22.8.08

Paul Valéry: sobre a falta de tempo

Outro dia, por ocasião do lançamento do excelente O livro das citações, do Eduardo Giannetti, conversei com ele sobre a epidemia da falta de tempo que, paradoxalmente, assola nosso mundo informatizado. Ele se lembrou então de um texto (citado exatamente n’O livro das citações) em que Valéry, em 1935, já falava desse flagelo. Ei-lo:



O tempo livre que tenho em mente não é o lazer tal como normalmente entendido. O lazer aparente ainda permanece conosco, e, de fato, está protegido e propagado por medidas legais e pelo progresso mecânico. As jornadas de trabalho são medidas, e a sua duração em horas, regulada por lei. O que eu digo, porém, é que o nosso ócio interno, algo muito distinto do lazer cronometrado, está desaparecendo. Estamos perdendo aquela paz essencial nas profundezas do nosso ser, aquela ausência sem preço na qual os elementos mais delicados da vida se renovam e se confortam, ao passo que o ser interior é de algum modo liberado de passado e futuro, de um estado de alerta presente, de obrigações pendentes e expectativas à espreita. Nenhuma preocupação, nenhum amanhã, nenhuma pressão interna, mas uma forma de repouso na ausência, uma vacuidade benéfica que traz a mente de volta à sua verdadeira liberdade, ocupada apenas consigo mesma. Livre de suas obrigações para com o saber prático e desonerada de qualquer preocupação sobre o porvir, ela cria formas tão puras como o cristal. Mas as demandas, a tensão, a pressa da existência moderna perturbam e destroem esse precioso repouso. Olhe para dentro e ao redor de si! O progresso da insônia é notável e anda pari passu com todas as outras modalidades de progresso.

PAUL VALÉRY (1935)


In: GIANNETTI, Eduardo. O livro das citações. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

9 comentários:

  1. Antonio,

    Acho que a idéia desse trecho está estreitamente ligada à daquele seu sobre o tédio. Mais do que realmente ter tempo, a parte do "livre", ter a liberdade de receber as ocorrências que o mundo nos traz, é que está ficando mais e mais difícil.

    um abraço,
    lucas

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  2. Tempo Livre: o primo aristocrático da Ataraxia.
    Mariano

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  3. Graúna

    Emoção
    Palavra solta
    No vocabulário
    Explosão
    Folha ao vento
    Solta
    Na plenitude do tempo
    Sem marcação
    Apenas um sem fim de mim
    Ouvindo o som em meio à bruma
    Da maviosa Graúna.

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  4. Após a tempestade, espreito o fogo.

    Um maravilhamento me atordoa.



    Nada me consterna.

    A tudo dou combate.



    No tabuleiro das idéias, lanço o que perdi.

    Me sinto exposto, virado o avesso, arrevesado.



    Mais dia, menos dia, tudo é substituído.

    Tudo tem seu tempo, seu fogo, seu fim.

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  5. "Sobre a Falta de Tempo" como "Falta do Futuro"



    O futuro está mais próximo. As categorias do tempo, sobretudo o "agora" e o "depois", confundem-se como nunca se olharmos o passado. De facto, o futuro interpenetra-se no presente. Nada se estabiliza, deslizamos num "mais além" sem possibilidade de apropriação. Melhor, o que podemos reter como representação é o que virá, mesmo que não saibamos prever qualquer conteúdo prospectivo. O tempo acelerou, tudo se antecipa e por aí crescem as incertezas em espiral. O futuro está tão próximo que se tornou opaco. Lembra-nos uma máxima chinesa, o que está demasiado perto escapa à nossa acuidade visual. Ver era reconhecer, confirmar - talvez, por vezes, duvidar. Ver tornou-se numa observação necessária à capacidade inventiva de imaginar. A precariedade, “o já passou”, o efémero, são expressões que invadem "o actual", “o momento”. Reconhece-se que o instante realizado já não é da ordem do realizável, esgotou-se. E, no entanto, e por isso mesmo, só os instantes duram. “O mais além” aproxima-se, é a renovação vertiginosa de um modo diferente de agir que está marcado pela inevitabilidade próxima do seu fim. A sociedade tecnocientífica introduziu um modo particular de entender a duração: nada dura, inelutavelmente, face ao inexorável provisório. O estatuto da novidade é uma perda e um ganho, nunca o novo se tornou mais inútil e premente ao mesmo tempo. O passado, esse, nem existe.
    O futuro tem de ser repensado, tem de se reintroduzir no âmbito das linguagens. Como sempre, o futuro é um assédio. Dito de outro modo: não podemos viver sem futuro. Afirma Daniel Inerarity,”para saber o que há é preciso cada vez mais fazer uma ideia do que haverá. Não é possível trabalhar sem informes sobre a situação do futuro. A vida de qualquer instituição depende, agora, mais do que nunca, da sua capacidade de antecipar. É preciso imaginar o futuro precisamente porque o futuro já não é o que era”.

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  6. PRODUÇÃO DO TEMPO


    Acordo, serenamente. Serenamente, observo o lugar onde estou, o quarto arrendado, por um mês, talvez um mês, rigorosamente um mês. Não me metamorfoseei em insecto, sou o mesmo da véspera. Ainda não me vi ao espelho, mas sinto que nada de significativo há no meu corpo para assinalar. Sinto o corpo, sinto o pensamento. Penso. Penso-me. O pensamento sente-se. Algo pensa. Algo pensa-me. Procuro, agora, que o pensamento se perca, se vá perdendo, se dilua. Também a manhã. A manhã esvai-se numa lentidão suave, o ar está límpido, o céu é um azul forte. Digo tudo isto porque tudo isto se oferece para lá dos vidros da janela. Quero permanecer na cama, deitado de costas, deitado durante horas. Olhando, observando, observando tudo que há para observar, até exasperar a vista, os olhos. A mobília castanha, uma madeira gasta, polida, brilhante e baça, velha, rompida, irregular. Cómoda, guarda-fatos, cadeira, cama, duas mesinhas de cabeceira, uma pequena secretária, um espelho esbatido, tinta creme nas paredes. Paredes esboroadas, manchadas, tristes e alegres. Candeeiros: de tecto e um sobre uma das mesinhas de cabeceira. Na secretária, nada, nada sobre a secretária. A porta do quarto também é de madeira, pintada em esmalte branco, como as portadas da janela. As cortinas reflectem muitos anos e aguentam-se num barão de ferro. Não tenho livros pelo simples facto de que todos os que tinha dei-os, dei-os por necessidade. Necessidade de me libertar de tudo o que pudesse pesar-me na existência. E o peso excessivo era avaliado para além de dois ou três verdadeiramente úteis. Já não leio, releio, disse um dia Borges. Eu também releio, ou seja, leio mentalmente o que ficou na memória e o que ficou na memória ficou para sempre. Para sempre, pelo hábito de lembrar sempre a mesma meia dúzia de ideias que na verdade interessa. Todos os dias recito em voz alta essa biblioteca mental que me acompanha, todos os dias repito as palavras únicas que possuo, que ecoam pelos labirintos do cérebro. Todos os dias. Recito-as como orações, autênticas orações que me religam ao universo e me salvam, me salvam de cair em tentação agora e na hora da minha morte. Qual tentação? Não sei. Nem acredito. Mas. Estas palavras salvam-me. Melhor: têm-me salvado até agora. Múltiplas tentações. As tentações. Adoro cair em tentações. Experimentei todas as tentações. Por exemplo: a tentação da inércia, do vazio, de não pensar. Reconheço, é uma tentação sedutora, não pensar, ser levado para o vácuo, para a morte de olhos bem abertos. Penso: o que será pior, não pensar ou não olhar? A morte é não pensar? A morte é não ver? A tradição ocidental associa o conhecer e o ver. Ver o real, a visão como espelho da realidade. Pensar é o interior e olhar é o exterior? Pensar é olhar, olhar é pensar? Não há interior nem exterior? Como processa o cérebro estas operações? Como seria interessante podermos escolher encerrar algumas capacidades cerebrais durante horas ou dias ou anos. E retomá-las. Ligar e desligar. Mais, perder a consciência de que estamos ligados ou desligados. Voltarmos a ganhar consciência, e perder, e ganhar. Viver e morrer durante a vida, viver e morrer durante a morte, num eterno retorno renovável e infinito. Repito, ligar e desligar o cérebro, por vezes, com intenção e sem intenção. Dominar o cérebro. Ser dominado pelo cérebro.

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  7. PRODUÇÃO DO TEMPO (CONTINUAÇÃO)

    São 4 horas da tarde. Leio as ideias que me afloram à mente. As palavras pedidas para consulta. Que posso saber? Que devo Fazer? Que posso dizer? O que posso comunicar? O que me é permitido esperar? O que é o homem? Quem sou? Onde estou? Por que comemos, qual a finalidade de dormirmos? O que significa sermos animais gregários ou de rebanho? Temos um inconsciente que nos domina? O complexo de Édipo é real? A energia é igual à massa vezes a velocidade da luz ao quadrado? Em cada célula humana há 46 cromossomas? O ser humano é dominado por pulsões? O todo é percebido antes das partes que o constituem? A matéria atrai matéria na razão directa das suas massas e na razão inversa do quadrado das suas distâncias? Etc, etc, etc?
    O relógio do corredor bate cinco horas da tarde. O tempo passa. Na casa não há ninguém. Agora não há ninguém. Todos os dias ouço vozes. De manhã muito cedo, ao fim do dia também. Vozes de outros hóspedes como eu, pessoas que não conheço, que nunca vi. Trabalham entre a manhã e o fim do dia, como aliás quase toda a gente. É assim que presumo sem ter uma grande certeza. Vozes suaves, vozes fortes, ríspidas, duras, ténues, finas, grossas. Imagino pessoas de meia idade, jovens, velhas, homens, mulheres, pessoas que nunca vi, imagino-as, nunca as verei, imagino-as. Não tenho um horário certo de me levantar, de me deitar. Nem de comer, nem de passear, de vadiar ou de outra coisa qualquer. Não me cruzo com os outros hóspedes nesta casa. Repito, não conheço ninguém, aqui ninguém me conhece. Não simpatizo, não antipatizo, não amo, não odeio, sou indiferente perante os outros que existem, sei que existem e ao sabê-lo sei tudo o que interessa saber. Existem como vozes que ouço. Contudo, apercebo-me, e só agora me apercebo, que essas vozes não me são totalmente indiferentes. Soube descrevê-las, classificá-las, imaginar os corpos, quem sabe, imaginar o carácter que produzem essas vozes. Era capaz, com algum rigor, de identificar o número de moradores que habitam debaixo do mesmo tecto, de parte dos seus hábitos, de muitas partes dos seus hábitos, do horário de trabalho de alguns deles. Poderia, se quisesse, saber muito mais, se quisesse poderia saber as suas profissões, os seus sentimentos, as ilusões que vivem, as graças e desgraças que hão-de suportar um dia. Se quisesse poderia dedicar-me a uma investigação profunda, tão proficiente que talvez mesmo soubesse mais do que os próprios, unindo pormenores que escapam aos seus autores. Poderia fazer a transição das vozes para os objectos pessoais, dos objectos pessoais para os passos nos quartos ou no corredor, dos passos para os ruídos, pequenos sons, um bocejo, um arrastar de uma cadeira, um candeeiro que se acende no decorrer da noite, um jornal ou um livro caído no chão, o tipo de lixo que fazem, o modo como batem com as portas, os palavrões oportunos e inoportunos durante os diálogos que mantêm entre si. O silêncio, o eloquente silêncio. Toda esta panóplia, todo este manancial de elementos significativos, e muitos outros, me dariam a inteligibilidade perfeita dos seres dos quais tudo sei mas nunca os vi. De outro modo: dos quais tudo poderia saber sem nunca os ter visto. Seria uma tarefa própria de um detective, simultaneamente perigosa e fascinante. Seria uma tarefa própria de um escultor. Seria uma tarefa própria de um arqueólogo. Seria uma tarefa possível, possível, possível. Um entretenimento para uma vida. Um projecto de grande dignidade. Mas estou apenas a falar para o espelho, confessando ideias que irrompem na obscuridade progressiva e enleante do quarto. Não conseguimos estancar a corrente do pensamento, da linguagem, da imaginação, da memória. Na biblioteca mental requisito em meu nome esta citação de Nicholas Blake, Um homem tem de falar a si próprio quando se encontra sozinho sobre gelo movente, sozinho no escuro, perdido.

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  8. PRODUÇÃO DO TEMPO (CONTINUAÇÃO)


    Perdido, não. Não estou perdido, sei onde estou e estou serenamente, há horas, no meu quarto. Este dia é dois de Novembro. Estou tão certo desta verdade como estou certo da verdade de não saber qual é o dia da semana. Não sei nem estou interessado em saber. Não tenho nenhum motivo para ocupar a mente com preocupações desse tipo. Mas sei o dia e o mês, não o ano. Com rigor, e é talvez o mais espantoso, também não sei o ano em que estamos, embora saiba com uma margem de erro de dois, três anos. Os dias da semana não me preocupam, é-me indiferente se é segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado ou domingo. Somente o mês e o dia correspondente. Não encontro nenhuma justificação para explicar cientificamente este fenómeno de amnésia interesseira, mas não é importante. Contudo, é curioso não desprezar, também, os dias e os meses. Enfim, é assim, o que há ainda para dizer? Ainda qualquer coisa com propósito: seria mais perturbador no dia seguinte ninguém morrer ou no dia seguinte ninguém saber o dia, a semana, o mês, o ano? Ignorância total sobre o calendário, o tempo sem registo, ausência de datas, de referências, de marcações, de celebrações, de festas, de efemérides, registos sem tempo, tempo sem tempo…, nada, nada, nada para fixar, reter, lembrar, nada, nada! E o mesmo dos lugares, cidades, vilas, aldeias, freguesias, ruas, estradas, também ignorância total. Aniquilar, o mais possível, o espaço e o tempo, Fluir, navegar. Da minha parte, sei, ainda, que estou num quarto, arrendado, o quarto está no segundo andar de um prédio situado numa avenida de uma grande cidade. Um quarto numa cidade grande ou grande cidade, e eu estou lá muitas vezes, e muitas outras vezes não estou. Quer dizer, estar no quarto é não estar na cidade, é estar apenas no quarto. E estar na cidade é não estar no quarto, digamos assim. Estou no quarto a qualquer hora. Estou na cidade a qualquer hora. Sem objectivos ou finalidades, como uma peça, já o disse, de uma engrenagem que funciona normalmente. Resumindo: sei as horas, os meses, se é dia ou noite, ignoro os dias da semana, sei de alguns lugares, sei que me encanto do que não sei e do que não quero saber, sei que talvez possa deixar de me situar no tempo e no espaço e então voar. Sim, voar. Como as moscas, os insectos voadores…Talvez amanhã!

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  9. PRODUÇÃO DO TEMPO (CONTINUAÇÃO)

    Mas ainda é cedo. A mosca poisa sobre a dobra do lençol. Uma certa intimidade me aproxima dela, dois seres vivos num diálogo possível. Ela voa, eu quero voar. Eu quero voar, ela voa. Há aqui alguma coisa de conivência. Sonho muitas vezes que voo, mas não sou pássaro, um humano que aprendeu a voar e voa. Quando sonho que voo prolongo o sonho – sei-o fazer –, prolongo-o o mais possível, por minha vontade não voltava a acordar. Quero dizer, não voltava a acordar sem saber voar. Só posso voar no sonho. Sonhando que voo voo, voo numa irrealidade real ou numa realidade irreal. É assim que entendo o sonho. Não me interessam muitas explicações sobre os sonhos. Não me interessam as explicações freudianas, não me interessam as explicações pré e pós-freudianas. As técnicas psicanalíticas não me preocupam, não me preocupa conhecer-me cientificamente, não quero saber mais de mim do que posso saber sem pensar muito sobre mim, sem pensar sobre o mundo para saber de mim. Reconheço, para ser sincero, que nem sempre fui assim. Ainda ontem pensei de mais, pensei sobre muita coisa, toda a noite a ocupei a pensar. Amanhã será igual. Sei que será igual. Não pensar é apenas um desejo para concretizar no futuro. No fim do mês do quarto arrendado, será esse o meu futuro. Não pensar, como é maravilhoso pensar não pensar, não pensar! Quando sonho que voo – estou de novo a pensar –, não sou um humano que voa, afinal no sonho não sou humano. Mas coisa, coisa que voa, coisa voante entre outras coisas. Alguém disse – sei quem foi – que cada personagem dos actos do sonho é a personagem que sonha. Mas não somos nós uma síntese dessas personagens múltiplas, contraditórias, efémeras, contingentes, relativas, emergentes, precárias, sem unidade? Não somos nós máscaras possíveis de circunstâncias possíveis até ao infinito? Somos, afirmo que somos, afirmo o que já disse: não há nenhuma essência, não há nenhum acidente.
    Cai a noite, cantam agora todas as fontes, sozinho no escuro, perdido e achado (a biblioteca não tem horário de encerramento), vou tentar dormir, afogar-me no cansaço, confundir-me nas sombras, pairar, o quarto existente numa penumbra melancólica e bela. Desligar, o mais possível, totalmente? Voltar a ligar mais tarde para criar o destino – um destino feliz, é o que queremos. Bem, vou sonhar que voo, voo com a mosca, companheiro dela. Não me metamorfoseei em insecto, mas – bela ironia kafkiana – metamorfoseei-me em humano.

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