É inesquecível o seguinte artigo do Eduardo Giannetti:
Palácio subjetivo aflora no carnaval
Esqueço rapidamente quase tudo a que assisto no cinema e TV. Em alguns casos, chego ao extremo de nem lembrar se já teria visto ou não algum filme ou programa a que esteja assistindo. É uma experiência inconfortável de perda de registro e que se torna esmagadora quando me acontece de encontrar alguém que resolve contar de forma minuciosa, sadicamente detalhista, algo que tenha visto tempos atrás. A sensação que fica é a de que padeço de algum tipo de amnésia aguda localizada.
Mas nem tudo, felizmente, desaparece sem vestígio no ralo da memória. Foi o que pude constatar com certo alívio, num quarto de hotel em Teresina, enquanto assistia ao especial sobre o Brasil (The giant awakens) exibido pela rede CNN há poucos dias [fevereiro de 98].
O programa dividiu-se em blocos didáticos e previsíveis. Primeiro, a situação econômica do país e as nossas mazelas e iniqüidades sociais; depois, um passeio pela floresta amazônica entremeado de alertas sobre a devastação ecológica; e, por fim, um apanhado de manifestações da cultura popular: estádios de futebol vibrantes, grupos jovens de percussão, praias apinhadas de hedonistas e os preparativos do carnaval. A última cena exibia uma menina pobre, de três ou quatro anos de idade, ensaiando feliz da vida e cheia de graça os seus primeiros passos de samba ao som de um tamborim.
O especial da CNN não trouxe novidades. Foi um programa correto, suficiente para embalar o tédio e preencher a janela na grade horária, mas essencialmente rotineiro e descartável. Um programa, em suma, fadado ao esquecimento quase instantâneo e que eu mal conseguiria lembrar de haver algum dia assistido, não fosse pelo fato de que ele acabou me despertando para lembranças que nem eu me sabia capaz de recordar.
A imagem da menina pobre sambando e o contraste implícito entre esta cena e o quadro de miséria exibido na parte inicial do programa reavivaram em minha memória as imagens de um outro documentário sobre o Brasil visto de fora — um trabalho de jornalismo que, este sim, eu não hesitaria em destacar como uma das peças mais surpreendentes e reveladoras feitas até hoje por uma TV estrangeira sobre a nossa realidade.
No início dos anos 80, uma equipe da BBC inglesa veio ao Brasil gravar um documentário sobre as condições de vida numa favela do Rio. A idéia era mostrar de forma ultra-realista, no melhor estilo "câmara invisível" da tradição anglo-saxônica de reportagem, um dia na vida de uma jovem favelada carioca. A equipe subiu o morro, escolheu a protagonista e passou a registrar o cotidiano de vida, trabalho e lazer daquela jovem. O resultado, exibido em horário nobre na BBC-2 (eu estava morando na Inglaterra quando passou), foi um documentário deliciosamente incongruente e que acabou fugindo por completo do controle de seus idealizadores.
A intenção do programa era claramente explorar ao máximo as chagas abertas e a penúria do dia-a-dia na favela: a imundície e a promiscuidade dos barracos, a dieta sofrível, a falta de água encanada, o dinheiro curto, o tempo perdido no transporte público, o subemprego, enfim, as condições absurdamente precárias da vida no morro. Tudo isso a equipe da BBC foi até lá buscar e encontrou. O que eles não podiam esperar, mas as câmaras e microfones testemunharam, era que a jovem moradora daquele barraco objetivo habitasse um verdadeiro palácio subjetivo de alegria, esperança e fantasia.
Acontece que a jovem escolhida para servir de fio condutor do programa personificava a negação viva e radiante de toda a carga de sombra e amargura que o registro clínico de seu cotidiano nos fariam esperar dela. Em meio a toda precariedade de seu dia-a-dia humilde na favela, ela irradiava uma felicidade espontânea, uma satisfação íntima consigo mesma e uma libido exuberante que nós jamais conseguiríamos encontrar numa jovem inglesa de sua idade, não importando a classe social e mesmo no verão.
Embora tivesse razões de sobra para queixar-se do destino e viver na mais espessa melancolia, ela esbanjava joie de vivre por todos os poros e arrancava luz das trevas com a sua alegria interior. Recordo-me, em particular, da cena em que ela ia buscar água a certa distância de casa e, para desconcerto dos ingleses, voltava carregando a lata cheia e... cantando!
A seqüência — Paulo Prado e sua "raça triste" que me perdoe — era puro Gilberto Freyre: "Tanto nas plantações como dentro de casa, nos tanques de bater roupa, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando prato, fazendo doce, pilando café; nas cidades, carregando sacos de açúcar, pianos, sofás de jacarandá — os negros trabalharam sempre cantando; seus cantos de trabalho, tanto quanto os de xangô, os de festa, os de ninar menino pequeno, encheram de alegria africana a vida brasileira. Às vezes de um pouco de banzo: mas principalmente de alegria."
A relação entre o barraco objetivo da favela e o palácio subjetivo da jovem dá o que pensar. Não se trata, ao que parece, de um caso isolado. Ele ilustra de forma magnífica os resultados obtidos pelo Datafolha em recente pesquisa sobre a felicidade dos brasileiros. Apesar de viver e ganhar a vida em condições precárias, a grande maioria dos brasileiros considera-se feliz e amplamente satisfeita com a vida que leva: só 3% se declaram infelizes em relação à sua vida como um todo.
É plausível supor, contudo, que tanto o documentário da BBC quanto a pesquisa do Datafolha tenham sofrido os efeitos daquilo que os físicos quânticos denominam princípio da incerteza, ou seja, a interferência deturpadora do ato de observar sobre a configuração do que foi observado.
Ao ser indagado sobre a sua felicidade, o entrevistado se defende perante si mesmo da ameaça de dor que uma resposta derrotista traria e declara-se sinceramente feliz. Ao ser escolhida, entre tantas outras, para "estrelar" um programa de TV a ser exibido no exterior, a jovem carioca sente-se a eleita dos deuses e embarca num mundo de fantasias mais espesso e luxuriante que a novela das oito.
Qualquer que seja a realidade, um ponto permanece. Mesmo que o palácio subjetivo dos brasileiros não passe de criatura do princípio da incerteza — algo que, diga-se de passagem, não me parece ser o caso —, a tenacidade da garra demonstrada em não entregar os pontos e o dom de embarcar vigorosamente nos sonhos e fantasias que nos povoam são traços culturais de inestimável valor.
A disposição alegre e afetiva do brasileiro, em meio a toda precariedade do seu mundo objetivo e material, parece buscar qualquer brecha ou pretexto que se ofereça para florescer. Todo dia é "dia do riso chorar". A "ofegante epidemia" do carnaval —esse espantoso vulcão de euforia coletiva com data marcada — aí está para não nos deixar mentir.
De: GIANNETTI, Eduardo. “Palácio subjetivo aflora no carnaval”. In: Nada é tudo. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p.63-66.
Isso me faz pensar algumas coisas, por mais "viajandão" (ou fora de questão) que possa parecer: O que é exatamente o real? É aquilo que age em cima da gente, ou o que a gente confronta, constroi, idealiza e reforça todos os dias pra nossa vida?
ResponderExcluirNão sei, mas quanto mais penso sobre esse tipo de questão dentro de uma "identidade (nacional) brasileira" (uma ambiguidade clássica dessa identidade ou um traço dela, coisa que o artigo me parece expor), penso que, se a gente só existe através da pupila do outro, o Brasil ainda insiste em se espelhar e se determinar através do olhar estrangeiro. É uma espécie de reinvenção, toda hora, todo dia...e não falo isso como uma espécie de carga de todo negativa não, mas...parece que a gente aqui nos trópicos fica sempre nessa de um constante "devir"...sempre no "vir a ser" e nunca no "ser"...daí toda essa nossa teoria sobre a "cordialidade", a "livre libido sexual" (que de livre não tem nada...), de um lugar onde "todo mundo se tolera" (por mais que se odeie...), e isso sempre através do pensamento de fora, gringo, imbuido na (por e sobre a) gente...Acho que esse artigo, essa força paradoxal imensa entre a felicidade inata e a realidade crua funciona pra mim como uma espécie de farol muito delicado: pode tanto tender para uma saída viável à pergunta "o que é ser brasileiro" como pode encerra de vez a mais perversa, angustiante e não necessária acomodação à questão.
O texto me fez lembrar um poema, de José Roberto Matos Souza, "Quase", que bem poderia se chamar Brasil. Abs
ResponderExcluirQuase
Quase fui feliz ontem,
anteontem então,
quase explodo de felicidade.
Há três dias, quase fui de um riso só,
banhando de esmalte as pupilas vizinhas.
Durante a semana passada,
quase podia dar ou emprestar alegria,
andava com baldes cheios,
como quem carrega agua para a família.
No mês que ficou,
quase ri de doer a mandíbula,
contaminando os passantes.
Podendo me estender,
como relegar o ano passado,
com seus dias quase intensos,
nascendo prazeres em beiradas de mesas,
criando laços de afeiçao.
Hoje então,
estou quase pronto,
vou ser feliz amanhã.
Provavelmente o poema do José Roberto Matos Souza é baseado no meu poema "Quase", que acabou sendo musicado pelo Caetano Veloso e cantado pela Daúde. Aproveito o ensejo para postá-lo no portal do blog.
ResponderExcluirAbs.,
Antonio Cicero
Vindo de O Biscoito Fino e a Massa, dei de cara com este texto de Eduardo Giannetti, que no fim das contas defende Gilberto Freyre.
ResponderExcluirFiquei bastante feliz em confirmar o fato de o senhor não endossar o maniqueísmo ideológico.
Adriano,
ResponderExcluirObrigado. De fato, sou anti-maniqueísta, e isso não é de hoje. Se tiver tempo, dê uma olhada no meu ensaio "Brasil feito brasa", que se encontra na minha home page (http://uol.com.br/antoniocicero/). E viva Gilberto Freyre!
Abraço,
Antonio Cicero