30.1.08
27.1.08
Sobre a eutanásia
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada,da Folha de São Paulo, sábado, 26 de janeiro de 2008.
Sobre a eutanásia
NESTE MÊS, Rubem Alves escreveu, para a Folha, dois belos artigos em defesa do direito à eutanásia voluntária. Segundo ele, "como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um simples sorriso". Concordo. Lembro a sentença de Sêneca: "Bom não é viver, mas viver bem".
Em reação ao primeiro dos artigos do Rubem Alves, alguns leitores escreveram cartas que o "Painel do Leitor" publicou na Folha Online. Todas elas atacam a eutanásia. Decidi comentar os seus argumentos, por considerá-los típicos, logo instrutivos.
A eutanásia voluntária pode ser descrita como o ato de proporcionar uma morte tranqüila a uma pessoa que, padecendo de um sofrimento atroz, e cujo estado de saúde haja sido diagnosticado como terminal, tenha lucidamente optado por ela.
Pois bem, um dos leitores em questão é contra a eutanásia porque lhe parece muito difícil ter certeza de que uma pessoa realmente se encontra em estado terminal. Há, segundo ele, casos que surpreendem. Não duvido disso, mas o fato é que as curas "milagrosas" são raríssimas e que, na medicina (como em toda a vida prática), não é pela expectativa da ocorrência do mais improvável, mas pela expectativa da ocorrência do mais provável que se devem orientar as decisões humanas.
Sei que "enquanto há vida, há esperança". Mas reflitamos. Enquanto há vida, há esperança de quê? De mais vida. O que importa, porém, é a qualidade dessa sobrevida. Como dizia o já citado Sêneca, o sábio vive tanto quanto deve, não tanto quanto pode, pois o que lhe importa é a qualidade, não a quantidade da sua vida. Ora, se nem sempre a melhor vida é a mais longa, sempre a mais longa morte é a pior.
Outro leitor acha que só Deus, como um pai, sabe se precisamos de uma morte lenta ou rápida, de modo que só a ele compete decidir e arquitetar a nossa morte. Confesso que me parece escandalosamente sacrílega a idéia de que Deus seja um pai que lentamente torture seu filho. Quanto ao argumento em si, porém, Rubem Alves já o havia previsto, dizendo mais ou menos que, se foi Deus que enviou a doença, não se vê por que a tentativa de prolongar a vida artificialmente seria menos contrária aos desígnios Dele do que a tentativa de abreviá-la; de modo que, se concordássemos com esse leitor, deveríamos abrir mão de toda medicina.
Finalmente, um terceiro leitor pondera que até mesmo as experiências dolorosas podem promover o crescimento espiritual. Quero crer que quem pense assim não seja um monstro, mas apenas alguém que jamais testemunhou o sofrimento, a dor, a aflição, a humilhação, a indignidade de que padece um doente terminal, sem esperança de melhora e, freqüentemente, sem controle dos esfíncteres, em meio a fezes e urina, entubado e a respirar com a ajuda de máquinas. Como pode alguém achar que há "crescimento espiritual" na redução do pensamento humano à mais obscura animalidade, à inescapável obsessão com o puro e impotente pavor da dor física?
De todo modo, as duas posições -a que defende o direito à eutanásia voluntária e a que o ataca- são assimétricas. A primeira afirma o direito daqueles que querem praticar a eutanásia; porém de maneira nenhuma nega o direito daqueles que não querem praticá-la: antes, afirma-o igualmente, pois o que na verdade defende é o direito de escolha.
Já a segunda não apenas afirma o direito dos que não querem praticar a eutanásia, mas nega o direito daqueles que querem praticá-la. Trata-se, portanto, de uma posição autoritária, que nega o direito de escolha. Normalmente, tal autoritarismo se baseia em convicções religiosas. O problema é que cada religião, considerando-se dona da verdade absoluta, pretende ignorar, primeiro, que há no mundo muitas outras religiões; segundo, que cada uma destas também se quer dona da verdade absoluta; terceiro, que as convicções de uma entram em choque com as das outras. Há, além disso, também as convições de ateus e de agnósticos no mundo, e as religiões pretendem ignorar – quarto – que não há nenhum critério externo a todas essas convicções que nos permita julgar racionalmente se alguma – e qual – delas está com a verdade.
Ora, os princípios da sociedade aberta e livre – por exemplo, o princípio segundo o qual cada cidadão tem o direito de pensar e agir como queira – maximamente em relação à sua própria vida e morte – desde que não infrinja igual direito de outrem – são concebidos pela razão crítica exatamente a partir do reconhecimento dessas verdades que as religiões pretendem ignorar. Donde os inevitáveis conflitos entre as religiões e as sociedades abertas e livres.
Os defensores da eutanásia são às vezes acusados de fazerem parte de uma "cultura da morte". Trata-se de uma lamentável e deliberada confusão. A morte é, concretamente, o processo de morrer. Esse processo pode ser rápido ou lento. O direito à eutanásia é o direito que aquele que está a morrer tem de abreviar a sua morte, caso esta esteja sendo excessivamente sofrida. Abreviar a morte é torná-la mais curta, menor, mais leve. Seria, portanto, mais correto dizer que quem pertence à cultura da morte são aqueles que preferem impor a todos a morte mais longa, maior, mais pesada.
Sobre a eutanásia
NESTE MÊS, Rubem Alves escreveu, para a Folha, dois belos artigos em defesa do direito à eutanásia voluntária. Segundo ele, "como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um simples sorriso". Concordo. Lembro a sentença de Sêneca: "Bom não é viver, mas viver bem".
Em reação ao primeiro dos artigos do Rubem Alves, alguns leitores escreveram cartas que o "Painel do Leitor" publicou na Folha Online. Todas elas atacam a eutanásia. Decidi comentar os seus argumentos, por considerá-los típicos, logo instrutivos.
A eutanásia voluntária pode ser descrita como o ato de proporcionar uma morte tranqüila a uma pessoa que, padecendo de um sofrimento atroz, e cujo estado de saúde haja sido diagnosticado como terminal, tenha lucidamente optado por ela.
Pois bem, um dos leitores em questão é contra a eutanásia porque lhe parece muito difícil ter certeza de que uma pessoa realmente se encontra em estado terminal. Há, segundo ele, casos que surpreendem. Não duvido disso, mas o fato é que as curas "milagrosas" são raríssimas e que, na medicina (como em toda a vida prática), não é pela expectativa da ocorrência do mais improvável, mas pela expectativa da ocorrência do mais provável que se devem orientar as decisões humanas.
Sei que "enquanto há vida, há esperança". Mas reflitamos. Enquanto há vida, há esperança de quê? De mais vida. O que importa, porém, é a qualidade dessa sobrevida. Como dizia o já citado Sêneca, o sábio vive tanto quanto deve, não tanto quanto pode, pois o que lhe importa é a qualidade, não a quantidade da sua vida. Ora, se nem sempre a melhor vida é a mais longa, sempre a mais longa morte é a pior.
Outro leitor acha que só Deus, como um pai, sabe se precisamos de uma morte lenta ou rápida, de modo que só a ele compete decidir e arquitetar a nossa morte. Confesso que me parece escandalosamente sacrílega a idéia de que Deus seja um pai que lentamente torture seu filho. Quanto ao argumento em si, porém, Rubem Alves já o havia previsto, dizendo mais ou menos que, se foi Deus que enviou a doença, não se vê por que a tentativa de prolongar a vida artificialmente seria menos contrária aos desígnios Dele do que a tentativa de abreviá-la; de modo que, se concordássemos com esse leitor, deveríamos abrir mão de toda medicina.
Finalmente, um terceiro leitor pondera que até mesmo as experiências dolorosas podem promover o crescimento espiritual. Quero crer que quem pense assim não seja um monstro, mas apenas alguém que jamais testemunhou o sofrimento, a dor, a aflição, a humilhação, a indignidade de que padece um doente terminal, sem esperança de melhora e, freqüentemente, sem controle dos esfíncteres, em meio a fezes e urina, entubado e a respirar com a ajuda de máquinas. Como pode alguém achar que há "crescimento espiritual" na redução do pensamento humano à mais obscura animalidade, à inescapável obsessão com o puro e impotente pavor da dor física?
De todo modo, as duas posições -a que defende o direito à eutanásia voluntária e a que o ataca- são assimétricas. A primeira afirma o direito daqueles que querem praticar a eutanásia; porém de maneira nenhuma nega o direito daqueles que não querem praticá-la: antes, afirma-o igualmente, pois o que na verdade defende é o direito de escolha.
Já a segunda não apenas afirma o direito dos que não querem praticar a eutanásia, mas nega o direito daqueles que querem praticá-la. Trata-se, portanto, de uma posição autoritária, que nega o direito de escolha. Normalmente, tal autoritarismo se baseia em convicções religiosas. O problema é que cada religião, considerando-se dona da verdade absoluta, pretende ignorar, primeiro, que há no mundo muitas outras religiões; segundo, que cada uma destas também se quer dona da verdade absoluta; terceiro, que as convicções de uma entram em choque com as das outras. Há, além disso, também as convições de ateus e de agnósticos no mundo, e as religiões pretendem ignorar – quarto – que não há nenhum critério externo a todas essas convicções que nos permita julgar racionalmente se alguma – e qual – delas está com a verdade.
Ora, os princípios da sociedade aberta e livre – por exemplo, o princípio segundo o qual cada cidadão tem o direito de pensar e agir como queira – maximamente em relação à sua própria vida e morte – desde que não infrinja igual direito de outrem – são concebidos pela razão crítica exatamente a partir do reconhecimento dessas verdades que as religiões pretendem ignorar. Donde os inevitáveis conflitos entre as religiões e as sociedades abertas e livres.
Os defensores da eutanásia são às vezes acusados de fazerem parte de uma "cultura da morte". Trata-se de uma lamentável e deliberada confusão. A morte é, concretamente, o processo de morrer. Esse processo pode ser rápido ou lento. O direito à eutanásia é o direito que aquele que está a morrer tem de abreviar a sua morte, caso esta esteja sendo excessivamente sofrida. Abreviar a morte é torná-la mais curta, menor, mais leve. Seria, portanto, mais correto dizer que quem pertence à cultura da morte são aqueles que preferem impor a todos a morte mais longa, maior, mais pesada.
26.1.08
João Cabral de Melo Neto: O ovo de galinha
João Cabral de Melo Neto
O ovo de galinha
I
Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
maciçamente ovo, num todo.
Sem possuir um dentro e um fora,
tal como as pedras, sem miolo:
é só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.
No entanto, se ao olho se mostra
unânime em si mesmo, um ovo,
a mão que o sopesa descobre
que nele há algo suspeitoso:
que seu peso não é o das pedras,
inanimado, frio, goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.
II
O ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.
E que se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas
cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.
No entretanto, o ovo, e apesar
de pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.
III
A presença de qualquer ovo,
até se a mão não lhe faz nada,
possui o dom de provocar
certa reserva em qualquer sala.
O que é difícil de entender
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada.
A reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.
É a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.
IV
Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.
Se pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.
O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:
procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspeta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.
De: MELO NETO, João Cabral de. "Serial (1959-1961)". In: Obra completa. Nova Aguilar. 1995. p.302-304.
O ovo de galinha
I
Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
maciçamente ovo, num todo.
Sem possuir um dentro e um fora,
tal como as pedras, sem miolo:
é só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.
No entanto, se ao olho se mostra
unânime em si mesmo, um ovo,
a mão que o sopesa descobre
que nele há algo suspeitoso:
que seu peso não é o das pedras,
inanimado, frio, goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.
II
O ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.
E que se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas
cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.
No entretanto, o ovo, e apesar
de pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.
III
A presença de qualquer ovo,
até se a mão não lhe faz nada,
possui o dom de provocar
certa reserva em qualquer sala.
O que é difícil de entender
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada.
A reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.
É a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.
IV
Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.
Se pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.
O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:
procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspeta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.
De: MELO NETO, João Cabral de. "Serial (1959-1961)". In: Obra completa. Nova Aguilar. 1995. p.302-304.
21.1.08
Carlos Drummond de Andrade: Coração numeroso
Coração numeroso
Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.
Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.
Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.
O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.
De: “Alguma poesia”. In: Poesia completa. Org. de Gilberto Mendonça Teles. Introdução de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p.20-12.
Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.
Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.
Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.
O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.
De: “Alguma poesia”. In: Poesia completa. Org. de Gilberto Mendonça Teles. Introdução de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p.20-12.
17.1.08
Eugénio de Andrade: Os amantes sem dinheiro
Eugénio de Andrade
Os amantes sem dinheiro
Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.
Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.
De: ANDRADE, Eugénio. “Os amantes sem dinheiro”. In: Primeiros poemas / As mãos e os frutos / Os amantes sem dinheiro. Vila Nova do Famalicão: Quase, 2006.
Os amantes sem dinheiro
Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.
Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.
De: ANDRADE, Eugénio. “Os amantes sem dinheiro”. In: Primeiros poemas / As mãos e os frutos / Os amantes sem dinheiro. Vila Nova do Famalicão: Quase, 2006.
13.1.08
O falibilismo versus o relativismo
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2008:
O falibilismo versus o relativismo
É só no nível extremo de radicalidade analítica que todas as certezas são relativas
ALGUNS LEITORES me disseram não ter achado claro o significado da expressão "modernidade filosófica", que, no artigo passado, contrapus ao relativismo vulgar. Em outra ocasião, havia citado Kant para explicar que a modernidade surge e se mantém como a época da crítica, isto é, da razão crítica.
Criticar é separar ou distinguir. A crítica põe de um lado o que passa pelo seu crivo e de outro lado o que não passa por ele. Já que dar nome às coisas, defini-las, classificá-las etc são modos de distingui-las umas das outras, essas atividades representam manifestações da crítica. Assim, a razão crítica constitui uma condição da própria linguagem que, por sua vez, a potencializa.
A crítica distingue entre as proposições logicamente necessárias e as logicamente contingentes. As necessárias (por exemplo, "A = A") são aquelas cujo oposto é contraditório, logo, inconcebível. As contingentes (por exemplo "a Terra gira em torno do Sol") são aquelas cujo oposto é concebível.
Também a dúvida é uma manifestação da razão crítica. A dúvida metódica, que inaugura a filosofia moderna, lembra que, sendo contingente que eu – seja lá quem eu for – não esteja a delirar ou sonhar, há sempre, em última análise, a possibilidade de que eu esteja a delirar ou sonhar. Conseqüentemente, é uma verdade necessária que, em última análise, não posso ter certeza absoluta da existência ou efetividade de coisa nenhuma. Só não posso, é claro, duvidar da efetividade de mim mesmo, uma vez que, mesmo ao duvidar dela, eu a exerço. Observe-se, entretanto, que, neste contexto, "eu" não sou nenhum ser concreto, de modo que a efetividade em questão é a da própria razão crítica, de que não passo de portador.
A cláusula "em última análise", que tenho repetido, está longe de ser meramente retórica. É só no nível extremo de radicalidade analítica que todas as certezas mencionadas são relativas. No nível dos conhecimentos práticos, usamos as palavras de outro modo.
Isso é um pouco como o que ocorre com a física relativista. A dilatação do tempo, por exemplo, segundo a qual o tempo passa tanto mais lentamente quanto mais rapidamente um objeto se mova, é algo que só se observa a velocidades próximas da luz. Como tais velocidades jamais são alcançadas pelos objetos cotidianos, os efeitos da relatividade não são observáveis na vida corrente. Assim, no dia-a-dia, devemos nos comportar e falar como se o tempo fosse o mesmo para todos os objetos, mesmo sabendo que, em última análise, não é assim.
Do mesmo modo, no nível da vida corrente, considero ter certeza absoluta de estar sentado em frente ao meu computador, terminando de escrever este artigo. Digamos que o artigo estivesse um pouco atrasado e o editor do jornal me telefonasse, perguntando por ele. "Estou terminando de escrevê-lo", diria eu. Talvez ele duvidasse disso e insistisse: "Tem certeza?". Possivelmente, então, eu lhe responderia, por exemplo: "Certeza absoluta!". Com essa resposta, eu estaria sendo muito mais veraz do que se tivesse respondido, no lugar de "certeza absoluta", "certeza relativa". Por quê? Porque, nesse último caso, eu lhe daria a falsa impressão de não estar realmente a terminar o artigo.
Mas por que, então, não abandonar a "última análise" e ficar restrito ao plano das certezas práticas? Porque o reconhecimento da possibilidade de que esteja errado qualquer um dos nossos pretensos conhecimentos empíricos, bem como qualquer um dos nossos sistemas de idéias, tanto laicos quanto religiosos, é importante para, entre outras coisas, a constituição da ciência. Chamamos esse reconhecimento de "falibilismo".
Eis como, no que diz respeito ao conhecimento, se opõem a modernidade filosófica e o relativismo vulgar. Este nivela todos os pretensos conhecimentos, considerando-os como igualmente verdadeiros e/ou igualmente falsos. A modernidade filosófica, ao contrário, permite hierarquizar os conhecimentos.
A partir do falibilismo, ela determina a produção do conhecimento científico como um processo em princípio aberto à razão crítica, público, baseado em premissas imanentes, e cujos resultados são -em última análise- sujeitos a serem revistos ou refutados. A certeza que posso ter da verdade do conhecimento produzido nessas condições não é menor do que a certeza prática que tenho de estar sentado em frente ao meu computador.
Por outro lado, o falibilismo revela o caráter fictício de todo pretenso conhecimento que se subtraia à razão crítica ou à inspeção pública, que se baseie em premissas transcendentes, ou cujas doutrinas sejam impermeáveis a revisões ou refutações.
O falibilismo versus o relativismo
É só no nível extremo de radicalidade analítica que todas as certezas são relativas
ALGUNS LEITORES me disseram não ter achado claro o significado da expressão "modernidade filosófica", que, no artigo passado, contrapus ao relativismo vulgar. Em outra ocasião, havia citado Kant para explicar que a modernidade surge e se mantém como a época da crítica, isto é, da razão crítica.
Criticar é separar ou distinguir. A crítica põe de um lado o que passa pelo seu crivo e de outro lado o que não passa por ele. Já que dar nome às coisas, defini-las, classificá-las etc são modos de distingui-las umas das outras, essas atividades representam manifestações da crítica. Assim, a razão crítica constitui uma condição da própria linguagem que, por sua vez, a potencializa.
A crítica distingue entre as proposições logicamente necessárias e as logicamente contingentes. As necessárias (por exemplo, "A = A") são aquelas cujo oposto é contraditório, logo, inconcebível. As contingentes (por exemplo "a Terra gira em torno do Sol") são aquelas cujo oposto é concebível.
Também a dúvida é uma manifestação da razão crítica. A dúvida metódica, que inaugura a filosofia moderna, lembra que, sendo contingente que eu – seja lá quem eu for – não esteja a delirar ou sonhar, há sempre, em última análise, a possibilidade de que eu esteja a delirar ou sonhar. Conseqüentemente, é uma verdade necessária que, em última análise, não posso ter certeza absoluta da existência ou efetividade de coisa nenhuma. Só não posso, é claro, duvidar da efetividade de mim mesmo, uma vez que, mesmo ao duvidar dela, eu a exerço. Observe-se, entretanto, que, neste contexto, "eu" não sou nenhum ser concreto, de modo que a efetividade em questão é a da própria razão crítica, de que não passo de portador.
A cláusula "em última análise", que tenho repetido, está longe de ser meramente retórica. É só no nível extremo de radicalidade analítica que todas as certezas mencionadas são relativas. No nível dos conhecimentos práticos, usamos as palavras de outro modo.
Isso é um pouco como o que ocorre com a física relativista. A dilatação do tempo, por exemplo, segundo a qual o tempo passa tanto mais lentamente quanto mais rapidamente um objeto se mova, é algo que só se observa a velocidades próximas da luz. Como tais velocidades jamais são alcançadas pelos objetos cotidianos, os efeitos da relatividade não são observáveis na vida corrente. Assim, no dia-a-dia, devemos nos comportar e falar como se o tempo fosse o mesmo para todos os objetos, mesmo sabendo que, em última análise, não é assim.
Do mesmo modo, no nível da vida corrente, considero ter certeza absoluta de estar sentado em frente ao meu computador, terminando de escrever este artigo. Digamos que o artigo estivesse um pouco atrasado e o editor do jornal me telefonasse, perguntando por ele. "Estou terminando de escrevê-lo", diria eu. Talvez ele duvidasse disso e insistisse: "Tem certeza?". Possivelmente, então, eu lhe responderia, por exemplo: "Certeza absoluta!". Com essa resposta, eu estaria sendo muito mais veraz do que se tivesse respondido, no lugar de "certeza absoluta", "certeza relativa". Por quê? Porque, nesse último caso, eu lhe daria a falsa impressão de não estar realmente a terminar o artigo.
Mas por que, então, não abandonar a "última análise" e ficar restrito ao plano das certezas práticas? Porque o reconhecimento da possibilidade de que esteja errado qualquer um dos nossos pretensos conhecimentos empíricos, bem como qualquer um dos nossos sistemas de idéias, tanto laicos quanto religiosos, é importante para, entre outras coisas, a constituição da ciência. Chamamos esse reconhecimento de "falibilismo".
Eis como, no que diz respeito ao conhecimento, se opõem a modernidade filosófica e o relativismo vulgar. Este nivela todos os pretensos conhecimentos, considerando-os como igualmente verdadeiros e/ou igualmente falsos. A modernidade filosófica, ao contrário, permite hierarquizar os conhecimentos.
A partir do falibilismo, ela determina a produção do conhecimento científico como um processo em princípio aberto à razão crítica, público, baseado em premissas imanentes, e cujos resultados são -em última análise- sujeitos a serem revistos ou refutados. A certeza que posso ter da verdade do conhecimento produzido nessas condições não é menor do que a certeza prática que tenho de estar sentado em frente ao meu computador.
Por outro lado, o falibilismo revela o caráter fictício de todo pretenso conhecimento que se subtraia à razão crítica ou à inspeção pública, que se baseie em premissas transcendentes, ou cujas doutrinas sejam impermeáveis a revisões ou refutações.
12.1.08
Proust: trecho de Journées
[...]
Percebo um desses seres que nos dizem pela particularidade do seu rosto a possibilidade de uma felicidade nova. A beleza, sendo particular, multiplica as possibilidades de felicidade. Cada ser é como um ideal ainda desconhecido que se abre para nós. E ver passar um rosto desejável que não conhecíamos abre-nos novas vidas que desejamos viver. Desaparecem na esquina da rua, mas esperamos revê-los, ficamos com a idéia de que há muito mais vidas a viver do que pensávamos, e isso dá mais valor à nossa pessoa. Um novo rosto que passou é como o encanto de um novo país que se nos foi revelado por um livro. Lemos seu nome, o trem vai partir. Que importa se não partimos, sabemos que existe, temos uma razão a mais para viver. Assim, eu olhava pela janela para ver que a realidade, a possibilidade da vida que sentia de hora em hora perto de mim continha inúmeras possibilidades diferentes de ser feliz.
[...]
De: PROUST, Marcel. "Journées". In: Contre Sainte-Beuve. Paris: Gallimard, 1954, p.72-73.
Percebo um desses seres que nos dizem pela particularidade do seu rosto a possibilidade de uma felicidade nova. A beleza, sendo particular, multiplica as possibilidades de felicidade. Cada ser é como um ideal ainda desconhecido que se abre para nós. E ver passar um rosto desejável que não conhecíamos abre-nos novas vidas que desejamos viver. Desaparecem na esquina da rua, mas esperamos revê-los, ficamos com a idéia de que há muito mais vidas a viver do que pensávamos, e isso dá mais valor à nossa pessoa. Um novo rosto que passou é como o encanto de um novo país que se nos foi revelado por um livro. Lemos seu nome, o trem vai partir. Que importa se não partimos, sabemos que existe, temos uma razão a mais para viver. Assim, eu olhava pela janela para ver que a realidade, a possibilidade da vida que sentia de hora em hora perto de mim continha inúmeras possibilidades diferentes de ser feliz.
[...]
De: PROUST, Marcel. "Journées". In: Contre Sainte-Beuve. Paris: Gallimard, 1954, p.72-73.
9.1.08
Eugénio de Andrade: Conselho
Conselho
Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.
De: ANDRADE, Eugénio. "Os amantes sem dinheiro". In: Primeiros poemas / As mãos e os frutos / Os amantes sem dinheiro. Vila Nova do Famalicão: Quasi, 2006, p.66.
Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.
De: ANDRADE, Eugénio. "Os amantes sem dinheiro". In: Primeiros poemas / As mãos e os frutos / Os amantes sem dinheiro. Vila Nova do Famalicão: Quasi, 2006, p.66.
6.1.08
Franz Kafka: Prometeu
Franz Kafka
Prometeu
Sobre Prometeu contam-se quatro lendas: De acordo com a primeira ele foi acorrentado ao Cáucaso por ter traído aos seres humanos os segredos dos deuses, e os deuses enviavam águias para devorar pedaços do seu fígado, que sempre se recompunha.
De acordo com a segunda, Prometeu, ante os bicos dilacerantes, afundou-se cada vez mais na rocha, até tornar-se uma coisa só com ela.
De acordo com a terceira, sua traição foi esquecida no curso dos milênios, os deuses esqueceram, a águia, ele mesmo.
De acordo com a quarta, ficou cansativo o acontecimento irrelevante. Os deuses se cansaram, as águias se cansaram, a ferida cansada se fechou.
Permanece a rocha inexplicável. – A lenda tenta explicar o inexplicável. Como ela vem de um fundo de verdade, de novo tem que terminar no inexplicável.
(Tradução minha. A.C.)
Prometheus
Von Prometheus berichten vier Sagen: Nach der ersten wurde er, weil die Götter an die Menschen verraten hatte, am Kaukasus festgeschmiedet, und die Götter schickten Adler, die von seiner immer wachsenden Leber frassen.
Nach der Zweiten drückte sich Prometheus im Schmerz, vor den zuhackenden Schnäbeln immer tiefer in den Felsen, bis er mit ihm eins wurde.
Nach der dritten wurde in der Jahrtausenden sein Verrat vergessen, die Götter vergassen, die Adler, er selbst.
Nach der vierten wurde man des grundlos Gewordenen müde. Die Götter wurden müde, die Adler wurden müde, die Wunde schloss sich müde.
Blieb das unerklärliche Felsgebirge. -- Die Sage versucht das Unerklärliche zu erlären. Da sie aus einem Wahrheitsgrund kommt, muss sie wieder im Unerklärlichen enden.
De: KAFKA, F. "Prometheus". In: BROD, M. (Org.). _____. Hochzeitsvorbereitungen auf dem Lande und andere Prosa aus dem Nachlaß. Frankfurt: Fischer, 2000. p.74.
Prometeu
Sobre Prometeu contam-se quatro lendas: De acordo com a primeira ele foi acorrentado ao Cáucaso por ter traído aos seres humanos os segredos dos deuses, e os deuses enviavam águias para devorar pedaços do seu fígado, que sempre se recompunha.
De acordo com a segunda, Prometeu, ante os bicos dilacerantes, afundou-se cada vez mais na rocha, até tornar-se uma coisa só com ela.
De acordo com a terceira, sua traição foi esquecida no curso dos milênios, os deuses esqueceram, a águia, ele mesmo.
De acordo com a quarta, ficou cansativo o acontecimento irrelevante. Os deuses se cansaram, as águias se cansaram, a ferida cansada se fechou.
Permanece a rocha inexplicável. – A lenda tenta explicar o inexplicável. Como ela vem de um fundo de verdade, de novo tem que terminar no inexplicável.
(Tradução minha. A.C.)
Prometheus
Von Prometheus berichten vier Sagen: Nach der ersten wurde er, weil die Götter an die Menschen verraten hatte, am Kaukasus festgeschmiedet, und die Götter schickten Adler, die von seiner immer wachsenden Leber frassen.
Nach der Zweiten drückte sich Prometheus im Schmerz, vor den zuhackenden Schnäbeln immer tiefer in den Felsen, bis er mit ihm eins wurde.
Nach der dritten wurde in der Jahrtausenden sein Verrat vergessen, die Götter vergassen, die Adler, er selbst.
Nach der vierten wurde man des grundlos Gewordenen müde. Die Götter wurden müde, die Adler wurden müde, die Wunde schloss sich müde.
Blieb das unerklärliche Felsgebirge. -- Die Sage versucht das Unerklärliche zu erlären. Da sie aus einem Wahrheitsgrund kommt, muss sie wieder im Unerklärlichen enden.
De: KAFKA, F. "Prometheus". In: BROD, M. (Org.). _____. Hochzeitsvorbereitungen auf dem Lande und andere Prosa aus dem Nachlaß. Frankfurt: Fischer, 2000. p.74.
3.1.08
Joseph Beuys: Peça de I segundo
Em 1990, Alex Varella, Luiz Pizarro e eu montamos, no Galpão das Artes do MAM do Rio de Janeiro, a peça de I segundo, de Joseph Beuys, que eu havia traduzido. Luiz Pizarro foi o diretor, Marcelo Pies o figurinista e Guilherme Pereira o maquiador. Entre os atores, lembro-me de (por ordem alfabética) Bete Coelho, Ciça Guimarães, Cristiane Torlone, o filósofo Gerd Borheim, Glória Pires, Helena Ignez, Laura de Vison, Leina Crespi, Maria Padilha, Marina Lima, Orlando Moraes, Paulo César Pereio e o fotógrafo Pedro Stephan. Que eu saiba, essa peça não havia sido feita para ser encenada. Mas, para nós, a idéia mesma de encená-la se integrava perfeitamente com o clima do tempo e do lugar. Ainda gosto do seu humor e do seu espírito libertário.