13.1.08

O falibilismo versus o relativismo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2008:



O falibilismo versus o relativismo
É só no nível extremo de radicalidade analítica que todas as certezas são relativas

ALGUNS LEITORES me disseram não ter achado claro o significado da expressão "modernidade filosófica", que, no artigo passado, contrapus ao relativismo vulgar. Em outra ocasião, havia citado Kant para explicar que a modernidade surge e se mantém como a época da crítica, isto é, da razão crítica.

Criticar é separar ou distinguir. A crítica põe de um lado o que passa pelo seu crivo e de outro lado o que não passa por ele. Já que dar nome às coisas, defini-las, classificá-las etc são modos de distingui-las umas das outras, essas atividades representam manifestações da crítica. Assim, a razão crítica constitui uma condição da própria linguagem que, por sua vez, a potencializa.

A crítica distingue entre as proposições logicamente necessárias e as logicamente contingentes. As necessárias (por exemplo, "A = A") são aquelas cujo oposto é contraditório, logo, inconcebível. As contingentes (por exemplo "a Terra gira em torno do Sol") são aquelas cujo oposto é concebível.

Também a dúvida é uma manifestação da razão crítica. A dúvida metódica, que inaugura a filosofia moderna, lembra que, sendo contingente que eu – seja lá quem eu for – não esteja a delirar ou sonhar, há sempre, em última análise, a possibilidade de que eu esteja a delirar ou sonhar. Conseqüentemente, é uma verdade necessária que, em última análise, não posso ter certeza absoluta da existência ou efetividade de coisa nenhuma. Só não posso, é claro, duvidar da efetividade de mim mesmo, uma vez que, mesmo ao duvidar dela, eu a exerço. Observe-se, entretanto, que, neste contexto, "eu" não sou nenhum ser concreto, de modo que a efetividade em questão é a da própria razão crítica, de que não passo de portador.

A cláusula "em última análise", que tenho repetido, está longe de ser meramente retórica. É só no nível extremo de radicalidade analítica que todas as certezas mencionadas são relativas. No nível dos conhecimentos práticos, usamos as palavras de outro modo.

Isso é um pouco como o que ocorre com a física relativista. A dilatação do tempo, por exemplo, segundo a qual o tempo passa tanto mais lentamente quanto mais rapidamente um objeto se mova, é algo que só se observa a velocidades próximas da luz. Como tais velocidades jamais são alcançadas pelos objetos cotidianos, os efeitos da relatividade não são observáveis na vida corrente. Assim, no dia-a-dia, devemos nos comportar e falar como se o tempo fosse o mesmo para todos os objetos, mesmo sabendo que, em última análise, não é assim.

Do mesmo modo, no nível da vida corrente, considero ter certeza absoluta de estar sentado em frente ao meu computador, terminando de escrever este artigo. Digamos que o artigo estivesse um pouco atrasado e o editor do jornal me telefonasse, perguntando por ele. "Estou terminando de escrevê-lo", diria eu. Talvez ele duvidasse disso e insistisse: "Tem certeza?". Possivelmente, então, eu lhe responderia, por exemplo: "Certeza absoluta!". Com essa resposta, eu estaria sendo muito mais veraz do que se tivesse respondido, no lugar de "certeza absoluta", "certeza relativa". Por quê? Porque, nesse último caso, eu lhe daria a falsa impressão de não estar realmente a terminar o artigo.

Mas por que, então, não abandonar a "última análise" e ficar restrito ao plano das certezas práticas? Porque o reconhecimento da possibilidade de que esteja errado qualquer um dos nossos pretensos conhecimentos empíricos, bem como qualquer um dos nossos sistemas de idéias, tanto laicos quanto religiosos, é importante para, entre outras coisas, a constituição da ciência. Chamamos esse reconhecimento de "falibilismo".

Eis como, no que diz respeito ao conhecimento, se opõem a modernidade filosófica e o relativismo vulgar. Este nivela todos os pretensos conhecimentos, considerando-os como igualmente verdadeiros e/ou igualmente falsos. A modernidade filosófica, ao contrário, permite hierarquizar os conhecimentos.

A partir do falibilismo, ela determina a produção do conhecimento científico como um processo em princípio aberto à razão crítica, público, baseado em premissas imanentes, e cujos resultados são -em última análise- sujeitos a serem revistos ou refutados. A certeza que posso ter da verdade do conhecimento produzido nessas condições não é menor do que a certeza prática que tenho de estar sentado em frente ao meu computador.

Por outro lado, o falibilismo revela o caráter fictício de todo pretenso conhecimento que se subtraia à razão crítica ou à inspeção pública, que se baseie em premissas transcendentes, ou cujas doutrinas sejam impermeáveis a revisões ou refutações.

16 comentários:

  1. Muito bom este texto, meu caro. A introdução do termo falibilismo é um refinamento importante da tese que vens defendendo nas tuas últimas colunas da FOLHA.
    Um abraço,
    Héber Sales

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  2. CAro Héber,

    Obrigado pelas suas palavras. Fico contente de você ter gostado.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  3. Caro Antonio,

    Acho eu que, da mesma forma que o relativismo absoluto pos-moderno peca - principalmente - na falta de comunicacao e nao-reconhecimento de no's como meros seres humanos, que em toda epoca historica e em qualquer sociedade convivemos com valores universais, e, assim como aquela passagem de Bergman que diz mais ou menos que "para que vou falar, se falar voce nao vai me entender, mesmo?", nao vejo a superacao do relativismo absoluto pos-moderno com o conceito de falibilismo que voce tece, muito porque nao acho uma atitude cientifica nao reconhecer que, em uma parte, realmente podemos e "provavelmente" no futuro iremos saber mais. Nao e' um erro logico achar que sabemos tudo no "momento presente", apenas para continuar evoluindo? Ou e' o momento de reconhecer, como em psicanalise o sujeito reconhece, que ao mesmo tempo em que esta' se feliz, esta' se triste? Penso que achar que realmente sabemos de tudo nao e' um equivoco tao grande quanto o relativismo absoluto, mas me parece que nao deixa de ser um auto-engano.

    um abraco,
    Denny Yang

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  4. Caro Denny,

    Não sei por que você acha que eu penso que "sabemos tudo no momento presente". Eu não digo isso no meu texto. Ao contrário, digo que os resultados da ciência são -- em última análise -- sujeitos a serem revistos ou refutados. Para mim, não só no momento presente, mas sempre será impossível saber tudo. Ninguém pode ser onisciente. Não existe onisciência.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  5. Esse trecho esclarece completamente, e' bem claro, desculpe pelo erro de leitura.
    "
    Mas por que, então, não abandonar a "última análise" e ficar restrito ao plano das certezas práticas? Porque o reconhecimento da possibilidade de que esteja errado qualquer um dos nossos pretensos conhecimentos empíricos, bem como qualquer um dos nossos sistemas de idéias, tanto laicos quanto religiosos, é importante para, entre outras coisas, a constituição da ciência. Chamamos esse reconhecimento de "falibilismo"."
    Acabei criticando uma outra coisa que voce nao demonstra ter em seu ponto de vista, no texto. A ideia de que mesmo sabendo que ainda nao chegamos la' (no conhecimento absoluto), devemos ter a atitude de nos achar dono dessa verdade, mesmo que sabendo que e' algo falso. Um auto-engano, no caso, quase proposital.

    abraco,
    Denny

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  6. Caro Denny,

    Fico feliz de se ter desfeito o mal-entendido. O problema é também que tive que fazer o meu texto muito denso, muito comprimido, muito pouco redundante, para caber no espaço restrito do jornal. E qualquer distração do leitor pode levar a equívocos. O que vale é que este, pelo menos, se desfez.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  7. Caro Antônio,

    Esse termo - falibilismo - e o artigo esclarecem bastante suas idéias. Acho que fica mais fácil pensar assim, com uma palavra específica.

    um abraço,
    Lucas

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  8. Prezado Antonio Cicero,

    Quanto ao PI, vc sabe o que digo. Quanto á velocidade já escrevi várias vezes e fizaté um poemano meu blogue. Evidentemente que vemoso tempo dilatar-se no cotidiano. Fiz até um gráfico que nada mais é que um truângulo retângulo, sendo o cateto adjacente o deslocamento e a hitotenusa o tempo que cede. Sem citarmos a idéia do envelhecimento, a qual demonstra o tempo mais rarefeito.

    Um abraço do wilson luques costa

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  9. Caro Antônio,

    Estive pensando se a fabilibilidade, o caráter em última análise relativo de todo conhecimento positivo, poderia ser relacionado ao conceito de probabilidade. Numa lógica não determinística, parte das proposições - as verdades contingentes, no caso - teriam uma probabilidade entre 0 e 1 de serem verdadeiras, sem entretanto, que pudessemos ter certeza absoluta de sua veracidade.
    Embora o conceito de probabilidade também seja um tanto quanto vago em termos práticos (matemáticamente falando, é algo bem definido), talvez seja possível demonstrar que a adoção sistemática das verdades mais prováveis, nos dará um sistema com maior número de "verdades efetivas" que outras estratégias. Não desenvolvi o raciocínio, mas acho que você pode entender o que quero dizer - uma formulação em lógica matemática de ordem maior que um.
    O que acha?

    uma braço,
    Lucas

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  10. Caro Lucas,

    Estou de partida para São Paulo, onde vou dar um curso na Maria Antônia, de modo que, no momento, não estou com tempo nem cabeça para pensar direito; mas, assim que assentar, direi o que penso.

    Um abraço,
    Antonio Cicero

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  11. Prezado Antonio Cicero,

    O fabilismo não teria uma certa similaridade com a idéia popperiana? E só para elucidar quanto ao Princípio da Identidade, cito aqui nesse blogue, porque o PI está em xeque com aquilo que denomino de Paradoxo do Zero, portanto dentro de uma visão lógica não poderíamos dizer que há necessidade, porquanto há que se fazer uma ressalva ante o zero, o que lhe tira por conseguinte o status de necessário e universal. Aliás, o seu e-mail diz-me que meus estudos são intrigantes e originais... E por isso agradeço também pelo apoio... Desculpe-me. não quero divulgar aqui o que penso, mas só para se fazer uma ressalva...Não é necessário publicar...
    Um abraço sincero do wilson luques costa

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  12. Caro Wilson,

    Estou saindo de viagem, como disse ao Lucas, e tenho que ultimar várias coisas, de modo que não tenho tempo para responder a essas questões teóricas. Entretanto, posso dizer que o conceito de falibilismo não foi cunhado por mim, que é muito usado por Apel, por exemplo, e que, no que me diz respeito, deriva de Popper sim.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  13. Caro,Antônio Cícero,
    Muito interessante seu texto e a introdução do termo falibilismo foi marcante,pois penso que você introduz um novo significante para o que Popper chama de falseabilismo.
    Agora gostaria de fazer uma observação com relação ao 6° parágrafo do seu artigo, quando você fala da dilatação do tempo,ao contrário do expresso no artigo que diz que "o tempo passa tanto mais rápido quanto mais rapidamente um objeto se mova", viajar em velocidades altíssimas(próximo da velocidade da luz)faz o tempo passar mais demoradamente,ou seja, quanto mais rapidamente um objeto se mova mais lentamente o tempo passa para este objeto.E em caso de o objeto voltar a velocidades ordinárias estará no futuro.Isto é claramente ilustrado pelos físicos através do conhecido "paradoxo dos gêmeos".
    Era isso que queria comentar e dizer que gosto bastante de seus artigos, pois se distingue de outros colunistas do Folha,visto que são textos atemporais,típico dos intelectuais.

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  14. Caro Aliandro,

    Desculpe demorar tanto a responder, mas andei muito ocupado. Muito obrigado pelas suas palavras e pela correção. Vou corrigir o texto.

    Abraço,
    Antonio Cicero

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  15. Realmente agradável de ler essetexto, faziatempo que não encontrava uma descrição de um termo feita de forma tão precisa, obrigado.

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  16. Parabéns pelo ótimo texto! Me esclareceu muito.

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