousseau sobre a preguiça

É inconcebível a que ponto o homem é naturalmente preguiçoso. Dir-se-ia que ele só vive para dormir, vegetar, ficar imóvel; ele mal consegue se dispor a fazer os movimentos necessários para se impedir de morrer de fome. Nada mantém tanto os selvagens no amor do seu estado que essa deliciosa indolência. As paixões que tornam o homem inquieto, previdente, ativo, só nascem na sociedade. Nada fazer é a primeira e a mais forte paixão do homem, depois da de se conservar. Olhando-se bem, vê-se que, mesmo entre nós, é para chegar ao repouso que cada qual trabalha; é a própria preguiça que nos torna laboriosos.


De: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Essai sur l'origine des langues. Paris: Aubier-Montaigne, 1974, p.129.

12.8.08

John Cage: de "A year from monday"

.

Provavelmente você conhece a dos dois monges, mas vou contar mesmo assim. Um dia eles estavam caminhando, quando chegaram a um riacho onde uma jovem estava à espera, com a esperança de que alguém a ajudasse a atravessar. Sem hesitar, um dos monges a levantou e carregou para o outro lado, pondo-a no chão em segurança.

Os dois monges continuaram caminhando e, depois de um tempo, o segundo, incapaz de se conter, disse ao primeiro: “Você sabe que não temos permissão para tocar em mulheres. Por que você carregou aquela mulher de um lado para o outro do rio?” O primeiro monge respondeu: “Ponha-a no chão. Eu já a pus no chão há duas horas.”



De: CAGE, John. A year from monday. New lectures and writings. Wesleyan University Press, 1969, p.133.

10.8.08

Notas sobre Vinícius de Moraes

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 9 de agosto de 2008:

Notas sobre Vinicius de Moraes


QUANDO COMECEI a apreciar a poesia de Vinicius de Moraes, ele já era famoso como letrista. Lembro-me de que alguns amigos dos meus pais comentavam que ele estava desperdiçando na música popular o seu extraordinário talento poético. Orgulho-me de lembrar que meus pais não concordavam com isso. Eu menos ainda.

O fato é que Vinicius foi uma grande novidade na música popular brasileira. Naturalmente, já tínhamos tido grandes letristas antes dele. Basta lembrar, entre tantos, Noel Rosa. Mas era fascinante que alguém já consagrado como poeta, responsável por alguns dos poemas líricos mais perfeitos da época, passasse a escrever também grandes letras de canções. E mais fascinante ainda era o fato de que essas letras, longe de serem, como se poderia esperar, mais literárias, mais impostadas, mais artificiais do que as dos letristas tradicionais, eram, ao contrário, menos literárias, impostadas, artificiais do que as da maior parte destes. Não fosse assim, e elas não poderiam ter feito parte da revolução que foi a invenção da bossa nova.

Antonio Candido diz que a poesia de Vinicius "combina de maneira admirável o requinte da fatura com a expressão íntegra das emoções. A espontaneidade foi a sua mais bela construção". Pois bem, isso se aplica não só aos poemas, mas às letras de Vinicius. E o mesmo poderia ser dito tanto da música de Tom Jobim quanto do canto e do violão de João Gilberto, assim como do todo, que é a canção cantada. Depurada de todo constrangimento que lhe fosse imposto por regras arbitrárias, uma canção de Tom e Vinicius gravada por João Gilberto é por nós apreendida como uma obra prima inteiramente espontânea, límpida, natural.

Hoje a bossa nova é quase universalmente reconhecida como uma das manifestações mais altas da cultura brasileira. Um disco como "Chega de Saudade" é pelo menos tão importante quanto qualquer outra obra de arte da mesma época.

Como é possível que se tenha pensado que, ao fazer letras de canções, Vinicius desperdiçasse seu talento? Talvez porque os gêneros artísticos eruditos fossem associados a linhagens nobres, e os gêneros artísticos populares, à ausência de linhagem. Assim como se supunha que um nobre valesse mais que um plebeu, independentemente do que fizesse, assim também se supunha que, independentemente do que ela "fizesse", uma obra que pertencesse a um gênero erudito valia mais do que uma obra que pertencesse a um gênero popular. Ou seja, ignorava-se – e ainda hoje muitos ignoram – a "Revolução Francesa" realizada pelas vanguardas, que já havia mostrado que uma obra de arte não é em primeiro lugar um membro de uma estirpe, mas um indivíduo, que vale pelos seus próprios méritos estéticos.

É devido a essa ignorância que, embora Vinicius até hoje seja muito popular tanto como letrista quanto como poeta, os literatos, intelectuais e acadêmicos medianos, que precisam classificar para "entender", passaram a ter dificuldades com ele, desde que se tornou letrista.

E a esse mesmo público Vinicius oferece um outro tipo de dificuldade, oposto, porém complementar, ao primeiro. É que a própria poesia escrita dele não se enquadra facilmente na grande linha do modernismo brasileiro. Ora Vinicius usa versos livres, ora versos métricos, e freqüentemente opta por formas fixas, entre as quais o soneto, construindo poemas espontâneos, límpidos, naturais e, no entanto, surpreendentes. Pois bem, o soneto, tendo sido a forma fixa mais praticada nas tradições ocidentais modernas, foi freqüentemente tomado como o símbolo do conservadorismo ou reacionarismo formal.

Isso porém representa mais um exemplo daquela postura que, recusando-se a considerar uma obra de arte como um indivíduo, prefere apreendê-la como membro de uma estirpe (neste caso, a dos sonetos), isto é, prefere prejulgá-la. Não pode haver atitude mais preconceituosa e reacionária em relação à arte.

Num poema, tudo é conteúdo: e tudo é forma. O que chamamos de "forma fixa" é uma forma que se repete. Mas cada palavra também é uma forma fixa, sendo uma forma que se repete. Entre formas que se repetem e formas que não se repetem é que se criam todos os poemas, inclusive os que se consideram experimentais.

E, como não há fórmula nem receita para criá-los, todo poema bom é, no fundo, experimental. Assim são os grandes poemas – inclusive os extraordinários sonetos – de Vinicius de Moraes, que merecem ser lidos (ou relidos como se lidos pela primeira vez) por mentes abertas.

8.8.08

Vinícius de Moraes: "Soneto do gato morto"

SONETO DO GATO MORTO


Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade

De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de eletricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.

Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto

Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.




De: MORAES, Vinícius de. Nova antologia poética. Org. por Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2008.

5.8.08

Inês Pedrosa: "O império do anticonvencional"

O seguinte artigo de Inês Pedrosa foi publicado no Expresso, de Lisboa, sábado, 2 de agosto de 2008:


O império do anticonvencional


COMO ESCUTAR o som cristalino de uma gargalhada numa sociedade que vive sob o jugo atroador do humor obrigatório? No século XIX era de bom tom exibir socialmente um tédio imenso, como uma espécie de manto de veludo que nos erguia acima dos gozos e das preocupações do comum dos mortais. É curioso observar como essa pose serve ainda de escudo visível a grupos bem definidos e opostos entre si - uma certa direita ultraconservadora, e uma certa esquerda auto-intelectualizante. Une-os uma mesma consciência atávica de superioridade. Escreve Antonio Cicero numa das suas iluminadoras crónicas, no jornal "Folha de São Paulo" (12/7/2008): "Não vejo superioridade nenhuma na pessoa cronicamente entediada. Se alguém, para parecer superior, precisa fingir estar entediada, é porque, na verdade, se sente inferior. Seu ar entediado é uma tentativa de se vingar dessa inferioridade. Por outro lado, uma pessoa que esteja sempre ou quase sempre genuinamente entediada não pode deixar de ser, em primeiro lugar, entediante: ela é entediada exactamente porque se entedia a si própria."

Porém, o espírito futurista, cibernético, arrasador, que o novo milénio impôs como moda conduziu-nos a um novo império, só aparentemente mais criativo e lúcido do que o do tédio: o do riso generalizado. Houve um tempo em que só as actrizes de telenovela diziam, quando entrevistadas, que o que mais apreciavam num homem era essa coisa indefinível e chique, adornada por uns fumos de inteligência, a que se dá o nome de "sentido de humor". Agora os homens também já perderam a vergonha de mentir (ou, até, a genuína noção de que mentem) e respondem, olhos nos olhos, que sim, a mulher ideal é a rainha do "sentido de humor" - muito embora a Scarlett Johansson continue a ter mais procura do que a Oprah Winfrey, romanticamente falando.

Subentende-se que o riso é, por si só, uma forma sofisticada de inteligência - e toda a gente se ri de tudo, o tempo inteiro. Os militantes do humor partilham com os aristocratas do tédio uma visão catastrófica do mundo - e, como bem sublinha Antonio Cicero, "o mundo é sempre o mundo contemporâneo". Tudo está mal - menos quem denuncia o mal, colocando-se assim imediatamente acima dele. "Vivemos sob o império da convenção da anticonvenção", observa o filósofo francês Alain Finkielkraut, numa entrevista em que, com a extrema lucidez que é seu timbre, analisa as causas e as consequências da ditadura do humor no Ocidente contemporâneo. Inserida num imperdível dossiê sobre o Humor na Literatura, publicado na edição de Julho-Agosto da revista "Magazine Littéraire", esta conversa alerta-nos para o adormecimento anímico a que o riso contínuo conduz - uma insensibilização progressiva, que faz do mundo uma imensa caricatura, uma realidade virtual, desumanizada, em que os sentimentos das pessoas (desde que essas pessoas sejam outras pessoas, não aquelas que estão a rir) são menosprezados. Assim, tudo o que é sério perde a seriedade - a começar pelos políticos, que são a representação exponencial do sério. O humor todo-poderoso aí está para os derreter, insultando-os, vasculhando-lhes fragilidades, truncando-lhes frases e imagens, transformando-os em bonecos de vudu - George Bush é o exemplo mais evidente deste trabalho de irrisão, e não é certamente por ser o mais acéfalo líder da Terra: que diremos, por exemplo, de Khadafi ou de Ahamadinejad? Nesses casos o humor surge embrulhado no celofane protector das "outras culturas". É contra a sua própria cultura que o actual maremoto de humor actua, num terrorismo de bombista suicida.

Finkielkraut diz-nos, por exemplo, isto: "Os anos 60 deixaram-nos uma visão das relações entre o indivíduo e o mundo, através da qual aquele exerce sem limites a sua autovalorização. A pessoa que exibe sem o menor pudor a sua vida sexual convence-se de que está a fazer qualquer coisa de extremamente corajoso. Dito de outra forma, é a ausência de lucidez sobre a sociedade actual, é a tendência à automistificação, que torna tanta gente inapta para o humor. (...) O que é incomodativo na autoficção não é apenas a mistura entre o fictício e o vivido, mas a ideia de que esta aventura, tal como a de Rousseau, nunca teve exemplo. Um autor envolvido neste empreendimento deveria, pelo contrário, ter consciência da sua banalidade. Hoje, o elogio automistificador da vivacidade do Maio de 1968 não tolera a menor mistificação. A iconoclastia de 68 adquiriu o estatuto de incontestável. Os iconoclastas transformaram-se em ícones. Quando Daniel Cohn-Bendit pede que esqueçamos o Maio de 68, fá-lo em nome de uma revolta que, precisamente, teria por vocação obedecer ao mesmo paradigma. Se esta iniciativa me inquieta, é porque a consagração da juventude acompanha a emergência e o triunfo do riso bárbaro."

Os Hugos Chávez deste mundo já perceberam, intuitivamente, o extraordinário poder do riso como estratégia de dominação. Quem ri, contínua e indiferenciadamente, não analisa nem contesta. Acresce que o riso comove, conduz à desculpa. É tempo de percebermos que este humor absolutista não tem graça nenhuma.

2.8.08

Ricardo Corona: "Rumble Fish"

.

RUMBLE FISH

ao Marcos Prado

riso zero
olhar de rinha
encaro o espelho

o cara não diz nada
olhar de ringue
beiço punk

não digo uma palavra
tipo sangue ruim
com pose junkie

viramos a cara
nos damos as costas
como quem não volta




De: CORONA, Ricardo. "Aguafuerte". In: Corpo sutil. São Paulo: Iluminuras, 2005.