Um poema do livro "Guardar":
QUASE
Por uma estranha alquimia
(você e outros elementos)
quase fui feliz um dia.
Não tinha nem fundamento.
Havia só a magia
dos seus aparecimentos
e a música que eu ouvia
e um perfume no vento.
Quase fui feliz um dia.
Lembrar é quase promessa,
é quase quase alegria.
Quase fui feliz à beça
mas você só me dizia:
“Meu amor, vem cá, sai dessa”.
De: CICERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996, p.69.
30.9.07
29.9.07
Eduardo Giannetti: Palácio subjetivo aflora no carnaval
É inesquecível o seguinte artigo do Eduardo Giannetti:
Palácio subjetivo aflora no carnaval
Esqueço rapidamente quase tudo a que assisto no cinema e TV. Em alguns casos, chego ao extremo de nem lembrar se já teria visto ou não algum filme ou programa a que esteja assistindo. É uma experiência inconfortável de perda de registro e que se torna esmagadora quando me acontece de encontrar alguém que resolve contar de forma minuciosa, sadicamente detalhista, algo que tenha visto tempos atrás. A sensação que fica é a de que padeço de algum tipo de amnésia aguda localizada.
Mas nem tudo, felizmente, desaparece sem vestígio no ralo da memória. Foi o que pude constatar com certo alívio, num quarto de hotel em Teresina, enquanto assistia ao especial sobre o Brasil (The giant awakens) exibido pela rede CNN há poucos dias [fevereiro de 98].
O programa dividiu-se em blocos didáticos e previsíveis. Primeiro, a situação econômica do país e as nossas mazelas e iniqüidades sociais; depois, um passeio pela floresta amazônica entremeado de alertas sobre a devastação ecológica; e, por fim, um apanhado de manifestações da cultura popular: estádios de futebol vibrantes, grupos jovens de percussão, praias apinhadas de hedonistas e os preparativos do carnaval. A última cena exibia uma menina pobre, de três ou quatro anos de idade, ensaiando feliz da vida e cheia de graça os seus primeiros passos de samba ao som de um tamborim.
O especial da CNN não trouxe novidades. Foi um programa correto, suficiente para embalar o tédio e preencher a janela na grade horária, mas essencialmente rotineiro e descartável. Um programa, em suma, fadado ao esquecimento quase instantâneo e que eu mal conseguiria lembrar de haver algum dia assistido, não fosse pelo fato de que ele acabou me despertando para lembranças que nem eu me sabia capaz de recordar.
A imagem da menina pobre sambando e o contraste implícito entre esta cena e o quadro de miséria exibido na parte inicial do programa reavivaram em minha memória as imagens de um outro documentário sobre o Brasil visto de fora — um trabalho de jornalismo que, este sim, eu não hesitaria em destacar como uma das peças mais surpreendentes e reveladoras feitas até hoje por uma TV estrangeira sobre a nossa realidade.
No início dos anos 80, uma equipe da BBC inglesa veio ao Brasil gravar um documentário sobre as condições de vida numa favela do Rio. A idéia era mostrar de forma ultra-realista, no melhor estilo "câmara invisível" da tradição anglo-saxônica de reportagem, um dia na vida de uma jovem favelada carioca. A equipe subiu o morro, escolheu a protagonista e passou a registrar o cotidiano de vida, trabalho e lazer daquela jovem. O resultado, exibido em horário nobre na BBC-2 (eu estava morando na Inglaterra quando passou), foi um documentário deliciosamente incongruente e que acabou fugindo por completo do controle de seus idealizadores.
A intenção do programa era claramente explorar ao máximo as chagas abertas e a penúria do dia-a-dia na favela: a imundície e a promiscuidade dos barracos, a dieta sofrível, a falta de água encanada, o dinheiro curto, o tempo perdido no transporte público, o subemprego, enfim, as condições absurdamente precárias da vida no morro. Tudo isso a equipe da BBC foi até lá buscar e encontrou. O que eles não podiam esperar, mas as câmaras e microfones testemunharam, era que a jovem moradora daquele barraco objetivo habitasse um verdadeiro palácio subjetivo de alegria, esperança e fantasia.
Acontece que a jovem escolhida para servir de fio condutor do programa personificava a negação viva e radiante de toda a carga de sombra e amargura que o registro clínico de seu cotidiano nos fariam esperar dela. Em meio a toda precariedade de seu dia-a-dia humilde na favela, ela irradiava uma felicidade espontânea, uma satisfação íntima consigo mesma e uma libido exuberante que nós jamais conseguiríamos encontrar numa jovem inglesa de sua idade, não importando a classe social e mesmo no verão.
Embora tivesse razões de sobra para queixar-se do destino e viver na mais espessa melancolia, ela esbanjava joie de vivre por todos os poros e arrancava luz das trevas com a sua alegria interior. Recordo-me, em particular, da cena em que ela ia buscar água a certa distância de casa e, para desconcerto dos ingleses, voltava carregando a lata cheia e... cantando!
A seqüência — Paulo Prado e sua "raça triste" que me perdoe — era puro Gilberto Freyre: "Tanto nas plantações como dentro de casa, nos tanques de bater roupa, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando prato, fazendo doce, pilando café; nas cidades, carregando sacos de açúcar, pianos, sofás de jacarandá — os negros trabalharam sempre cantando; seus cantos de trabalho, tanto quanto os de xangô, os de festa, os de ninar menino pequeno, encheram de alegria africana a vida brasileira. Às vezes de um pouco de banzo: mas principalmente de alegria."
A relação entre o barraco objetivo da favela e o palácio subjetivo da jovem dá o que pensar. Não se trata, ao que parece, de um caso isolado. Ele ilustra de forma magnífica os resultados obtidos pelo Datafolha em recente pesquisa sobre a felicidade dos brasileiros. Apesar de viver e ganhar a vida em condições precárias, a grande maioria dos brasileiros considera-se feliz e amplamente satisfeita com a vida que leva: só 3% se declaram infelizes em relação à sua vida como um todo.
É plausível supor, contudo, que tanto o documentário da BBC quanto a pesquisa do Datafolha tenham sofrido os efeitos daquilo que os físicos quânticos denominam princípio da incerteza, ou seja, a interferência deturpadora do ato de observar sobre a configuração do que foi observado.
Ao ser indagado sobre a sua felicidade, o entrevistado se defende perante si mesmo da ameaça de dor que uma resposta derrotista traria e declara-se sinceramente feliz. Ao ser escolhida, entre tantas outras, para "estrelar" um programa de TV a ser exibido no exterior, a jovem carioca sente-se a eleita dos deuses e embarca num mundo de fantasias mais espesso e luxuriante que a novela das oito.
Qualquer que seja a realidade, um ponto permanece. Mesmo que o palácio subjetivo dos brasileiros não passe de criatura do princípio da incerteza — algo que, diga-se de passagem, não me parece ser o caso —, a tenacidade da garra demonstrada em não entregar os pontos e o dom de embarcar vigorosamente nos sonhos e fantasias que nos povoam são traços culturais de inestimável valor.
A disposição alegre e afetiva do brasileiro, em meio a toda precariedade do seu mundo objetivo e material, parece buscar qualquer brecha ou pretexto que se ofereça para florescer. Todo dia é "dia do riso chorar". A "ofegante epidemia" do carnaval —esse espantoso vulcão de euforia coletiva com data marcada — aí está para não nos deixar mentir.
De: GIANNETTI, Eduardo. “Palácio subjetivo aflora no carnaval”. In: Nada é tudo. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p.63-66.
Palácio subjetivo aflora no carnaval
Esqueço rapidamente quase tudo a que assisto no cinema e TV. Em alguns casos, chego ao extremo de nem lembrar se já teria visto ou não algum filme ou programa a que esteja assistindo. É uma experiência inconfortável de perda de registro e que se torna esmagadora quando me acontece de encontrar alguém que resolve contar de forma minuciosa, sadicamente detalhista, algo que tenha visto tempos atrás. A sensação que fica é a de que padeço de algum tipo de amnésia aguda localizada.
Mas nem tudo, felizmente, desaparece sem vestígio no ralo da memória. Foi o que pude constatar com certo alívio, num quarto de hotel em Teresina, enquanto assistia ao especial sobre o Brasil (The giant awakens) exibido pela rede CNN há poucos dias [fevereiro de 98].
O programa dividiu-se em blocos didáticos e previsíveis. Primeiro, a situação econômica do país e as nossas mazelas e iniqüidades sociais; depois, um passeio pela floresta amazônica entremeado de alertas sobre a devastação ecológica; e, por fim, um apanhado de manifestações da cultura popular: estádios de futebol vibrantes, grupos jovens de percussão, praias apinhadas de hedonistas e os preparativos do carnaval. A última cena exibia uma menina pobre, de três ou quatro anos de idade, ensaiando feliz da vida e cheia de graça os seus primeiros passos de samba ao som de um tamborim.
O especial da CNN não trouxe novidades. Foi um programa correto, suficiente para embalar o tédio e preencher a janela na grade horária, mas essencialmente rotineiro e descartável. Um programa, em suma, fadado ao esquecimento quase instantâneo e que eu mal conseguiria lembrar de haver algum dia assistido, não fosse pelo fato de que ele acabou me despertando para lembranças que nem eu me sabia capaz de recordar.
A imagem da menina pobre sambando e o contraste implícito entre esta cena e o quadro de miséria exibido na parte inicial do programa reavivaram em minha memória as imagens de um outro documentário sobre o Brasil visto de fora — um trabalho de jornalismo que, este sim, eu não hesitaria em destacar como uma das peças mais surpreendentes e reveladoras feitas até hoje por uma TV estrangeira sobre a nossa realidade.
No início dos anos 80, uma equipe da BBC inglesa veio ao Brasil gravar um documentário sobre as condições de vida numa favela do Rio. A idéia era mostrar de forma ultra-realista, no melhor estilo "câmara invisível" da tradição anglo-saxônica de reportagem, um dia na vida de uma jovem favelada carioca. A equipe subiu o morro, escolheu a protagonista e passou a registrar o cotidiano de vida, trabalho e lazer daquela jovem. O resultado, exibido em horário nobre na BBC-2 (eu estava morando na Inglaterra quando passou), foi um documentário deliciosamente incongruente e que acabou fugindo por completo do controle de seus idealizadores.
A intenção do programa era claramente explorar ao máximo as chagas abertas e a penúria do dia-a-dia na favela: a imundície e a promiscuidade dos barracos, a dieta sofrível, a falta de água encanada, o dinheiro curto, o tempo perdido no transporte público, o subemprego, enfim, as condições absurdamente precárias da vida no morro. Tudo isso a equipe da BBC foi até lá buscar e encontrou. O que eles não podiam esperar, mas as câmaras e microfones testemunharam, era que a jovem moradora daquele barraco objetivo habitasse um verdadeiro palácio subjetivo de alegria, esperança e fantasia.
Acontece que a jovem escolhida para servir de fio condutor do programa personificava a negação viva e radiante de toda a carga de sombra e amargura que o registro clínico de seu cotidiano nos fariam esperar dela. Em meio a toda precariedade de seu dia-a-dia humilde na favela, ela irradiava uma felicidade espontânea, uma satisfação íntima consigo mesma e uma libido exuberante que nós jamais conseguiríamos encontrar numa jovem inglesa de sua idade, não importando a classe social e mesmo no verão.
Embora tivesse razões de sobra para queixar-se do destino e viver na mais espessa melancolia, ela esbanjava joie de vivre por todos os poros e arrancava luz das trevas com a sua alegria interior. Recordo-me, em particular, da cena em que ela ia buscar água a certa distância de casa e, para desconcerto dos ingleses, voltava carregando a lata cheia e... cantando!
A seqüência — Paulo Prado e sua "raça triste" que me perdoe — era puro Gilberto Freyre: "Tanto nas plantações como dentro de casa, nos tanques de bater roupa, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando prato, fazendo doce, pilando café; nas cidades, carregando sacos de açúcar, pianos, sofás de jacarandá — os negros trabalharam sempre cantando; seus cantos de trabalho, tanto quanto os de xangô, os de festa, os de ninar menino pequeno, encheram de alegria africana a vida brasileira. Às vezes de um pouco de banzo: mas principalmente de alegria."
A relação entre o barraco objetivo da favela e o palácio subjetivo da jovem dá o que pensar. Não se trata, ao que parece, de um caso isolado. Ele ilustra de forma magnífica os resultados obtidos pelo Datafolha em recente pesquisa sobre a felicidade dos brasileiros. Apesar de viver e ganhar a vida em condições precárias, a grande maioria dos brasileiros considera-se feliz e amplamente satisfeita com a vida que leva: só 3% se declaram infelizes em relação à sua vida como um todo.
É plausível supor, contudo, que tanto o documentário da BBC quanto a pesquisa do Datafolha tenham sofrido os efeitos daquilo que os físicos quânticos denominam princípio da incerteza, ou seja, a interferência deturpadora do ato de observar sobre a configuração do que foi observado.
Ao ser indagado sobre a sua felicidade, o entrevistado se defende perante si mesmo da ameaça de dor que uma resposta derrotista traria e declara-se sinceramente feliz. Ao ser escolhida, entre tantas outras, para "estrelar" um programa de TV a ser exibido no exterior, a jovem carioca sente-se a eleita dos deuses e embarca num mundo de fantasias mais espesso e luxuriante que a novela das oito.
Qualquer que seja a realidade, um ponto permanece. Mesmo que o palácio subjetivo dos brasileiros não passe de criatura do princípio da incerteza — algo que, diga-se de passagem, não me parece ser o caso —, a tenacidade da garra demonstrada em não entregar os pontos e o dom de embarcar vigorosamente nos sonhos e fantasias que nos povoam são traços culturais de inestimável valor.
A disposição alegre e afetiva do brasileiro, em meio a toda precariedade do seu mundo objetivo e material, parece buscar qualquer brecha ou pretexto que se ofereça para florescer. Todo dia é "dia do riso chorar". A "ofegante epidemia" do carnaval —esse espantoso vulcão de euforia coletiva com data marcada — aí está para não nos deixar mentir.
De: GIANNETTI, Eduardo. “Palácio subjetivo aflora no carnaval”. In: Nada é tudo. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p.63-66.
26.9.07
Antonio Carlos Secchin: Arte
Outro dia tive a grata surpresa de reler, no livro que Tatiane Martins lançou este mês, Poeme-se (Rio de Janeiro: Litteris Editora, 2007), um poema que Antonio Carlos Secchin dedicou a mim – dedicatória de que me muito me orgulho – no seu belo livro Todos os ventos. Ei-lo:
ARTE
a Antonio Cicero
Poemas são palavras e presságios,
pardais perdidos sem direito a ninho.
Poemas casam nuvens e favelas
e se escondem após no próprio umbigo.
Poemas são tilápias e besouros,
ar e água à beira de anzóis e riscos.
São begônias e petúnias,
isopor ou mármore nas colunas,
rosas decepadas pelas hélices
de vôos amarrados ao chão.
Resto do que foi orvalho,
poema é carta fora do baralho,
milharal virando cinza
pelo fogo do espantalho.
De: SECCHIN, Antonio Carlos. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
ARTE
a Antonio Cicero
Poemas são palavras e presságios,
pardais perdidos sem direito a ninho.
Poemas casam nuvens e favelas
e se escondem após no próprio umbigo.
Poemas são tilápias e besouros,
ar e água à beira de anzóis e riscos.
São begônias e petúnias,
isopor ou mármore nas colunas,
rosas decepadas pelas hélices
de vôos amarrados ao chão.
Resto do que foi orvalho,
poema é carta fora do baralho,
milharal virando cinza
pelo fogo do espantalho.
De: SECCHIN, Antonio Carlos. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
23.9.07
O Senado e a democracia
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada da Folha de São Paulo sábado, 22 de setembro de 2007:
O Senado e a democracia
EMBORA tenha sido deplorável a absolvição do senador Renan Calheiros, também são lastimáveis algumas das reações a esse episódio.
Readquiriu força, por exemplo, a idéia, que havia sido proposta no começo do mês pelo presidente do PT, de extinguir o Senado.
Como não pensar em maquiavelismo, à simples descrição do ocorrido? A opinião pública informada pressionava pela condenação de Renan; este não teria sido absolvido sem o beneplácito do presidente Lula; ora, sua absolvição desmoralizou grande parte dos senadores e revigorou, justamente junto à opinião pública informada, a idéia da extinção do Senado; com isso, o Poder Executivo -o presidente Lula- ficou ainda mais forte em relação ao Poder Legislativo.
Nessas circunstâncias, é imperativo que os brasileiros que defendam uma sociedade aberta e democrática conservem o sangue-frio. Devemos resistir à tentativa açodada de convocar uma assembléia constituinte que tenha o objetivo precípuo de dar fim ao sistema bicameral.
Lembremo-nos, por exemplo, que, num país de imensas desigualdades regionais, como o Brasil, um fator importante da unidade nacional é que haja uma Câmara -o Senado- em que todos os Estados da federação tenham o mesmo peso.
Assim como a desmoralização do presidente Collor não significou a desmoralização da instituição da Presidência da República, a desmoralização de vários senadores, no episódio Renan, não pode significar a desmoralização da instituição do Senado.
De todo modo, nada seria pior, neste momento, do que contribuir para desestabilizar o Congresso, de modo a perpetuar ou acentuar o presente desequilíbrio entre os poderes da República.
E, por falar em desestabilizar o Congresso, não será surpreendente se a atual desilusão generalizada, lançando suspeição contra a própria noção de representação política, traga novamente à baila a idéia de "democracia direta".
Esta se manifestaria pelo plebiscito, pelo referendo e pela iniciativa popular. Entretanto, o próprio Fábio Konder Comparato, que é, no Brasil, o grande defensor da "democracia direta", reconhece, por exemplo, que as leis raciais de Hitler foram aprovadas por mais de 90% do povo. Alguém duvida que as ditaduras sanguinárias de Hitler, Stálin, Mao Tse-tung e Pol Pot tenham tido o apoio da maioria da população dos respectivos países?
Sugiro, em relação a essa questão da "democracia direta", a leitura do livro recém-lançado do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, "O Paradoxo de Rousseau" (ed. Rocco, 2007, 166 pág., R$ 25).
Ele lembra, por exemplo, que, ao contrário do que ocorre nos Parlamentos, cujas decisões estão sujeitas a serem reconsideradas -pelo próprio Parlamento ou por outras instâncias- "não há como recorrer de decisões plebiscitárias. Os perdedores em tais decisões são perdedores absolutos".
Tudo se passa como se os plebiscitos "fossem a expressão da vontade geral unânime, quando pode ocorrer, inclusive, que não correspondam senão a maiorias obtidas por mínima margem de diferença".
O resultado, segundo o mesmo cientista político, é que "uma sucessão de escolhas plebiscitárias daria lugar à constituição de um contingente de cidadãos condenados ao silêncio por tempo indeterminado. Na verdade, o mecanismo se converteria em uma fábrica de ostracismo ideológico". E assim -agora sou eu que o digo- revela-se a verdade da "democracia direta" como a ditadura plebiscitária.
É para evitar semelhantes desastres que devemos fazer o máximo para preservar as instituições da República. Não nos enganemos: a existência delas ainda é precária.
Enquanto, por um lado, grande parte da direita odeia a sociedade aberta, por outro lado, grande parte da esquerda -principalmente da marxista- a despreza. Seria de esperar que, após a revelação dos massacres, das atrocidades e da repressão ocorridos na União Soviética, na China, no Camboja, em Cuba etc., os marxistas, antes de fazer qualquer outra proposta política, se propusessem a preservar e defender, de modo incondicional, a sociedade aberta, o Estado de Direito, os direitos humanos, a liberdade de expressão, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. É lamentável que não seja assim.
Antonio Cicero
O Senado e a democracia
EMBORA tenha sido deplorável a absolvição do senador Renan Calheiros, também são lastimáveis algumas das reações a esse episódio.
Readquiriu força, por exemplo, a idéia, que havia sido proposta no começo do mês pelo presidente do PT, de extinguir o Senado.
Como não pensar em maquiavelismo, à simples descrição do ocorrido? A opinião pública informada pressionava pela condenação de Renan; este não teria sido absolvido sem o beneplácito do presidente Lula; ora, sua absolvição desmoralizou grande parte dos senadores e revigorou, justamente junto à opinião pública informada, a idéia da extinção do Senado; com isso, o Poder Executivo -o presidente Lula- ficou ainda mais forte em relação ao Poder Legislativo.
Nessas circunstâncias, é imperativo que os brasileiros que defendam uma sociedade aberta e democrática conservem o sangue-frio. Devemos resistir à tentativa açodada de convocar uma assembléia constituinte que tenha o objetivo precípuo de dar fim ao sistema bicameral.
Lembremo-nos, por exemplo, que, num país de imensas desigualdades regionais, como o Brasil, um fator importante da unidade nacional é que haja uma Câmara -o Senado- em que todos os Estados da federação tenham o mesmo peso.
Assim como a desmoralização do presidente Collor não significou a desmoralização da instituição da Presidência da República, a desmoralização de vários senadores, no episódio Renan, não pode significar a desmoralização da instituição do Senado.
De todo modo, nada seria pior, neste momento, do que contribuir para desestabilizar o Congresso, de modo a perpetuar ou acentuar o presente desequilíbrio entre os poderes da República.
E, por falar em desestabilizar o Congresso, não será surpreendente se a atual desilusão generalizada, lançando suspeição contra a própria noção de representação política, traga novamente à baila a idéia de "democracia direta".
Esta se manifestaria pelo plebiscito, pelo referendo e pela iniciativa popular. Entretanto, o próprio Fábio Konder Comparato, que é, no Brasil, o grande defensor da "democracia direta", reconhece, por exemplo, que as leis raciais de Hitler foram aprovadas por mais de 90% do povo. Alguém duvida que as ditaduras sanguinárias de Hitler, Stálin, Mao Tse-tung e Pol Pot tenham tido o apoio da maioria da população dos respectivos países?
Sugiro, em relação a essa questão da "democracia direta", a leitura do livro recém-lançado do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, "O Paradoxo de Rousseau" (ed. Rocco, 2007, 166 pág., R$ 25).
Ele lembra, por exemplo, que, ao contrário do que ocorre nos Parlamentos, cujas decisões estão sujeitas a serem reconsideradas -pelo próprio Parlamento ou por outras instâncias- "não há como recorrer de decisões plebiscitárias. Os perdedores em tais decisões são perdedores absolutos".
Tudo se passa como se os plebiscitos "fossem a expressão da vontade geral unânime, quando pode ocorrer, inclusive, que não correspondam senão a maiorias obtidas por mínima margem de diferença".
O resultado, segundo o mesmo cientista político, é que "uma sucessão de escolhas plebiscitárias daria lugar à constituição de um contingente de cidadãos condenados ao silêncio por tempo indeterminado. Na verdade, o mecanismo se converteria em uma fábrica de ostracismo ideológico". E assim -agora sou eu que o digo- revela-se a verdade da "democracia direta" como a ditadura plebiscitária.
É para evitar semelhantes desastres que devemos fazer o máximo para preservar as instituições da República. Não nos enganemos: a existência delas ainda é precária.
Enquanto, por um lado, grande parte da direita odeia a sociedade aberta, por outro lado, grande parte da esquerda -principalmente da marxista- a despreza. Seria de esperar que, após a revelação dos massacres, das atrocidades e da repressão ocorridos na União Soviética, na China, no Camboja, em Cuba etc., os marxistas, antes de fazer qualquer outra proposta política, se propusessem a preservar e defender, de modo incondicional, a sociedade aberta, o Estado de Direito, os direitos humanos, a liberdade de expressão, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. É lamentável que não seja assim.
Antonio Cicero
21.9.07
Nelson Ascher: Mais dia menos dia
MAIS DIA MENOS DIA
Coágulos de perda
de tempo, adiamento,
atraso e espera, ou seja,
minúsculas metástases
de caos se interpõem entre
— irrelevante qual
dos dois corre na frente —
a tartaruga e Aquiles
(o débito na conta;
no trânsito, a demora;
um ácido no estômago;
frente ao correio, a fila;
o mofo no tecido;
nos músculos, a inércia;
cupins na biblioteca;
sob o tapete, o lixo;
um óxido no ferro;
nas pálpebras, o sono)
e, como que aderindo,
à guisa de entropia,
ao âmago dos nervos,
embotam mais um pouco
o ritmo do arraigado
relógio biológico.
De: ASCHER, Nelson. Algo de sol. São Paulo: Editora 34, 1996, p.51-52.
Coágulos de perda
de tempo, adiamento,
atraso e espera, ou seja,
minúsculas metástases
de caos se interpõem entre
— irrelevante qual
dos dois corre na frente —
a tartaruga e Aquiles
(o débito na conta;
no trânsito, a demora;
um ácido no estômago;
frente ao correio, a fila;
o mofo no tecido;
nos músculos, a inércia;
cupins na biblioteca;
sob o tapete, o lixo;
um óxido no ferro;
nas pálpebras, o sono)
e, como que aderindo,
à guisa de entropia,
ao âmago dos nervos,
embotam mais um pouco
o ritmo do arraigado
relógio biológico.
De: ASCHER, Nelson. Algo de sol. São Paulo: Editora 34, 1996, p.51-52.
18.9.07
Bienal do Livro
Hoje às 16 horas, no Pavilhão Verde da Bienal do Livro, no café literário "Amigos para sempre", falarei sobre o meu saudoso amigo Waly Salomão.
Mais tarde, às 20 horas, no mesmo pavilhão, terá lugar outro café literário, em que a maravilhosa escritora que é a minha amiga Márcia Frazão conversará com a Bruna Surfistinha e a Gisela Rao sobre "Liberdade ou libertinagem".
Mais tarde, às 20 horas, no mesmo pavilhão, terá lugar outro café literário, em que a maravilhosa escritora que é a minha amiga Márcia Frazão conversará com a Bruna Surfistinha e a Gisela Rao sobre "Liberdade ou libertinagem".
15.9.07
Salvatore Quasimodo: "Ed è subito sera" / "E de repente é noite": trad. de Geraldo Holanda Cavalcanti
Ed è subito sera
Ognuno sta solo sul cuor della terra
trafitto da um raggio di sole:
ed è súbito sera.
E de repente é noite
Cada um está só no coração da terra
traspassado por um raio de sol:
e de repente é noite.
De: QUASIMODO, Salvatore. Poesias. Edição bilíngüe. Seleção, tradução e notas de CAVALCANTI, Geraldo Holanda. Prefácio de Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Record, 1999. P. 18-19.
12.9.07
Juan Ramón Jiménez: Yo no soy yo
Yo no soy yo.
Soy este
que va a mi lado sin yo verlo;
que, a veces, voy a ver,
y que, a veces, olvido.
El que calla, sereno, cuando hablo,
el que perdona, dulce, cuando ódio,
el que pasea por donde no estoy,
el que quedará en pie cuando yo muera.
De: Segunda antología poética: 1898-1918. Madrid: Espasa-Calpe, 1976.
Soy este
que va a mi lado sin yo verlo;
que, a veces, voy a ver,
y que, a veces, olvido.
El que calla, sereno, cuando hablo,
el que perdona, dulce, cuando ódio,
el que pasea por donde no estoy,
el que quedará en pie cuando yo muera.
De: Segunda antología poética: 1898-1918. Madrid: Espasa-Calpe, 1976.
9.9.07
Os Babilaques de Waly Salomão
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Folha de São Paulo em 8/9/2007 :
Os Babilaques de Waly Salomão
CADA UM dos Babilaques de Waly Salomão que estão sendo expostos no espaço Oi Futuro, no Rio de Janeiro, sob a curadoria de Luciano Figueiredo, consiste numa fotografia de uma página de um caderno em espiral, ao lado de diferentes objetos e sobre diferentes superfícies: asfalto, grama, pedra, roupas, outros cadernos etc. Na página, encontram-se desenhos e/ou colagens e/ou letras, palavras, versos, textos em manuscrito etc.
Ao mesmo tempo que descrevia os Babilaques como "performances-poético-visuais", Waly advertia que "evitaria designá-los simplesmente como poemas visuais, já que essa designação é desatenta à somatória de linguagens".
De fato, o que chamamos de "poesia visual" é, naturalmente, uma espécie de poesia. No Ocidente, ela possui uma tradição que remonta à Antiguidade e passa pelo dadaísmo, pelo futurismo, pela poesia concreta etc., até os nossos dias.
Quando digo que a poesia visual é uma espécie de poesia, estou supondo que uma arte chamada "poesia" seja o gênero ao qual pertença a "poesia visual". Isso, porém, supõe, por sua vez, que esse gênero seja, ele mesmo, uma das espécies do gênero que chamamos "arte", ao qual pertencem também outras espécies, como a música, a pintura etc.
Penso que corresponde à intenção mais profunda de Waly dizer que os Babilaques não só não se reduzem à poesia visual mas que não se reduzem a nenhuma dessas espécies de arte: nem mesmo à poesia, quando esta é tomada como uma espécie de arte entre outras.
Longe de aceitar esse modo convencional de classificar a poesia, Waly considera as diferentes artes como diferentes técnicas por meio das quais a poesia é capaz de se realizar. Por isso, seu poema "Exterior" pergunta, por exemplo: "Por que a poesia tem que se confinar/ às paredes da vulva do poema?".
Waly sublinha o caráter inter-relacional dos "textos, objetos, luzes, planos, imagens, cores, superfícies" que se encontram nos Babilaques. Trata-se, segundo ele, de uma "multilinguagem". Não se empreende com essas obras uma busca meramente pictórica, pois a linguagem verbal funciona como "o agente que hibridiza todo o campo sensorial da experiência". Nesse sentido, os Babilaques constituem a radicalização de um programa poético -articulado e realizado de diferentes modos, em diferentes momentos da trajetória de Waly- voltado para o hibridismo e a "polinização cruzada".
Um texto dele com esse nome diz: "Polinizações cruzadas entre o lido e o vivido. Entre a espontaneidade coloquial e o estranhamento pensado. Entre a confissão e o jogo. Entre o vivenciado e o inventado. Entre o propósito e o instinto. Entre a demiúrgica lábia e as camadas, superpostas do refletido. Imbróglio d'álgebra e jogo de azar".
"Uma foto de um pedaço de fruta dentro de uma lata vazia", explica Waly, "não pretende ser uma forma insólita de "natureza morta", mas instaura um discurso, uma fala, um canto, uma música, cines imaginários". Há uma série de Babilaques, intitulada "Amalgâmicas", que correspondem a essa descrição.
"Q a primeira única vez volte a se fazer PRESENÇA", diz o poema "Nota de Cabeça de Página". Assim quer ser o Babilaque: "A composição enquanto presença dalguma coisa". A presença surge "dentro da composição através dela pela primeira única vez", quando, numa performance poética, o artista põe ou surpreende, por exemplo, tal pedaço de fruta dentro de tal lata vazia. E "a fotografia", dizia Waly, "com seus elementos composicionais próprios: luz, cor, ângulo, corte-transforma e fixa a performance poética".
Observe-se nesses textos a insistência da palavra "composição" e cognatas. Uma característica impressionante dos Babilaques -que, aliás, os distingue de quase toda "poesia verbal", conferindo-lhes uma qualidade propriamente plástica- é exatamente a sua composição sempre surpreendente e precisa.
A meu ver, a combinação dessa realização visual com a expressão cabal da vocação walyniana para "[...] transbordar, pintar e bordar, romper as amarras / soltar-se das margens, desbordar, ultrapassar as / bordas, transmudar-se, não restar sendo si-mesmo, / virar ou-tros seres [...]" é uma das principais propriedades que tornam os Babilaques admiráveis obras de arte.
Finalmente, cabe sublinhar a extraordinária sensibilidade, não digo do curador, mas do artista Luciano Figueiredo, ao conceber a dinâmica planar que lhe permitiu, expondo os Babilaques na parede, realçar maximamente as suas qualidades plástico-poéticas.
Antonio Cicero
Os Babilaques de Waly Salomão
CADA UM dos Babilaques de Waly Salomão que estão sendo expostos no espaço Oi Futuro, no Rio de Janeiro, sob a curadoria de Luciano Figueiredo, consiste numa fotografia de uma página de um caderno em espiral, ao lado de diferentes objetos e sobre diferentes superfícies: asfalto, grama, pedra, roupas, outros cadernos etc. Na página, encontram-se desenhos e/ou colagens e/ou letras, palavras, versos, textos em manuscrito etc.
Ao mesmo tempo que descrevia os Babilaques como "performances-poético-visuais", Waly advertia que "evitaria designá-los simplesmente como poemas visuais, já que essa designação é desatenta à somatória de linguagens".
De fato, o que chamamos de "poesia visual" é, naturalmente, uma espécie de poesia. No Ocidente, ela possui uma tradição que remonta à Antiguidade e passa pelo dadaísmo, pelo futurismo, pela poesia concreta etc., até os nossos dias.
Quando digo que a poesia visual é uma espécie de poesia, estou supondo que uma arte chamada "poesia" seja o gênero ao qual pertença a "poesia visual". Isso, porém, supõe, por sua vez, que esse gênero seja, ele mesmo, uma das espécies do gênero que chamamos "arte", ao qual pertencem também outras espécies, como a música, a pintura etc.
Penso que corresponde à intenção mais profunda de Waly dizer que os Babilaques não só não se reduzem à poesia visual mas que não se reduzem a nenhuma dessas espécies de arte: nem mesmo à poesia, quando esta é tomada como uma espécie de arte entre outras.
Longe de aceitar esse modo convencional de classificar a poesia, Waly considera as diferentes artes como diferentes técnicas por meio das quais a poesia é capaz de se realizar. Por isso, seu poema "Exterior" pergunta, por exemplo: "Por que a poesia tem que se confinar/ às paredes da vulva do poema?".
Waly sublinha o caráter inter-relacional dos "textos, objetos, luzes, planos, imagens, cores, superfícies" que se encontram nos Babilaques. Trata-se, segundo ele, de uma "multilinguagem". Não se empreende com essas obras uma busca meramente pictórica, pois a linguagem verbal funciona como "o agente que hibridiza todo o campo sensorial da experiência". Nesse sentido, os Babilaques constituem a radicalização de um programa poético -articulado e realizado de diferentes modos, em diferentes momentos da trajetória de Waly- voltado para o hibridismo e a "polinização cruzada".
Um texto dele com esse nome diz: "Polinizações cruzadas entre o lido e o vivido. Entre a espontaneidade coloquial e o estranhamento pensado. Entre a confissão e o jogo. Entre o vivenciado e o inventado. Entre o propósito e o instinto. Entre a demiúrgica lábia e as camadas, superpostas do refletido. Imbróglio d'álgebra e jogo de azar".
"Uma foto de um pedaço de fruta dentro de uma lata vazia", explica Waly, "não pretende ser uma forma insólita de "natureza morta", mas instaura um discurso, uma fala, um canto, uma música, cines imaginários". Há uma série de Babilaques, intitulada "Amalgâmicas", que correspondem a essa descrição.
"Q a primeira única vez volte a se fazer PRESENÇA", diz o poema "Nota de Cabeça de Página". Assim quer ser o Babilaque: "A composição enquanto presença dalguma coisa". A presença surge "dentro da composição através dela pela primeira única vez", quando, numa performance poética, o artista põe ou surpreende, por exemplo, tal pedaço de fruta dentro de tal lata vazia. E "a fotografia", dizia Waly, "com seus elementos composicionais próprios: luz, cor, ângulo, corte-transforma e fixa a performance poética".
Observe-se nesses textos a insistência da palavra "composição" e cognatas. Uma característica impressionante dos Babilaques -que, aliás, os distingue de quase toda "poesia verbal", conferindo-lhes uma qualidade propriamente plástica- é exatamente a sua composição sempre surpreendente e precisa.
A meu ver, a combinação dessa realização visual com a expressão cabal da vocação walyniana para "[...] transbordar, pintar e bordar, romper as amarras / soltar-se das margens, desbordar, ultrapassar as / bordas, transmudar-se, não restar sendo si-mesmo, / virar ou-tros seres [...]" é uma das principais propriedades que tornam os Babilaques admiráveis obras de arte.
Finalmente, cabe sublinhar a extraordinária sensibilidade, não digo do curador, mas do artista Luciano Figueiredo, ao conceber a dinâmica planar que lhe permitiu, expondo os Babilaques na parede, realçar maximamente as suas qualidades plástico-poéticas.
Antonio Cicero
8.9.07
Fernando Gabeira: Duelo ao entardecer
O seguinte artigo de Fernando Gabeira foi publicado hoje, sábado, 8 de setembro de 2007, na Folha de São Paulo. Considero-o extremamente importante.
Duelo ao entardecer
DE UM PONTO de vista simbólico, quarta-feira alguém irá morrer: ou o Senado ou Renan Calheiros. O resultado ainda é imprevisível. Dizem que o governo salvará seu "enfant gaté". O ministro da Defesa, que é um elefante na cristaleira, mas celebrado pelos escribas deslumbrados, foi visitar Renan e levar-lhe solidariedade.
Trabalho com a hipótese de o governo salvar Renan. Não a prefiro, mas já me acostumei com a realidade que desafia o bom senso. Se isso acontecer, a batalha não estará perdida. Abre-se apenas uma nova fase, bem ao gosto dos opositores que desejam o pior. Uma fase do tipo os deuses enlouquecendo aqueles a quem desejam destruir.
Certas cabeças, se é que podemos chamá-las assim, do governo podem pensar: danem-se a classe média e todos os indivíduos instruídos do país, a elite. Acomodem-se os pobres, porque, afinal, estão recebendo seu quinhão de Bolsa Família e não têm nada que opinar sobre Renan. Faremos o que quisermos, não importam as conseqüências.
A hipótese de absolvição de Renan com a ajuda do governo trará sobressaltos, possibilidades imprevistas. Lula colocou o PT acima da ética. Ele pode afirmar também que ninguém é mais ético que Renan, pois o senador uniu-se umbelicalmente ao projeto do PT. Ou pode dizer também que ninguém sabe o que aconteceu quando os fatos se desenrolarem.
Todos nos acostumamos com o desenrolar pacífico da democracia brasileira. Mas o surgimento de uma aliança de quadrilhas, encarando o país com um cinismo revoltante, é um dado perigoso. Vamos rezar pelo bom senso. Vamos trabalhar por ele. Mas, caso a loucura onipotente predomine, os brasileiros terão de admitir que a história não é um piquenique. Ou serão devorados como um sanduíche e bebidos como uma tubaína de Alagoas.
Indivíduos fizeram sua escolha.
Lobão, por exemplo, foi ao Congresso com uma camiseta que explicava, com humor, o momento em que vivemos: peidei, mas não fui eu. Tico Santa Cruz acampou na frente do Senado e desenhou uma bandeira do Brasil com laranjas.
Artistas, diriam, têm suas prerrogativas. Nem todos são artistas, nem todos podem viajar a Brasília.
Apesar da patética fragilidade diante da história, só os indivíduos, no momento de torpor coletivo, podem encarnar a esperança.
Os que se calam hoje, com medo de fazer o jogo da direita, deveriam consultar a história, capítulo Stálin. Os momentos de cumplicidade com o crime são doces e suaves. A vergonha vem depois.
Fernando Gabeira
Duelo ao entardecer
DE UM PONTO de vista simbólico, quarta-feira alguém irá morrer: ou o Senado ou Renan Calheiros. O resultado ainda é imprevisível. Dizem que o governo salvará seu "enfant gaté". O ministro da Defesa, que é um elefante na cristaleira, mas celebrado pelos escribas deslumbrados, foi visitar Renan e levar-lhe solidariedade.
Trabalho com a hipótese de o governo salvar Renan. Não a prefiro, mas já me acostumei com a realidade que desafia o bom senso. Se isso acontecer, a batalha não estará perdida. Abre-se apenas uma nova fase, bem ao gosto dos opositores que desejam o pior. Uma fase do tipo os deuses enlouquecendo aqueles a quem desejam destruir.
Certas cabeças, se é que podemos chamá-las assim, do governo podem pensar: danem-se a classe média e todos os indivíduos instruídos do país, a elite. Acomodem-se os pobres, porque, afinal, estão recebendo seu quinhão de Bolsa Família e não têm nada que opinar sobre Renan. Faremos o que quisermos, não importam as conseqüências.
A hipótese de absolvição de Renan com a ajuda do governo trará sobressaltos, possibilidades imprevistas. Lula colocou o PT acima da ética. Ele pode afirmar também que ninguém é mais ético que Renan, pois o senador uniu-se umbelicalmente ao projeto do PT. Ou pode dizer também que ninguém sabe o que aconteceu quando os fatos se desenrolarem.
Todos nos acostumamos com o desenrolar pacífico da democracia brasileira. Mas o surgimento de uma aliança de quadrilhas, encarando o país com um cinismo revoltante, é um dado perigoso. Vamos rezar pelo bom senso. Vamos trabalhar por ele. Mas, caso a loucura onipotente predomine, os brasileiros terão de admitir que a história não é um piquenique. Ou serão devorados como um sanduíche e bebidos como uma tubaína de Alagoas.
Indivíduos fizeram sua escolha.
Lobão, por exemplo, foi ao Congresso com uma camiseta que explicava, com humor, o momento em que vivemos: peidei, mas não fui eu. Tico Santa Cruz acampou na frente do Senado e desenhou uma bandeira do Brasil com laranjas.
Artistas, diriam, têm suas prerrogativas. Nem todos são artistas, nem todos podem viajar a Brasília.
Apesar da patética fragilidade diante da história, só os indivíduos, no momento de torpor coletivo, podem encarnar a esperança.
Os que se calam hoje, com medo de fazer o jogo da direita, deveriam consultar a história, capítulo Stálin. Os momentos de cumplicidade com o crime são doces e suaves. A vergonha vem depois.
Fernando Gabeira
2.9.07
Inês Pedrosa: "Eduardo"
Sábado, 25 de agosto, faleceu um dos intelectuais mais brilhantes do nosso tempo: o português Eduardo Prado Coelho. Leio com admiração os seus textos desde quando eu estudava no Instituto de Filosofia da UFRJ. Em fevereiro do ano passado, tive o prazer e o privilégio de conhecê-lo e de conversar longamente com ele em Portugal, nas Correntes d’Escritas de Póvoa de Varzim, em Portugal. Publico a seguir a belíssima crônica que a escritora Inês Pedrosa lhe dedicou em sua coluna do jornal Expresso, ontem, sábado, 1 de setembro:
Eduardo
Sobre o teu caixão, um girassol aberto. Disseram-me que o gesto veio da Teresa Belo – tu terás sorrido, e o Ruy Belo floriu contigo nesse sorriso, estendendo-te a mão. Uma das tuas heranças são as amigas, várias, escolhidas a dedo – em geral, mulheres fortes, radiosas como girassóis, com as quais conversavas infinitamente de tudo e de nada. Mulheres que riem. No fundo, invejavam-te tanto esse dom de gerar e manter amizades longas com mulheres como os outros todos – a erudição, a inteligência plástica, a escrita iluminante, o sentido de humor, o prazer de viver, a capacidade de organização, a liberdade da palavra, a visibilidade. E invejavam-te descaradamente o dom da paixão retribuída, que possuías em alto grau. Uma vez, um escritor perguntou-te: «Como é que você faz para ter tanto sucesso com as mulheres quando eu, que sou um homem bonito, não consigo ter nem metade?» Ter-lhe-ás respondido, segundo me contaste: « Não sei, é de facto estranho. O melhor será perguntar-lhes a elas». Fulminante, com uma gargalhada elegantíssima. Também isso te perdoavam pouco: a gargalhada, a elegância.
As mulheres gostavam de conversar contigo porque tu sabias dançar de tema para tema, misturar o sério e o risível, o sublime e o quotidiano. Os homens ainda não são educados para deslizar assim entre os diversos níveis da existência. Tinhas uma curiosidade insaciável e genuinamente democrática: tudo te interessava. Transitavas entre pessoas e artes sem preconceitos de espécie nenhuma – estavas sempre disponível para a alegria da descoberta e do encantamento. Revelaste e estimulaste muitíssimos talentos, sem nunca adoptares a pose tutelar do pai ou do padrinho latino – antes pelo contrário, entregavas-te ao prazer de admirar, que é uma jóia rara, no nosso Portugal de hierarquias, vénias e trocas de favores.
Uma figura grada convocou-te certa vez para um encontro à chuva, e, depois de te deixar marinar bastante no meio de uma praça, lá veio dizer ao que vinha: queria que tu mexesses uns cordelinhos para que lhe atribuíssem um Prémio prestigiado e chorudo. Respondeste que nem membro do júri eras, mas a figura insistia que o teu poder de influência resolveria isso. Eu pasmava com a tua bonomia diante destes assaltos permanentes. Porque continuavas a disponibilizar a mesma atenção – nem mais, nem menos – para o trabalho das múltiplas pessoas que te tentavam usar como SOS-Promoção. Eras generoso a fundo perdido, e fazias disso a tua riqueza: o que vivias, o que conhecias, o que aprendias. Pessoalmente, invejava-te sobretudo a capacidade de esquecer as ofensas. «Não é que perdoe, é que esqueço genuinamente. Não tenho arquivo para as coisas más, o que é que eu hei-de fazer?». E tornavas a rir. Era esse talento para o esquecimento o que te impedia de envelhecer. Dizia Manuel Alberto Valente ao «Público», na bela e dolorosa edição que esse teu jornal de sempre te dedicou, que foste o grande intelectual da geração dele. O pior é que eu olho para a geração seguinte, a minha geração, e também não vejo ninguém como tu, capaz de fazer a ponte entre a universidade, as artes (todas as artes) e a vida, capaz de dar o corpo pelas causas (recordo-te muito doente, no Inverno passado, numa tarde gelada, no Rossio, recolhendo assinaturas para o movimento de cidadãos em prol da interrupção voluntária da gravidez), capaz de estar em tudo, e tão intensamente, como tu. Sendo simultaneamente, como tu eras, como tu és – porque os textos não morrem – um cintilante escritor.
Várias vezes me pareceu que aquilo que escrevias sobre obras alheias era melhor do que a obra em si. E tu, modestamente, incentivavas-me a que olhasse outra vez. Eu olhava – e, se nem sempre consegui gostar do que tu gostavas, consegui pelo menos descobrir novas dimensões e estímulos nas tuas razões. Tinhas um cânone estético bem definido, mas de forma alguma estanque – pouco te perdoavam, aliás, uma coisa e outra. E tu, nas tintas. A frontalidade foi o único traço que senti alterar-se em ti, com o tempo – em particular nos últimos anos: como se a ronda da morte te levasse a escolher palavras cada vez mais directas e límpidas. Essa liberdade paga-se, claro –há pouco tempo telefonaras-me perguntando se não me importaria de a ir ao tribunal atestar do teu bom carácter.
Creio que essa liberdade indomável te terá vedado o acesso a cargos que terias servido na perfeição – ocorrem-me vários, desde Ministro da Cultura a director de programas da RTP. As tuas incessantes ideias e o teu modo comunicante de viver teriam sido muito úteis ao país – os dez anos em que foste conselheiro cultural em Paris marcaram uma projecção exponencial da cultura portuguesa em França.
Consola-me saber que não sofreste. Que apenas adormeceste, ao lado da mulher que amavas, depois de mais um dia feliz. Sem incomodar ninguém – como era teu timbre. Se me pedissem uma definição humana para a suavidade, eu dizia o teu nome. Eduardo Prado Coelho. E continuarei a evocar o teu riso, as tuas palavras, o teu exemplo, como se rodasse um inesgotável girassol.
Inês Pedrosa
Eduardo
Sobre o teu caixão, um girassol aberto. Disseram-me que o gesto veio da Teresa Belo – tu terás sorrido, e o Ruy Belo floriu contigo nesse sorriso, estendendo-te a mão. Uma das tuas heranças são as amigas, várias, escolhidas a dedo – em geral, mulheres fortes, radiosas como girassóis, com as quais conversavas infinitamente de tudo e de nada. Mulheres que riem. No fundo, invejavam-te tanto esse dom de gerar e manter amizades longas com mulheres como os outros todos – a erudição, a inteligência plástica, a escrita iluminante, o sentido de humor, o prazer de viver, a capacidade de organização, a liberdade da palavra, a visibilidade. E invejavam-te descaradamente o dom da paixão retribuída, que possuías em alto grau. Uma vez, um escritor perguntou-te: «Como é que você faz para ter tanto sucesso com as mulheres quando eu, que sou um homem bonito, não consigo ter nem metade?» Ter-lhe-ás respondido, segundo me contaste: « Não sei, é de facto estranho. O melhor será perguntar-lhes a elas». Fulminante, com uma gargalhada elegantíssima. Também isso te perdoavam pouco: a gargalhada, a elegância.
As mulheres gostavam de conversar contigo porque tu sabias dançar de tema para tema, misturar o sério e o risível, o sublime e o quotidiano. Os homens ainda não são educados para deslizar assim entre os diversos níveis da existência. Tinhas uma curiosidade insaciável e genuinamente democrática: tudo te interessava. Transitavas entre pessoas e artes sem preconceitos de espécie nenhuma – estavas sempre disponível para a alegria da descoberta e do encantamento. Revelaste e estimulaste muitíssimos talentos, sem nunca adoptares a pose tutelar do pai ou do padrinho latino – antes pelo contrário, entregavas-te ao prazer de admirar, que é uma jóia rara, no nosso Portugal de hierarquias, vénias e trocas de favores.
Uma figura grada convocou-te certa vez para um encontro à chuva, e, depois de te deixar marinar bastante no meio de uma praça, lá veio dizer ao que vinha: queria que tu mexesses uns cordelinhos para que lhe atribuíssem um Prémio prestigiado e chorudo. Respondeste que nem membro do júri eras, mas a figura insistia que o teu poder de influência resolveria isso. Eu pasmava com a tua bonomia diante destes assaltos permanentes. Porque continuavas a disponibilizar a mesma atenção – nem mais, nem menos – para o trabalho das múltiplas pessoas que te tentavam usar como SOS-Promoção. Eras generoso a fundo perdido, e fazias disso a tua riqueza: o que vivias, o que conhecias, o que aprendias. Pessoalmente, invejava-te sobretudo a capacidade de esquecer as ofensas. «Não é que perdoe, é que esqueço genuinamente. Não tenho arquivo para as coisas más, o que é que eu hei-de fazer?». E tornavas a rir. Era esse talento para o esquecimento o que te impedia de envelhecer. Dizia Manuel Alberto Valente ao «Público», na bela e dolorosa edição que esse teu jornal de sempre te dedicou, que foste o grande intelectual da geração dele. O pior é que eu olho para a geração seguinte, a minha geração, e também não vejo ninguém como tu, capaz de fazer a ponte entre a universidade, as artes (todas as artes) e a vida, capaz de dar o corpo pelas causas (recordo-te muito doente, no Inverno passado, numa tarde gelada, no Rossio, recolhendo assinaturas para o movimento de cidadãos em prol da interrupção voluntária da gravidez), capaz de estar em tudo, e tão intensamente, como tu. Sendo simultaneamente, como tu eras, como tu és – porque os textos não morrem – um cintilante escritor.
Várias vezes me pareceu que aquilo que escrevias sobre obras alheias era melhor do que a obra em si. E tu, modestamente, incentivavas-me a que olhasse outra vez. Eu olhava – e, se nem sempre consegui gostar do que tu gostavas, consegui pelo menos descobrir novas dimensões e estímulos nas tuas razões. Tinhas um cânone estético bem definido, mas de forma alguma estanque – pouco te perdoavam, aliás, uma coisa e outra. E tu, nas tintas. A frontalidade foi o único traço que senti alterar-se em ti, com o tempo – em particular nos últimos anos: como se a ronda da morte te levasse a escolher palavras cada vez mais directas e límpidas. Essa liberdade paga-se, claro –há pouco tempo telefonaras-me perguntando se não me importaria de a ir ao tribunal atestar do teu bom carácter.
Creio que essa liberdade indomável te terá vedado o acesso a cargos que terias servido na perfeição – ocorrem-me vários, desde Ministro da Cultura a director de programas da RTP. As tuas incessantes ideias e o teu modo comunicante de viver teriam sido muito úteis ao país – os dez anos em que foste conselheiro cultural em Paris marcaram uma projecção exponencial da cultura portuguesa em França.
Consola-me saber que não sofreste. Que apenas adormeceste, ao lado da mulher que amavas, depois de mais um dia feliz. Sem incomodar ninguém – como era teu timbre. Se me pedissem uma definição humana para a suavidade, eu dizia o teu nome. Eduardo Prado Coelho. E continuarei a evocar o teu riso, as tuas palavras, o teu exemplo, como se rodasse um inesgotável girassol.
Inês Pedrosa