Coração numeroso
Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.
Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.
Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.
O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.
De: “Alguma poesia”. In: Poesia completa. Org. de Gilberto Mendonça Teles. Introdução de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p.20-12.
Engraçado, na edição que eu tenho da antologia poética (Record, 1999), a versão desse poema é diferente. Por exemplo, não há o seguinte trecho:
ResponderExcluir"Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis"
Além disso, a palavra passeava, na antologia, está no lugar de passava.
A noite ensina ao dia:
ResponderExcluirO breu imiscuindo as almas
Os sonhos perfilados
Infinidade de desejos
A multiplicação da espécie
Calma e violenta como a vida é
O dia retribui, mostrando à noite:
Os olhos bem abertos
Os inimigos perfilados
Desejos afiados
O sexo sutil e detalhista
Minucioso e requintado como a vida é
Drummond eterno...minha epifania única aos 13 anos...para sempre.
ResponderExcluirCaro Carlos Eduardo,
ResponderExcluiré engraçado. São certamente variantes. Mas eu adoro o verso "Bicos de seio...".
Abraço,
Antonio Cicero
O que eu tenho é a edição da José Olympio, Reunião, em dois volumes. O poema está exatamente como foi postado. Esse Drummond, o primeiro, é um dos melhores. Relemos sempre os mesmos livros, os mesmos poemas, e Drummond (assim como Bandeira) certamente é um daqueles que não cansamos de reler.
ResponderExcluirCícero, por que você não posta algo do Baudelaire (de preferência, numa tradução sua) e nos fala sobre a modernidade e as cidades? Creio que você conhece bem o tema e seria brilhante nele.
Pois é, também gostei muito. Eu não conhecia. Essa versão que contém "Bicos de seio..." deve ser a que foi publicada originalmente em Alguma Poesia.
ResponderExcluirAntonio, descobri teu blog apenas hoje, nestes intantes. Tua poesia inquieta e sedimenta-se. Enfim, gosto muitissimo do teu Guardar.
ResponderExcluirUm abraco, Francisco.
nota: tomei a liberdade de te acrescentar ao meu blog.
Esse é um daqueles milagres do Drummond: fazer poesia ao mesmo tempo profundamente mineira e ao mesmo tempo profundamente carioca.
ResponderExcluirQuerido Léo,
ResponderExcluirÉ um problema. Eu adoraria ter tempo para traduzir Baudelaire, que é um dos poetas de que mais gosto, mas, infelizmente, não tenho. Demoro muito a traduzir poemas. E acontece que, infelizmente, não consigo gostar das traduções dos meus poetas favoritos, de modo que não quero postá-las. E acho pedante postá-lo em francês apenas. O mesmo acontece com muitos poetas que amo: franceses, ingleses, americanos, latinos e gregos. Acho que não tem solução, por enquanto.
Beijo,
ACicero
Chico,
ResponderExcluirObrigado. Seja bem-vindo.
Um abraço,
Antonio Cicero
Cícero,
ResponderExcluirO Marcelo Diniz há muito comenta sobre seu blog, e hoje vim parar aqui por conta da sua opinião no Prosa e Verso sobre Drummond.
Eu não conhecia o "Coração numeroso" e confesso que fiquei muito feliz com ele nesta segunda nublada em que também senti "o vento que (vem) de Minas". Adorei!
Dois anos depois...
ResponderExcluirEu li este poema por primeira vez em um livro que ganhei de presente quando voltei pra minha cidade, BH. Chama-se "Horizontes modernistas" e fala sobre a atuação dos "modernistas" mineiros nos jornais locais. Amo este poema. Já morei no Rio e me emociono cada vez que leio o poema e vai chegando ao final:
"e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.
Mas tremia na cidade um fascinação [...]
meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.
O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor."
Vai acelerando, num vértigo, um tesão... uma beleza de Drummond este poema!
belo blog, belo poema...tentarei traduzir para o inglês.
ResponderExcluirwww.fundodocopoprofundo.blogspot.com